CONTRATO-PROMESSA
ESCRITURA PÚBLICA
MORA
Sumário


1. No âmbito do contrato-promessa quando as partes não fixam um prazo concreto para a realização da escritura definitiva, mas um prazo para a obtenção de condições para a sua realização, findo o qual será marcada a escritura pública (prazo esse, prorrogável ou não, conforme os casos), a vontade das partes assim plasmada deve ser interpretada no sentido de terem fixado um prazo relativo, não fixo com limite absoluto, verificando-se tão só uma situação de mora debitoris, cujo início apenas ocorre após haver interpelação da parte em falta para cumprir o prometido.
2. Não tendo sido estabelecido no contrato-promessa a qual das partes incumbia a marcação da escritura, qualquer uma delas o podia fazer, visto que se trata de uma prestação fungível.
3. Nessa situação, se nenhuma das partes marcar a escritura, não existe uma situação de mora, nem de incumprimento definitivo.
4. Nesse contexto, a interposição de processo de inventário por um dos ex-cônjuges outorgantes do contrato-promessa de partilha, não o faz incorrer em mora ou em incumprimento definitivo.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral







Processo n.º 1660/22.7T8PTM.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: Juízo Central Cível ... – J...
Apelante: AA
Apelada: BB

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de ÉVORA

I – RELATÓRIO
Ação
Declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, intentada em 25-06-2022.
Autor
AA

BB
Pedido
a) Ser proferida sentença que nos termos do artigo 830 produza os efeitos da declaração negocial em falta pela R. nomedamente a adjudicação ao A. da totalidade do imóvel , sito na R. ..., Urbanização ..., ..., descrita na CRP ... sob n° ...51, fracção ..., inscrito sob a matriz predial urbana ..., ordenando-se ainda o cancelamento do resgisto que se encontra a favor da R. passando o imóvel a figurar na totalidade a favor do A.
b) Requer a notificação do A. Para consinar em deposito a quantia em dívida ou seja o valor de 20.000,00€ que constitui o pagamento final das tornas acordadas
c) Ou em alternativa, condenar a R no pagameto da quantia de €120.000,00 a título de cláusula penal por incumprimento culposo do contrato promessa de partilha, a crescido do 850€ mensais -Seguro anual, desde a data de assinatura do contrato de promessa de partilhas, imi, Despesas de manutenção da casa,Sinal de 20 000€, valor de Avaliação da casa, valor do Projeto energético, a liquidar oportunamente ou em execução de sentença, por não ser possivel neste momento liquidar esse valor.

