INSOLVÊNCIA
FALTA DE CITAÇÃO
JUNÇÃO DE PROCURAÇÃO
SANAÇÃO DE NULIDADE
Sumário


I - A citação consiste no ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender, sendo a sua falta causa de nulidade, a qual se considera sanada se o réu intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação (arts. 219º, nº 1, 187º, al. a), 188º e 189º, do CPC).
II - Dada a função da citação e a gravidade da cominação decorrente do art. 189º, do CPC, a expressão “intervir no processo” pressupõe a prática de qualquer ato por parte do réu do qual se possa concluir com segurança que o mesmo tomou pleno conhecimento de todo o processado por forma a ficar em condições de assegurar o seu efetivo direito de defesa, ou, dito de outro modo, que teve conhecimento, ou possibilidade de conhecimento, do processo idêntico àquele que lhe seria dado pela citação.
III - A expressão “logo” utilizada no art. 189º, do CPC, não deve ser interpretada como sendo de forma simultânea com a junção da procuração, mas antes após o decurso de um prazo razoável, coincidente com o prazo geral de 10 dias.
IV - A junção aos autos de uma procuração constituiu um ato com relevância processual que implica, após esse prazo, o conhecimento de todos os elementos relevantes da lide e permite o integral exercício do direito de defesa.
V - A situação de citação não concretizada ou frustrada deve ser equiparada, quanto aos seus efeitos jurídicos, e, designadamente, quanto à possibilidade de sanação, à situação de falta de citação, não havendo qualquer razão material válida para distinguir o caso em que o réu não foi citado porque o ato foi pura e simplesmente omitido da situação em que a citação foi enviada, mas o réu não procedeu ao levantamento da carta.
Se no caso mais grave, que é o da falta de citação, a lei prevê a possibilidade de sanação da nulidade daí decorrente, desde que verificado o circunstancialismo do art. 189º do CPC, ou seja, desde que o réu intervenha no processo sem arguir que não foi citado, por maioria de razão, terá de se admitir essa mesma possibilidade de sanação num caso de um vício menos grave, qual seja o da frustração da citação, se o réu intervier no processo no mesmo circunstancialismo.
VI - A requerida que, apesar de não estar citada, juntou aos autos procuração forense constituindo mandatária e conferindo-lhe poderes para a representar no processo, teve possibilidade de aceder a todos os elementos que lhe iriam ser transmitidos com a realização da citação, estando, assim, em condições de exercer de forma plena e efetiva o seu direito de defesa, tendo tido possibilidade de conhecimento do processo idêntico àquele que lhe seria dado pela citação.
Perante esta intervenção decorrente da junção de procuração, ocorrida neste concreto circunstancialismo, e não tendo sido arguida a não concretização da citação no prazo de 10 dias após a aludida junção, a não realização da citação ficou sanada à luz do art. 189º, do CPC, e não deve ser posteriormente ordenada a realização da sua citação.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

 RELATÓRIO

N.T. EMP01..., LDA., representada pelo seu mandatário Dr. AA, veio requerer a declaração de insolvência de BB.

