NULIDADES DA SENTENÇA
Sumário

A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final.

Texto Integral

PROC. N.º[1] 4006/22.0T8VNG.P1

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Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 4


RELAÇÃO N.º 103
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: Rodrigues Pires
Fernando Vilares Ferreira

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

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I - RELATÓRIO.

AS PARTES


         A.:     AA.

         R.:     A..., Unipessoal, Lda.


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A[2] A intentou ação declarativa comum contra a R., alegando, em síntese, que sofreu danos por força de uma lança/pistola de água das instalações de lavagens de carro da ré ter serpenteado, peticionando a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 7.353€.

A ré contestou, pugnando pela improcedência da ação e deduziu pedido reconvencional alegando que a autora acionou o sistema de lavagem de veículos com a pistola/lança ainda no bocal, o que lhe causou danos, que computa em 633,74€, cujo montante peticiona da autora.

A autora contestou o pedido reconvencional, pugnando pela sua improcedência.

Foi elaborado despacho saneador, onde se identificou o objeto do litigio e os temas da prova.


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DA/O DESPACHO/DECISÃO RECORRIDO

Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida SENTENÇA julgando totalmente improcedente a demanda, nos seguintes termos:

Pelo exposto,

a) julgo a ação improcedente, por não provada, absolvendo a ré A..., Unipessoal, Lda., do pedido.

b) julgo a reconvenção procedente, por provada, condenando a autora AA a pagar à ré A..., Unipessoal, Lda., a quantia de 633,74€.

As custas correm pela autora por ter ficado vencida (artigo 527.º, 1, do CPC).“.


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DAS ALEGAÇÕES

A A., vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

“Nestes termos e nos melhores de direito que v/exa.(s) doutamente suprirão apela-se que deve ser dado provimento ao presente recurso, sendo aquela decisão revogada e trocada por outra que condene a ré no pagamento dos danos não patrimoniais e patrimoniais que a autora sofreu, bem como, absolver a autora do pedido reconvencional, por consequência revogada a decisão e trocada por outra que condene a ré no pagamento dos danos não patrimoniais e patrimoniais que a autora sofreu, bem como, absolver a autora do pedido reconvencional“.


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A ora recorrente apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

Dos pontos 5), 6) e 7) da matéria de facto dada como provada;

1. Portanto, aqui chegados retiramos que a sentença não podia ter desacreditado o depoimento das testemunhas BB e da testemunha CC só serem mãe e irmã da autora;

2. E retiramos esta ideia, porque é a própria decisão que diz que por aquelas serem família da autora, ora considera que elas não foram totalmente sinceras, para logo de seguida dizer que aquilo que elas disseram era verdade, ou seja, dizer que “a mangueira que a autora estaria a utilizar era a mangueira das jantes que até tem gatilho” foi sustentado no depoimento destas testemunhas também;

3. Logo, existe uma contradição na sentença, porque numa parte desacredita o depoimento das testemunhas e logo a seguir encontra nos mesmos depoimentos o que elas sempre disseram;

4. Posto isto, concluímos, que o que se diz na motivação da sentença, nomeadamente: “Ficou esclarecido que o funcionamento deste sistema com duas mangueiras, no qual apenas se pode utilizar uma de cada vez, é um pouco diferente, uma vez que a mangueira da “lança das jantes”, aquela que a autora estaria a utilizar, tem um gatilho que permite ligar e desligar, ao contrário da lança da mangueira da água que não tem esse gatilho” (vide parágrafo 7 da motivação na sentença);

5. Mais concluímos que a mangueira/lança que a autora tinha na mão era a das jantes (aliás a sentença diz: “estaria a utilizar”);

6. Isto, de facto é corroborado pelos documentos 7 e 13 juntos com a petição inicial – onde vemos que a autora tinha lavado duas jantes;

7. E acima de tudo é corroborado pelas testemunhas, ora onde elas dizem:

8. Ao minuto 01:14 da sua audição BB diz: “Quando ela pega na mangueira começa a lavar as jantes normalmente, quando de um momento para o outro …(impercetível) uma das mangueiras voou no ar (…)”;

9. Mas ainda pelo que diz a testemunha CC ao minuto 06:07 e a instâncias do Ilustre mandatário da Ré, aquela diz: “(…) ela pede-me moedas mete a moeda na lavagem das jantes e depois … (impercetível) quando ela está baixada não consigo ver, aí já estou ao telemóvel (…)”;

10. Portanto, a decisão não consegue conceber que a autora tenha lavado duas jantes, apesar de ter documentos para isso e ter testemunhas para isso, mas também não consegue conceber que a própria máquina tenha tido um mau funcionamento, por qualquer eventualidade;

11. Mas de facto, resulta da prova carreada até pela Ré, que o sistema das jantes não operaria sem ter sido acionado, ou seja, na lança das jantes sairia apenas um “esguicho”, e o que vemos é que foram lavadas duas jantes com bastante espuma e corroborado pelas testemunhas;