Causa de pedir
Autor e Ré foram casados e divorciaram-se em 05-07-2017, por mútuo consentimento.
Celebraram, em 24-03-2017, um contrato-promessa de partilha por divórcio que incidiu sobre os bens comuns do casal, e entre outros, sobre o imóvel referido no pedido (casa de morada de família), sobre o qual incide um passivo decorrente de 4 empréstimos bancários: ...85 no valor de €55.315,54; ...85 no valor de €50.780,72; ...85 no valor de €23.245,67 e ...85 no valor de €28.909,85.
Mais acordaram que o imóvel seria atribuído ao Autor e que o passivo (empréstimos bancários que incidem sobre o imóvel) seria da sua responsabilidade, obtendo junto da entidade bancária mutuante (CGD), a desoneração total da Ré, e o recebimento de €40.000,00 a título de tornas.
O Autor permaneceu no imóvel e tem procedido ao pagamento dos empréstimos bancários.
A Ré, por sua vez, requereu inventário para partilha da casa de morada de família, que corre termos no Tribunal de Familia e Menores ... sob o n.º 785/22...., o que indica que não pretende cumprir o contrato-promessa de partilha e revela uma situação de incumprimento definitivo e culposo, fazendo-a incorrer nas obrigações que constam do pedido.
Contestação
A Ré, defendeu-se por exceção: (i) litispendência por a Ré ter intentado ação de inventário para partilha dos bens do ex-casal ainda não partilhados; (ii) exceção de não cumprimento por a obrigação do Autor de desoneração da Ré do pagamento dos empréstimos bancários não se encontrar cumprida e nunca o Autor a ter interpelado para a realização de escritura pública de partilhas; (iii) nulidade do contrato-promessa de partilhas por violar o princípio da imutabilidade do regime de casamento previsto no artigo 1714.º do Código Civil[1], não referindo o valor das respetivas verbas; por dele não constar que os seus efeitos seriam produzidos em data posterior à do divórcio; por decorrer do teor das cláusulas 9.ª e 4.ª que a promessa deveria ser executada na pendência do casamento; por ter sido coagida psicologicamente pelo Autor a assinar o contrato-promessa de partilha.
Por impugnação, alegou de forma a apresentar uma versão diferente dos factos alegados na petição inicial, defendendo que o Autor não cumpriu o contrato-promessa de partilha e que mútua e tacitamente decidiram alterar a dita promessa, não se encontrando de acordo quanto à partilha dos bens comuns a que a mesma respeita.
Mais impugnou todos os valores que enformam o «pedido alternativo» e concluiu pela improcedência total da ação.
Em reconvenção, pediu a condenação do Autor prestar contas de todos os valores recebidos por causa ou relacionados com o imóvel, vencidos desde 01-12-2016 e vincendos; a condenação no pagamento do saldo que vier a ser apurado; a condenação a pagar-lhe a quantia mensal não inferior a €1.000,00 desde 01-12-2016 correspondente a metade do valor dos rendimentos obtidos com o arrendamento da casa de morada de família e, subsidiariamente, que seja declarado o incumprimento definitivo do contrato-promessa de partilha por culpa exclusiva do Autor e condenação deste a pagar-lhe, a título de cláusula penal, o montante de €120.000,00, bem como juros de mora vencidos e vincendos sobre as quantias peticionadas.
Resposta
O Autor respondeu às exceções e à reconvenção pugnando pela sua improcedência mais alegando que a Ré atua de má fé.
Audiência Prévia
Foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção de litispendência e procedente a exceção de não cumprimento, com consequente improcedência da ação e absolvição da Ré do pedido.
Recurso
Inconformado, apelou o Autor, pugnando pela revogação da sentença, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
1. A douta sentença recorrida julgou improcedente a ação por ter julgado procedente a execção de não cumprimento das obrigações contratuais por parte do A. no que se refere ao facto de não ter dado cumprimento á condição de que ele ficará com o passivo/empréstimos que incidem sobre o imóvel (...) e obterá junto da entidade bancária que concedeu os referidos empréstimos, Caixa Geral de Depósitos, a desoneração total da mulher BB, indicando-se empréstimos de €55 315,54, 50 780,72, 23 245,67 e 28 909,85.
2. Acontece que notificado da contestação na resposta a proprosito da invocação da exepção pela R o A. respondeu que :
a) Acresce que, a acção visa ainda a condenação da R. no pagamento de 120.000,00€ a titulo e clasual penal por imcumprimento culposo, pelo que ação tem sempe que porsseguir.
b) O A. não alega nem tinha que alegar a forma como ia proceder ao pagamento dos emprestimos bancarios.
c) Com efeito nos termos da clausual Decima Primeira do contrato de promessa : A escritura de partilhas, terá lugar 30 dias após a data do divórcio por mútuo consentimento, podendo o prazos serem prorrogados por mais 30 dias, caso o outorgante AA ainda não tenha conseguido obter a exoneração da outorgante BB dos empréstimos que incidem sobre a casa de morada de família e descrita no número quatro dos bens comuns do casal.
d) Pelo que a exoneração do passivo se deveria verificar na data da escritura.
e) Mais alegou na resposta que Por parte do A. não há incumprimento culposo do contrato nos termos das clausulas que resultam do mesmo, nomeadamente da clausula decima primeira não correspondendo á verdade o que vem alegado pela R. nos artigos 150 a 157.
f) Das tornas já foram pagos 20.000,00€, o restante vence juros á taxa de 6%
g) Acresce que a R. nunca interpelou o A. para o cumprimento de qualquer obrigação resultante do contrato promessa de partilhas.
h) Na sua petição inicial o A. alegou que O A. Permaneceu e ocupou a casa de morada de familia até hoje,
i) E tem pago o valor dos empretimos que estão indicados no artigo 68 desta petição.( que são exatamente os emprestimos - ...85 no valor de € 55.315,...85 no valor de € 50.780,72) - ...85 no valor de € 23.245,...85 no valor de € 28.909,85.
3. A clausula decima primeira do contrato promessaa de partilha diz que: A escritura de partilhas, terá lugar 30 dias após a data do divórcio por mútuo consentimento, podendo o prazos serem prorrogados por mais 30 dias, caso o outorgante AA ainda não tenha conseguido obter a exoneração da outorgante BB, dos empréstimos que incidem sobre a casa de morada de família e descrita no número quatro dos bens comuns do casal.
4. A R. nunca interpelou o A. para o cumprimento de qualquer obrigação resultante do contrato promessa de partilhas, tendo em conta que nos termos da clausula decima primeira.
5. O A. não está em incumprimento.
6. Salvo o devido respeito o tribunal não poderia ter concluido sem mais pela procedencia da execepção de não cumprimento por parte do A. de modo a que, por essa razão, ter julgado improcedente a ação por impossibilidade de execução especifica.
7. Teria que ser feita prova para saber se o A. conseguiu e exoneração da Outorgante BB nos emprestimos que incidem sobre a casa de morada de familia.
8. A sentença é nula por omissão de pronuncia.
9. Prevendo alguma impossibliidade de execução especifica do contrato, na sua petição Inicial o A. alegou que :
10. A R. ao invés de cumprir o contrato de promessa de partilhas decidiu antes requerer inventário para partilha da casa de morada de familia.
11. Processo que corre termos no Tribunal de Familia e Menores ... sob o numero 785/22.... coforme copia que se junta, ( doc. 2
12. Do requerimento incial consta que a R. alega que não existe acordo quanto á partilha, quando bem sabe da existencia do contrato e da obrigação que assumuiu.
13. Tal alegação e a interposição do inventario revela só por si, que a R. não pretende cumprir o contrato de promessa de partilhas.
14. Incumprimento que é culposo, porque voluntario conciente, e concretizado por ato procesaula judicial.
15. Não sendo atendia a execução especifica deveia ter sido atendido o pedido alternativo e condenada a R. no pedido indemnizatorio por incumprimento do contrato promessa de partilhas.
16. Fez-se errada aplicação dos artigos 428 nº 1, 595 do C.CiVil, sendo a sentença nula nos termso do artigo 615 nº 1 alinea d) dp C.P.C.

Resposta ao recurso
A Recorrida defendeu a improcedência da apelação e a confirmação da sentença.

II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Em face dos documentos juntos aos autos e não impugnação e/ou confissão das partes em sede de articulados, os factos relevantes para apreciação do recurso são os seguintes:
1. Em 05-06-2017, na Conservatória do Registo Civil ..., em sede processo de divórcio por mútuo consentimento, foi decretado o divórcio do Autor e da Ré e dissolvido o casamento (docs. 1 e 2 da p.i.)
2. No mesmo ato foi homologado, entre outros, o acordo sobre o destino da casa de morada de família, sita na Urbanização ..., ... ..., que ficou atribuída ao cônjuge marido.
3. Os cônjuges apresentaram relação de bens, onde consta, entre outros, o referido imóvel e passivo incidente sobre o mesmo por via de 4 empréstimos bancários (docs. 1 e 2 da p.i.).
4. Em 21-11-2017, foi celebrada escritura pública de partilha de bens comuns do ex-casal constituído por uma quota na sociedade comercial «A..., Ld.ª», adjudicada à ora Ré, e uma quota na mesma sociedade comercial, adjudicada ao ora Autor, no valor, cada uma delas, de €20.000,00, igualando-se, assim, a respetiva meação (doc. 3 da p.i.).
5. Em 24-03-2017, Autor e Ré celebraram o contrato- promessa de partilha por divórcio dos bens comuns do casal abrangendo 4 espaços de ... detidos pela sociedade «A..., Ld.ª»; 3 veículos automóveis propriedade da mesma sociedade; a sociedade «B... – Unipessoal, Ld.ª»; uma quota da sociedade «C..., Ld.ª»; o prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, destinado a casa de morada de família, sito na R. ..., Urbanização ..., ..., descrito na CRP ... sob o n.º ...51, fração ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...04..., sob o qual se encontra registado pelas inscrições em vigor, as seguintes hipotecas, todas da Caixa Geral de Depósitos, com os contratos números: ...85 no valor de €55.141,29; ...85 no valor de €50.607,07; ...85 no valor de €22.761,41 e ...85 no valor de €28.347,21; o recheio da cada de morada de família instalado naquela fração e um lote de vários bens móveis (doc. 4 da p.i.).
6. No clausulado do contrato-promessa ficou a constar, no que releva em relação ao imóvel, as seguintes cláusulas:
«CLÁUSULA QUARTA»
A primeira outorgante BB ficará com os seguintes bens:
(…)
e) Receberá tornas no valor de €40.000,00.»
«CLÁUSULA QUINTA»
O segundo outorgante AA ficará com os seguintes bens:
(…)
D) Prédio urbano, destinado a habitação, e casa demorada de família, sita na R. ..., Urbanização ..., ..., descrito na CRP ... sob o n.º ...51, fração ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...04...
(…)
G) O passivo/empréstimos que incidem sobre o imóvel casa de morada de família, descrito em 4 (quatro) dos bens comuns do casal e obterá junto da entidade bancária que concedeu os referidos empréstimos, Caixa Geral de Depósitos, a desoneração total da mulher BB, empréstimos titulados, designadamente, pelos contratos com os números
- ...85 no valor de €55.315,54
- ...85 no valor de €50.780,72
- ...85 no valor de €23.245,67
- ...85 no valor de €28.909,85
H) Entrega tornas à mulher BB aqui primeira outorgante no valor de €40.000,00.»

«CLÁUSULA SEXTA»
«O 2.º outorgante AA pagará à primeira, BB, tornas no valor de €40.000,00 a serem pagas da seguinte forma:
A) €20.000,00 a serem pagos no mesmo dia do pagamento da venda das quotas da sociedade “C... ldª”
B) Os restantes €20.000,00 serão pagos até ao dia 01 de Setembro de 2017, e partir dessa data, pela mora no seu pagamento o segundo outorgante pagará juros de mora à taxa de 6%.
C) Os pagamentos supra referidos das tornas serão pagos pelo 2º à 1ª outorgante, através de depósito na conta bancária com o n.º (….) do banco Millenium BCP titulada pela Outorgante BB.»

«CLÁUSULA DÉCIMA PRIMEIRA»
«A escritura de partilhas terá lugar 30 dias após a data do divórcio por mútuo consentimento, podendo os prazos serem prorrogados por mais 30 dias, caso o outorgante AA ainda não tenha conseguido obter a exoneração da outorgante BB dos empréstimos que incidem sobre a casa de morada de família e descrita no número quatro dos bens comuns do casal.»

«CLÁUSULA DÉCIMA TERCEIRA»
«Os Contratantes acordam que o incumprimento culposo, por qualquer Contratante, de qualquer das obrigações para si decorrentes do presente contrato promessa, constitui o Outorgante faltoso na obrigação de indemnizar o Outorgante não faltoso em montante que se fixa desde já, a título de cláusula penal, em €120.000,00 (cento e vinte mil euros).
2. O incumprimento culposo referido no número anterior só se verifica se, tendo o Outorgante faltoso sido interpelado pelo Outorgante não faltoso, por escrito, para pôr termo à situação de incumprimento, a obrigação contratual em causa não for cumprida no prazo máximo de 15 (quinze dias) a contar dessa interpelação.»

7. A Ré recebeu tornas no valor de €20.000,00.
8. A Ré ainda não foi desonerada das obrigações referidas na Cláusula Quinta, alínea G).
9. Em 25-03-2022, BB instaurou processo de inventário contra AA para partilha de bens móveis e do imóvel casa de morada de família sita no imóvel supra referido em 5, alegando que não existia acordo quanto à partilha.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[2]), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), consubstancia-se nas seguintes questões:
- Da impossibilidade de execução específica do contrato-promessa de partilha por via da exceção de não cumprimento da obrigação do Autor de desonerar a Ré da obrigação que sobre a mesma impende relativamente aos empréstimos bancários que incidem sobre a casa de morada de família;
– Nulidade da decisão por omissão de pronúncia sobre o pedido alternativo: pedido de condenação da Ré a pagar, a título de cláusula penal por incumprimento culposo do contrato-promessa de partilha, acrescido das demais quantias do petitório (alínea C) do pedido).

2. A primeira questão supra enunciada consiste em saber se se verifica a impossibilidade de execução específica do contrato-promessa de partilha por via da exceção de não cumprimento da obrigação do Autor de desonerar a Ré da obrigação que sobre a mesma impende relativamente aos empréstimos bancários que incidem sobre a casa de morada de família.
Na decisão recorrida esta questão foi decidida em sentido positivo, com base, em suma, na seguinte argumentação: (i) nos contratos bilaterais, como é o caso do contrato-promessa de partilha em causa nos autos, não tendo sido estabelecidos prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo, como decorre do disposto no artigo 428.º, n.º 1, do CC, sendo que o Autor nada alegou quanto à desoneração da Ré relativamente o pagamento dos empréstimos bancários; (ii) a transmissão singular de dívida para desonerar o antigo devedor exige declaração expressa do credor nesse sentido, sob pena do antigo devedor responder solidariamente com o novo obrigado, como estipula o regime previsto no artigo 595.º do CC.
O Autor, ora Recorrente, discorda do decidido, alegando, em suma, que: (i) não se encontra em incumprimento, já pagou tornas no valor de €20.000,00, vencendo o restante valor juros de mora nos termos clausulados no contrato-promessa de partilha; (ii) teria de ser feita prova para se saber se o Autor conseguiu desonerar a Ré da obrigação de pagamento dos empréstimos; (iii) a Ré nunca o interpelou para cumprimento de qualquer obrigação resultante do contrato-promessa de partilha; (iv) A Ré ao instaurar o processo de inventário revela que não pretende cumprir o contrato-promessa de partilha, incorrendo em incumprimento culposo do mesmo.
Vejamos, então.
Atento o disposto no artigo 410.º do CC, o contrato-promessa, quando assume natureza bilateral, sinalagmática e onerosa, como é o caso dos autos, é a convenção pela qual as partes assumem a obrigação de celebrar certo contrato (o contrato prometido), gerando uma prestação de facere (prestação de facto positivo), que consiste na obrigação de emissão de uma declaração negocial futura em conformidade com ali acordado.
Esta obrigação assume a natureza de obrigação principal.
Para além da obrigação principal, podem as partes também assumir outras obrigações de natureza acessória ou secundárias, que não integram o sinalagma específico do contrato-promessa, mas que são instrumentais ao exato cumprimento da obrigação principal ou mesmo que encerram situações de antecipação dos efeitos do contrato,[3] e que assumem relevância mormente como fundamento da resolução do contrato-promessa quando exista um vínculo funcional entre a obrigação principal e essas obrigações secundárias, em termos tais que o incumprimento destas justifica o ulterior incumprimento daqueloutra.[4]
Como refere GALVÃO TELLES, «A falta de cumprimento do contrato-promessa não ocorre só pelo facto de o promitente ou um dos promitentes se recusar a celebrar o contrato prometido mas também por deixar de satisfazer outra ou outras obrigações que haja assumido, como v.g. reforçar o sinal».[5]
De qualquer modo, a inobservância apenas conduz a um incumprimento definitivo mediante a alegação da prova da verificação das circunstâncias do artigo 801.º ou do artigo 808.º do CC ou mediante uma declaração inequívoca e perentória de não cumprimento pelo devedor.
Como decorre do artigo 830.º, n.º 1, do CC, o incumprimento da promessa por uma das partes, na falta de convenção em contrário, permite à outra parte obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se opuser a natureza da obrigação assumida.
Assim, são pressupostos fácticos elencados no referido normativo: (i) que a natureza da obrigação assumida pela promessa não seja incompatível com a substituição da declaração negocial; (ii) que não exista convenção em contrário; (iii) que haja incumprimento do demandado na obrigação de celebrar o contrato prometido.
No caso em apreço, afigura-se inequívoco que as partes, por um lado, não afastaram a possibilidade de execução específica, nem a natureza da obrigação assumida afasta tal regime e, por outro lado, que existe o referido vínculo funcional entre a obrigação de emissão da declaração necessária à celebração do contrato prometido e o cumprimento da obrigação do 1.º outorgante de obter, previamente ao momento da celebração do contrato definitivo ou, eventualmente, contemporânea com o mesmo, a desoneração da 2.ª outorgante das obrigações por esta assumidas em relação aos empréstimos bancários.
A cláusula Décima Primeira do contrato-promessa de partilha interpretada à luz dos critérios interpretativos dos artigos 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do CC, evidencia que a obrigação de desoneração incide sobre o 1.º outorgante, e não sobre a 2.ª outorgante, a cumprir no prazo de 30 dias após o divórcio ou, não sendo possível nesse prazo, no prazo prorrogado de mais 30 dias.
