EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
SUBSÍDIO DE FÉRIAS
SUBSÍDIO DE NATAL
Sumário


Na fixação do rendimento indisponível, nos termos e para os efeitos do art.239º/3-b)-i) do CIRE, a realizar casuisticamente face aos factos provados e aos factos notórios (art.412º do CPC):
1. O julgador deve ter em consideração todos os casos que merecem tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniforme do direito (art.8º/3 do CC), tal como o princípio constitucional da igualdade dos cidadãos (art.13º/1 da CRP).
2. É adequado proceder a uma indexação ao RMMG, em referência ao art.273º/1 do CT, que assegure a estabilidade do valor fixado no período dos 3 anos de cessão, através da atualização anual, que pondera os movimentos da inflação.
3. É razoável fixar como rendimento indisponível, para o sustento mínimo integral de devedora (com salário mensal de € 873, 00) e do seu agregado familiar (composto por dois filhos menores de 10 e de 6 anos):
a) O valor mensal pedido pela devedora de 1,5 RMMG, durante 12 meses, que se encontra integrado no quadro jurisprudencial de decisões de casos análogos, que tomam como referência factos notórios e escalas de referência de rendimento per capita harmonizadas com as da OCDE.
b) Os subsídios de Natal e de férias, apenas durante o tempo em que o rendimento efetivo global da devedora em cada ano, dividido por 12 meses, for inferior ao valor mensal de 1, 5 RMMG fixado, e na medida estrita dessa inferioridade, por se presumir que a devedora careça dos subsídios para satisfazer as despesas notórias que lhe foram reconhecidas como fundamento da fixação do valor mensal de rendimento indisponível referido em a).

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I. Relatório:

No processo de insolvência de AA, instaurado a 22.06.2023:
1. A requerente pediu a exoneração do passivo restante no seu requerimento inicial de insolvência (sem formulação de pedido líquido de fixação de rendimento indisponível), no qual, em relação à sua situação pessoal, alegou:
«2. A Requerente trabalha, desempenhando as funções Costureira, auferindo uma retribuição no montante de € 766,00 (setecentos e sessenta e seis euros) Cfr. Doc. n.º ....
3. A Requerente tem dois filhos menores, de 10 e 6 anos. Cfr. Doc. n.º ... e ....
4. Vive, em cada dos seus pais.
5. Com um histórico de vida difícil, pois foi viveu em união de facto, com o pai dos seus filhos, mas o mesmo tornou-se toxicodependente,
6. Abandonando a Requerente e os seus filhos. (…)
13. Encetou diligências no sentido do ex- companheiro, começar a pagar pensão de alimentos.
14. Mas sem conseguir, uma vez que o ex- companheiro não paga a pensão de alimentos aos filhos de ambos. (…)  
16. Vendo-se obrigada a viver na casa dos seus pais.».
2. A 27.06.2023 foi proferida sentença que decretou a insolvência da requerente.
3. A 08.08.2023 o administrador da insolvência apresentou relatório, nos termos do art.155º do CIRE, no qual, não se opondo à exoneração do passivo restante, declarou no enquadramento fático do relatório:
«A insolvente é uma pessoa singular, atualmente com 42 anos de idade, solteira e com dois filhos menores (6 e 10 anos) relativamente aos quais o progenitor e seu ex-companheiro, toxicodependente, não paga qualquer pensão de alimentos, depois de ter abandonado a família.
A atender-se às reclamações apresentadas e aos créditos relacionados, tem dívidas de cerca de 16.878,81 €.  Dívidas essas resumidamente indicadas no quadro seguinte:

Credor                                                      Fundamento do crédito                                           Valor

EMP01..., Sucursal em Portugal                         Contratos de crédito                           ...06,37 92,46%
EMP02...,SA  Comunicações                    1.272,44     7,54%
                                                                                                                                           