12. Assim, chegados aqui entendemos que o ponto 5) e o ponto 6) foram incorrectamente julgados;

13. Quanto ao ponto 5) deveria ser dada outra redação, tal como: o sistema de lavagem que a autora acionou foi a lavagem das jantes, ora tendo empunhado a respetiva lança e lavado duas jantes;

14. Assim, do que acabámos de dizer, ora também o ponto 6) não podia ter a redação que lhe foi dada, mas sim esta: Cumprindo a autora as instruções de segurança que se encontram fixadas de forma visível no local;

15. E por efeito disto no ponto 7) deveria ter sido dado como provado que: De repente, a mangueira que estava no outro suporte, ganhou pressão, soltou-se e começou a serpentear, como que chicoteando, ora isto por causa alheia à autora;

Dos pontos 12) e 15) da matéria de facto dada como provada;

Do ponto 12);

16. Olhando aqui a motivação da sentença, entendemos que não pode ser dado como provado o ponto 12), ou seja, que a mangueira partiu o vidro da ré só, porque a mangueira serpenteou e só, porque, ainda existe um documento com esse vidro partido;

17. Não podemos conceber este ponto como provado, porque, a sentença na motivação contradiz-se e contradiz-se ao dizer que a mangueira foi capaz de partir um vidro, mas não foi capaz de amolgar o carro que, por sinal, até o riscou, ou seja, que entrou em contacto com este carro;

18. Quando, pelo outro lado, nada se sabe se a mangueira entrou em contacto sequer com o vidro;

19. Mais, não se demonstra, pela via testemunhal ou por outro qualquer meio de prova, que o vidro sofreu algum tipo de contacto com a mangueira, ora só por existir um serpentear da mesma e um documento com o vidro partido, não nos parece crível que a sentença consiga dizer que este vidro foi partido pela mangueira (esta que não teve força nas várias vezes para amolgar o carro);

20. Portanto, apelando às regras da vida em comum, a sentença não dá como provado que o carro ficou amolgado, por isso o raciocínio será que a mangueira por não ter força para amolgar o carro, também não tinha força para partir o vidro;

21. Por efeito, consideramos que este ponto 12) da matéria dada como provada foi incorretamente julgado por falta de prova que indique o quê, como e quando o vidro foi partido, portanto deve ser removido e considerado como matéria não provada;

Do ponto 15);

22. Concluímos que o ponto 15) não poderia ter sido dado como provado da forma que o foi, porque a cabine esteve assim, porque: era desconfortável para outras pessoas e a ré decidiu que iria repor os vidros de outras cabines, o que para isso esperou 2 a 3 semanas para o fazer;

23. Na verdade, ouvindo o que diz a testemunha da Ré, DD, este á passagem 07:31 do seu depoimento diz: “aproveitámos o lanço quando foi esse vidro, porque lá está, aquilo como está ali com detergentes está ali exposto ao sol e já são 12 anos aproveitámos para trocar, não sei se foram 4 ou 5 vidros (…)”;

24. E se ouvirmos a passagem 08:55 vemos que a instâncias do Ilustre Advogado da ré e onde este mandatário diz: “aproveitaram para trocar, porque tiverem necessidade de pôr os outros?”;

25. E responde a testemunha à passagem 08:59: “sim, exatamente, porque senão íamos deixar andar mais uns tempos, porque não era uma situação grave, não era uma situação urgente.”;

26. Portanto, aqui chegados temos e consideramos que o ponto 15) foi incorretamente julgado ao qual deveria ser dada outra redação, tal como: Tendo ficado a ré cerca de 15 dias sem usar a cabine de lavagem em causa, porque aguardou para trocar este vidro quando entendeu trocar também os outros vidros das outras estações de lavagem;

Dos pontos 16) a 22) da matéria de facto não provada;

Pontos 16), 17) e 18);

27. A sentença deu como não provado que a autora na noite desse evento não dormiu e ficou abalado nos dias que se seguiram, que a autora ficou assustada ao ver a mãe e a irmã assustadas dentro do carro e ainda que ficou preocupada com a sua filha não conseguir dormir e continuar assustada e abalada;

28. No entanto, aquilo que se diz na motivação, nomeadamente, “Foi com base nos depoimentos das testemunhas BB e CC que o tribunal deu resposta ao susto vivido pela autora, igualmente pela sua filha ali estar presente, aos locais onde a mangueira a serpentear bateu no automóvel e ainda na própria autora”, e ainda que “a situação vivida pela autora é compatível com a existência de susto, receio e preocupação, por si e pela sua filha (…)” isto concatenado, por último, com o que vem dado como provado no ponto 11);

29. Deixa-nos com uma ideia de que os pontos 16), 17) e 18) deveriam ter sido considerados como provados e não considerados como não provados, por efeito, entendemos que estes pontos deviam ser insertos na matéria de facto dado como provada e não na que foi;

Ponto 19);

30. Continuando, a autora não se conforma com tal desiderato, porque a decisão não verteu a prova que foi carreada para os autos de maneira direta e real;