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Foi ordenada a citação pessoal da requerida para deduzir oposição (despacho de 1.8.2023, ref. Citius ...39), na sequência do que, em 1.8.2023, foi expedida carta registada com A/R, com vista à sua citação, endereçada para o seu domicílio indicado no requerimento inicial.
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Em 4.8.2023, a requerida CC apresentou nos autos requerimento (ref. Citius ...69) dirigido ao processo nº 4774/23...., referindo que na qualidade de “devedora nos autos de processo à margem identificados, vem aos mesmos proceder à junção de procuração anexa para efeitos de sua representação.”
Com esse requerimento juntou procuração forense datada de 29 de junho de 2023, emitida a favor da Dr.ª DD, conferindo-lhe “os mais amplos poderes forenses em Direito permitidos bem como os poderes forenses especiais de representar o/a Mandante junto de todas as entidades públicas ou privadas, nos termos do art. 64º da Lei Geral Tributária; assim como os poderes forenses especiais de representar o mandante como parte em qualquer diligência nos termos e condições que entender por mais convenientes bem como os especiais poderes de confessar, transigir ou desistir em quaisquer processos cíveis ou criminais, administrativos de trabalho, ou de receber custas de parte.”
O referido requerimento foi subscrito pela Dr.ª DD e notificado ao Dr. AA no âmbito das notificações entre mandatários nos termos do art. 221º, CPC, notificação efetuada por via eletrónica.
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A carta expedida para citação da requerida foi devolvida com a menção de “objeto não reclamado” (carta junta em 28.8.2023).
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Com data de 14.9.2023, a secção notificou a requerente de que a carta para citação da requerida tinha sido devolvida com a indicação de não reclamada, notificando-a para, em 10 dias, indicar agente de execução (notificação ref. Citius ...19).
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Na sequência desta notificação, a requerente, em 29.9.2023, apresentou requerimento (ref. Citius ...31), cujo teor integral aqui se dá por reproduzido, no qual invocou que a requerida se deve considerar citada com a junção da procuração ocorrida em 4.8.2023, momento a partir do qual se deve contar o prazo para deduzir oposição, o qual já decorreu, razão pela qual se devem ter por confessados os factos alegados na petição inicial e deve ser de imediato declarada a insolvência da requerida.
Este requerimento foi notificado à Dr.ª DD.
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Por requerimento de 2.10.2023 (ref. Citius ...13), a requerida, por meio da sua mandatária, veio dizer que “da leitura atenta do CIRE resulta que obviamente, o devedor pessoa singular, tem de ser pessoalmente citado, sob pena de nulidade absoluta, o que nos presentes autos ainda não ocorreu.
Mas para evitar delongas, já que a requerente nem sequer nomeou um agente de execução para dar cumprimento ao ordenado, procede-se á junção de procuração com poderes especiais para a signatária receber a citação pela sua constituinte, o que desde já se requer.
Quanto à devedora deverá, sem prejuízo de melhor e dou arbítrio, aguardar a oposição á insolvência que em prazo, e após citação, oportunamente se efetuará.”

Com esse requerimento juntou aos autos procuração datada de 2.10.2023 e emitida a favor da Dr.ª DD na qual lhe conferiu “em conjunto ou separadamente, com os de substabelecer, os mais amplos poderes forenses em Direito permitidos, assim como os poderes de receber, por si, a citação no âmbito do processo nº 4774/23.... – Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo do Comércio ..., Juiz ....”
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Em 3.10.2023 (requerimento ref. Citius ...78), a requerente, dando por reproduzido tudo quanto já havia alegado no requerimento de 29.9.2023, veio opor-se ao pedido de citação da devedora na pessoa da sua mandatária, porquanto a mesma já tinha junto procuração para efeitos da sua representação há quase dois meses, tendo acesso integral ao processo, não tendo cabimento legal o pedido formulado.
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Em 10.10.2023 foi proferido despacho com o seguinte teor:

“A citação é o ato pelo qual se dá a conhecer a alguém que contra ele foi deduzido determinado processo, chamando-o ao mesmo, pela primeira vez, para se defender, querendo, art.º 219.º, n.º1, do CPC, sendo realizada por via pessoal ou edital.
Nos termos dos art.º 29.º do CIRE e art.º 228.º/1 do C. P. Civil, o devedor é citado pessoalmente, por carta registada com aviso de receção, para em 10 dias deduzir oposição (art.º 30.º/1 do CIRE).
No caso em apreço, retira-se dos autos que a requerida ainda não foi citada, apesar de ter já constituído mandatário.
Assim, determino a citação pessoal da requerida, nos termos do direito do art.º 231 Código de Processo Civil.”
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Em cumprimento do ordenado no despacho de 10.10.2023, foi expedida carta registada com aviso de receção, citando a Dr.ª DD, em representação da devedora, carta essa que foi rececionada em 17.10.2023.
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A requerente não se conformou com o despacho proferido em 10.10.2023 e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“I. Vem o presente recurso interposto da decisão constante do despacho datado de 10.10.2023, com a referência ...86, que entendeu que a requerida não se acha citada nos presentes autos, desconsiderando in totum os requerimentos e junção aos autos de procuração com poderes especiais pela requerida a favor da sua Ilustre mandatária, e que concluiu da seguinte forma: «A citação é o ato pelo qual se dá a conhecer a alguém que contra ele foi deduzido determinado processo, chamando-o ao mesmo, pela primeira vez, para se defender, querendo, art.º 219.º, n.º 1, do CPC, sendo realizada por via pessoal ou edital. Nos termos dos art.º 29.º do CIRE e art.º 228.º/1 do C. P. Civil, o devedor é citado pessoalmente, por carta registada com aviso de receção, para em 10 dias deduzir oposição (art.º 30.º/1 do CIRE). No caso em apreço, retira-se dos autos que a requerida ainda não foi citada, apesar de ter já constituído mandatário. Assim, determino a citação pessoal da requerida, nos termos do direito do art.º 231 Código de Processo Civil.»
II. Proferido despacho liminar em 1.08.2023, foi ordenada a citação, expedida em 4.08.2023, da requerida para, no prazo de 10 dias, deduzir, querendo, oposição, tendo sido emanada, no mesmo dia 1.08.2023, a citação dirigida à sua morada sita na Rua ..., ... ....
III. A citação foi devolvida em 21.08.2023, pelo facto de a requerida a não ter recebido, tendo, contudo no mesmo dia 4.08.2023, a requerida junto aos autos procuração forense, com poderes especiais, a favor da sua Ilustre mandatária para efeitos da sua representação.
IV. No seguimento do requerimento, apresentado pela recorrente, a 29.09.2023, com a referência ...31, sobre o qual recaiu o despacho recorrido, vem a requerida, por requerimento datado de 2.10.2023, com a referência ...13, requerer que seja citada na pessoa da sua mandatária.
V. A requerida intervém no processo sem arguir no ato, nos termos do disposto no artigo 189.º do CPC, qualquer nulidade por falta de citação ou, sequer, nos 10 dias posteriores ou no prazo de oposição, não apresentando, quase dois meses volvidos, sequer oposição à insolvência requerida.
VI. O requerimento apresentado nos autos pela requerida a 4.08.2023, não se trata de um mero requerimento de consulta aos autos, para a qual não é necessário sequer procuração forense, mas, objetivamente, um requerimento de efetiva demonstração e afirmação de que o objetivo era que nos autos de insolvência a requerida ficasse a ser concretamente representada para todos os efeitos legais, incluindo especiais, de representação.
VII. No dia 4.08.2023, pelas 15:03:34h, a requerida/devedora (tal como a própria se intitula) passa a ter cabal conhecimento dos elementos objetivos e subjetivos da ação, pois nessa data, a sua Ilustre mandatária passa a ter acesso à presente ação através do sistema Citius.
VIII. A partir de tal data, i.e., 4.08.2023, a requerida pode e deve exercer, querendo, o seu direito de defesa, tendo o prazo para exercício do direito de defesa pela requerida iniciado a sua contagem no 4.08.2023, tendo já, há muito tempo, terminado.
IX. A junção de procuração forense antes do ato de citação, sendo um ato processual relevante e, ainda, a não invocação de qualquer falta ou nulidade de citação, no ato, no prazo de dez dias ou no prazo legal para deduzir oposição, sobrepõe-se a este formalismo legal, considerando-se a requerida citada com esse ato processual.
X. Sendo manifesto que a junção de procuração forense aos autos, para efeitos de representação, o decurso de 59 dias entre o ato de junção e o do segundo requerimento aos autos a requerer que a citação seja efetuada na pessoa da Ilustre mandatária da requerida, é mais do que suficiente para fazer pressupor o conhecimento do processo, tendo-se, no caso concreto, que considerar uma intervenção relevante, porquanto quer o mandante quer o mandatário demonstram, ao fazê-lo, que tomaram conhecimento da existência daquele processo, estando, consequentemente, habilitados a exercer as faculdades processuais, no caso a dedução – querendo – da correspondente oposição à requerida insolvência.
XI. A requerida sabia, perfeitamente, que contra si corria e corre o presente processo, sendo insofismável que o sabe desde o dia ../../2023.
XII. Procuração junta, para efeitos de representação e não de mera consulta dos autos, a requerida, através da sua mandatária, está em total condição de invocar quaisquer nulidades, deduzir oposição, etc…, não o tendo feito até à presente data.
XIII. Não o tendo feito, mostram-se sanados quaisquer vícios e ultrapassados os prazos legais para o efeito, nomeadamente o prazo para a requerida deduzir oposição, ainda que com o pagamento da respetiva multa nos termos e para os efeitos do artigo 139.º, n.º 5 do CPC.
XIV. Inexistindo, também qualquer invocação de justo impedimento nos termos do disposto no artigo 140.º do CPC.
XV. Ou a invocação de qualquer nulidade por falta ou nulidade de citação, no ato de junção da procuração ou no prazo de oposição.
XVI. O prazo é perentório, nos termos e para os efeitos do artigo 139.º do CPC.
XVII. Decorrendo o prazo perentório, o direito de praticar o ato extinguiu-se, conforme prescreve o artigo 139.º, n.º 3 do CPC.
XVIII. Deve, pois, o despacho proferido, ser revogado e substituído por outro que julgue, in casu, que a junção de procuração a favor de advogado constitui uma intervenção relevante que faz pressupor o conhecimento do processo, e, reflexamente, que a requerida prescindiu conscientemente de arguir a falta de citação no ato ou no prazo de oposição, e, consequentemente, que o prazo para exercer defesa, no caso a eventual oposição à insolvência, decorreu, devendo-se ter-se por confessados os factos alegados na petição inicial, e ser, de imediato, anulando-se os atos subsequentes ao despacho sindicado, decretada a insolvência da requerida, nos termos conjugados, designadamente, dos artigos 29.º, n.º 1, 30.º, n.ºs 1 e 5 e 25.º, n.º 2, do CIRE.
XIX. Foram, consequentemente, violados, designadamente, os artigos 27.º, 28.º e 29.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, 132.º 139.º, 140.º, 163.º, 188.º, n.º 1, 189.º e 191.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil e 29.º, n.º 1, 30.º, n.ºs 1 e 5 e 25.º, n.º 2, do CIRE e, ainda, os princípios da estabilidade e segurança processuais”

Terminou pedindo que seja revogado o despacho sindicado, sendo substituído por outro que julgue que a junção de procuração a favor de advogado constitui uma intervenção relevante, que faz pressupor o conhecimento do processo, e reflexamente que a requerida prescindiu conscientemente de arguir a falta de citação no próprio ato ou no prazo de oposição, e, concludentemente, que o prazo para exercer defesa, no caso a eventual oposição à insolvência, decorreu, devendo-se ter-se por confessados os factos alegados na petição inicial, e ser, de imediato, anulando-se os atos subsequentes ao despacho sindicado, decretada a insolvência da requerida, nos termos conjugados, designadamente, dos artigos 29.º, n.º 1, 30.º, n.ºs 1 e 5 e 25.º, n.º 2, do CIRE.
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A requerida contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida....
 
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Foi fixado à causa o valor de € 86.340,92 (despacho de 5.2.2024 ref. Citius ...42).
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, a questão relevante a decidir consiste em saber quais as consequências jurídicas da junção de procuração pela requerida, em 4.8.2023, relativamente à subsequente tramitação processual, designadamente se essa junção tem como efeito dispensar a necessidade da sua posterior citação nos autos por, a partir daquele momento, a requerida ter tomado conhecimento do processo e estar em condições de deduzir oposição.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão a proferir são os que se encontram descritos no relatório e os mesmos resultam do iter processual.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

O despacho recorrido considerou que a requerida não se encontrava citada, apesar de já ter constituído mandatário, e determinou que se procedesse à sua citação pessoal.
O cerne da questão nos presentes autos não consiste em saber se aquando da prolação do despacho recorrido a requerida estava citada, pois pensamos ser incontroverso que não estava.
Efetivamente, quando foi proferido o despacho recorrido, em 10.10.2023, a requerida não estava citada pois a carta que havia sido enviada para a sua citação veio devolvida, por não ter sido reclamada.

A questão que verdadeiramente se coloca, e que tem que ser dilucidada, é a de definir quais os efeitos da junção de procuração por parte da requerida, em 4.8.2023, designadamente se essa junção dispensa a necessidade da sua posterior citação nos autos.

Como é consabido, a instância inicia-se com a propositura da ação (art. 259º, nº 1, do CPC, diploma ao qual pertencem as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem), sendo inicialmente delimitada e conformada pelo autor (com a receção da petição inicial na secretaria) quer relativamente aos elementos subjetivos, ou seja, quanto às pessoas demandadas, quer relativamente aos elementos objetivos, ou seja, quanto ao pedido formulado e fundado numa causa de pedir individualizada e concretizada.
Porém, salvo disposição legal em contrário, quanto ao réu o ato de proposição da ação não produz efeitos até ao momento da citação (art. 259º, nº 2).
O art. 219º, nº 1 define a citação como o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender; emprega-se ainda para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa.
A citação “[e]ncerra assim o duplo sentido de transmissão de conhecimento e de convite para defesa. Constituindo o direito de defesa uma vertente fundamental do direito à jurisdição (art. 3-1), a citação tem por função possibilitar o seu exercício efetivo, pelo que através dela têm de ser transmitidos ao réu os elementos reputados essenciais para o efeito (art. 227), sob pena de nulidade (art. 191-1)” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in CPC Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 432).

Quer pela forma, quer pelo seu conteúdo e finalidade, a citação constitui o meio privilegiado para a concretização de um dos princípios basilares do processo civil: o contraditório. Num processo de natureza dialética como é o processo civil, é a citação do réu que determina o início da discussão necessária a iluminar a resolução do conflito de interesses, com vista à justa composição do litígio. É pelo ato da citação que se dá conhecimento ao réu da petição ou do requerimento inicial, propiciando-lhe a faculdade de deduzir oposição” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa in CPC Anotado, Vol. I, 2ª ed., pág. 265).

A citação assume-se, assim, como um ato essencial no processo tendo a tripla função de transmissão do conhecimento da instauração da ação, convite para o réu apresentar a sua defesa e constituição como parte, sendo através dela que se constitui, concretiza e desencadeia a relação jurídica de caráter triangular (autor, réu, juiz), dando cumprimento ao princípio do contraditório e permitindo à pessoa contra quem a ação foi proposta vir a juízo pronunciar-se sobre a pretensão contra si formulada, apresentando a sua defesa (cf. Francisco Ferreira de Almeida in Direito Processual Civil, Vol. II, 3ª ed., pág. 102).

Dada a importância do ato de citação, decorrente das enunciadas finalidades, bem se compreende que a sua falta ou irregularidade constitua causa de nulidade, nos termos regulados nos arts. 187º a 192º.

A lei distingue dois tipos de invalidade da citação: a falta de citação, regulada no art. 188º, e a nulidade da citação, tratada no art. 191º.

Verifica-se falta de citação nas situações discriminadas nas alíneas do nº 1 do art.º 188º, sendo a primeira delas a completa omissão do ato, regulada na al. a), e as restantes, reguladas nas demais alíneas, situações que, pela sua gravidade, lhe são equiparadas.
A falta de citação, no caso de unicidade de réu, tem por consequência a anulação de todo o processo após a petição inicial, salvando-se apenas esta (art.º 187º al. a), e é de conhecimento oficioso (art. 196º).
Porém, se o réu intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade (art.º 189º).

Pode suceder que a citação tenha sido efetuada sem observância das formalidades prescritas na lei, o que, a ocorrer, tem como consequência a sua nulidade (art. 191º, nº 1).
Nesta variante de vícios, a nulidade só é decretada se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado (art. 191º, nº 4).
Esta “exigência de que a falta seja suscetível de prejudicar a defesa do citado constitui a garantia de o regime instituído ser utilizado para realizar o seu escopo (evitar a restrição ou supressão prática do direito de defesa) e não para finalidades puramente formais ou dilatórias” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 394).

Por outro lado, o não cumprimento das formalidades legais não é de conhecimento oficioso, tendo a falta de ser invocada pelo réu no prazo indicado para a contestação, ou, na falta de indicação deste prazo ou no caso de citação edital, aquando da primeira intervenção do citado no processo (art. 191º, nº 2).
Verificada a omissão de alguma formalidade, e que essa falta é prejudicial ao réu, o juiz decreta a nulidade da citação e de todos os atos posteriores que dela dependam absolutamente (art.º 195º, nº 2).

Importa analisar, com maior detalhe, a situação de suprimento da nulidade decorrente da falta de citação, a qual constitui a mais grave das invalidades que pode afetar o ato de citação.
Tal possibilidade é conferida pelo art. 189º que dispõe que, se o réu intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade.

Na verdade, não faria sentido que o réu (...) interviesse no processo sem arguir a falta de citação e esta mantivesse o efeito de nulidade. Ao intervir, o réu (...) tem, ou pode logo ter, pleno conhecimento do processado, pelo que, optando pela não arguição da falta, não pode deixar de se presumir juris et de jure que dela não quer, porque não precisa, prevalecer-se” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 390).

A solução consagrada neste normativo radica no entendimento de que se, não obstante o vício, quem deveria ter sido citado está no processo, o intuito informativo típico da citação está, afinal, assegurado (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa in CPC Anotado, Vol. I, 2ª ed., pág. 241).

Importa, porém, definir ou concretizar o que se entende por “intervir no processo” para efeitos da citada norma.

Como nos dão nota Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (in ob. cit., pág. 241), “[n]a jurisprudência existe uma orientação que defende que a junção da procuração a advogado constitui uma intervenção relevante que faz pressupor o conhecimento do processo que a mesma permite, de modo a presumir-se que o réu prescindiu conscientemente de arguir a falta de citação (RE 20-12-18, 4901/16, RL 20-4-15, 564/14 e RE 16-4-15 401/10), à qual se opõe outra corrente, segundo a qual a forma de compatibilizar o direito constitucional de acesso ao direito, no caso das ações tramitadas eletronicamente, é fazer uma interpretação atualista quanto aos efeitos relacionados com a apresentação de uma procuração forense, de modo a evitar que a simples junção de instrumento de mandato forense não implique direta e necessariamente, a preclusão da possibilidade de invocação da nulidade por falta de citação (RP 9-1-20, 2087/17, RC 24-4-18, 608/10, RL 6-7-17, 21296/12 e RE 3-11-16, 1573/10).”

Dada a função da citação e a gravidade da cominação decorrente do art. 189º consideramos que a expressão “intervir no processo” pressupõe a prática de qualquer ato por parte do réu do qual se possa concluir com segurança que o mesmo tomou pleno conhecimento de todo o processado por forma a ficar em condições de assegurar o seu efetivo direito de defesa, ou, dito de outro modo, que teve conhecimento, ou possibilidade de conhecimento, do processo idêntico àquele que lhe seria dado pela citação.
Como referido pelo Tribunal Constitucional (acórdão nº 678/98, de 2.12.1998, in www.tribunalconstitucional.pt)mister é que da intervenção posterior do réu nos autos resulte que, de harmonia com um juízo de razoabilidade, o mesmo, não obstante o vício da falta de citação, fique ciente, nos seus precisos termos, das razões de facto e de direito que são avançadas pelo autor para fundarem a pretensão contra ele deduzida.
Só assim, na verdade, se pode perspectivar que o princípio do contraditório foi observado e que ao réu foi, na prática, dada a possibilidade de uma actuação na lide em condições idênticas às do autor, princípio e possibilidades essas que, como se viu, defluem dos aludidos normativos constitucionais”.

Aceita-se, sem dificuldade de maior, que a mera junção de uma procuração aos autos não faz precludir de imediato a possibilidade de arguir a falta de citação, acompanhando-se o expendido o Acórdão da Relação do Porto, de 9.1.2020, (P 2087/17.8T8OAZ-A.P1 in www.dgsi.pt) em cujo sumário se refere que:

“I - Numa interpretação actualista e devido aos condicionalismos de acesso ao processo eletrónico a expressão “logo” do art. 189º, do CPC deve ser interpretada como sendo após, um prazo razoável, e não de forma simultânea com a junção da procuração.
II - A junção aos autos de uma procuração constituiu um acto com relevância processual que implica, após esse prazo, o conhecimento de todos os elementos relevantes da lide e permite o integral exercício do seu direito de defesa.”

Acompanha-se o entendimento desse aresto de que “a intervenção relevante para efeitos de sanação da falta de citação, terá de passar a ser algum período posterior ao acesso ao processo, por forma a permitir a este a consulta do mesmo e o conhecimento da causa de nulidade em todos os seus contornos” e que “esse prazo terá de ser o ordinatório geral de dez dias, pois, será esse o dever de diligência mínimo de qualquer mandatário.”

Retornando agora ao caso em apreço, verifica-se que, como resulta da factualidade supra descrita, nem há falta de citação, nem há irregularidade de citação, à luz dos normativos citados, pois o ato foi praticado, tendo a secção enviado carta com vista à citação da requerida para o seu domicílio, tal como impõe a lei.
O que há é uma situação de frustração da citação pois o ato, que foi praticado com observância das formalidades legais, não se concretizou porque a requerida não procedeu ao levantamento da carta e a mesma veio devolvida por não ter sido reclamada.

Portanto, a requerida não se encontrava citada quando, em 4.8.2023, procedeu à junção do requerimento e procuração nos termos descritos.

A situação de citação não concretizada ou frustrada deve ser equiparada, quanto aos seus efeitos jurídicos e, designadamente quanto à possibilidade de sanação, à situação de falta de citação, não havendo qualquer razão material válida para distinguir o caso em que o réu não foi citado porque o ato foi pura e simplesmente omitido da situação em que a citação foi enviada, mas o réu não procedeu ao levantamento da carta.

Num como noutro caso, a citação não ocorreu. As duas situações apenas divergem quanto à causa que determinou a não citação: num a omissão do ato, noutro a não receção da carta.
A divergência circunscrita aos motivos da não realização da citação não justifica que se dê um diferente tratamento aos dois casos.
Na verdade, se no caso mais grave, que é o da falta de citação, a lei prevê a possibilidade de sanação da nulidade daí decorrente desde que verificado o circunstancialismo do art. 189º, ou seja, desde que o réu intervenha no processo sem arguir que não foi citado, por maioria de razão, terá de se admitir essa mesma possibilidade de sanação num caso de um vício menos grave, qual seja o da frustração da citação, se o réu intervier no processo no mesmo circunstancialismo.

Por assim ser, importa analisar à luz das considerações expendidas se a junção de procuração por parte da requerida constitui ato de intervenção no processo passível de sanar a falta da sua citação, nos termos do art. 189º, aplicável por maioria de razão.

No caso, não obstante a citação não se ter concretizado, a requerida, de algum modo, teve necessariamente conhecimento da existência do processo, pois só assim se explica que, em 4.8.2023, ou seja, 3 dias após a expedição da carta de citação não reclamada, tenha dirigido um requerimento ao processo, identificando o mesmo, referindo ser devedora nos autos de processo à margem identificados, dizendo que vem juntar a procuração anexa para efeitos da sua representação, que efetivamente juntou, tendo ainda notificado o mandatário da parte contrária da junção do requerimento e procuração, ao abrigo das notificações entre mandatários.
Nesse momento nada arguiu quanto à falta da sua citação, sabendo naturalmente que não tinha sido citada.
Também não o fez no prazo geral de 10 dias, após a junção de procuração, período esse no qual a mandatária constituída passou a ter acesso integral ao processo eletrónico e teve oportunidade de consultar todos os atos nele praticados, incluindo a expedição da carta para citação.
Se alguma dúvida houvesse sobre a situação da carta de citação, a requerida, através da mandatária constituída, tinha acesso ao respetivo número de registo e facilmente poderia pesquisar no site dos correios o estado em que se encontrava a carta por forma a averiguar se ainda se encontrava disponível para levantamento ou se já tinha sido devolvida por não ter sido reclamada. Tinha assim à sua disponibilidade todos os elementos necessários para verificar o estado da citação e para arguir a sua não concretização no prazo de 10 dias subsequente à junção da procuração.
Após intervenção no processo e decorrido o prazo geral de 10 dias, em que teve a possibilidade de consultar o processo na íntegra, optou por nada arguir relativamente à citação.
A requerida, nesse período de 10 dias, através da mandatária constituída, teve possibilidade de aceder a todos os elementos que lhe iriam ser transmitidos com a realização da citação pois todos eles constavam do processo.
Estava assim em condições de exercer de forma plena e efetiva o seu direito de defesa tendo tido possibilidade de conhecimento do processo idêntico àquele que lhe seria dado pela citação.
Perante esta intervenção decorrente da junção de procuração, ocorrida neste concreto circunstancialismo, e não tendo sido arguida a não concretização da citação, essa falta ficou sanada à luz do art. 189º.

Desta conclusão deflui, como consequência necessária, que não podia ser proferido despacho a ordenar a realização da citação, cuja não concretização já estava sanada, nos termos do art. 189º, por a requerida ter constituído mandatária e, decorrido o prazo de 10 dias, nada ter arguido quanto à não concretização da citação.

Assim, o despacho recorrido que determinou a citação da requerida tem de ser revogado e têm de ser anulados todos os atos subsequentes dele dependentes, considerando-se sanada a não realização da citação com a junção da procuração e seguindo-se os ulteriores termos processuais decorrentes da falta de oposição da devedora, nos termos do art. 30º, nº 5, do CIRE.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado procedente na totalidade, é a recorrida responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, que determinou a citação da requerida, com a consequente anulação de todos os atos subsequentemente praticados, considerando-se sanada a não realização da citação, devendo seguir-se os ulteriores termos processuais decorrentes da falta de oposição da devedora, nos termos do art. 30º, nº 5, do CIRE.
Custas da apelação pela recorrida.
Notifique.
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I - A citação consiste no ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender, sendo a sua falta causa de nulidade, a qual se considera sanada se o réu intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação (arts. 219º, nº 1, 187º, al. a), 188º e 189º, do CPC).
II - Dada a função da citação e a gravidade da cominação decorrente do art. 189º, do CPC, a expressão “intervir no processo” pressupõe a prática de qualquer ato por parte do réu do qual se possa concluir com segurança que o mesmo tomou pleno conhecimento de todo o processado por forma a ficar em condições de assegurar o seu efetivo direito de defesa, ou, dito de outro modo, que teve conhecimento, ou possibilidade de conhecimento, do processo idêntico àquele que lhe seria dado pela citação.
III - A expressão “logo” utilizada no art. 189º, do CPC, não deve ser interpretada como sendo de forma simultânea com a junção da procuração, mas antes após o decurso de um prazo razoável, coincidente com o prazo geral de 10 dias.
IV - A junção aos autos de uma procuração constituiu um ato com relevância processual que implica, após esse prazo, o conhecimento de todos os elementos relevantes da lide e permite o integral exercício do direito de defesa.
V - A situação de citação não concretizada ou frustrada deve ser equiparada, quanto aos seus efeitos jurídicos, e, designadamente, quanto à possibilidade de sanação, à situação de falta de citação, não havendo qualquer razão material válida para distinguir o caso em que o réu não foi citado porque o ato foi pura e simplesmente omitido da situação em que a citação foi enviada, mas o réu não procedeu ao levantamento da carta.
Se no caso mais grave, que é o da falta de citação, a lei prevê a possibilidade de sanação da nulidade daí decorrente, desde que verificado o circunstancialismo do art. 189º do CPC, ou seja, desde que o réu intervenha no processo sem arguir que não foi citado, por maioria de razão, terá de se admitir essa mesma possibilidade de sanação num caso de um vício menos grave, qual seja o da frustração da citação, se o réu intervier no processo no mesmo circunstancialismo.
VI - A requerida que, apesar de não estar citada, juntou aos autos procuração forense constituindo mandatária e conferindo-lhe poderes para a representar no processo, teve possibilidade de aceder a todos os elementos que lhe iriam ser transmitidos com a realização da citação, estando, assim, em condições de exercer de forma plena e efetiva o seu direito de defesa, tendo tido possibilidade de conhecimento do processo idêntico àquele que lhe seria dado pela citação.
Perante esta intervenção decorrente da junção de procuração, ocorrida neste concreto circunstancialismo, e não tendo sido arguida a não concretização da citação no prazo de 10 dias após a aludida junção, a não realização da citação ficou sanada à luz do art. 189º, do CPC, e não deve ser posteriormente ordenada a realização da sua citação.
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Guimarães, 14 de março de 2024

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Maria Gorete Morais
(2º/ª Adjunto/a) Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade