NULIDADE DA DECISÃO
CONFISSÃO
DÍVIDA
Sumário


I - A nulidade de uma decisão judicial é um vício intrínseco da mesma e não se confunde com um hipotético erro de julgamento, de facto ou de direito. Uma sentença é nula, por falta de fundamentação, quando a decisão concretamente tomada – e não aquela que as partes entendam que deveria ter sido tomada – não se encontra assente em factos apresentados pela própria decisão, diretamente ou por remissão.
II - A declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida importa a atuação da presunção de existência da relação causal, cabendo, por isso, ao devedor demandado afastar ou por em causa tal presunção, demonstrando a inexistência ou a invalidade do débito aparentemente reconhecido pela declaração unilateral invocada pelo credor.
III - A declaração de dívida, onde de forma expressa está indicada a respetiva causa, não é um mero reconhecimento de dívida do art. 458 do CC; é também uma confissão extrajudicial dos factos que deram origem à dívida [arts. 352º, 355º, nº 4, 358º, nº 2, 2.ª parte, e 376º, nºs 1 e 2, do CC].
IV - O procedimento de autenticação do documento particular consiste, no essencial, na confirmação do seu teor perante entidade dotada de fé pública, declarando as partes estarem perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este traduz a sua vontade, após o que aquela entidade, mediante a aposição do termo de autenticação, atesta que os seus autores confirmaram, perante ela, que o respetivo conteúdo correspondia à sua vontade.
V - O termo de autenticação deve ser lavrado em conformidade com os requisitos previstos nos artigos 150.º e 151.º do Código de Notariado, devendo, nomeadamente, conter a declaração das partes de que leram o documento [autenticado] ou estão inteiradas do seu conteúdo e que o mesmo exprime a sua vontade.
VI - Estando em causa um negócio jurídico unilateral, não faz o menor sentido a alegação do recorrente de que se mostram violados os artigos 363º, n.º 3, e 358º, n.º 2, do CC, por apenas constar daquela declaração o reconhecimento da sua assinatura.

Texto Integral


Proc. nº 739/22.0T8ENT-B.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que, sob a forma de processo comum ordinário, lhe foi instaurada por AA, veio BB deduzir oposição mediante embargos de executado, alegando, em síntese: i) a inexequibilidade do título executivo; ii) a falsidade desse mesmo título por não ser devedor de qualquer quantia ao exequente; iii) e a ilegitimidade do exequente, por não ter desembolsado a quantia exequenda.
O exequente/embargado contestou, concluindo pela improcedência dos embargos.
Foi realizada audiência prévia no âmbito da qual foi proferido despacho saneador em que, além do mais, se fixou o valor da causa e se julgaram desde logo improcedentes as arguidas exceções de ilegitimidade do exequente e inexequibilidade do título executivo, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizou-se a audiência final, tendo sido proferida sentença que julgou «integralmente improcedente a presente oposição à execução deduzida pelo executado».
Inconformado, o executado/embargante apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. O presente recurso é constituído por alegações:
a) de nulidade da sentença nos termos do art.º 615º, n.º 1, alínea b) e c), do Código de Processo Civil;
b) da violação, na decisão recorrida, dos comandos jurídicos inscritos no artigos 342º, n.º 2 e 344º, n.º 2, ambos do Código Civil
c) de errada determinação, na decisão recorrida, do alcance da "força probatória plena" de documento autenticado, isto é, a "declaração de dívida" dos presentes autos;
d) da invalidade do título executivo.
2. Nos termos do art.º 6150, n.º 1, alínea b), c) e d), do Código de Processo Civil, constituem causas da nulidade da sentença quando a sentença não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, quando os fundamentos estão em oposição com a decisão; e quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.
3. Constando do ponto IV da sentença recorrida fixação do "objecto do litígio e questão a decidir", de imediato se compreende que os factos que devem ser dados como provados na sentença deveriam habilitar uma resposta à questão decidenda.
4. Aliás, se atendermos à factualidade provada na sentença recorrida, verificar-se-á que nela não se fixam quaisquer factos (concretos, precisos) como provados nela, constando apenas que se prova que o exequente alegou num requerimento executivo.
5. Por outro lado, na sentença recorrida, na parte dos factos provados (nem dos não provados) não constam quaisquer factos alegados pelo ora recorrente no requerimento de embargos, o que constitui manifesta omissão de pronúncia.
6. Os factos alegados pelo embargante no seu requerimento de embargos tinham de ser objecto de especifica pronúncia por parte do tribunal a quo - e não o foram de maneira alguma.
7. No ponto V.3 da sentença recorrida, intitulado "Motivação", é manifesto que o tribunal a quo valora um conjunto de factos (sempre contra o recorrente) que não se encontram provados na sentença recorrida, o que determina a nulidade da sentença.
8. Recordamos, portanto, que, na "Motivação", o tribunal a quo se refere à extinção do processo executivo n.0 ...11/...0.0T8LSB como se este facto, primeiro, constasse nos factos provados e, segundo, como se este facto tivesse a idoneidade de demonstrar a transferência da quantia de €: 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil euros) para a esfera jurídico-patrimonial do embargante.