31. Assim, ao lermos o ponto 19) logo aí constatamos que este ponto está provado pelo auto da polícia;

32. Este auto foi junto com a petição inicial, sob o documento 16, e foi confirmado em audiência de julgamento, por efeito se no auto diz: “que a pistola chegou a embater na sua perna direita, braço esquerdo e cabeça, provocando alguns aranhões e hematomas”;

33. E se depois o agente da polícia à passagem do minuto 02:58, quando é perguntado se é o autor do auto, o Sr.º Agente da Polícia diz: “sim, senhor dr.º é o auto que eu fiz”;

34. Por efeito, disto constatamos que por força do artigo 371.º, n.º 1 este auto e a sua confirmação fazem prova plena dos factos nele atestados;

35. Logo, o ponto 19) teria de ser dado como provado, por consequência inserido na parte da matéria de facto dada como provada;

Ponto 20)

36. Neste ponto, temos de o ligar com o ponto 12), aí entendemos que não pode se considerado como provado esse ponto 12, ora porque a força que a mangueira teve de fazer sobre o vidro grosso para o partir não serviu para amolgar o carro;

37. Portanto, se seguirmos esse raciocínio, e se a mangueira tem força para partir um vidro grosso, naturalmente, pelas regras da experiência comum, retiramos que essa força era clara para amolgar o carro, ora este que foi tocado várias vezes pela mangueira;

38. Desta feita consideramos este ponto incorretamente julgado e considerando que o mesmo deve ser inscrito na parte da matéria de facto dada como provada e não o contrário como o foi;

Pontos 21) e 22);

39. Os pontos 21 e 22 dados como não provados não deveriam ser dados como não provados, mas sim dados como provados;

40. Assim, olhando a motivação (parágrafo 19) e ainda o ponto 9) da sentença retiramos que a serem dados como provados deveriam sê-lo no sentido de que – a autora vai ter de entregar o veículo para reparação ficando nesse período privada do uso do veículo automóvel;

41. O que considerando a experiência comum, podemos dizer com segurança que para pintar o carro vai estar parado 6 dias, por efeito, deveria ser dado como provado também que a autora estará privada do uso do veículo automóvel pelo menos 6 dias;

42. Portanto, estes pontos foram incorretamente julgados e sendo dados como provados, por um lado, e por outro lado, a sê-lo devem ser: que a autora vai ter de entregar o veículo para reparação ficando nesse período privada, pelo menos 6 dias, do uso de tal veículo automóvel;

Do valor que consta na fundamentação diferente do valor na decisão;

43. Se na fundamentação é dado como provado (bem ou mal como acima dissemos quando falámos no vidro) um valor, ora não pode a sentença na parte decisória condenar em mais do que aquilo que deu como provado ou não;

44. Portanto, se na fundamentação se provaram apenas €333,74 (vd. ponto13) não pode a sentença terminar a condenar a autora a pagar €633,74, por efeito, consideramos, olhando o artigo 615.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil uma nulidade da sentença;

Da decisão, que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas;

45. Atento os pontos de facto que considerámos, ora pela exposição da prova aqui feita, entendemos que a decisão deveria ter sido outra;

46. Por efeito, relendo as nossas alegações, entendemos que a decisão que se coaduna com o que expusemos é: que a ré deve ser condenada a pagar á autora os danos não patrimoniais e patrimoniais que foram provados nos autos, respetivamente, dores da autora, susto, receio e preocupação da autora e da sua filha e os danos no carro e respetiva reparação;

47. E ainda ser a autora, naturalmente, absolvida do pedido reconvencional suscitado pela ré;“.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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II-FUNDAMENTAÇÃO.


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, as questões a decidir, são as seguintes:

A) Nulidade da sentença do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil – condenação em quantia superior.

B) Modificação da decisão de facto.

C) Da alteração da decisão de direito.


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OS FACTOS

A sentença ora em crise deu como provada e não provada a seguinte factualidade.

3.1Matéria de facto provada

1) No dia 06/08/2021, a autora deslocou-se ao centro de lavagens A... na Avenida ..., em Vila Nova de Gaia, com o objetivo de lavar o carro que tripulava.

2) Aí chegada a autora estacionou o carro de matrícula ..-NM-.. no posto 4 das instalações da ré.

3) Após ter parado a viatura no tal posto dirigiu-se à máquina que aí estava e escolheu o programa de limpeza pretendido, pegando de seguida numa das duas pistolas/lanças de limpeza existentes.

4) A autora deslocou-se com a sua filha de sete anos, a sua mãe e a sua irmã

5) O sistema de lavagem que a autora acionou era aquele que tinha a lança ainda no bocal, tendo empunhado a lança do outro sistema.

6) Não cumprindo a autora as instruções de segurança que se encontram afixadas de forma visível no local.

7) De repente, a mangueira que estava no outro suporte, relativo ao sistema de lavagem que a autora acionou, ganhou pressão, soltou-se e começou a serpentear, como que chicoteando.

8) Batendo no carro da autora várias vezes, riscando-o na parte lateral esquerda, na parte traseira, na parte lateral direita, no espelho retrovisor do lado direito e ainda no capot.

9) Danos cuja reparação foi orçada em 1.350€

10) E ainda bateu na perna, no braço e na cabeça da autora provocando dores.

