JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
VALOR PROBATÓRIO
PODERES DA RELAÇÃO
Sumário


1. Se está invocado na decisão de despedimento que a trabalhadora de uma instituição que acolhe menores institucionalizados, ministrou a uma adolescente um “chupa-chupa de canábis”, sem qualquer outra especificação quanto à sua composição e presença de psicoactivos, nomeadamente tetra-hidrocanabinol (THC), não se pode concluir pela justa causa de despedimento.
2. As declarações tomadas às testemunhas no procedimento disciplinar, perante a instrutora nomeada pela entidade patronal, não têm valor probatório na acção de apreciação judicial da regularidade e licitude do despedimento.
3. A empregadora não pode invocar, na acção judicial, os factos e fundamentos não constantes da decisão de despedimento comunicada à trabalhadora.
4. Não cabe nos poderes de cognição da Relação aditar factos essenciais não alegados, ainda que possam resultar da prova produzida.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Évora, AA impugnou o despedimento na sequência de procedimento disciplinar movido pela empregadora BB, Associação de Solidariedade Social.
Realizada a audiência prévia, sem conciliação das partes, a empregadora apresentou articulado motivador do despedimento.
Contestando, a trabalhadora impugnou os factos alegados pela empregadora e deduziu reconvenção, pedindo o pagamento de uma indemnização em substituição da reintegração, as retribuições de tramitação e a quantia de € 12.500,00, a título de danos não patrimoniais.
Realizado o julgamento, a sentença decidiu:
1. Declarar a ilicitude do despedimento;
2. Condenar a empregadora no pagamento da quantia de € 3.632,71 a título de indemnização substitutiva da reintegração, acrescida de juros legais;
3. Condenar a empregadora nos salários de tramitação, a liquidar no respectivo incidente;
4. Julgar, no demais, improcedentes os pedidos formulados pela trabalhadora;
5. Fixar o valor da causa em € 20.000,00.

Inconformada, a empregadora recorreu, rematando as suas alegações com conclusões que não efectuam uma verdadeira síntese dos fundamentos pelos quais pede a revogação da sentença (longe disso), como exigido pelo art. 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
De todo o modo, podem ali ser surpreendidas as seguintes questões fundamentais a decidir no recurso, que assim se identificam (art. 663.º n.º 2 do Código de Processo Civil):
· Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, quanto às alíneas A), G) e H) da matéria dada como não provada;
· Dever do tribunal se pronunciar sobre matéria que conheceu no decurso da audiência de discussão e julgamento, nomeadamente a relativa a antecedentes disciplinares da trabalhadora;
· Existência de justa causa disciplinar bastante para o despedimento, uma vez reapreciada a matéria de facto.

Na resposta, a trabalhadora sustenta a manutenção do julgado.
Já nesta Relação, a Digna Magistrada do Ministério Público emitiu o seu parecer, no sentido da improcedência do recurso.
Cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, e consignando, desde já, que estão reunidos os pressupostos exigidos pelo art. 640.º n.º 1 do Código de Processo Civil para a apreciação da impugnação fáctica (estão especificados os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, bem como os concretos meios probatórios que, na opinião da Recorrente, impõem decisão diversa, e ainda a decisão que, no seu entender, deve ser proferida acerca das questões de facto impugnadas), proceder-se-á à análise desta parte do recurso, no uso da referida autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto.
Preliminarmente, consigna-se que se procedeu à audição da prova gravada, para além da análise do procedimento disciplinar e demais documentação junta aos autos.

*
Alíneas A), G) e H) da matéria de facto considerada não provada:
Declarou a sentença recorrida não provada a seguinte matéria:
“A. Em data não concretamente apurada, mas nos dias imediatamente anteriores a 17 de Março de 2022, a autora deu a CC um chupa-chupa de canábis.
(…)
G. Com a conduta descrita em A., a autora colocou em causa o Acordo de Cooperação entre a entidade patronal e o Instituto de Segurança Social IP/Centro Distrital de Évora o que, por sua vez, colocou em causa a manutenção e o funcionamento da Instituição.
H. Ao actuar do modo descrito em A., a autora agiu de forma deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era violadora dos deveres laborais a que se encontra obrigada.”
Neste conjunto fáctico está em discussão, essencialmente, a administração pela trabalhadora de um produto a uma adolescente menor, internada na instituição gerida pela Ré, que tinha antecedentes associados ao consumo de substancias psicoactivas.
O produto em causa vem identificado na nota de culpa, bem como na decisão de despedimento, simplesmente, como “chupa-chupa de canábis”, sem qualquer outra especificação quanto à sua composição e presença de psicoactivos, nomeadamente o tetra-hidrocanabinol (THC), o psicoactivo que pode ser encontrado na planta do cânhamo (nome científico: Cannabis sativa L.).
A trabalhadora alegou que o referido produto, apesar do seu nome, era comercializado em mercado livre por não conter THC, e certo é que não foi realizado qualquer exame ou teste que permitisse estabelecer a efectiva composição do referido produto. Nem foi procurado qualquer exemplar desse produto, para o sujeitar a perícia apta a determinar a presença e concentrado de THC.
Mesmo no inquérito-crime que correu sob o n.º 493/22.5T9MMN, relativo à queixa-crime deduzida pela Ré contra a trabalhadora, não foi realizado esse exame, tendo sido apenas obtidas imagens da loja on-line que anuncia a sua venda, dizendo que não contém THC.
Note-se que o cânhamo é uma planta que pode ter vários usos, nomeadamente industrial e agro-industrial (produção de têxteis, papel, cordas, combustíveis, champôs, ração animal, óleos, resinas, farinhas, sementes, cerveja e outros produtos destinados à alimentação humana). Daí que não seja de espantar que, percorrendo as prateleiras dos nossos supermercados, seja possível encontrar vários produtos à base de cânhamo, principalmente sementes, champôs e outros produtos capilares, bem como bebidas.
Recentemente, foram publicadas, inclusive, notícias acerca do seu aproveitamento na indústria da construção civil (fabrico de tijolos, com uma mistura à base de palha de cânhamo e cal hidráulica industrial)[1], com vários esforços realizados no sentido do aumento da sua área de cultivo legal.
Note-se que a Lei 33/2018, de 18 de Julho, estabeleceu “o quadro legal para a utilização de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais, nomeadamente a sua prescrição e a sua dispensa em farmácia”, e o Decreto Regulamentar 2/2020, de 8 de Agosto, introduziu várias regras quanto ao controlo do cultivo desta planta, mencionando no seu Preâmbulo o seguinte:
«O Decreto Regulamentar n.º 61/94, de 12 de Outubro, estabelece as regras relativas ao controlo do mercado lícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, compreendidos nas tabelas i a iv anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e aos precursores e outros produtos químicos susceptíveis de utilização no fabrico de droga, adiante designadas por substâncias inventariadas, definidas nos Regulamentos (CE) n.ºs 273/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Fevereiro, e 111/2005, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2004.
O diploma veio assim estabelecer os condicionamentos, autorizações e fiscalização que incidem sobre o cultivo, a produção, o fabrico, o emprego, o comércio, a distribuição, a importação, a exportação, a introdução, a expedição, o trânsito, a detenção a qualquer título e o uso de plantas, substâncias e preparações compreendidas nas tabelas i a iv constantes do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Nos termos do referido decreto regulamentar são atribuídas as funções de controlo a entidades das áreas governativas da agricultura e da justiça relativamente ao cultivo de cânhamo que se destina a fins industriais.
Tem-se vindo a registar um crescente interesse no cultivo desta espécie vegetal, não só para fins medicinais, medicamentos e produtos de uso veterinário, e de cosmética, mas também para o seu uso industrial, nomeadamente produção de fibra, sementes e outros produtos destinados à agroindústria. Considerando que as variedades de Cannabis sativa de uso industrial não são distinguíveis das variedades com teores de tetra-hidrocanabinol (THC) superiores a 0,2%, de que podem ocorrer aumentos dos teores de THC acima dos definidos pela organização comum de mercados para o cânhamo industrial, por via das flutuações naturais derivadas das condições de cultivo, considera-se que o cultivo de cânhamo, independentemente do destino final a dar à respectiva produção, deve estar sujeita a autorização.
Reconhecendo o potencial económico e agrícola desta espécie, o presente decreto regulamentar visa atribuir aos serviços da agricultura as competências para autorização do cultivo para fins industriais, distinguindo-a positivamente dos possíveis fins ilícitos que podem estar associados a esta espécie vegetal.
Por fim, importa definir e enquadrar as competências atribuídas às entidades em matéria de cultivo de variedades de cânhamo, para produção de fibra e sementes, e alargar as competências já atribuídas em matéria de controlo à Polícia Judiciária e ao Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I. P., a todos os campos cultivados, sem prejuízo de os respectivos produtores estarem ou não incluídos no regime do pagamento único.»
Enfim, a planta pode ter várias utilizações, lícitas ou ilícitas, e tudo depende da presença e concentrado do psicoactivo com efeitos estupefacientes que ali pode estar presente.
De acordo com o art. 3.º n.º 2 al. c) da Portaria 83/2021, de 15 de Abril, “apenas podem ser cultivadas variedades inscritas no Catálogo Comum de Variedades de Espécies Agrícolas e que contenham um teor de tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,2%”, valor este que foi entretanto modificado para 0,3% pela Portaria 64/2023, de 3 de Março.
No caso dos autos, temos, pois, um produto alimentar – um chupa-chupa – supostamente à base da planta de cânhamo. Porém, nada mais se sabe, e esse é o problema que a sentença bem encarou, ao escrever: “(…) no que concerne à composição do chupa-chupa nenhuma prova foi efectivamente feita que ateste que o mesmo era, efectivamente, de canábis sendo que o facto imputado à autora feito constar na nota de culpa é precisamente a entrega de chupa-chupa de canábis (…)”.
Se esta circunstância dificultava a prova do facto da alínea A), e por consequência impedia a prova dos factos das alíneas G) e H), que dele estão dependentes, também acompanhamos a sentença recorrida quando declara que a prova, na presente acção, realiza-se nos autos, com o respeito devido pelas regras processuais e de contraditório, e a imediação do tribunal.
Logo, declarações tomadas à menor CC, em sede do procedimento disciplinar e perante a instrutora nomeada pela entidade patronal, não têm valor probatório na presente acção. Não foram realizadas com obediência às regras de processo, com o contraditório da parte contrária, com a imediação do tribunal e com o devido ajuramento, pelo que não possuem valor probatório na acção de apreciação judicial da regularidade e licitude do despedimento – art. 387.º n.º 1 do Código do Trabalho.[2]
De todo o modo, mesmo que assim não fosse, sempre se observaria a que a jovem mencionou no interrogatório que a instrutora lhe fez no procedimento disciplinar que o referido produto de canábis “só tinha sabor”, não produzindo quaisquer efeitos psicoactivos.
Enfim, também diremos que os depoimentos indirectos que a empregadora invoca – das suas trabalhadoras que estavam presentes na reunião da equipa técnica de 17.03.2022 e que efectuaram a participação que originou o procedimento disciplinar – não permitem resolver o problema principal: o que foi exactamente ministrado à menor e se o produto alimentar em causa continha alguma substância psicoactiva e em concentrado superior ao legalmente permitido.
Enfim, nestas condições, resta julgar improcedente esta parte da impugnação fáctica.
*
Pronúncia sobre os antecedentes disciplinares da trabalhadora:
Entende a Recorrente que o tribunal deveria ter considerado provado que “do registo individual da trabalhadora já constavam duas advertências disciplinares”, por ter sido realizada prova desse facto em audiência de julgamento.
Teremos, porém, a recordar que o art. 387.º n.º 3 do Código do Trabalho determina expressamente que o empregador apenas pode invocar, na acção judicial, os factos e fundamentos constantes da decisão de despedimento comunicada ao trabalhador. Ora, tal matéria de facto não consta da nota de culpa, nem da decisão de despedimento, e como tal jamais poderia ser aportada aos autos.
Mas também diremos que não cabe nos poderes de cognição da Relação aditar factos essenciais não alegados e integrantes da causa de pedir, ainda que possam resultar da prova produzida.[3]
O atendimento de factos essenciais não articulados é um poder inquisitório que incumbe ao juiz da causa e que ele apenas pode exercitar no decurso da audiência de julgamento, por sugestão da parte interessada ou por iniciativa própria, em função dos elementos que resultem da instrução e discussão da causa e da sua pertinência para a decisão jurídica e com vista ao apuramento da verdade material e da justa composição do litígio. Por isso, a Relação não pode utilizar tais poderes, ampliando o elenco dos factos provados, como não pode ordenar à 1.ª instância que utilize tal faculdade.[4]
Na verdade, os poderes da Relação estão delimitados pelo art. 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil, podendo alterar a decisão sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, o que significa que a decisão a alterar há-de respeitar a factos adquiridos – no sentido de provados / não provados ou alegados – e não a outros que sejam percepcionados no decurso da audição dos registos da prova.
Deste modo, o facto que a empregadora pretende introduzir, não tendo sido articulado nem objecto de consideração pela primeira instância, no uso dos poderes conferidos pelo art. 72.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, igualmente não pode ser conhecido por esta Relação, pelo que esta pretensão não será atendida.
Consequentemente, também nesta parte a impugnação fáctica não procede.

Consequentemente, a matéria de facto fixa-se tal como consta da sentença recorrida:
1. A Ré é uma organização sem fins lucrativos, com estatuto de IPSS que tem por objecto:
a) Intervir na promoção dos direitos e protecção de crianças e jovens em perigo de forma a garantir o seu bem – estar e desenvolvimento integral;
b) Criar respostas sociais na área de protecção e intervenção com crianças e jovens em situação de risco / perigo.
2. A 1 de Outubro de 2015, foi celebrado entre a entidade patronal e o Instituto de Segurança Social, IP/Centro Distrital de Évora um Acordo de Cooperação Atípico com o seguinte objecto:
- a Instituição (entidade patronal) desenvolve as actividades de Lar de Infância e Juventude Especializado;
- o Centro Distrital presta o apoio técnico e financeiro à Instituição pelo desenvolvimento das referidas atividades.
3. Autor e ré acordaram, por documento escrito datado de 4 de Junho de 2017, na celebração do seguinte contrato: (a sentença reproduz o contrato, o que aqui se dispensa, por inútil ao objecto do recurso).
4. O contrato supra-referido foi sucessivamente renovado, encontrando-se em execução em Abril de 2022.
5. Em Março de 2022 a autora auferiu a quantia líquida de 923,45€, nos seguintes termos discriminada:
- 705€ vencimento base;
- 176,25€ de subsídio de turno;
- 99,44€ de subsídio de alimentação;
- 14,68€ de subsídio de turno;
- 58,74€ de subsídio de férias;
- 14,68€ de subsídio de turno;
- 58,74€ de subsídio de natal;
- descontos legais no valor de 204,10€.
6. Nos meses de Abril, Maio, Junho e Julho de 2022 a ré pagou à autora o respectivo vencimento.
7. A ré, no mês de Agosto de 2022, pagou à autora a quantia líquida de 3.094,22€, nos seguintes termos discriminada:
- 177,75€ sob a designação subsídio de turno;
- 711€ a título de proporcional de subsídio de férias;
- 2.119,68€ a título de férias não gozadas;
- 21€ de diuturnidades;
- 198,72€ sob a designação “Hora suplementar a 100% (36,00H.)” e
- descontos legais no montante de 133,93€.
8. CC, jovem menor residente, em Março de 2022, na instituição gerida pela ré, tinha antecedentes associados ao consumo de substancias psicoactivas, o que era do conhecimento da autora.
9. Era permitido a CC fumar tabaco em contexto institucional, mediante plano tabágico, sendo o tabaco adquirido pela instituição ré e a entrega de cigarro igualmente controlada pela instituição ré, que poderia suprimir ou reduzir o número de cigarro diários como consequência da adopção pela jovem de comportamentos considerados inadequados.
10. O tabaco era entregue mediante instruções da ré, por funcionária da instituição ré, entre elas a autora, à jovem, em dose individuais (ou seja, um cigarro) imediatamente antes de ser consumido, devendo a funcionária acompanhar a jovem enquanto a mesma fumava.
11. Em 05.04.2022 foi apresentado pela direcção da ré à autora um documento, para que a ré assinasse, o que a mesma se recusou fazer, com o seguinte teor: “Reuniu a Sra. Presidente da Direcção, (…), a Directora Técnica, (…), e a trabalhadora AA, no dia cinco de Abril de dois mil e vinte e dois, enquanto a trabalhadora se encontrava em funções na Instituição. A trabalhadora, AA, ao ser confrontada com o facto de ter dado um chupa-chupa de canábis a uma das jovens acolhidas, confessou tê-lo feito, justificando com a crise de agitação da jovem no momento, bem como a necessidade de a acalmar. Não obstante, fê-lo sem conhecimento e autorização da Direcção Técnica ou qualquer outro elemento da Equipa Técnica. A trabalhadora sabe que a utilização de qualquer medicamento dentro da Instituição está dependente de autorização médica e que, portanto, facultar um chupa-chupa com esta substância é prática ilegal dentro da mesma. De forma a apurar a situação, foi explicado à trabalhadora que a decisão passará pela abertura de um processo disciplinar que obedecerá a todas as fases legais do mesmo.”
12. No dia 8 de Abril de 2022, a ré instaurou processo disciplinar à autora e deliberou suspender preventivamente a autora, o que lhe comunicou em 09 de Abril de 2022.
13. A decisão de suspensão provisória da autora tem o seguinte teor:
“Mais se consigna que, tendo em conta os indícios dos factos imputáveis à trabalhadora e não sendo possível em tão curto espaço de tempo elaborar a Nota de culpa, a entidade empregadora deliberou suspender preventivamente a trabalhadora arguida uma vez que a sua presença se mostra inconveniente à averiguação de tais factos e por perturbar o regular funcionamento da instituição”.
14. Em 19 de Maio de 2022 a ré remeteu à autora, que a recebeu em 20 de Maio de 2022, a nota de culpa referente ao processo disciplinar supra-referido, da qual consta: (a sentença reproduz a nota de culpa, o que aqui se dispensa, por inútil ao objecto do recurso).
15. À qual a autora respondeu em 13.06.2022:
- Arguindo a nulidade, por falta de fundamentação, da decisão de suspensão preventiva da autora;
- Impugnando os factos;
- Arguindo a nulidade e ilicitude da nota de culpa por não se imputada de forma circunstanciada a prática de qualquer facto e
- Requerendo a realização de diligências probatórias, designadamente:
- “Prova: Testemunhal – todas as testemunhas arroladas”
- Documental: requer a junção aos autos das análises clínicas de CC realizadas no dia 16/03/2022, por se revelarem essenciais ao apuramento da verdade”.
16. Em 17/06/2021 foi proferido o seguinte despacho no processo disciplinar: (a sentença reproduz o dito despacho, o que aqui também se dispensa, por inútil ao objecto do recurso).
17. Em 14.07.2022 a autora arguiu, no processo disciplinar, a nulidade, por violação do direito de defesa, do procedimento disciplinar, atendendo ao teor do despacho supratranscrito.
18. Em 21 de Junho de 2022 a ré comunicou ao Ministério Público os factos supra descritos para procedimento criminal, tendo dado origem ao Processo de Inquérito n.º 493/22.5T9MMN.
19. Em 28 de Julho de 2022, a ré comunicou à autora a decisão final do procedimento disciplinar, aplicando à mesma a sanção disciplinar de despedimento.
20. Tendo a autora sido notificada de tal decisão em 29 de Julho de 2022.
21. Tal decisão tem o seguinte teor: (a sentença reproduz a decisão de despedimento, o que aqui também se dispensa, por inútil ao objecto do recurso).
22. No Processo de Inquérito n.º 493/22.5T9MMN (supra-referido em 18.) a autora foi constituída arguida, tendo sido proferido despacho de arquivamento.

APLICANDO O DIREITO
Da justa causa de despedimento
Como temos escrito repetidas vezes – a título meramente exemplificativo, mencionam-se os Acórdãos deste colectivo de 05.12.2019 (Proc. 2458/18.2T8EVR.E1), de 11.02.2021 (Proc. 1516/19.0T8BJA.E1) e de 13.05.2021 (Proc. 8262/19.3T8STB.E1)[5] – o despedimento com justa causa por falta disciplinar do trabalhador apenas pode ser decretado se ocorrer absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, de tal modo que a subsistência do vínculo representaria uma exigência desproporcionada e injusta, tornando inadequadas as demais sanções conservadoras do vínculo laboral.
A gravidade do comportamento culposo do trabalhador deve ser aferida com base em critérios de objectividade e razoabilidade, segundo o entendimento de um pai de família, em termos concretos, relativamente à empresa, e não com base naquilo que a entidade patronal considere subjectivamente como tal. O art. 351.º n.º 3 do Código do Trabalho impõe que se atenda, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses da entidade empregadora, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que ao caso se mostrem relevantes.
Note-se que a exigência da gravidade da infracção decorre do princípio geral da proporcionalidade das sanções disciplinares, consagrado no art. 330.º n.º 1 do Código do Trabalho: “sendo o despedimento a sanção disciplinar mais forte, ela terá que corresponder a uma infracção grave; se o comportamento do trabalhador, apesar de ilícito e culposo, não revestir particular gravidade, a sanção a aplicar deverá ser uma sanção conservatória do vínculo laboral.”[6]
Há também a referir que compete à empregadora efectuar a prova da justa causa do despedimento, pois sendo este “um acto necessariamente vinculado, que só é permitido quando se verificarem as razões justificativas que a lei prevê, caberá sempre ao seu autor demonstrar a ocorrência dos factos e fundamentos que invocou para motivar a cessação do contrato de trabalho.”[7]
A sentença recorrida declarou a ilicitude do despedimento, argumentando o seguinte: “(…) dúvidas inexistem, uma vez que a ré não logrou provar os factos que fundamentaram a decisão de despedimento, designadamente a entrega à menor CC de um chupa-chupa de canábis – pois se atentarmos à nota de culpa e à fundamentação de direito da decisão de despedimento, conclui-se necessariamente que apenas esse facto fundamenta tal decisão – que inexiste justa causa para tanto, sendo, em consequência, o despedimento ilícito, o que se decide.”
E assim é, tendo a Ré consciência dessa conclusão, motivo pelo qual pretendeu a alteração da matéria de facto, sem sucesso. Em especial, desconhecendo-se a composição do produto ministrado à menor, sequer se tinha presença de algum psicoactivo, nomeadamente THC, falha a premissa essencial que poderia estabelecer o carácter estupefaciente daquele produto e, consequentemente, a ilegalidade da sua utilização.
E porque nada mais há a acrescentar, resta concluir pela improcedência do recurso.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
Custas do recurso pela Ré.

Évora, 8 de Fevereiro de 2024

Mário Branco Coelho (relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa

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[1] Jornal “Público”, edição de 17 de Janeiro de 2024.
[2] Neste sentido se pronunciou o Acórdão da Relação do Porto de 07.11.2016 (Proc. 11694/15.2T8PRT.P1), publicado em www.dgsi.pt.
[3] Assim se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.04.2023 (Proc. 1205/19.6T8VCD.P1.S1), publicado em www.dgsi.pt.
[4] Hermínia Oliveira e Susana Silveira no VI Colóquio sobre Direito do Trabalho, realizado no Supremo Tribunal de Justiça em 24.10.2014, in “Colóquios”, disponível em www.stj.pt.
Na jurisprudência, vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.09.2016 (Proc. 2/13.7TTBRG.G1.S1), da Relação de Évora de 28.09.2017 (Proc. 1415/16.8T8TMR.E1, subscrito pelo ora relator) e da Relação de Guimarães de 10.07.2019 (Proc. 3235/18.6T8VNF.G1), todos em www.dgsi.pt.
[5] Publicados em www.dgsi.pt.
[6] Maria do Rosário Palma Ramalho, in Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 6.ª ed., 2016, pág. 806.
[7] Pedro Furtado Martins, in Cessação do Contrato de Trabalho, 4.ª ed., 2017, pág. 458.