9. A sentença manca de factualidade provada que permita, de alguma forma, a decisão de Direito recorrida.
10. Para ser possível a prolação da decisão em crise, deveria constar na sentença recorrida, na factualidade provada, que, em 14 de Outubro de 2020, o embargado havia entregue ao embargante a quantia de €: 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil euros), sob pena de não se poder creditar validamente tal “declaração de dívida”; ou, então, deveria constar, nos factos provados, que o embargado tinha entregue a terceiro quantias que perfaziam a quantia de €: 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil euros) e que tal entrega tinha a finalidade de beneficiar a esfera jurídico-patrimonial o embargante; que a quantia entregue pelo embargante a terceiro perfez exactamente €: 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil euros); e que foi a entregue de esta quantia de €: 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil euros) que determinou a extinção de distinto processo executivo - mas nenhum facto semelhante consta da decisão recorrida, na factualidade provada.
11. Consequentemente, deve ser declarada a nulidade da sentença, nos termos do art.º 615º, n.º 1, alínea b), c) e d), do Código de Processo Civil, com as necessárias e legais repercussões processuais, revogando-se a decisão recomida e determinando o reenvio do processo para 1ª instância.
12. Na sentença recorrida, o tribunal a quo interpretou e aplicou erradamente os artigos 342º, n.º 2 e 344º, n.º 2, ambos do Código Civil, com consequências catastróficas na possibilidade de realizar Justiça nesta acção executiva.
13. Tendo alegado o executado/embargante, no requerimento de embargos, que não tinha recebido do embargado a quantia de €: 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil euros), nem em 14 de Outubro de 2020, nem em outro momento qualquer, cabia ao exequente/embargado o ónus da prova de que aquela quantia havia sido entregue ao executado/embargante.
14. Esta solução resulta do n.º 2 do art.º 342º do Código Civil, que prescreve que "a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita. "
15. Aquela alegação do executado/embargante incidindo sobre facto negativo (i.e., a não recepção de detenninada quantia pelo embargante), sobre um facto que, por si mesmo, impede e/ou extingue o direito de crédito invocado pelo exequente/embargado, impõe a aplicação da regra sobre ónus da prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado.
16. Sobre esta realidade conceptual, a jurisprudência é vasta e unânime.
17. Assim, nos termos da lei, cabia apenas ao embargado o ónus de demonstrar, probatoriamente, que havia entregue ao embargante a quantia de €: 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil euros).
18. Ao onerar probatoriamente o embargante, o tribunal a quo comete um irrefutável erro interpretativo, desviando a decisão recorrida da realização da Justiça.
19. Na verdade, o tribunal a quo não compreende que a natureza do facto alegado pelo executado/embargante como facto negativo, um facto extintivo ou impeditivo do direito invocado pelo exequente/embargante, aplicando, por isso, a norma singela do ónus da prova de factos constitutivos do direito invocado.
20. Deste modo, a discussão que consta na sentença recorrida sobre a aplicação do artigo 344º, n.º 2, do Código Civil, é absolutamente desnecessária à resolução da questão jurídica, mas revela, salvo o devido respeito, o desnorte do tribunal a quo no caso concreto.
21. A consequência deste erro do tribunal a quo foi o não provimento dos embargos, quando, pelo contrário, porque deve ser dado como provado o facto negativo alegado pelo embargante — de que não recebera do embargado a quantia de €: 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil euros), a única decisão admissível era a do provimento dos embargos, a extinção da execução e o levantamento da penhora.
22. Assim, tal erro deverá ser reconhecido por V. Exas na decisão de recurso a proferir, revogando-se a sentença recorrida e conformando-se a decisão às estritas legais.
23. Por outro lado, na sentença recorrida, o tribunal a quo decide ampliar o domínio da prova possível de um documento autenticado com as características da "declaração de dívida" e da própria autenticação que se encontram junto aos autos.
24. Um documento autenticado - assim como um documento autêntico - faz prova plena do acto inscrito nesse instrumento, o que, no caso concreto, significa que a "declaração de dívida" autenticada, junta ao requerimento executivo como título da execução, faz prova plena de que o recorrente confessa uma dívida.
25. Ora, o documento particular autenticado faz prova plena dos "factos referidos como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que nela são atestados com base nas percepções da entidade documentadora e das declarações atribuídas ao seu autor.
26. O valor probatório pleno de um documento autenticado resulta, portanto, da idoneidade da entidade autenticadora e da sua íntegra capacidade de testemunhar um acto, assim como, eventualmente, de avaliar quaisquer outros documentos que, pertinentes para a finalidade de reconhecimento, sejam referidos no texto do documento.
27. No entanto, decorre do autenticação do documento de "declaração de dívida", apenas os factos de que o recorrente assinou aquela "declaração de dívida", de que tem conhecimento do seu teor e de que este corresponde à sua vontade, ficam plenamente demonstrados.
28. Deste modo, aquela "declaração de dívida" autenticada não faz prova plena de que, entre o recorrente e o recorrido, foi celebrado um mútuo da quantia de €: 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil euros); não faz prova plena de que o contrato de mútuo foi validamente celebrado; não faz prova plena de que o recorrente recebeu a quantia de €: 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil euros); não faz prova de que o recorrido entregou a quantia de €: 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil euros).
29. Ademais, é manifesto que a "declaração de dívida" que titula a acção executiva não foi confirmada por ambas as partes, isto é, pelo recorrente e recorrido, nela constando apenas o reconhecimento da assinatura do recorrente, nem resulta de tal "declaração" que esta tenha sido feita perante a parte contrária ou de quem a representasse o que representa violação dos artigos 363º, n.º 3, e 358º, n.º 2, ambos do Código Civil.
30. Deste modo, não constando do documento de "declaração de dívida" estes elementos, não é possível atribuir àquele documento força probatória plena, tal como assumido pelo tribunal a quo.
31. Por isso, deverão V. Exas. revogar a decisão recorrida, extirpando o valor probatório atribuído na sentença à "declaração de dívida" autenticada, com as necessárias e óbvias consequências legais, provendo, nomeadamente, os embargos deduzidos.
32. Apesar de, no relatório da sentença recorrida, constar que se decidiu, no despacho saneador, a questão da inexequibilidade do título executivo, na "motivação" da sentença recorrida, o tribunal a quo reabriu a discussão sobre a admissibilidade do título executivo, ao discutir a genuinidade e valor probatório dos documentos juntos com o requerimento executivo, nomeadamente, a "declaração de dívida".
33. Assim, na decisão recorrida, o tribunal a quo amplia os limites da figura jurídica descrita no art.º 458º do Código Civil, esquecendo as formalidades acrescidas exigidas no seu nº 2 para a prova da relação subjacente àquela promessa ou reconhecimento.
34. Tautologicamente dir-se-á, portanto: sendo a única prova admissível para a existência de uma relação jurídico-contratual de mútuo no montante de €:450.000 (quatrocentos e cinquenta mil euros) a apresentação da escritura pública ou a respectiva certidão de tal contrato de mútuo, não há outra formalidade para provar um contrato de mútuo naquele montante senão apresentar conjuntamente com a declaração de dívida a escritura pública do contrato que fundamenta a dívida - a relação fundamental subjacente àquela declaração.
35. Assim, deveria ter o tribunal a quo compreendido o normativo constante do artigo 458º do Código Civil nos seguintes termos: quando alguém promete uma prestação ou reconhece uma dívida, por simples declaração unilateral, e não indica uma causa para a prestação ou dívida, fica aquele que recebe a promessa ou o reconhecimento dispensado de provar a relação jurídica subjacente, que se passa a presumir elidivelmente; no entanto, toda a promessa ou reconhecimento, para serem válidos, têm de ser sempre feitos por documento escrito e, quando a relação jurídica subjacente à declaração só puder ser provada pela apresentação de, por exemplo, uma escritura pública de um contrato, então, aquele que recebe a promessa não fixa dispensado de provar o evento jurídico que subjaz à declaração.
36. O exequente/embargado devia ter feito acompanhar a "declaração de dívida" com a escritura pública do contrato de mútuo de valor superior a €: 25.000 (vinte e cinco mil euros), de modo a demonstrar a causa subjacente à declaração - mas não o fez.
37. Além do mais, o embargante alegou que nunca recebera o montante de €: 450.000.
38. No entanto, o embargado - a quem cabia o ónus da prova - decidiu não provar a entrega daquele montante ao embargante, mas introduziu nos autos documentação que não satisfaz as exigências probatórias prescritas pelo nosso ordenamento jurídico, isto é, documentação que não tem idoneidade para provar a entrega daquele montante ao embargante.
39. Consequentemente, deverá ser a "declaração de dívida" apresentada pelo exequente/embargado considerada inidónea como título da execução, decretando-se a extinção da presente execução.
Nestes termos e nos demais de Direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso e a) declarar-se a nulidade da sentença ao abrigo do art.º 615º, n.º 1, alínea b), c) e d), do Código de Processo Civil, com as demais repercussões legais; e b) revogar-se a decisão recorrida em resultado das questões suscitadas ao longo das alegações, o que determinará a prolação de nova decisão, desta feita, acolhendo os embargos e extinguindo a presente execução.»

O exequente/embargado não contra-alegou.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- nulidade da sentença recorrida;
- violação das regras do ónus da prova;
- errada determinação do alcance da “força probatória plena” da declaração de dívida que constituiu o título dado à execução;
- invalidade do título executivo.

III – FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. Por requerimento datado de 04-03-2022 AA instaurou contra BB acção executiva para pagamento de quantia global de 453.750,00 (quatrocentos e cinquenta e três mil setecentos e cinquenta euros).
2. No segmento destinado à enunciação dos factos, o exequente aqui embargado alegou, para além do mais, o seguinte:
«I. A 14 de outubro de 2020, o ora Executado assinou uma declaração de dívida, devidamente autenticada, por advogado, na qual se reconhece devedor do Exequente da quantia de 450.000,00€ (quatrocentos e cinquenta mil euros) (…).
A declaração de dívida foi devidamente autenticada, tendo o seu termo de autenticação, sido redigido e lido ao Executado, em voz alta e o seu conteúdo explicado.
O Executado declarou ter conhecimento e concordar com o lavrado e, por isso, assinou a declaração de dívida e o termo de autenticação, nos termos das leis notariais.
(…)
II.
Na origem da dívida do Executado estava a necessidade deste cumprir um acordo judicial de partilhas, homologado a 16 de dezembro de 2019, no processo nº 199/10.... que correu termos no ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ... (…).
Nos termos do acordo judicial, o Executado estava obrigado a pagar o montante de 422.000,00€ (quatrocentos e vinte e dois mil euros), até ao dia 15 de outubro de 2020 (…).
Não tendo liquidez para cumprir a sua obrigação, nem obtido o empréstimo bancário que dizia ter solicitado, o Executado recorreu ao Exequente.
III. A aceitação, pelo Exequente, da declaração de dívida, tinha implícito o compromisso, assumido pelo Executado, da restituição da quantia total no prazo máximo de 6 meses, ou seja, até 14 de abril de 2021.
Ficou, ainda, acordado que até à liquidação total da quantia, o Executado pagaria ao Exequente o montante de 3,000€ (três mil euros) mensais, nos primeiros quinze dias de cada mês. O que sucedeu até ao passado dia 15 de janeiro.
No que se refere à quantia de 450.000,00€ (quatrocentos e cinquenta mil euros), o Executado nada liquidou.
Várias vezes instado para o pagamento, o Executado nunca o fez, nem tão pouco procurou acordar data diversa para o cumprimento da obrigação.
(…)».
3. A sobredita «Declaração de Dívida» foi subscrita pelo executado/embargante em 14-10-2020 com o seguinte teor:
«BB (…) confessa-se devedor da quantia de € 450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil euros), que lhe foi mutuada por AA (…), obrigando-se o ora declarante a restituir-lhe a quantia acima mencionada, no prazo máximo de 6 meses, até ao dia 16 de Abril de 2021, em singelo, através de um único pagamento ou de vários pagamentos, feitos por depósito em conta bancária a indicar pelo Mutuante, endosso de cheque emitido em nome desse, transferência ou entrega de numerário, para o efeito.
Até à liquidação total da quantia mutuada o declarante compromete-se a pagar ao mutuante a quantia de 3.000,00 (três mil euros) mensais, até ao dia 15 de cada mês.
O não cumprimento dos termos assumidos, na presente declaração de dívida, constitui título executivo».
4. Sobre tal declaração incidiu termo de autenticação elaborado e subscrito em 14-10-2020 por CC, Advogado, tendo de igual modo sido subscrito pelo aqui executado/embargante.
5. Consta de tal termo ter sido registado naquela mesma data, pelas 15h42, com o n.º .../143.
6. Do respectivo teor emerge, para além do mais, o seguinte:
«(…) CC, Advogado, autentica o documento anexo, que consiste numa declaração de dívida, composta de 01 página, emitida no dia 14 de Outubro de 2020, por BB, (…) confessa-se devedor da quantia de € 450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil euros), que lhe foi mutuada por AA (…), obrigando-se (…) a restituir-lhe a quantia acima mencionada, no prazo máximo de 6 meses, até ao dia 16 de Abril de 2021, em singelo, através de um único pagamento ou de vários pagamentos, feitos por depósito em conta bancária a indicar pelo Mutuante, endosso de cheque emitido em nome desse, transferência ou entrega de numerário, para o efeito. Até à liquidação total da quantia mutuada o declarante compromete-se a pagar ao mutuante a quantia de 3.000,00 (três mil euros) mensais, até ao dia 15 de cada mês. O não cumprimento dos termos assumidos, na presente declaração de dívida, constitui título executivo.
O documento de declaração de dívida em anexo, foi submetido pelo declarante ao ora signatário, para autenticação, tendo-se este assegurado de que o declarante o leu e tem conhecimento do seu conteúdo e que o mesmo corresponde à sua vontade.
(…)
Este documento foi lido e o seu conteúdo explicado ao declarante.
(…)».
E foi considerado não provado que:
- O exequente/embargado nunca desembolsou efectivamente a quantia de € 450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil euros) mencionada na susodita «Declaração de Dívida».

O DIREITO
Da nulidade da sentença
A sentença, como ato jurisdicional, pode atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada, e então torna-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615º do CPC.
Como se infere das prolixas conclusões do recorrente, este imputa à sentença recorrida as causas de nulidade das alíneas b), c) e d) do nº 1 do artigo 615º do CPC.
A causa de nulidade da sentença tipificada na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC, ocorre quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão.
Esta nulidade, tal como é pacificamente admitido, exige a ausência total de fundamentação de facto ou de direito e não se basta com uma fundamentação meramente incompleta ou deficiente[1].
Como já referia Alberto dos Reis[2], a necessidade de fundamentação da sentença assenta numa razão substancial e em razões práticas. Por um lado, porque a sentença deve representar a adaptação da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido ao juiz e, por outro lado, porque a parte vencida tem direito a saber a razão pela qual a sentença lhe foi desfavorável, para efeitos de recurso. E, em caso de recurso, a fundamentação de facto e de direito é também absolutamente necessária para que o tribunal superior aprecie as razões determinantes da decisão.
O artigo 154º do CPC ocupa-se da densificação desse dever estatuindo, desde logo, que o mesmo se estende a todos os pedidos controvertidos e a todas as dúvidas suscitadas no processo (nº 1), não podendo a justificação consistir na mera adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição (nº 2).
Esta fundamentação não impõe, porém, uma enumeração exaustiva de todas as soluções possíveis, mas antes se basta com indicação das soluções determinantes que a fundam e que simultaneamente arredam outras possibilidades.
Escreve, a propósito, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida[3]:
«A estatuição do citado nº4 do art- 607º (1º- segmento) é, contudo, meramente indicadora ou programática, não obrigando o tribunal a descrever de modo exaustivo o iter lógico-racional da apreciação da prova submetida ao respectivo escrutínio; basta que enuncie, de modo claro e inteligível, os meios e elementos de prova de que se socorreu para a análise crítica dos factos e a razão da sua eficácia em termos de resultado probatório. Trata-se de externar, de modo compreensível, o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo tribunal na apreciação da realidade ou irrealidade dos factos submetidos ao seu escrutínio. Deve, assim, o tribunal enunciar os meios probatórios que hajam sido determinantes para a emissão do juízo decisório, bem como pronunciar-se: - relativamente aos factos provados, sobre a relevância deste ou daquele depoimento (de parte ou testemunhal), designadamente quanto ao seu grau de isenção, credibilidade, coerência e objectividade; - quanto aos factos não provados, indicar as razões pelas quais tais meios não permitiram formar uma convicção minimamente segura quanto à sua ocorrência ou convencer quanto a uma diferente perspectiva da sua realidade ou verosimilhança».
No caso em apreço, é fora de qualquer dúvida que o Sr. Juíz a quo motivou de forma circunstanciada a decisão sobre a matéria de facto, analisando de forma crítica e conjugada as provas, especificando claramente os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, tudo em conformidade com o disposto no nº 4 do artigo 607º do CPC.
Com efeito, não colhe minimamente a alegação do recorrente de que não foram fixados «quaisquer factos (concretos, precisos) como provados nela, constando apenas que se prova que o exequente alegou num requerimento executivo», que «na parte dos factos provados (nem dos não provados) não constam quaisquer factos alegados pelo ora recorrente no requerimento de embargos, o que constitui manifesta omissão de pronúncia», e que «é manifesto que o tribunal a quo valora um conjunto de factos (sempre contra o recorrente) que não se encontram provados na sentença recorrida, o que determina a nulidade da sentença».
Em primeiro lugar, estão elencados factos “concretos e precisos”, como uma leitura minimamente atenta da sentença revela, sendo que a enunciação dos factos alegados no requerimento executivo no segmento destinado à enunciação dos factos se revela de toda a importância, como veremos infra.
Em segundo lugar, se o recorrente entende que não consta do elenco dos factos provados factualidade relevante por si alegada, então porque razão não impugnou a matéria de facto nos termos do art. 640º do CPC?
Em terceiro lugar, se o tribunal valora um conjunto de factos que não se encontram provados na sentença recorrida, então estamos perante um erro de julgamento e não nulidade da sentença.
Como se escreve no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2017[4]: “I. O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento (…).”.
A nulidade de uma decisão judicial é um vício intrínseco da mesma e não se confunde com um hipotético erro de julgamento, de facto ou de direito. Uma sentença é nula, por falta de fundamentação, quando a decisão concretamente tomada – e não aquela que as partes entendam que deveria ter sido tomada – não se encontra assente em factos apresentados pela própria decisão, diretamente ou por remissão.
Imputa ainda o recorrente à sentença a nulidade da alínea c) do nº 1 do art. 615º do CPC, mas sem concretizar onde se verifica oposição entre os fundamentos e a decisão, ou qual a ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, e percebe-se bem porquê, pois basta ler com o mínimo de atenção a sentença para se ver que inexiste a apontada nulidade, havendo total concordância entre os fundamentos e a decisão, e não se vislumbra outrossim qualquer ambiguidade ou obscuridade.
Da lição de José Alberto dos Reis[5], resulta que uma sentença (ou um despacho) «é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quiz dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos».
In casu, o Sr. Juiz a quo expressou de forma perfeitamente clara a sua posição quanto à questão decidenda e não há qualquer passagem da sentença que se se preste a interpretações diferentes, pelo que não se verifica a invocada nulidade.
O mesmo se diga, aliás, da invocada nulidade da alínea d) do nº 1 do art. 615º do CPC.
De acordo com este preceito, a sentença é nula «Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»; tal normativo está em consonância com o comando do nº 2 do art. 608º do CPC, no qual se prescreve que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Como é jurisprudência unânime, não há que confundir questões colocadas pelas partes à decisão, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido[6].
Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do artigo 615º, nº 1, al. d), do CPC. Daí que, se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este se não pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.
In casu, o Sr. Juiz a quo conheceu do que tinha de conhecer, atento o objeto do litígio e os temas da prova, pelo que não se verifica qualquer omissão de pronúncia que, aliás, o recorrente, não identifica, pois no essencial limita-se a discordar da decisão proferida, alegadamente por não atender à matéria a que alude na conclusão 10.
Em suma, a sentença recorrida não enferma de nenhuma das nulidades invocadas pelo recorrente.

Da violação das regras do ónus da prova
Diz o recorrente que tendo alegado que não tinha recebido do embargado a quantia de € 450.000,00, cabia ao exequente/embargado o ónus da prova de que aquela quantia lhe havia sido entregue, nos termos do nº 2 do art. 342º do Código Civil[7], pois aquela alegação, incidindo sobre facto negativo, que por si mesmo impede e/ou extingue o direito de crédito invocado pelo exequente/embargado, impõe a aplicação da regra sobre ónus da prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado.
Conclui o recorrente dizendo que a discussão constante da «sentença recorrida sobre a aplicação do artigo 344º, n.º 2, do Código Civil, é absolutamente desnecessária à resolução da questão jurídica» em apreço.
Mas não tem razão. Senão vejamos.
A discussão efetuada a respeito do art. 344º, nº 2, do CC, tem toda a razão de ser, na medida em que o exequente/embargado foi notificado para juntar aos autos documentos bancários comprovativos da efetiva entrega da quantia alegadamente mutuada, tendo-se o mesmo limitado a proceder à junção do documento constante da ref.ª ...64 de 10-01-2023, correspondente a cópia da decisão de extinção da execução que correu termos sob o processo nº 24011/20...., de cujo teor emerge que «[o] executado procedeu ao pagamento da quantia exequenda, bem como demais encargos com o processo».
Por isso, ponderou-se na sentença recorrida:
«Coloca-se assim a questão de saber se aquela omissão tornou impossível ou particularmente difícil a demonstração da factualidade cujo ónus incidia sobre o executado/embargante.
Cremos que a resposta é negativa.
Com efeito, sendo executado naquele Processo n.º 24011/20...., correspondente à execução instaurada pela sua ex-mulher para cumprimento do acordo de partilha celebrado no Processo n.º 199/10...., poderia/deveria o executado/embargante desenvolver facilmente um maior esforço probatório tendente a demonstrar que a susodita quantia que permitiu a extinção da execução não proveio do aqui exequente/embargado.
Tanto mais que alegou ter o pagamento sido levado a cabo pela Dra. DD, então sua mandatária, limitando-se, contudo, a juntar documentos de cuja análise não pode de modo algum, sem mais, emergir a sustentação dessa factualidade.
Para além de a não ter arrolado como testemunha (não sendo no caso inequívoca, como vimos, a impossibilidade de produção de prova testemunhal), não requereu, por exemplo, o depoimento de parte do exequente/embargado para provocar eventual confissão ou o levantamento do sigilo bancário com vista a evidenciar o rasto que culminou nos pagamentos documentados nas cópias dos quatro talões de multibanco que juntou com a petição inicial.
Ademais, prescindiu expressamente da testemunha que havia indicado, ficando sem se saber qual seria a sua razão de ciência.
Ora, levando ainda em linha de conta o princípio da auto-responsabilidade das partes, entendemos que a inversão do ónus da prova aqui em análise não pode servir como remédio para tal inércia do executado/embargante, pois caso contrário estaria escancarada a porta para, de modo fácil e cómodo, eximir-se do ónus probatório que sobre si incidia.
Os documentos em falta – cuja posse o exequente/embargado não pôs em causa, é certo – seriam sem dúvida relevantes para a decisão da causa - o que foi naturalmente tido em conta na notificação daquele para os juntar -, mas não imprescindíveis no sentido de serem os únicos meios probatórios de que o executado/embargante poderia socorrer-se.
Tudo isto sendo ainda certo que o mesmo alegou nos artigos 66 e 67 da petição inicial não se ter eximido «de cumprir as responsabilidades assumidas perante o Exequente e pagou, todos os meses, a importância de 3.000,00 €, conforme se tinha obrigado a fazer, até à liquidação total do montante emprestado», o que fez «até ao passado dia 15 de Janeiro como, aliás, o Embargado reconhece expressamente no seu requerimento executivo». (sublinhado nosso)
Diante de uma tal confissão, conjugada com o demais que se deixou exposto, inexistem razões suficientes para fazer operar in casu a inversão do ónus da prova decorrente dos supra citados artigos 417.º, n.º 2, 2.ª parte, e 430.º do Código de Processo Civil, e 344.º, n.º 2 do Código Civil, o que torna inelutável o juízo probatório negativo que incidiu sobre a factualidade não provada.»
Está, pois, plenamente justificada a discussão acerca da inversão do ónus da prova prevista no art. 344º do CC, a qual não se confunde com a presunção inerente ao artigo 458º, nº 1, do CC, questão que será apreciada de seguida.

Da força probatória plena da declaração de dívida que constituiu o título dado à execução/validade do título executivo
Segundo o recorrente, «o tribunal a quo amplia os limites da figura jurídica descrita no art.º 458º do Código Civil, esquecendo as formalidades acrescidas exigidas no seu nº 2 para a prova da relação subjacente àquela promessa ou reconhecimento», pelo que deveria ter «compreendido o normativo constante do artigo 458º do Código Civil nos seguintes termos: quando alguém promete uma prestação ou reconhece uma dívida, por simples declaração unilateral, e não indica uma causa para a prestação ou dívida, fica aquele que recebe a promessa ou o reconhecimento dispensado de provar a relação jurídica subjacente, que se passa a presumir elidivelmente; no entanto, toda a promessa ou reconhecimento, para serem válidos, têm de ser sempre feitos por documento escrito e, quando a relação jurídica subjacente à declaração só puder ser provada pela apresentação de, por exemplo, uma escritura pública de um contrato, então, aquele que recebe a promessa não fixa dispensado de provar o evento jurídico que subjaz à declaração
Conclui, dizendo que «[o] exequente/embargado devia ter feito acompanhar a "declaração de dívida" com a escritura pública do contrato de mútuo de valor superior a €: 25.000 (vinte e cinco mil euros), de modo a demonstrar a causa subjacente à declaração - mas não o fez.»
Vejamos.
O reconhecimento de dívida - enquanto negócio jurídico unilateral causal - implica a isenção ou a dispensa do credor de fazer a prova da relação fundamental - desde que não esteja legalmente sujeita a formalidades específicas - cuja existência, até prova em contrário, se presume. Nesta situação peculiar, que a doutrina designa como de causalidade substancial e abstração processual[8], o credor que invoca o ato unilateral de reconhecimento, está dispensado de invocar e provar a relação fundamental, que se presume; o devedor, pode, porém, fazê-lo, para contrariar a pretensão do credor, devendo, então, alegar e provar a insubsistência do crédito, por cumprimento, ou por prescrição, ou por invalidade da relação fundamental ou por outra razão que, no caso, possa ter esse efeito[9].
Escreveu-se a este propósito no Acórdão da Relação de Coimbra de 24.10.2023[10]:
«(…), embora o ato de reconhecimento da dívida se não traduza numa relação jurídico-material, dotada da característica da abstração - assentando, necessariamente na existência anterior de uma relação jurídica fundamental que suporta o ato de reconhecimento unilateral de um débito pré-existente - a presunção de existência de uma relação fundamental, traz implícita a desoneração do credor da demonstração da existência e validade dessa relação causal, subjacente ao negócio unilateral, recaindo, naturalmente, sobre o devedor o ónus ou encargo de ilidir essa presunção, no âmbito da oposição que formula contra a obrigação, v.g., nos embargos que deduza contra a execução em que tenha sido utilizado como título executivo o documento recognitivo correspondente. Quer dizer: a declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida importa a atuação da presunção de existência da relação causal, cabendo, por isso, ao devedor demandado afastar ou por em causa tal presunção, demonstrando a inexistência ou a invalidade do débito aparentemente reconhecido pela declaração unilateral invocada pelo credor.»
É certo que a doutrina e a jurisprudência não são unânimes quanto à exata extensão do regime da referida abstração processual, porquanto não falta quem entenda - em termos mais restritivos - que aquela abstração apenas dispensa o credor do ónus de provar a relação fundamental subjacente ao negócio unilateral - mas não também do ónus de alegar essa mesma relação[11].
Em todo o caso, como se diz no citado aresto da Relação de Coimbra de 24.10.2023, «deve notar-se que, em bom rigor, existe aqui ainda um negócio jurídico unilateral - embora aparentemente apenas com eficácia meramente declarativa - e que, havendo promessa de cumprimento ou reconhecimento de dívida, a obrigação preexistente já não é a mesma, dado que o reconhecimento, sendo declarativo, tem também eficácia constitutiva: para além do decisivo aspeto da prova, a dívida reconhecida nunca é precisamente a mesma»[12].
O art. 458º, nº 1, do CC, sobre a promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida, dispõe: Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
É claro assim que pode haver reconhecimento de dívida sem indicação de causa e reconhecimento de dívida com indicação da respetiva causa.
E se para a situação mais despida se presume a existência da relação fundamental, logicamente que, para a situação mais completa, a relação fundamental se tem de ter logo como provada.
É o que se retira, a contrario, do disposto naquele art. 458º, mas também se extrai diretamente do regime da confissão extrajudicial de factos desde que feita pelo devedor ao credor. Daí que a declaração de dívida - onde de forma expressa está indicada a respetiva causa - não é um mero reconhecimento, porque é também uma confissão extrajudicial por parte do executado da relação fundamental que justifica o reconhecimento de dívida.
Portanto, o executado/recorrente só poderia pôr em causa o título dado à execução destruindo a sua força probatória plena qualificada, nos termos restritos determinados na lei (art. 347º do CC), isto é, impugnando o ato de confissão (art. 359º do CC), ao abrigo dos artigos 446º, 448º e 449º do CPC[13], o que manifestamente não logrou fazer.
Os factos constantes do documento, provados por prova plena qualificada[14] - como é o caso -, configuram o reconhecimento pelo recorrente de uma dívida de € 450.000,00, que lhe foi mutuada pelo exequente, obrigando-se a restituir-lhe essa quantia nos termos exarados na declaração de dívida por si assinada.
Ademais, no requerimento executivo, o exequente indica claramente que «[n]a origem da dívida do Executado estava a necessidade deste cumprir um acordo judicial de partilhas, homologado a 16 de dezembro de 2019, no processo nº 199/10.... que correu termos no ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ... (…).».
Nem se diga, como o recorrente, que «[o] exequente/embargado devia ter feito acompanhar a “declaração de dívida” com a escritura pública do contrato de mútuo de valor superior a €: 25.000 (vinte e cinco mil euros), de modo a demonstrar a causa subjacente à declaração».
Nos termos do art. 703º, nº 1, al. b), do CPC, têm força executiva os documentos exarados ou autenticados por notário ou por outras entidades com competências semelhantes.
Como se sumariou no Acórdão do STJ de 17.10.2019:
«II - o procedimento de autenticação do documento particular consiste, essencialmente, na confirmação do seu teor perante entidade dotada de fé pública, declarando as partes estarem perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este traduz a sua vontade, após o que aquela entidade, mediante a aposição do termo de autenticação, atesta que os seus autores confirmaram, perante ela, que o respectivo conteúdo correspondia à sua vontade.
III - O termo de autenticação deve ser lavrado em conformidade com os requisitos previstos nos artigos 150.º e 151.º do Código de Notariado, devendo, nomeadamente, conter a declaração das partes de que leram o documento [autenticado] ou estão inteiradas do seu conteúdo e que o mesmo exprime a sua vontade.»
Ora, estando em causa um negócio jurídico unilateral, não há a menor dúvida que o respetivo termo de autenticação cumpre todos os requisitos legais, bastando para tanto ler o mesmo com a devida atenção (cfr. ponto 6 dos factos provados), não fazendo o menor sentido a alegação do recorrente de que se mostram violados os artigos 363º, n.º 3, e 358º, n.º 2, do CC, por apenas constar daquela declaração o reconhecimento da assinatura do recorrente.
Em suma, estamos perante um título executivo válido.
Por conseguinte, o recurso improcede, não se mostrando violadas as normas invocadas pelo recorrente ou quaisquer outras.
Vencido no recurso, suportará o embargante/recorrente as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.

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Évora, 8 de fevereiro de 2024
Manuel Bargado (relator)
Maria José Cortes (1ª adjunta)
Francisco Xavier (2º adjunto)
(documento com assinaturas eletrónicas)
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[1] Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, em anotação ao art. 668º do CPC revogado. Na jurisprudência, inter alia, o Ac. do STJ de 04.05.2010, proc. 2990/06.0TBACB.C1.S1.
[2] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, p. 139.
[3] In Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, pp. 350-351, citado no acórdão do STJ de 26.02.2019, proc. 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, disponível, como os que vierem a ser citados sem outra indicação, in www.dgsi.pt.
[4] Proc. 7095/10.7TBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[5] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1984 - reimpressão -, p. 151.
[6] Cfr., inter alia, o acórdão do STJ de 08.02.2011, proc. 842/04.8TBTMR.C1.S1.
[7] Doravante abreviadamente designado CC.
[8] F. Pereira Coelho, Causa Objectiva e Motivos Individuais no Negócio Jurídico, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume II (A Parte Geral do Código Civil e a Teoria Geral do Direito Civil), Coimbra Editora, 2006, p. 431, nota (17).
[9] Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2008, 5ª edição, p. 506. O reconhecimento de uma dívida é uma declaração de ciência (confissão) e, aí, a causa que se presume não é a causa do ato, mas a da obrigação, se esta for de natureza negocial, envolvendo uma causa (que se presume conjuntamente com outros elementos do negócio): João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, AAFDL, Lisboa, 1995, p. 277, nota 468.
[10] Proc. 2548/21.4T8ACB.C1.
[11] Assim, por exemplo, José Lebre de Freitas, A confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, p. 390: sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa do ónus de alegação, e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir, o credor que, tendo embora em seu poder, um documento em que o devedor reconhece a dívida ou promete cumpri-la, sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma acção, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito - o que é confirmado pela exigência de forma do art.º 458.° n.º 2 do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental - e daí que a prova da inexistência da relação causa válida, a cargo do devedor/demandado se tenha de fazer apenas relativamente à causa que tiver sido invocada pelo credor, e não a qualquer possível causa constitutiva do direito unilateralmente reconhecida pelo devedor; cfr., inter alia, Ac. do STJ de 07.07.2010, proc. 373/08.7TBOAZ-A.P1.S1.
[12] Com a seguinte citação em nota de rodapé: «António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Contratos, Negócios Unilaterais, Almedina, 2018, pág. 693, e Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, cit. pág. 447. Objecto de controvérsia é, no entanto, a questão saber se o art.° 458.° do Código Civil prevê negócios de acertamento. Em sentido afirmativo, Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ops. locs. cit. e Ac. do STJ de 07.07.2010 (337/08.7TBOAZ.AP1.S1), contra João de Oliveira Geraldes, Sobre os negócios de acertamento e o artigo 458.° do Código Civil, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano LXII, 2021, n.º 2, págs. 277 e ss.»
[13] Lebre de Freitas, A acção declarativa, 4ª edição, pp. 308 a 314, e CC anotado, vol. I, 2ª edição revista, CEDIS/Almedina, 2019, pp. 464 e 465, e Miguel Teixeira de Sousa, CC comentado, I, IDP/Almedina, 2020, p. 1014, citados no Acórdão da Relação de Lisboa de 23.06.2022, proc. 4940/17.0T8ALM-A.L1-2, que aqui seguimos de perto.
[14] Como veremos mais desenvolvidamente infra.