11) A filha da autora ficou muito assustada, assim igualmente ficando a autora, também pela sua filha.

12) Ao serpentear a lança embateu no vidro que separa cada uma das cabines de lavagem, partindo-o.

13) Para substituir o vidro, a ré gastou a quantia de 333,74€

14) O vidro foi substituído na última semana do mês de Agosto de 2021.

15) Tendo ficado a ré cerca de 15 dias sem usar a cabine de lavagem em causa.

3.2 Matéria de facto não provada

16) A autora não dormiu nessa noite ficando abalada alguns dias pelo que acontecera.

17) A autora ficou assustada por ver a sua mãe e irmã dentro do veículo assustadas.

18) A autora ficou preocupada com a sua filha por não conseguir dormir e continuar assustada e abalada.

19) Por a mangueira ter batido na autora ficou esta com arranhões e hematomas.

20) O veículo da autora ficou amolgado

21) O veículo da autora demorou seis dias a reparar

22) Ficando a autora privada do uso de automóvel nesse período.“.


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DE DIREITO.

A)

Da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil – condenação em quantia superior.

Argumenta a recorrente que ocorre nulidade da sentença, nos termos do artigo 215.º, n.º 1, al c) do Código de Processo Civil.

Tendo-se dado como provado que o valor do vidro partido foi de 333.74 €, “não pode a sentença terminar a condenar a autora a pagar €633,74, por efeito, consideramos, olhando o artigo 615.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil uma nulidade da sentença”.

Dispõe o artigo 615.º, n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil, o seguinte:

1 - É nula a sentença quando:

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

Nas conclusões de recurso, a apelante apresenta os citados argumentos para concluir pela ocorrência da apontada nulidade.

Em nosso entender, a apelante não tem razão e, portanto, não se encontra verificado o apontado vício da decisão proferida pela primeira instância.

Vejamos.

O que verdadeiramente a apelante discorda é da decisão de mérito que conheceu e decidiu de fundo, em sentido contrário ao por si pugnado.

Da leitura da decisão quanto ao pedido reconvencional, não ocorre nenhuma contradição, entre esta e a decisão.

Bem distinto será conhecer e decidir que corre erro de julgamento, como mais adiante se verá. Nas palavras de ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS PIRES DE SOUSA, in Código de Processo Civil Anotado, Vol I, pág. 737, “Acresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso. (…)

A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.

Pelo exposto não se encontra verificada a apontada nulidade.


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B)


Da modificação da matéria de facto

Pretende a A. que o facto 5, tenha uma redacção distinta: “O sistema de lavagem que a autora acionou foi a lavagem das jantes, ora tendo empunhado a respetiva lança e lavado duas jantes “em vez de “O sistema de lavagem que a autora acionou era aquele que tinha a lança ainda no bocal, tendo empunhado a lança do outro sistema”.

Quanto ao facto 6, que passe a ter redacção distinta, que: “Cumprindo a autora as instruções de segurança que se encontram fixadas de forma visível no local “ em vez de “Não cumprindo a autora as instruções de segurança que se encontram afixadas de forma visível no local”.

Quanto ao facto 7, que passe a ter redacção distinta, que: “De repente, a mangueira que estava no outro suporte, ganhou pressão, soltou-se e começou a serpentear, como que chicoteando, ora isto por causa alheia à autora “ em vez de “De repente, a mangueira que estava no outro suporte, relativo ao sistema de lavagem que a autora acionou, ganhou pressão, soltou-se e começou a serpentear, como que chicoteando”.

Que o facto 12 com a redacção “Ao serpentear a lança embateu no vidro que separa cada uma das cabines de lavagem, partindo-o”, deveria ter sido dado como não provado.

Que o facto 15, “Tendo ficado a ré cerca de 15 dias sem usar a cabine de lavagem em causa”, passe e a ter outra redacção, “Tendo ficado a ré cerca de 15 dias sem usar a cabine de lavagem em causa, porque aguardou para trocar este vidro quando entendeu trocar também os outros vidros das outras estações de lavagem”.

Que os factos 16, 17 e 18 dos factos não provados sejam dados como provados.


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Sustenta, que tal realidade factual decorre no essencial dos depoimentos das testemunhas BB e CC e que o Tribunal a quo desconsiderou tais depoimentos, sem fundamento para tal.

Vejamos.

Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguin-te:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as pas-sagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder pro-ceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.

A Doutrina tem vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.

Ponderando e apreciando a instância de recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, a recorrente, A.., preenche claramente os apontados requisitos, pelo que se impõe o seu conhecimento.

Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem, efectivamente, poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.

Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

“No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência do invocado erro de julgamento.

Não se ignora o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e que essa imediação está mais presente no tribunal da 1.ª instância. Todavia, ainda assim, o resultado dessa imediação deve ser objetivado em argumento probatório, suscetível de discussão racional, além do mais, para evitar os riscos da arbitrariedade“, in Ac. Supremo Tribunal de Justiça, 62/09.5TBLGS.E1.S1, de 02.11.2017, relatado pelo Cons. TOMÉ GOMES, in dgsi.pt.

Por isso, passa-se a reapreciar a matéria de facto impugnada.

A primeira instância fundamentou a sua convicção do seguinte modo:

Para dar resposta à matéria de facto, para além daquilo que já resultava coincidente ou não impugnado das narrações das partes nos articulados, o Tribunal considerou de forma concatenada os depoimentos prestados por todas as testemunhas ouvidas e a prova documental junta aos autos, toda apreciada segundo critérios de experiência comum.

Neste sentido, as testemunhas BB e CC, respetivamente mãe e irmã da autora, confirmaram a deslocação ao sistema de lavagem automática, que era a autora que conduzia o automóvel e que estava presente igualmente a filha da autora, de sete anos de idade.

Importa mencionar que seus depoimentos não pareceram totalmente sinceros, o que se notou por algum exagero das suas respostas designadamente quanto à descrição do episódio e suas consequências, do que a seguir se falará, além de ter parecido fora de vulgar que conseguissem descrever com pormenor uma situação absolutamente corriqueira e desinteressante como lavar um automóvel, que apenas se revelou digna de relato a parir do momento do incidente com a mangueira, o que nem sequer é muito congruente com a posição que a primeira ocupava (estava sentada no banco de trás) e o que a segunda fazia (estava a olhar para o telemóvel), ficando o tribunal com a sensação que as testemunhas não se conseguiram distanciar o suficiente da relação familiar que têm com a autora para conseguirem prestarem um depoimento objetivo e sincero.

Contaram estas testemunhas que a autora estava a lavar as jantes do automóvel (sabendo inclusive quantas jantes já tinha lavado, o que não é de crer) utilizando a mangueira da lança das jantes, quando, de repente, a outra mangueira, aquela que ainda estava colocada no bocal, explodiu e começou a serpentear e a bater no carro e na própria autora, que a procurava agarrar ao mesmo tempo que procurava proteger a sua filha que havia saído do veículo consigo, não oferecendo as testemunhas qualquer explicação para assim ter sucedido, senão um mau funcionamento da máquina de lavar.

Mas este mau funcionamento que não se provou. As testemunhas EE e DD, respetivamente funcionário da empresa que forneceu à ré a máquina de lavagem e funcionário da ré, explicaram que a máquina foi testada no dia seguinte de manhã (pela testemunha DD) e passados uns dias (pela testemunha EE) e funcionava na perfeição, não tendo sido detetado qualquer problema, tendo ainda a primeira referido que fazem verificações periódicas de dois em dois meses ao sistema de lavagem e que nunca foi identificada qualquer questão anómala.

Acresce que esta testemunha EE explicou ainda que a máquina de lavagem não funciona sem lhe ser colocada uma moeda, o que faz sentido, parecendo assim ainda mais invulgar o problema de mau funcionamento, pois que a lança da mangueira da água teria começado a funcionar sem ação humana, sem que alguém colocasse dinheiro na máquina, admitindo-se que as situações de mau funcionamento deste tipo de sistema sejam por situações contrárias, por as máquinas não funcionarem mesmo quando se lhes coloca dinheiro.

Seja como for, foi ainda referido por DD que é possível que as mangueiras possam funcionar sem que seja colocado dinheiro na máquina, essencialmente a mangueira da lança das jantes, podendo espalhar a água/sabão que ainda se encontra na própria mangueira, embora se trate de um funcionamento residual, saindo somente um pequeno esguicho como se lhe referiu a testemunha.

Ficou esclarecido que funcionamento deste sistema com duas mangueiras, no qual apenas se pode utilizar uma de cada vez, é um pouco diferente, uma vez que a mangueira da “lança das jantes”, aquela que a autora estaria a utilizar, tem um gatilho que permite ligar e desligar, ao contrário da lança da mangueira da água que não tem esse gatilho, conforme mais uma vez descreveu a testemunha DD, pelo que esta última apenas termina quando se acaba o tempo de utilização que o dinheiro que se introduziu na máquina permite ou se se carregar num dos botões de stop ou de emergência que existem na estrutura da máquina.

Relatou ainda a testemunha DD que esta mangueira da água funciona num sistema de pressão de água, de baixa pressão para alta pressão, sendo por isso que aquela possibilidade de funcionamento sem dinheiro, o tal esguicho de água/sabão que ainda pode ter na própria mangueira, será hipótese mais reservada para a mangueira da lança das jantes, pelo menos nunca funcionando a mangueira da água a alta pressão.

Ora, perante este relato pode com segurança concluir-se que a lança da mangueira que a autora pegou seria realmente a “lança das jantes”, pois que a outra é que, de repente, explodiu (conforme disseram as testemunhas BB e CC), saiu do bocal e andou a serpentear, batendo na autora, no seu veículo e nos vidros da lavagem, sendo esta descrição condizente com o comportamento de uma mangueira de água a funcionar em alta pressão sem que alguém a segure com firmeza nas mãos.

Note-se que a mangueira “da lança das jantes” não se comportaria assim, uma vez que tem um gatilho que permite ligar e desligar a água/sabão que dispara.

Por outro lado, também será de admitir que a autora tenha iniciado a lavagem do seu veículo com a “lança das jantes”, dado ser possível utilizar a água/sabão que ainda se encontra na própria mangueira, embora seja difícil que tenha lavado duas jantes, ao contrário do que sucederia com a mangueira da lança da água, que operando num sistema de pressão baixa para alta carece de dinheiro para funcionar e nunca um possível esguicho de água teria a força de fazer a mangueira serpentear.

E por isso mesmo é que igualmente se pode concluir desta descrição que o dinheiro que a autora introduziu na máquina foi para a utilização da mangueira da lança da água e não para a da mangueira da “lança das jantes” que empunhou, questão que já era referida pela ré na contestação e que o tribunal melhor a concretiza com base na prova produzida em julgamento, contraditada por ambas as partes, alicerçada nas regras da experiência comum.

Pense-se um bocado nisto. Que explicação pode haver para a mangueira da água ter disparado, ter saído do bocal onde se encontrava e ter serpenteado por aquele espaço movida pela água que saía da lança em alta pressão. A de um (mau) funcionamento sem lhe ter sido colocado dinheiro, o que não é possível, sabendo-se ainda que esse mau funcionamento ou funcionamento anómalo foi afastado pelas testemunhas EE e DD, ou a explicação mais lógica, a que resulta da autora ter colocado dinheiro para fazer funcionar esta mangueira e ter pegado na outra, deixando aquela primeira no bocal.

A descrição que deste episódio fizeram as testemunhas BB e CC, concatenadas com as explicações do funcionamento do sistema de lavagem das duas mangueiras que as testemunhas EE e DD ofereceram, permite dar credibilidade à segunda hipótese que, por ser a mais lógica, se suporta igualmente no princípio da navalha de Ockham, principio estudado pela ciência e filosofia que postula que de múltiplas explicações adequadas e possíveis para o mesmo conjunto de fatos, deve-se optar pela mais simples.

Tendo a autora empunhado a lança da mangueira das jantes quando colocou dinheiro para que funcionasse a mangueira da lança da água que deixou no bocal, não cumpriu as instruções de segurança que se encontram afixadas de forma visível no local.

Note-se que este desrespeito destas instruções pela autora foi logo revelado na petição inicial, pois que ali se descreve que escolheu primeiro o programa de limpeza e depois é que pegou na pistola/lança, podendo perceber-se pelo cartaz que se vê na fotografia que constitui o documento 10 junto com a petição inicial (que ficou igualmente partido), que prevê as instruções de utilização, que o primeiro passo a tomar é o de retirar a lança, sendo que este também consta das instruções inscritas na própria máquina de lavagem, conforme se pode ver na fotografia junta com a contestação como documento 1.

Foi com base nos depoimentos das testemunhas BB e CC que o tribunal deu resposta ao susto vivido pela autora, igualmente pela sua filha ali estar presente, aos locais onde a mangueira a serpentear bateu no automóvel e ainda na própria autora.

De notar que resulta do auto de participação policial junto com a petição inicial que o veículo apresentava diversos riscos, tendo a testemunha FF, agente da PSP que o elaborou, referido que ficou com a convicção que teriam sido causados pela força da mangueira conforme as testemunhas revelaram.

Seja como for, não se fez prova que o veículo tivesse ficado amolgado, apenas riscado, chamando a atenção que o orçamento de reparação junto com a petição inicial apenas refere como trabalho necessário a pintura do veículo, o que é mais compatível com os riscos que se referem no auto de participação policial do que propriamente com amolgadelas.

Tendo a autora procurado agarrar a mangueira que serpenteava por força da pressão da água, será igualmente de admitir que essa mangueira lhe tenha batido, o que igualmente foi atestado pela sua mãe e irmã, admitindo o tribunal à luz das regras da experiência comum que possa ter provocado dores, certo que a demonstração de arranhões e hematomas exige outra prova que aqui não foi feita.

A situação vivida pela autora é compatível com a existência de susto, receio ou preocupação, por si e pela sua filha, conforme os depoimentos das testemunhas BB e CC, se bem que pareceu ao tribunal que as respostas destas testemunhas traziam algum exagero, comparando esta situação com a vivida pelas vítimas de uma guerra, o que não ajudou à sua credibilidade, razão pela qual se deu por não provado o que consta dos factos 16) a 18), neste último apenas tendo as testemunhas dito que a filha da autora acordou durante noite.

O orçamento junto pela autora na petição inicial, em seu nome, aponta um valor de pintura do veículo de 1.353€, dando-se assim esta realidade por provada, certo que se deu por não provado por ausência de prova que tenha demorado seis dias a reparar e/ou que a autora tenha ficada privada do uso de automóvel nesse período, matérias relativamente à qual nenhuma prova foi feita.

Nas fotografias juntas na petição inicial consegue-se perceber que um dos vidros da cabine de lavagem ficou partido, o que a testemunha DD igualmente realçou, referindo que nessa sequência a ré aproveitou para substituir todos os vidros dessa cabine, percebendo-se ainda pelo teor dessas fotografias que se tratam de seis vidros individuais, três de cada lado, sendo o respetivo valor oferecido pela fatura junta com a contestação (2.022,44€), que dividido por seis, permite alcançar 333,74€ por vidro.

Datando esta fatura de 10 de setembro de 2021 e tendo o incidente ocorrido a 6 de agosto, a ré na contestação invoca que o vidro foi substituído na última semana de agosto, o que leva a concluir que a fatura foi emitida posteriormente, realidade que se mostra consentânea com o depoimento de DD que referiu que a cabine esteve cerca de 2/3 semanas sem trabalhar, assim sucedendo porque, caso contrário, iria molhar quem estivesse na cabine do lado.

Peticionando a quantia de 300€ por este prejuízo, a única prova que se produziu sobre o assunto foi ainda o depoimento de DD que referiu que cada cabine permite um ganho de 30/40€ por dia, o que até seria superior àqueles 300€, razão pela qual o tribunal aceitou este valor.

O Tribunal considerou toda a demais prova produzida, entre ela a prova documental que não foi especificamente referida porque dela nada resulta que mereça menção especial.“.


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Importa ter presente que a prova produzida deve ser conjugada, harmonizada e ponderada no seu conjunto enquanto base da convicção formulada pelo Tribunal, não sendo legítimo valorizar meios probatórios isolados em relação a outros, sopesando os critérios de valoração, numa perspectiva racional, de harmonia com as regras de normalidade e verosimilhança, mas sempre com referência às pessoas em concreto e à especificidade dos factos em apreciação.

Com vista a este Tribunal ficar habilitado a conhecer dos factos em discussão, e deste modo formar a sua convicção autónoma, própria e fundamentada, teve de analisar todos os meios de prova produzidos em 1.ª instância.

Deste modo, este Tribunal ponderou a prova documental junta aos autos e citada na sentença em crise e que aqui se dá por reproduzido.

De seguida, procedeu-se à audição integral e completa das gravações da sessão de audiência de julgamento, depoimentos das testemunhas.

Quanto à ponderação dos meios probatórios produzido em audiência final, mormente a prova por confissão ou a prova testemunhal, a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as partes ou as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.

Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.

O princípio básico do nosso ordenamento jurídico é o da livre apreciação da prova – artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.

“Vigora, entre nós, um sistema hibrido ou misto. Consagra, com efeito, o citado preceito o princípio da «liberdade de julgamento» («o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção» acerca de cada facto»). Apenas com a exceção de a lei exigir para a existência ou prova do facto qualquer formalidade especial, a qual não poderá ser dispensada" (cfr. o art. 607, n° 5, 2º segmento).

Assiste, pois, ao julgador o poder de livremente decidir - depois de ponderada apreciação e avaliação - os diversos pontos da matéria de facto (reportados às questões constantes do elenco dos temas de prova) segundo a sua prudente e intima convicção. Convicção esta alicerçada em regras técnicas ou em máximas da experiência, bem como em conhecimentos pessoais de ordem lógico-dedutiva sobre as realidades da vida e da convivência social. Elementos esses conducentes à prova direta do facto controvertido ou à ilação (dedução lógica) da realidade ou verosimilhança desse facto, através da prova de um facto indiciário (instrumental), nesta segunda hipótese se fundando a prova numa presunção natural ou judicial (arts. 351º do CC e 607°, nº 4). Poder que se exerce, não apenas no que respeita à admissibilidade dos meios de prova propostos ou requeridos pelas partes, como também no que se refere à determinação do seu valor probatório. E tudo por reporte ao material probatório carreado pelas partes ou recolhido oficiosamente para o processo, quiçá mesmo face à conduta processual por elas concretamente adotada.”, in Direito Processual Civil, FRANCISCO MANUEL FER-REIRA DE ALMEIDA, Vol I, 2ª ed, pág 109.


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Passemos, então, à apreciação do decidido conjugando com os meios de prova à disposição deste Tribunal de recurso.

A prova documental quanto à ocorrência na lavagem, nada nos diz. O auto de notícia relata apenas aquilo que a A. relatou aos elementos da PSP que se deslocaram ao local. Fotografias juntas com a contestação mostram a máquina de lavar e os dizeres que aí constam.

Quanto aos danos, nada se pode retirar. As fotografias para além do que se pode visualizar, nada nos diz. Os documentos intitulados de orçamento apenas refere que uma pintura geral tem o valor de 1.100,00 €, mais IVA. A R. juntou na contestação documento factura de fornecimento e substituição de um vidro no valor de 1.628,00 acrescido de IVA.

Por sua vez, a prova testemunhal é inconclusiva quanto ao que se passou efectivamente no dia 06.08.2021, à noite, cerca das 23:00 horas.

As duas testemunhas que estavam no local, tal como concluiu o M.mo Juiz a quo, não apresentam relato de molde a se poder afirmar e dar como provado em Tribunal, que os factos se passaram tal qual alega a A..

A falta de clareza nos seus depoimentos, conjugada com a ausência de coerência e lógica – tal como afirmado na sentença em crise –, não permitem afirmar que têm tal força probatória para que seja procedente a pretensão da recorrente. Efectivamente, os depoimentos das testemunhas assinaladas são manifestamente insuficientes para que este Tribunal forme convicção diversa e distinta da primeira instância, de molde a proceder à alteração da decisão da factualidade em causa.

Concluindo, improcede a pretensão de alterar a decisão da matéria de facto quanto aos pontos 5, 6 e 7.

Por sua vez quanto aos pontos 12 e 15 dos factos provados e ponto 20) dos factos não provados, a argumentação da recorrente de que a motivação apresentada pela primeira instância não é suficiente para que tal facto seja dado como provado.

Ora, uma vez mais, não há razão para alterara o decidido. Como decorre dos meios de prova produzidos que sobre esta factualidade, testemunha DD e nas fotografias juntas com a petição inicial, não forma este Tribunal convicção distinta. Como se alude na decisão em crise, a testemunha DD, apresentou relato coerente, escorreito e lógico, com sustentação nos outros meios de prova, sendo consentâneo com as regras de experiência e da normalidade da vida. Pelo exposto, adere-se na integra à motivação da primeira instância.

Assim, soçobra a pretensão da A. recorrente.

Mais, pretende que a factualidade dos pontos 16) a 18) dos factos não provados seja dada como provada, pela consideração positiva dos depoimentos das testemunhas BB e CC e na contradição que contém a decisão recorrida quanto a dar como não provado que a mangueira é capaz de partir de um vidro mas não para amolgar o carro. Ponderada a prova quanto a estes segmentos de facto, efectivamente, a prova apresentada pela recorrente é pouco robusta para que fique demonstrada tal realidade factual. Não basta um relato para que o relatado seja declarado como provado. É o que acontece nesta circunstância. Tal como se alude supra, estamos perante relatos “exagerados” de tal modo que é impossível afirmar que o relatado corresponde à realidade, ie, retira qualquer credibilidade ao dito relato.

Improcede, portanto a pretensão da recorrente.

Sustenta que a factualidade dos pontos 19) dos factos não provados, deveria ter resposta positiva. Que tal resulta do auto de participação policial.

Ora, nada mais afastado da realidade. O que resulta do auto é uma série de relatos apresentados pela A., sem qualquer outra corroboração. É pacífico que um documento, tal qual um auto de notícia da PSP, apenas faz prova do que foi declarado, e não que aquilo que foi declarado corresponde à realidade. Assim soçobra a pretensão da A..

Por fim, argumenta que a factualidade dos pontos 21) e 22) dos factos não provados, que deveriam ser dados como provados.

Na realidade, quanto a esta factualidade nada resulta referido por qualquer meio de prova e muito menos, prova documental, pelo que se mantém o decidido.

Pelo exposto, improcede na totalidade o recurso da apelante quanto à decisão de facto.


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C)


Da alteração da decisão de direito.

Quanto à pretensão da apelante não há que proceder a proceder a qualquer alteração da decisão de direito, com excepção da decisão quanto ao pedido reconvencional.

Com efeito, como se verifica da análise das conclusões formuladas pela apelante, o objecto deste recurso consistia essencialmente na alteração da decisão proferida sobre a matéria controvertida, no que se refere ao pedido formulado na petição inicial. Dessa alteração, antes de qualquer outro fundamento, dependia a pretendida alteração da solução decretada na sentença em crise, pois sem isso a tese da autora/apelante continuaria desprovida de substrato factual apto à sua afirmação.

Por conseguinte, perante a confirmação da decisão proferida sobre a matéria de facto, nada mais resta do que confirmar o acerto da decisão da primeira instância quanto à pretensão da A., e pela improcedência do seu recurso, nesta parte.

Quanto ao pedido reconvencional, como supra se decidiu, estamos perante um evidente e claro erro de julgamento, alegado.

A factualidade dada como provada resulta demonstrada a existência de danos na esfera da R. no montante de 333,74 €, referente à substituição do vidro partido. Mas na parte decisória o M.mo. Juiz condenou a A. na quantia de 633,74 €, referente à substituição do vidro e na circunstância da R. não “poder operar a aquela cabine nesse período”.

Da factualidade dada como provada somente resulta provado que a substituição do vidro teve um custo de 333,74 € e que ficou a R. cerca de 15 dias sem poder usar a cabine de lavagem. Contudo, a R. não logrou provar o montante de tais danos, pelo que nesta parte terá de decair a sua pretensão (da R.).

Pelo exposto, procede parcialmente o recurso da apelante.


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III DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar parcialmente procedente a apelação, julgando a reconvenção parcialmente procedente, por provada, condenando a autora AA a pagar à ré A..., Unipessoal, Lda., a quantia de 333,74€, absolvendo a A. do restante pedido, e nos mais confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante e apelada, na proporção do decaimento (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.
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Porto, 20 de Fevereiro de 2024
Alberto Taveira
Rodrigues Pires
Fernando Vilares Ferreira
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em
itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto Porto, 20 de Fevereiro de 2024