Nesta linha interpretativa, compreende-se a decisão recorrida ao dar relevo à invocada exceção de cumprimento e daí retirar as legais consequências quanto à impossibilidade de execução específica, por aplicação do disposto nos artigos 428.º, n.º 1, e 595.º do CC, por o Autor não alegar que está em condições de prestar aquela obrigação secundária, a par da principal, ao requerer a execução específica do contrato-promessa, subentendendo-se, assim, na interpretação do tribunal a quo, que se encontra numa situação de mora quanto ao cumprimento da obrigação secundária, e que esse incumprimento se reflete, por sua vez, no incumprimento da obrigação principal.
Porém, afigura-se-nos que, no caso em apreço, a falta de requisitos para a execução específica decorre de outra razão, que não a verificação da exceptio.
Na verdade, importa ponderar que o incumprimento do contrato-promessa, seja por mora (artigo 804.º do CC) ou por incumprimento definitivo (artigo 808.º, n.º 1, do CC), está conexionado com a questão da fixação de um prazo para cumprimento e com questão de saber a quem foi cometida a obrigação de marcação da escritura pública para celebração do contrato prometido ou definitivo.
No caso em apreço, e em relação ao prazo para marcação da escritura de partilha, as partes inscreveram na cláusula Décima Primeira o seguinte:
«A escritura de partilhas terá lugar 30 dias após a data do divórcio por mútuo consentimento, podendo os prazos serem prorrogados por mais 30 dias, caso o outorgante AA ainda não tenha conseguido obter a exoneração da outorgante BB dos empréstimos que incidem sobre a casa de morada de família e descrita no número quatro dos bens comuns do casal.»
Da redação desta cláusula decorre que as partes não fixaram de forma concreta o local, o dia e hora para a realização da escritura pública de partilha.
Ainda assim, considerando a data do divórcio, é possível interpretar a vontade das partes no sentido da escritura pública ser celebrada até 60 dias após o divórcio, ou seja, até 05-08-2017.
O que efetivamente não sucedeu.
Donde se coloca a questão da qualificação do prazo assim estipulado.
Na análise desta questão, a jurisprudência tem entendido com base na interpretação da vontade das partes, que se trata de um prazo fixo relativo, ou seja, que «(…) decorrido o prazo inicial, sem pré-fixação de outro, a obrigação ficara sem prazo de cumprimento.
Caberia, pois, à míngua de acordo sobre a data e local da outorga da escritura, uma interpelação tendente ao cumprimento dessa obrigação principal, como condição de efectiva verificação da mora, interpelação sempre necessária quando a execução da prestação não esteja sujeita a prazo fixo essencial - art. 805º C. Civil (vd., sobre o ponto, ANA PRATA, “O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil”, 639-642).»[6]
Como tem sido assinalado pela jurisprudência citada,[7] quando as partes não fixam um prazo concreto para a realização da escritura, mas um prazo para a obtenção de condições para a sua realização, findo o qual será marcada a escritura pública (prazo esse, prorrogável ou não, conforme os casos), a vontade das partes assim plasmada deve ser interpretada no sentido de terem fixado um prazo relativo, não fixo com limite absoluto, ou seja, decorrido o mesmo a parte não faltosa não perdeu objetivamente o interesse na prestação, não incorrendo a parte faltosa em incumprimento definitivo, mas sim em mora debitores, e, ainda, assim, o início da mesma apenas ocorre após haver interpelação da parte em falta para cumprir o prometido.
Como se refere no Acórdão da Relação do Porto já citado:
«(…) embora as partes tenham estabelecido um limite temporal para o cumprimento, o mesmo não traduz uma directa e consequente perda de interesse negocial, aceitando-se que a prestação ainda é possível no âmbito do contrato, caindo o devedor numa situação de mora.», sublinhando que a inclusão de cláusula onde fica a constar que a escritura «será marcada» «(…) só por si, não revela a essencialidade do prazo em termos de interesse contratual das partes, não permitindo a conclusão de que, pelo simples decurso desse prazo, ocorre a perda de interesse caracterizadora das situações de fixação de prazo limite absoluto, tanto mais que não surge acompanhada de qualquer outra indicação nesse sentido, designadamente de expressões como improrrogável, impreterivelmente, sob pena de imediata resolução, etc. (…).»
Afigura-se-nos ser essa precisamente a situação que os autos revelam quando ficou a constar na cláusula Décima Primeira do contrato-promessa de partilha em apreço, que a escritura de partilha «terá lugar» 30 dias após a data do divórcio, podendo ser prorrogado por mais 30 dias, caso o 1.º outorgante ainda não tenha conseguido obter a exoneração da 2.ª outorgante sobre os empréstimos que incidem sobre a casa de morada de família.