                                                                                                                                16.878,81 100,00%

É trabalhadora por conta de outrem (costureira), de onde lhe advém o seu rendimento mensal líquido de cerca de 805,00 €.».
4. A 15.09.2023 o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Com vista à decisão do pedido de exoneração do passivo restante, e com vista a determinar, no caso de deferimento liminar, o rendimento disponível do insolvente que se considera cedido ao fiduciário, importa apurar qual a sua situação económica e outros factos que se consideram relevantes e que não foram invocados pelas partes.
Assim sendo:
» Pesquise nas bases de dados da Segurança Social, informação sobre se a Insolvente se encontra ali inscrito, se recebe algum subsídio, pensão, reforma ou qualquer outra prestação social, se se encontra a fazer descontos, a que título, por que montante e por conta de que vencimento;
» notifique a insolvente para, em 10 dias, indicar e juntar aos presentes autos os comprovativos das suas despesas que considera relevantes (despesas com habitação, saúde, etc). ».
5. A requerente, a 02.10.2023 declarou:
«1. A Insolvente vive apenas do seu salário, auferindo o montante global mensal de cerca de € 766,00 (setecentos e sessenta e seis euros), pelo exercício da função de Costureira, na BE EMP03..., Lda. Cfr. Recibo de Vencimento já juntos aos presentes autos, sob Doc. n.º ....
2. A Insolvente habita em casa dos seus pais, com os seus dois filhos menores, de 10 e 6 anos. Cfr. sob Doc. n.º ... e ..., já juntos aos presentes autos.
3. A renda e todas as despesas gerais da casa, como água, eletricidade, gás estão em nome dos pais da insolvente,
4. Pelo que, a Insolvente não tem comprovativo de despesas, em seu nome daquela natureza.
5. Sendo que, a Insolvente e os filhos entregam aos pais da mesma o montante mensal de € 250,00 para ajuda no pagamento de tais despesas.
6. Pois, os seus pais são pessoas de parcos rendimentos e não teriam condições de sustentar mais três pessoas, dois deles menores.
7. Com efeito, como já consta dos autos, não obstante as tentativas, o Ex- Companheiro não paga pensão de alimentos.
8. Assim, a Insolvente vive exclusivamente do rendimento do seu trabalho, tendo a seu encargo o pagamento das respetivas despesas:
a. Despesas com a alimentação, vestuário e saúde, suas e dos seus filhos menores, que se cifram numa média mensal no montante de € 600,00;
b. Ajuda os pais, nas despesas da casa, com a água, eletricidade e gás, no montante médio de € 250,00.
c. Tem ainda, despesas com a sua deslocação para o trabalho, no montante médio de € 100,00.
9. Atenta as condições pessoais da Insolvente, já constantes dos autos, que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais, requer-se que se fixe o rendimento disponível no montante mínimo de 1.5 SMN x 12 meses, o cálculo deve ser anual, como bem entendendo a mais respeitável jurisprudência, e não mês a mês, por se considerar que é o critério mais justo e adequado para calcular o rendimento disponível para a cessão.».
6. A 06.10.2023 foi proferido o seguinte despacho liminar sobre a exoneração do passivo restante, no qual apresentou o seguinte fundamento quanto à fixação do rendimento indisponível:
«(…) O despacho inicial determina a cessão do rendimento disponível do devedor a um fiduciário durante o prazo de 3 anos (art. 239º, nº2 do CIRE).
A cessão do rendimento disponível abrange todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, não se estando, portanto apenas perante rendimentos em sentido técnico, sendo abrangidos por quaisquer acréscimos patrimoniais. Assim se o insolvente receber uma herança durante o período de cessão, o património hereditário que lhe compete deve igualmente considerar- se cedido ao Fiduciário. A tal não obsta o art. 2028º, nº2 do Cód. Civil, dado que a cessão de rendimento constitui uma hipótese legalmente prevista. (cfr. Direito da Insolvência, 8ª ed., Luís Menezes Leitão, p. 369).
No caso em apreço há que considerar a seguinte factualidade:
A insolvente tem um salário mensal de € 873,32.
A Insolvente habita em casa dos seus pais, com os seus dois filhos menores, de 10 e 6 anos.
Considerando tais factos, entendemos que o montante relativo às exclusões previstas na alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, deve fixar-se em € 930 mensais, que se considera ser o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade, à razão de doze vezes por ano. Excluem-se da exoneração os créditos previstos no artigo 245.º, n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.».
7. A insolvente interpôs recurso da decisão referida em I-6 supra, apresentando as seguintes conclusões e pedido final (das quais os pontos II e III não correspondem a atos processuais praticados nestes autos de insolvência):
«EM CONCLUSÃO: 
I. A recorrente, apresentou-se à insolvência e, tempestivamente, requereu a exoneração do passivo restante, conquanto preenchia todos os pressupostos para a sua concessão.
II. O Tribunal “a quo”, em sede de assembleia de credores para apreciação do relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, pronunciou-se quanto ao pedido formulado de exoneração do passivo restante proferindo a seguinte decisão:
III. “Considerando os elementos alegados pelo requerente, e a falta de quaisquer outros trazidos aos autos pelos credores, determino que o rendimento de cessão seja fixado no montante que exceda o valor de 1 (um) salário mínimo nacional, contados doze meses por ano (não se incluem portanto quaisquer subsídios, que deverão ser entregues ao fiduciário).
O período de cessão inicia-se no dia de hoje”
IV. O artigo 235.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) estatui que, se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ano encerramento do processo. 
V. A RMMG é tida como a remuneração básica estritamente indispensável à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e, concebida como o patamar mínimo, não pode ser, reduzido qualquer que seja o motivo. Porém, o “sustento minimamente digno” é um conceito indeterminado, que deve ser preenchido pelo juiz à luz do princípio da dignidade humana no confronto da situação pessoal do insolvente com os interesses dos seus credores e a lesão que a exoneração do passivo restante lhes aporta. É assim que não pode ser assegurado ao devedor insolvente o mesmo nível de vida anterior; antes lhe é exigido um sacrifício de medida razoável. Não pode, contudo, ser penalizado como se fosse culpado pela sua insolvência.
VI. Tratando-se de um conceito indeterminado, a indagação do montante pecuniário que, em cada caso concreto, se mostra necessário à sobrevivência condigna do insolvente, depende da concretização jurisprudencial, a partir da avaliação das particularidades da situação concreta do devedor. Se por um lado, haverá que salvaguardar aquilo que garanta o sustento minimamente digno do devedor, também haverá que ponderar que o sentido destas normas não é desresponsabilizar o devedor isentando-o de qualquer obrigação para com os credores.
VII. No caso concreto, o Tribunal “a quo” fixou a quantia de 930,00€ mensais quanto ao rendimento disponível.
VIII. Tal decisão não se afigura como a mais justa ou conforme o Direito por duas razões:
- o rendimento é insuficiente para o sustento da insolvente e dos seus filhos menores, conquanto é inferior às despesas reconhecidas do agregado;
- o montante é fixado sem qualquer fundamentação em lugar de associado ao salário mínimo nacional.
IX. O Tribunal “a quo” decidiu fixar o rendimento disponível sem fundamentar minimamente – ou de todo - a sua decisão e sem que a Insolvente pudesse apreender qual/quais os fundamentos subjacentes a tal decisão.
X. Verificando-se, consequentemente, nulidade por falta de fundamentação da decisão, o que expressamente se invoca e cujo reconhecimento se requer.
XI. Por outro lado, e ao contrário da prática jurisprudencial corrente, em respeito ao art.º, 239.º,
n.º 3, alínea b) i), o rendimento não é fixado tendo por base o salário mínimo nacional.
XII. Tal critério – indexação ao SMN – permite que o rendimento disponível se actualize em face da inflação e custo de vida em sociedade ao longo de todo o período da cessão (3 anos), pois, a quantia de 766€ não terá o mesmo valor no último ano de cessão equivalente a primeiro.
XIII. Só com a indexação ao SMN permitirá cumprir o estipulado no art.º 239.º do CIRE, que seja garantido o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado.
XIV. Atendendo ao caso concreto, agregado familiar composto unicamente pela insolvente e dois filhos menores de dez e de seis anos – que, com o passar dos anos gerará maior despesa de alimentação, vestuário e de educação - e as despesas médias mensais, só com a fixação do rendimento disponível da Insolvente em 1,5 salários mínimos se garantirá o mínimo de dignidade da mãe e dos seus filhos.
XV. Ademais, o cálculo deve ser anual - e não mês a mês – uma vez que se considera que é o critério mais justo e adequado para calcular o rendimento disponível para cessão é aquele que pondera o rendimento global auferido pelo devedor em cada ano de cessão, e divide o valor global por 12 meses, verificando-se depois se se encontra ultrapassado o rendimento indisponível fixado, sob pena de, caso o devedor obtenha rendimentos esporádicos e de valores irregulares (por exemplo receba um valor elevado apenas duas vezes por ano), verse privado do rendimento necessário ao seu sustento nos restantes meses do ano.
XVI. A título meramente exemplificativo, atente-se ao acórdão proferido Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 8215/13.5TBVNG-F.P1, datado de 26-10-2020, in www.dgsi.pt que, ainda que se debruce sobre outra temática sumaria:
I - Por força da admissão ao instituto da exoneração do passivo restante aquilo a que o insolvente tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno, o que significa que esse montante deve ter por critério o valor do salário mínimo nacional, sucessivamente aplicável. (...)
XVII. Ademais, como vem entendendo a respeitável jurisprudência, o Tribunal da Relação de Guimarães, que por acórdão proferido a 14.01.2022, disponível em www.dgsi.pt., considerou que,
“I. No desconhecimento das suas concretas despesas, exigidas pelo respectivo «sustento minimamente digno», o devedor insolvente deverá manter na sua disponibilidade, para o assegurar, a quantia equivalente à retribuição mínima mensal garantida, assim excluída da cessão ao fiduciário.
II Tendo o legislador optado no CIRE, na determinação do rendimento disponível a ceder pelo insolvente ao fiduciário, por um critério geral e abstracto (do que não seja necessário para assegurar o «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar»), pretendeu que o mesmo fosse objecto de casuística densificação, por forma a respeitar a diferenciada realidade do caso concreto (incluindo a sua adequação ao momento histórico e ao ambiente social em que é aplicado); e essa casuística densificação é incompatível com qualquer fórmula matemática, de automática e invariável aplicação (nomeadamente, de uma retribuição mínima mensal garantida por cada membro do agregado familiar do insolvente, ou de uma qualquer capitação matemática fixa que lhes seja aplicável).
III Sendo o agregado familiar do insolvente composto por ele próprio e por um filho menor, inteiramente a seu cargo, e no desconhecimento das suas concretas despesas, serão adequadas a assegurar o sustento minimamente digno de ambos uma retribuições mínima mensal garantida e meia (isto é, o montante correspondente a uma retribuição mínima mensal garantida, acrescido do montante correspondente à respectiva metade).
IV Justifica-se a presunção de que, quando o resultado da divisão por doze (meses do ano civil), do montante anual global dos rendimentos do trabalho (incluindo doze salários mensais, um subsídio de férias e um subsídio de natal) seja inferior à retribuição mínima mensal garantida para o período considerado, os subsídios de férias e de natal serão necessários para assegurar o «sustento minimamente digno» do trabalhador insolvente.
V Devendo o insolvente beneficiar de uma retribuição mínima mensal garantida para assegurar o seu próprio sustento, e de metade da mesma para assegurar o sustento do filho menor, e auferindo como único rendimento mensal € 700,00, os subsídios de férias e de natal que aufira deverão ficar excluídos do seu rendimento disponível (para cedência aos respectivos credores).”
XVIII. No processo supra citado, o agregado familiar da insolvente – tal como nos nossos autos – é composto pela insolvente e por dois filhos menores, tendo-se fixado o rendimento disponível em 1,5 salários mínimos nacionais.
XIX. Em suma, e também à luz do artigo 59.º/2, a), da CRP, a RMMG representará aquele valor imprescindível a uma subsistência digna, pelo que o rendimento disponível deverá ser fixado em 1,5 salários mínimos nacionais.
XX. Ante o exposto, foram violados, os artigos 235.º, 237.º e 239.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, 263.º e 264.º, n.º 1 e 2 do Código do Trabalho e art.º 59.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa. 

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V/ EXCIAS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, em face de tudo o que ficou exposto, deverá este Venerando Tribunal dar provimento ao recurso, e em consequência ordenar que o despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que fixe o rendimento disponível em 1,5 salários mínimos nacionais.
Mas V/ Ex.cias farão, como sempre, JUSTIÇA. ».

8. Não foram apresentadas contra-alegações.
9. Foi admitido o recurso a subir imediatamente, nos próprios autos.
10. Subido o processo a esta Relação, recebeu-se o recurso admito em I-8, colheram-se os vistos e realizou-se a conferência.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art.663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do Código de Processo Civil, doravante CPC.

Definem-se, assim, como questões a decidir (excetuadas as conclusões II e III referidas em I_7 supra, não respeitantes a estes autos):
1. Se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação sobre o rendimento indisponível, nos termos do art.615º/1-b) do CPC (conclusões IX e X, em referência a VII e VIII).
2. Se a decisão de fixação de rendimento indisponível padece de erro e deve ser alterada:
a) Por não ter sido feita com a indexação ao valor do salário mínimo nacional, que assegure a atualização nos anos de cessão seguintes) (conclusões VIII, XI a XIII).
b) Por as despesas da recorrente e dois filhos menores e as razões de justiça e adequação exigirem, conforme defende a recorrente: que se fixe o rendimento indisponível de 1,5 salário mínimo mensal para acautelar o mínimo de dignidade de todo o agregado; que se apure se o rendimento disponível para a cessão é superior ao rendimento indisponível, através do rendimento anual do devedor em cada ano de cessão, dividido por 12 meses.

III. Fundamentação:

1. Matéria de facto provada na decisão recorrida:
«A insolvente tem um salário mensal de € 873,32.
A Insolvente habita em casa dos seus pais, com os seus dois filhos menores, de 10 e 6 anos.».

2. Apreciação do objeto do recurso:
2.1. Arguição de nulidade da decisão na parte recorrida:
No regime geral das nulidades da sentença, o legislador prescreve expressamente no art.615º/1-b) do CPC, em referência à inobservância dos deveres legais de fundamentação, que a sentença é nula quando «Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.».
Esta violação dos deveres de fundamentação refere-se aos deveres gerais de fundamentação previstos no regime legal, no qual: na norma geral do art.154º do CPC define-se, sob a epígrafe «Dever de fundamentar a decisão», que «1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.»; na norma especial da sentença prevista no art.607º/3 a 4 do CPC, define-se que, após o relatório e a definição das questões a decidir, «3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. 4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.».
A Doutrina e a Jurisprudência têm entendido, de forma incontroversa: que esta falta de fundamentação que conduz à nulidade deve ser absoluta e não apenas deficiente ou medíocre sendo que, quando a insuficiência de fundamentação corresponde à decisão da matéria de facto, esta pode ser suprida nos termos do regime legal expresso do art.662º/1-d) do CPC; que esta falta de fundamentação não se confunde com um erro de julgamento- erro de facto, invocável nos termos do art.640º do CPC ou do art.663º/2 do CPC em referência ao art.607º/4 do CPC, ou erro de direito, invocável nos termos do art.639º do CPC, erros esses a apreciar no mérito dos recursos (vide  Rui Pinto e jurisprudência por este citada in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II- Julho de 2018, Almedina, notas 2 e 5-II ao art.615º do CPC, págs.178 e 179; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, Almedina, nota 3 ao art.615º, pág.736; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2017, proferido no processo nº7095/10.7TBMTS.P1.S1, disponível in dgsi.pt).
2.1.2. Examinando a decisão proferida, na parte respeitante à fixação do rendimento mensal mínimo indisponível, verifica-se que a decisão: indicou os factos que julgou provados para apreciar o rendimento indisponível; indicou a norma que prevê as exclusões ao rendimento disponível; afirmou que considerava que o valor mensal de € 930, 00, doze vezes por ano, era o limite que assegurava a subsistência com o mínimo de dignidade.  
Ora, esta fundamentação, apesar de se admitir que é manifestamente sumária e omissa na explicação concreta do raciocínio da determinação do valor julgado adequado, não é absolutamente inexistente, para se poder considerar que a decisão seja nula.
Desta forma, improcede a arguição da nulidade da decisão recorrida.

2.2. Arguição de erro de direito:
2.2.1. Enquadramento jurídico:
O despacho liminar de admissão do incidente de exoneração do passivo restante determina que o insolvente fique obrigado, no período de cessão, a entregar ao fiduciário o rendimento disponível que venha a auferir (art.239º/1 e 2 do CIRE), deduzido daquele que é indisponível (art.239º/2 e 3) do CIRE).
Integra este rendimento indisponível, nomeadamente, o que «seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.» (art.239º/3-b)- i) do CIRE).
Após este despacho, e durante o período de cessão: o devedor deve «Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto da cessão;» (art.239º/4-c) do CIRE), entre os demais deveres a que fica obrigado (art.239º/4-a) a e) do CIRE) e cuja falta de observância pode determinar a recusa da exoneração do passivo restante (arts.243º e 244º do CIRE); o fiduciário, por sua vez, fica obrigado a afetar «os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão», aos pagamentos, reembolsos e distribuição de rendimentos pelos credores previstos no art.241º/1-a) a d) do CIRE.
Com que critérios deve ser fixado o rendimento indisponível do art.239º/3-b)- i) do CIRE, a excluir do dever de cessão ao fiduciário do rendimento disponível?
O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, que funciona como referência para a concretização do rendimento indisponível, entronca no princípio da dignidade da pessoa humana, com tutela Constitucional, nomeadamente em matéria pessoal, social, laboral, familiar (arts. 1º, 2º, 13º/1, 26º, 67º da CRP), a interpretar e a integrar de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, doravante DUDH (art.12º/2 da CRP). Nesta Declaração, entre outros direitos, o art.25º define que « 1 - Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. 2 - A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma protecção social.».
Na aplicação da lei, a Jurisprudência tem definido consistentemente algumas referências e linhas de orientação para a concretização do conceito indeterminado «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» e a fixação do rendimento indisponível, nas quais se destacam as seguintes:
_ A fixação do rendimento, para além de ter o limite máximo legal de três Remunerações Mensais Mínimas Garantidas (doravante RMMG), deve ter como limite mínimo 1 RMMG, em referência ao nº 1 do artigo 273.º do Código do Trabalho, aprovado em anexo à Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro (vide, v. g, Ac. RG de 07.10.2021, proferido no processo nº4576/20.8T8GMR.G1, e Ac. RG de 22.06.2023, proferido no processo 1375/22.6T8VNF.G1, relatados por Maria João M. Pinto de Matos e a Jurisprudência exaustiva nos mesmos citada; posição defendida por Marco Carvalho Gonçalves, in «Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais», Outubro de 2022, Almedina, pág. 636, e Jurisprudência no mesmo citada na nota 1645, págs.636 e 637), sobretudo após a Jurisprudência do Tribunal Constitucional ter discutido este limite de impenhorabilidade de rendimentos, que veio a ser consagrado no Ac. TC nº 177/2002, publicado no Diário da República, I, n.º 150, de 2 de Julho, págs. 546/01, que decidiu «declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do nº 1 e no nº 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até um terço das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de direito, e que resulta das disposições conjugadas do artigo 1º, da alínea a) do nº 2 do artigo 59º e dos nºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição».
__ A fixação, entre estes limites mínimo e máximo, deve ser feita de forma casuística, atendendo às especialidades do caso concreto (vide, v. g, Ac. RG de 17.12.2020, proferido no processo nº2141/12.0TBBRG.G1, relatado por Rosália Cunha; Ac. RG de 07.06.2023, proferido no processo nº3916/22.0T8GMR.G1, relatado por Eugénia Pedro), sem que o devedor tenha o direito a manter o nível de vida anterior ao despacho liminar sobre a exoneração (vide, v. g, Ac. RP de 08-06-2022, proferido no processo nº2836/21.0T8STS.P1, relatado por Jorge Seabra).
Nesta apreciação casuística, sobretudo quando não estão contabilizadas todas as despesas concretas do agregado, a Jurisprudência tem, também, definido alguns critérios para a determinação do rendimento, v.g.:
__ O atendimento dos factos notórios, decorrentes da experiência normal da vida (art.412º do CPC), onde se integram necessidades qualitativas e quantitativas e a inflação publicadas pelo INE (vd, v.g., in www.ine.pt e www.pordata.pt).
__ O auxílio de referência a escalas de definição de rendimento per capita em agregados familiares com economia comum, em harmonização com as definidas pela OCDE (vide, v.g., Ac. RC de 23.01.2024, proferido no processo nº2489/23.0T8LRA-B.C1, relatado por Maria João Areias, com referência, nomeadamente, ao Ac. RL de 11.10.2016, proferido no processo nº1855/14.7CLRS-B.L1-7; posição jurisprudencial uniformizada em 2023 na Secção de Comércio de Lisboa, referida na decisão de 24.05.2023, proferida no processo de 19030/22.5T8SNT-B.L1-1, de Fátima Reis Silva), expressas na legislação portuguesa, nomeadamente no art.3º do DL nº70/2010, de 16.06. (em que o requerente tem uma ponderação 1, outros adultos a ponderação de 0,7 e os menores de idade a ponderação 0,5).
Na aplicação da lei, e na concretização deste conceito indeterminado, a Jurisprudência já tem discutido, de forma não consensual, os termos da determinação do rendimento mínimo indisponível e/ou o limite mínimo que deve ser salvaguardado ao devedor. Neste sentido, podem destacar-se as seguintes correntes jurisprudenciais:
a) Uma corrente entende que os subsídios de férias e de natal devem sempre ser incluídos no rendimento disponível a ceder ao fiduciário na parte em que, nos meses em que são pagos, excederem o rendimento indisponível fixado na decisão para 12 meses, por se entender que, face à sua função complementar, não são indispensáveis à sobrevivência (vide, v. g, Ac. RP de 08-06-2022, proferido no processo nº2836/21.0T8STS.P1, relatado por Jorge Seabra).
b) Outras correntes entendem que o apuramento da inclusão ou exclusão dos subsídios no rendimento disponível não é automática:
b1) Para uns o rendimento indisponível não deve ser inferior à RMMG durante 14 meses, incluindo os subsídios de férias e de Natal (vide, neste sentido, v.g., Ac. RL de 27.02.2018, proferido no processo nº1809/17.1T8BRR.L1-7; o Ac. RP de 22.05.2019, proferido no processo nº1756/16. 4T8STS-D.P1, relatado por Cecília Agante; Ac. RP de 15.06.2020, proferido no processo nº1719/19.8T8AMT.P1 e a posição jurisprudencial uniformizada em 2023 na Secção de Comércio de Lisboa, referida na decisão de 24.05.2023, proferida no processo de 19030/22.5T8SNT-B.L1-1, de Fátima Reis Silva).
b2) Para outros os subsídios de Natal e de férias podem vir a ser integrados no rendimento indisponível, a excluir da cessão, quando o rendimento efetivo anual do devedor, dividido por 12 meses, não alcançar o rendimento mensal indisponível fixado como razoável para a dignidade da vida do devedor e do seu agregado familiar. Vide neste sentido, entre outros:
__O Ac. RP de AC RP 23-09-2019, proferido no processo nº324/19.3T8AMT.P1, relatado por José Eusébio de Almeida, que sumariou:
«I – O montante equivalente ao salário mínimo nacional mensal é o adequado como referência a considerar quando indagamos qual o mínimo do montante a excluir do rendimento disponível, e destinado ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
II – Tal montante tem um sentido quantitativo, independente da natureza dos montantes auferidos pelo devedor e que para aquele quantitativo contribuem.
III – Os subsídios de férias e de natal, tal como outras prestações retributivas auferidas pelo devedor, integram ou não o rendimento indisponível consoante se contenham no ou excedam o valor fixado como indisponível.
IV – Se a sentença considera que os subsídios de natal e de férias devem ser entregues ao fiduciário, mas ao mesmo tempo fixa um rendimento indisponível que é superior ao rendimento do devedor, mesmo somado daqueles subsídios, há que revogar essa determinação de entrega e respeitar a própria decisão na parte – não objeto de recurso -, que fixou o montante correspondente ao rendimento indisponível.».
__ O Ac. RC de 04.02.2020, proferido no processo nº 1350/19.8T8LRA-D.C1, relatado por Maria João Areias, que sumariou e defendeu:
«3. Se o tribunal considerar que determinada quantia corresponde ao valor abaixo do qual deixa de se mostrar garantido o mínimo de subsistência do insolvente e seu agregado, terá o mesmo direito a reter qualquer quantia que vier a auferir, independentemente da sua natureza – nomeadamente a título de subsídios de férias ou de natal –, desde que se contenha, e na medida em que não ultrapasse, esse valor “indisponível”.» (do sumário).
«Regressando ao caso em apreço, a decisão recorrida ao considerar ser excluir do rendimento a ceder todas as quantias que excedam o valor equivalente o 1,5 salário mínimo – o que, ao tempo em que foi proferido, representava um montante de 900€ – significa que, para o juiz a quo, os tais 900,00€ (muito superiores ao único rendimento do casal correspondente ao salário do insolvente marido, no valor de 534,00) constituiriam o montante necessário e indispensável a assegurar aos insolventes uma vida digna. Assim sendo, surge até como contraditório que, por um lado, se lhes atribua o direito a reterem rendimentos até ao montante de 900,00€ nos meses em que apenas recebem a quantia de 534,00€ e que, nos únicos meses em que, por lhe ser processado o subsídio de férias e o subsídio de natal, iriam, finalmente, ter rendimentos que lhe permitissem atingir os tais 900€ necessários e indispensáveis a assegurar uma vivencia condigna, a decisão recorrida lhes venha a negar a possibilidade de reterem o montante de 900€ mensais com o argumento de que o que recebem para além dos 543,00€ tem de ser cedido porque provém, não da retribuição mensal, mas de subsídios de férias e de natal. Se o tribunal considerar que determinada quantia corresponde ao valor abaixo do qual deixa de se mostrar garantido o mínimo de subsistência do insolvente e seu agregado, terá o mesmo direito a reter qualquer quantia que vier a auferir, independentemente da sua natureza, desde que se contenha e na medida em que não ultrapasse esse valor “indisponível”.» (da fundamentação).
__ O Ac. RG de 07.10.2021, proferido no processo nº4576/20.8T8GMR.G1, e o Ac. RG de 22.06.2023, proferido no processo 1375/22.6T8VNF.G1, ambos relatados por Maria João M. Pinto de Matos (os dois subscritos pela Relatora destes autos e o 2º subscrito pelo 1º Adjunto), acórdãos, entre outros, que sumariaram e defenderam:
«Justifica-se a presunção de que, quando o resultado da divisão por doze (meses do ano civil), do montante anual global dos rendimentos do trabalho ou pensões (incluindo doze salários/pensões mensais, um subsídio de férias e um subsídio de natal) seja inferior ao rendimento reservado ao insolvente pelo Tribunal a quo para o período considerado, os subsídios de férias e de natal serão necessários para assegurar o «sustento minimamente digno» do trabalhador/pensionista insolvente.» (do sumário).
«4.1.2.2.2. Determinação da retribuição mínima mensal garantida (enquanto limite mínimo)
É ainda discutível se esta «retribuição mínima mensal garantida», enquanto limite mínimo do rendimento a reservar imperativamente ao insolvente (salvaguardando-o da cessão aos seus credores) deverá coincidir com o singelo montante mensal que normalmente é auferido, ou deverá antes coincidir com o seu valor mensalizado, que se obtém dividindo o valor global dos rendimentos laborais obtidos pelos doze meses do ano civil (como já vêm fazendo entidades de referência em recolha e tratamento de dados, como a Pordata - Base de Dados Portugal Contemporâneo); e, por isso, incluindo aqui os subsídios de férias e de natal.
 Crê-se que a resposta a esta pergunta terá necessariamente que ser tributária da especificidade do instituto da exoneração do passivo restante (que aqui nos ocupa), e não tanto dos conceitos gerais de retribuição mínima mensal garantida, de subsídio de férias e de subsídio de natal. Precisando, e começando pelo subsídio de férias, não se ignora que actualmente, «mais do que como um simples período de inactividade, as férias são hoje concebidas como um factor de equilíbrio biopsíquico do trabalhador, (…) Precisando novamente, e agora quanto ao subsídio de natal, dir-se-á que o natal permite ao trabalhador (e ainda que não religioso) o festejo de uma quadra especialmente dedicada à família, (…)l.
Compreende-se, por isso, que se afirme que os subsídios de férias e de natal são, em regra, «prestações, legalmente consagradas, destinadas aos trabalhadores por conta doutrem (e aos beneficiários de pensões de reforma) que visam proporcionar aos seus titulares um acréscimo de rendimento (equivalente ao valor da retribuição), duas vezes no ano - no período de férias e no natal - a fim de que se usufrua de forma plena esses dois períodos festivos (de férias e de natal)» (Ac. da RG, de 26.11.2015, Maria Amália Santos, Processo n.º 3550/14.8T8GMR.G1).
Contudo, admite-se facilmente que, no caso de trabalhadores (ou pensionistas) que aufiram salários (ou pensões) mais baixos, nomeadamente inferiores ou no limite da retribuição mínima mensal garantida, os subsídios de férias e de natal sejam necessários para garantir o seu «sustento minimamente digno», sendo nomeadamente afectos à satisfação de regulares despesas anuais (v.g. prémios de seguro, contribuições de condomínio), bem como à aquisição de extraordinários bens ou serviços (v.g. óculos graduados, aparelhos dentários, electrodomésticos de primeira necessidade, tratamentos urgentes), ou mesmo para fazer face a curtos períodos de perda, parcial ou total, ou decréscimo, da habitual remuneração laboral (v.g. baixa médica, menor volume de trabalho - suplementar, extraordinário, nocturno, ou noutro regime que justifique um valor hora mais elevado -, vacatio entre a dispensa de um posto de trabalho e o encontrar de outro).
Nestes casos, e infelizmente para o trabalhador ou pensionista, os subsídios de férias e de natal não cumprem a função social subjacente à sua consagração e pagamento, antes asseguram (exactamente como o demais rendimento laboral que aufira com carácter de habitualidade todos os meses) o pagamento das despesas inerentes ao seu sustento básico.
Ora, não temos dúvidas de que, nestes casos, os ditos subsídios de férias e de natal deverão ser subtraídos ao rendimento a ceder pelo insolvente ao fiduciário (no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante).
Tem-se, ainda, como conforme a maioria da jurisprudência que se vem pronunciando sobre este tema, uma vez, que quando exclui os subsídios de férias e de natal do rendimento autorizado a reter pelo insolvente, o faz assente na ponderação de que, no caso concreto, não se revela imprescindível ao seu «sustento minimamente digno».
Logo, torna-se plenamente justificada a presunção de que, quando o resultado da divisão por doze (meses do ano civil), do montante anual global dos rendimentos do trabalho (incluindo doze salários mensais, um subsídio de férias e um subsídio de natal) seja inferior à retribuição mínima mensal garantida para o período considerado, os subsídios de férias e de natal serão necessários para assegurar o «sustento minimamente digno» do trabalhador insolvente.
Caberá, então, a quem discorde dessa razoável presunção, ilidi-la, demonstrando a falsidade do facto presumido (…).
Dir-se-á ainda, e sempre e apenas no quadro fáctico considerado (de ser a divisão, por doze, dos rendimentos laborais globais anuais inferior à retribuição mínima mensal garantida), que o entendimento contrário é susceptível de consubstanciar, não só a violação do princípio da dignidade da pessoa humana (conforme se crê sobejamente exposto antes), como ainda a violação do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade, consagrados nos arts. 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP.
Com efeito, em qualquer situação em que dois trabalhadores (ou pensionistas) insolventes auferissem o mesmo rendimento anual global (v.g. € 6.960,00), mas em que um fosse composto apenas com doze salários mensais regulares, todos correspondentes à retribuição mínima mensal garantida (v.g. € 580,00), e o outro fosse composto por doze salários mensais irregulares (no seu montante), sendo qualquer deles inferior à remuneração mínima mensal garantida (mas em proporção diferenciada) e pelos subsídios de férias e de natal, o primeiro nada estaria obrigado a entregar do montante exclusivamente considerado (€ 6.960,00), enquanto que o segundo estaria obrigado a entregar o montante correspondente aos subsídios de férias e de natal.
Contudo, essa diferenciação seria absolutamente injustificada (já que apenas baseada na presunção - injustificada no caso concreto - de que estaria previamente assegurada a salvaguarda de uma retribuição mínima mensal garantida, e de que aqueles subsídios seriam afectos à satisfação das necessidades para que foram criados); e, por isso, violadora do princípio da igualdade.
Já relativamente à violação do princípio da proporcionalidade, dir-se-á que, tendo em conta a ponderação de interesses entre os credores do insolvente e o próprio, ínsita no instituto de exoneração do passivo restante (e já sobejamente explicitada supra), a mesma deixará de se verificar se este for obrigado a entregar àqueles parte do rendimento do seu trabalho necessária a assegurar o seu «sustento minimamente digno»; e isso não pode deixar de suceder se a parte entregue for necessária para compor, juntamente com a por ele retida, o valor correspondente a uma retribuição mínima mensal garantida para cada um dos doze meses do ano civil.
Este injustificado excesso do benefício que assim fosse concedido aos credores do insolvente seria, por isso mesmo, violador do princípio da proporcionalidade.» (da fundamentação).

2.2.2. Apreciação da situação em análise:
Importa apreciar e decidir o recurso em análise, face aos factos provados referidos em III-1 supra e ao regime de direito aplicável referido em III-2 supra, atendendo que o julgador, nas decisões a proferir, deve ter «em consideração todos os casos que merecem tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniforme do direito» (art.8º/3 do CC) e deve observar o princípio da igualdade dos cidadãos em dignidade e perante a lei (art.13º/1 da CRP).
Numa primeira ordem de abordagem, reconhece-se que o valor do rendimento indisponível deve ser fixado de forma a manter assegurado, nos três anos de cessão, o mínimo sustento digno do devedor e do seu agregado, sujeito à oneração possível da inflação.
Sofrendo o salário mínimo nacional/RMMG atualização anual, que contempla também a ponderação da subida da inflação, considera-se adequado que a indexação do rendimento indisponível possa ser feita em relação ao referido salário/RMMG.
Este salário/RMMG foi fixado: para 2023 (ano em que foi proferida a decisão parcialmente recorrida) em € 760, 00, de acordo com o DL nº85-A/2022, de 22.12.; para 2024 em € 820, 00, de acordo com o DL nº107/2023, de 17.11.
Numa segunda ordem de abordagem, admite-se como razoável reconhecer à devedora o direito de reter (sobretudo relevante se ampliar rendimentos mensais provados, em valor aproximado ao salário mínimo nacional de 2024):
a) O valor de 1,5 RMMG por mês (€ 1 140, 00 em 2023 e € 1 230 em 2024), para o sustento digno pessoal e do seu agregado familiar, uma vez: que se provou que tem dois filhos de 10 e de 6 anos a residir consigo, em relação aos quais não se provou que estão a receber a pensão de alimentos do seu pai; que a devedora e os filhos, ainda que beneficiassem em 2023 de habitação na casa dos avós maternos, carecem notoriamente (art.412º do CPC) de alimentação, de consumos de água e de eletricidade, de cuidados de saúde normais (e muitas vezes extraordinários), de vestuário e calçado (sobretudo para as crianças, em crescimento carecido de maior mudança de vestuário), de instrução e educação corrente (que não está isenta de, com normalidade, poder exigir despesas extraordinárias), de transportes; que o rendimento de 1,5 RMMG para três pessoas, nestas circunstâncias, acaba por reconhecer, em relação a 1 RMMG por mês (€ 760, 00 em 2023 e € 820, 00 em 2024), que sempre poderia ser reconhecido à devedora para o seu sustento integral, um acréscimo de  ¼ de RMMG para cada um dos dois filhos (correspondente ao valor de € 190, 00 em 2023 e € 205, 00 em 2024), valor este que está integrado, e de forma inferior, no quadro da jurisprudência citada em III-2.2.1. supra (em particular dos referidos Ac. RC de 23.01.2024, proferido no processo nº2489/23.0T8LRA-B.C1, relatado por Maria João Areias, com referência, nomeadamente, ao Ac. RL de 11.10.2016, proferido no processo nº1855/14.7CLRS-B.L1-7; posição jurisprudencial uniformizada em 2023 na Secção de Comércio de Lisboa, referida na decisão de 24.05.2023, proferida no processo de 19030/22.5T8SNT-B.L1-1, de Fátima Reis Silva).
b) Os subsídios de Natal e de férias, durante o tempo em que o rendimento efetivo global da devedora em cada ano, dividido por 12 meses, for inferior a 1, 5 RMMG fixado em a) supra (€ 1 140, 00 em 2023 e € 1 230 em 2024), e na medida estrita dessa inferioridade, tendo em conta: que o rendimento mensal da devedora apurado em 2023 (€ 873, 00 por mês) é inferior ao rendimento indisponível fixado em a) supra, tal como o rendimento anual dividido por 12 meses (€ 873, 00 * 14 meses =€ 12 222, 00; € 12 222, 00: 12 =€ 1 018, 50); que esta inferioridade, enquanto se mantiver, permite presumir que a devedora careça dos subsídios para satisfazer as despesas notórias que lhe foram reconhecidas em a), em particular as de caráter extraordinário, apenas passíveis de ser satisfeitas nos meses em que o rendimento mensal, por força dos subsídios, for superior ao salário de € 873, 00, em coerência e pelas razões expostas na corrente corretiva referida em III-2.2.1. supra (em particular, a do Ac. RG de 07.10.2021, proferido no processo nº4576/20.8T8GMR.G1, e a do Ac. RG de 22.06.2023, proferido no processo 1375/22.6T8VNF.G1).
Desta forma, admite-se fixar como rendimento indisponível: o valor mensal de 1, 5 RMMG, em 12 meses; os subsídios de Natal e de férias, durante o tempo em que o rendimento efetivo global da devedora em cada ano, dividido por 12 meses, for inferior a 1, 5 RMMG, e na medida dessa inferioridade.

IV. Decisão:

Pelo exposto, os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam, julgando procedente o recurso:

1. Revogar a decisão de fixação de rendimento indisponível.
2. Decidir fixar o rendimento indisponível para o sustento da devedora e do seu agregado, a excluir da cessão: o valor mensal de 1, 5 RMMG, em 12 meses; os subsídios de Natal e de férias, durante o tempo em que o rendimento efetivo global da devedora em cada ano, dividido por 12 meses, for inferior a 1, 5 RMMG, e na medida dessa inferioridade.
*
Custas pela recorrente, por não ter havido vencimento e ter obtido proveito com o recurso (art.527º do CPC), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e encargos.
*
Guimarães, 14 de março de 2024

Assinado eletronicamente pelo coletivo de Juízes Desembargadores
Alexandra M. Viana P. Lopes (J. D. Relatora)
José Carlos Pereira Duarte (J. D. 1º Adjunto)
Rosália Cunha (J. D. 2ª Adjunta), com voto de vencido parcial, nos seguintes termos:

Voto vencida apenas na parte referente à inclusão dos subsídios de Natal e de férias no rendimento indisponível durante o tempo em que o rendimento efetivo global da devedora em cada ano, dividido por 12 meses, for inferior a 1, 5 RMMG, e na medida dessa inferioridade.
Perfilho a corrente jurisprudencial que considera que o rendimento a ceder pelo devedor à fidúcia tem de ser calculado mensalmente, e não anualmente.
No essencial, os argumentos de ser esta a base de cálculo a considerar estão resumidos no sumário do acórdão do STJ, de 9.3.2021, Relator José Rainho (disponível in www.dgsi.pt), segundo o qual:
“I - O instituto da exoneração do passivo restante não tem por finalidade precípua garantir ao devedor o recebimento de um certo montante a título de sustento, pelo que o devedor não goza da garantia da intangibilidade do montante estabelecido para seu sustento.
II - Se a cessão do rendimento disponível e o montante arbitrado ao devedor a título de sustento foram estabelecidos numa base mensal pelo tribunal, não pode o apuramento do rendimento disponível ser feito numa base anual.
III - Se em determinado mês o rendimento do insolvente não alcança o montante que lhe foi arbitrado para sustento, nem por isso lhe assiste o direito de, mediante “compensação” ou “ajuste de contas”, não entregar ao fiduciário o excesso que se verifique nos demais meses.
IV - A interpretação do art. 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE no sentido de impor ao devedor a obrigação de entregar imediatamente/mensalmente os rendimentos recebidos ao fiduciário sem operar a compensação dos rendimentos com os montantes auferidos nos meses anteriores e posteriores não viola os arts. 1.º, 67.º e 205.º, n.º 2, da CRP.”