Ou seja, as partes acordaram num prazo fixo, mas relativo, para a realização da escritura pública de partilha, não estipulando que, decorrido o mesmo sem que a escritura se realizasse, a 2.ª outorgante perdia o interesse na sua realização, pelo que o decurso do mesmo sem celebração da escritura de partilha, apenas é suscetível de fazer incorrer em mora a parte faltosa, e, ainda, assim, desde que a outra parte a interpelasse para cumprir. Pois só assim se verificaria a efetiva situação de mora.
Não tendo ocorrido essa interpelação, a questão que agora de coloca é a de saber a quem incumbia a obrigação de marcação da escritura pública de partilha e, consequentemente, interpelar a outra parte para comparecer no local, dia e hora que fosse designado.
O contrato-promessa de partilha é totalmente omisso em relação a esta obrigação.
Poderia antever-se na economia da cláusula Décima Primeira que as partes tiveram em mente que seria o 1.º outorgante a marcar a escritura, pois sobre ele recaía a obrigação de diligenciar pela obtenção das condições para a sua realização relacionadas com a desoneração da 2.ª outorgante e, naturalmente, só ele saberia quando estavam reunidas as condições para a realização da escritura de partilha.
Todavia, estando em causa um negócio formal, teria de resultar do clausulado, ainda que imperfeitamente expresso, que foi essa a declaração das partes (artigo 238.º, n.º 1, do CC), o que, efetivamente, não se vislumbra no clausulado. Consequentemente, não se pode interpretar a vontade das partes no sentido de terem acordado que a marcação da escritura pública de partilha ficava a cargo do 1.º outorgante.
Ora, nada impedindo que as partes acordassem sobre esta matéria, a omissão indicia a inexistência de acordo sobre essa questão.
Não tendo sido estabelecido no contrato-promessa a qual das partes incumbia tal obrigação, qualquer uma delas o podia fazer, visto que se trata de uma prestação fungível.[8]
No caso em apreço, o que se verifica é que, decorrido o prazo previsto na cláusula Décima Primeira, nenhuma das partes tomou a iniciativa de marcar a escritura pública de partilha, interpelando o outro para comparecer no local, dia e hora escolhido para esse efeito.
Perante estas circunstâncias, não se pode falar de mora (artigo 804.º, n.º 2, do CC) e muito menos de incumprimento definitivo de qualquer dos outorgantes do contrato-promessa de partilha (artigo 801.º e 808.º do CC).
Concluindo-se que nenhum dos outorgantes do contrato-promessa de partilha chegou sequer a incorrer em mora relativamente à obrigação de celebrar o contrato definitivo fica, necessariamente, prejudicada a questão da exceção de não cumprimento em relação ao cumprimento da obrigação secundária a cargo do 1.º outorgante (que pressupõe a mora), como igualmente fica prejudicada a questão de saber se a ora Recorrida perdeu objetivamente o seu interesse na celebração do contrato de partilha.
Pois é inquestionável que não havendo sequer uma situação de mora não se pode falar de incumprimento culposo de qualquer das partes.
Consequentemente, ao contrário do alegado pelo ora Recorrente, não se pode imputar à ora Recorrida o incumprimento culposo do contrato-promessa de partilha.
O que também afasta a argumentação do ora Recorrente quando alega que a instauração do processo de inventário significa que a Ré não quer cumprir o contrato-promessa de partilha, imputando-lhe, também por essa razão, o incumprimento culposo do contrato-promessa.
O que se verifica, como já referido, é que ambos os outorgantes, provavelmente por razões diversas, se desinteressaram do cumprimento do contrato-promessa de partilha, pois nenhum deles tomou a iniciativa da marcação da escritura de partilha não obstante há muito tempo se encontrar ultrapassado o prazo previsto na cláusula Décima Primeira do contrato-promessa de partilha.
Por conseguinte, interpretar a instauração do processo de inventário – meio processual próprio para a partilha de bens comum em caso de divórcio – como uma declaração inequívoca de não cumprimento do contrato-promessa de partilha por parte da ora Recorrida, afigura-se violador do princípio da boa-fé na interpretação e cumprimento pontual dos contratos (artigo 762.º, n.º 2, do CC).
O que culmina na inevitável conclusão de que a instauração do referido processo de inventário, atento o circunstancialismo subjacente à sua instauração, não pode ser interpretado como incumprimento culposo imputável à 2.ª outorgante para daí se poder retirar que se encontrem preenchidos os pressuposto da execução específica do contrato-promessa nos termos do artigo 830.º, n.º 1 do CC.
Nestes termos, ainda que com fundamento jurídico não coincidente com o acolhido na sentença recorrida, conclui-se pela inexistência dos pressupostos fático-jurídicos necessários à execução específica do contrato-promessa de partilha e, consequentemente, pela improcedência da ação e correspondente absolvição da Ré do pedido principal.

3. Nulidade da decisão por omissão de pronúncia sobre o pedido alternativo: pedido de condenação da Ré a pagar, a título de cláusula penal por incumprimento culposo do contrato-promessa de partilha, acrescido das demais quantias do petitório (alínea C) do pedido).
Antes de mais, cabe clarificar que não estamos perante um pedido alternativo, mas subsidiário.
A distinção entre pedidos alternativos e subsidiários consiste em que, nos primeiros, o réu tem a faculdade de escolher um deles, dada a equivalência das prestações pretendidas pelo autor, e, nos segundos, embora apresentados sob a veste formal mais aparente de alternativa, a sua apreciação depende da improcedência do chamado pedido principal.
Como refere ALBERTO DOS REIS, «(…) nos pedidos subsidiários a alternativa é meramente formal, aparente; na realidade não há alternativa, porque falta a característica essencial da obrigação alternativa: a equivalência das prestações (…).
Outra diferença fundamental. Nos pedidos alternativos o réu tem a faculdade de escolher uma das prestações ou um dos pedidos; nos pedidos subsidiários não depende da vontade do réu a procedência duma ou doutra pretensão: o pedido subsidiário é formulado somente para a hipótese de o tribunal não acolher o pedido principal.» [9]
Na verdade, entre pedidos alternativos e subsidiários, apresentados sob veste alternativa, o que se verifica é que o único ponto comum é que, frequentemente, são deduzidos sob a forma alternativa, pedindo-se uma coisa ou outra.
No caso, a formulação do pedido formulado na alínea C) indicia claramente que o próprio Autor configura tal pedido para o caso de não proceder o pedido de execução específica do contrato-promessa, ou seja, trata-se de um pedido subsidiário a apreciar caso claudique o pedido principal.
Como ocorreu na situação em apreço, pois o pedido principal foi julgado improcedente.
Refere o Recorrente que a sentença padece de nulidade por não ter apreciado o pedido subsidiário, invocado para o efeito o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, na vertente de omissão de pronúncia.
Ora, como decorre do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, bem como as de natureza oficiosa, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Se se verificar esta última situação, a falta de apreciação não determina a nulidade da decisão por omissão de pronúncia.
O pedido subsidiário formulado na petição inicial pressupõe que a Ré se encontra numa situação de incumprimento culposo do contrato-promessa de partilha.
Efetivamente esse pedido assenta na cláusula Décima Terceira da promessa onde consta expressamente que a obrigação de indemnização ali prevista (leia-se, ao abrigo da cláusula penal indemnizatória/compulsória – cfr. artigo 810.º, n.º 1, do CC) depende do incumprimento culposo de qualquer um dos contratantes.
Mas mais, para além do incumprimento culposo, exige tal cláusula uma situação de incumprimento definitivo ao estabelecer no n.º 2, a necessidade de interpretação admonitória da parte faltosa.
Ora, tendo a sentença concluído que a Ré não se encontrava em mora, mas sim o Autor, a análise do pedido subsidiário encontrava-se prejudicado na sua aplicação.
Donde, ainda que não o tivesse explicitado na decisão recorrida, tal prejudicialidade está implícita na argumentação e decisão ali vertida, pelo que, salvo o devido respeito por entendimento diverso, não se verifica a arguida nulidade da sentença.
Acrescentando-se que também em sede de recurso se encontra prejudicada a análise do alegado em relação ao referido pedido subsidiário, porquanto, pelas razões sobreditas, se concluiu pela inexistência de mora das partes em relação ao cumprimento das obrigações assumidas no contrato-promessa de partilha.
Em face do exposto, improcede a apelação, mantendo-se a sentença recorrida, ainda que por fundamento jurídico diverso.

4. Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida ainda que com fundamento jurídico diverso.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 08-02-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Francisco Xavier (1.º Adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2.ª Adjunta)
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[1] Doravante, CC.
[2] Doravante, CPC.
[3] Cfr. Ac. STJ, de 15-02-2015, proc. 04A4402, em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. STJ supra citado.
[5] GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 1997, 7.ª ed., p. 134, nota 1.
[6] Ac. STJ, de 20-05-2010, proferido no proc. n.º 1847/05.TBVIS.C1; Ac. RP, de 01-04-2003, proc. n.º 0320650 e Ac. RL, de 17-05-2018, proc. n.º 22335/15.8T8SNT.L1-2, todos disponíveis em www.dgsi.pt
[7] Cfr. nota 5 supra.
[8] Neste sentido, o Ac. desta Rel. de Guimarães, de 31- 03-2004, C.J., ano XXIX, tomo II, p. 278 e ss, e Ac. RG, de 08-01-2013, proc. n.º 297/10.8TCGMR.G1, em www.dgsi.pt.
[9] ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, vol. 3.º, p. 137 e 138: