DIREITO DE PROPRIEDADE
POSSE
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário

I - Não basta que um interveniente, parte ou testemunha, relate uma certa versão factual, para que a mesma seja apreciada e declarada como a verdadeira ou a mais próxima da verdade – leia-se verdade processualmente adquirida de acordo com as regras processuais.
II - A posse é uma situação de facto que a lei protege juridicamente, dada a aparência da existência de um direito real que resulta da atuação de certa pessoa, que é o possuidor

Texto Integral

PROC. N.º[1] 4500/21.0T8VNG.P1

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Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 3


RELAÇÃO N.º 100
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: Maria da Luz Seabra
Rui Moreira

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

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I - RELATÓRIO.

AS PARTES

         AA.:   AA e

                   BB

         RR.:   CC e

                   DD


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Os[2] AA. propuseram ação declarativa com processo comum contra os RR. formulando os seguintes pedidos:

“- devem os RR. ser condenados a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio identificado no artº 1º e 4º da p.i.;

- deve ser declarada ilegal e ilegítima a ocupação pelos ditos RR., ainda que temporária e a passagem pela parcela de terreno identificada no art. 20º a 25º da p.i.;

caso assim se não entenda, em alternativa, por mera cautela e dever de patrocínio,

- deve ser decretada a extinção da eventual servidão pelo não uso por tempo superior a 20 anos, nos termos do disposto no artigo 1569, 1, b) do Cód. Civil, com as legais consequências;

- mesmo admitindo por mera cautela, a existência de servidão de passagem a favor do prédio dos RR. deve a mesma ser declarada extinta, por desnecessidade, nos termos do alegado nos art.s 16º a 21º, 32º e 33º, desta p.i. e do disposto no art. 1569, nº 2 do C.C..“.

Para o efeito alegam que são proprietários de um prédio rústico, com a dimensão e confrontações que no articulado fazem constar, que há cerca de 50 anos o usam, fruem e cuidam, que os Réus são proprietários de um outro prédio rústico e que, há mais de 40/50 anos, o bisavô da da Autora arrendou o prédio rústico propriedade dos Réus e, por forma a encurtar caminho para lá chegar, começou a utilizar uma faixa de terreno do seu próprio prédio rústico, que lhes permitia passar do lugar onde residiam para o prédio arrendado, aí passando pessoas, carros de bois, sementes e outros produtos, sendo que, quando cessou o arrendamento, há mais de 30 anos, aquele caminho deixou de ser utilizado, nunca mais tendo sido utilizado nem pelos Autores nem por ninguém até 2017. Mais alegam que, em 2017 os Autores decidiram colocar o prédio rústico à venda e nessa altura os Réus decidiram começar a utilizar a mencionada faixa de terreno, passando com trator e limpando-a.

O Réu, CC, apresentou contestação, impugnando que alguma vez o bisavô da Autora ou os seus descendentes tenham sido arrendatários do prédio dos Réus, e, por isso, nunca para lá entraram ou de lá saíram.

Deduziu reconvenção, peticionando:

“- declarar-se que o Réu é único e exclusivo dono do prédio descrito nos artigos 24º a 26º;

- os Autores serem condenados a reconhecerem e respeitarem o direito de propriedade do Réu sobre esse prédio e a absterem-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito,

Se assim não se entender, por mera cautela e dever de patrocínio,

- deve ser reconhecida e decretada a existência de servidão de passagem no caminho identificado no artigo 26º desta contestação, a favor do prédio do Réu supra identificado; “

Para o efeito alega que a faixa de terreno cuja propriedade os Autores invocam faz parte do prédio que é propriedade do Réu, tanto que está delimitado por marcos e que o caminho sempre foi pelo Réu e os seus ante possuidores utilizado, para chegar ao cultivo da sua parte rústica e ali fazer passar carros de bois e transportar produtos, na convicção de que exerce um direito próprio, de boa fé e sem oposição de ninguém.

Os Autores replicaram, afirmando que a parcela de terreno faz parte do seu prédio, reiterando que o mesmo tem as confrontações por si indicadas na petição inicial e que o Réu só começou a utilizar a faixa de terreno em 2017. Mais impugnam que os marcos delimitem a servidão, antes delimitam os prédios dos Autores e do Réu na confrontação Norte-Sul e impugnam os restantes factos alegados pelo Réu.


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Foi proferido despacho saneador no qual foi admitida a reconvenção, fixado o valor da causa e verificada a regularidade da instância.

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DA/O DESPACHO/DECISÃO RECORRIDO

Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida SENTENÇA julgando parcialmente procedente a demanda, nos seguintes termos:

Considerando toda a argumentação aduzida:

A) Julga-se a ação parcialmente procedente por provada e, consequentemente:

a. Declara-se os Autores donos e legítimos proprietários do prédio rústico composto por terreno de lavradio e mato sito no Lugar ..., na União de Freguesias ... e ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...33 e inscrito na matriz rústica sob o artigo ...56;

b. Absolve-se os Réus do demais peticionado.

B) Julga-se o pedido reconvencional parcialmente procedente e, consequentemente:

a. Declara-se os Réus donos e legítimos proprietários do prédio misto composto por casas sobradadas, dependências, pátio e terra lavradia, sito na Rua ..., ... ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...11 e inscrito na matriz rústica sob o artigo ...68;

b. Absolve-se os Autores do demais peticionado.

C) Condena-se os Autores e os Réus no pagamento das custas processuais, na proporção de 50% para cada.“.

Foi proferida decisão a rectificar a condenação em custas, nos seguintes termos:

C) Condena-se Autores e Réus no pagamento das custas da ação, na proporção de 20% para os Réus e de 80% para os Autores. Condena-se Autores e Réus no pagamento das custas da reconvenção, na proporção de 20% para os Autores e de 80% para os Réus “.


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DAS ALEGAÇÕES

RECURSO 1

Os AA., vêm desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

Nestes termos e nos melhores que doutamente forem supridos deve ser julgado procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, revogada a decisão de absolvição dos RR. e decretada a ilegalidade e ilegitimidade da ocupação destes da faixa de terreno em causa e a passagem dos mesmos pela dita parcela, com o que será feita boa e sã Justiça“.


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Os ora recorrentes apresentam as seguintes CONCLUSÕES:

1. A sentença proferida pela Meritíssima Juiz “a quo” absolveu os RR., ora recorridos, do pedido de declaração de ilegalidade da ocupação dos RR., ainda que temporária e a passagem pela parcela de terreno identificada nos art. 20º a 25º da p.i.; e é com esta decisão que os ora recorrentes não se conformam;

2. Na p.i. que apresentaram em Juízo, os AA., ora recorrentes, alegaram ser proprietários e legítimos possuidores do prédio identificado no art. 1º daquele articulado e que no prédio em causa, se integra a parcela correspondente ao leito do caminho, conforme resulta do alegado nos artigos 16º a 23º do seu referido articulado inicial; mais alegaram factos relativos à posse do prédio em causa, considerado na sua totalidade, conforme resulta dos artigos 5º a 12º da p.i.;

3. De facto, o prédio, tal como ficou alegado pelos ora recorrentes, está devidamente demarcado, tendo a extensão, limites e confrontações também alegados na p.i.;

4. Resulta tal inequívoca conclusão da análise da matéria dos autos, nomeadamente: dos documentos/fotografias 1 e 6, obtidas pelo Tribunal, aquando da inspecção judicial ao local que a confrontação do prédio dos AA. a Norte é com um muro que divide o prédio destes do prédio contíguo pertença de EE (ou de sua filha), sendo a fot. 1 obtida de Poente para Nascente, e vê-se claramente, do lado esquerdo da mesma (confrontação do lado Norte), o muro divisório entre o prédio dos AA. e o do Sr. EE ou familiares deste, e a fot. 6, obtida do lado Poente revela a mesma realidade;

5. Realidade local e patente que, na motivação da matéria de facto, a Meritíssima Juiz ”a quo”, embora refira “nada se tendo demonstrado quanto à real confrontação a Norte ser EE”, logo mais adiante, refere, em conformidade com o observado, inspeccionado e fotografado que a sua confrontação a Norte é um muro que divide um outro terreno, no qual se encontra um imóvel que a própria testemunha EE referiu ser de sua filha e não sua;

6. Nenhuma prova ou sequer afloramento de prova apontou no sentido de que o muro divisório pertencia aos RR. CC e esposa ou que com estes confrontava;

7. Por outro lado, consta do elenco da matéria de facto, o ponto 1.2-C que não se acha provado que a faixa de terreno identificada em 14 está demarcada do prédio dos AA.;

8. Perante isto, a prova produzida, nomeadamente a inspecção ao local, os documentos fotográficos obtidos, os quais conjugados entre si e a matéria de facto considerada provada e não provada é de concluir que a faixa de terreno em causa é propriedade dos AA.;

9. Tendo presentes as regras do ónus da prova, entendem os AA., ora recorrentes, ter alegado e provado o seu direito (artigo 342º, nº 1 do C.C.) e que outro tanto não aconteceu com os RR. (art. 342º, nº 2, e 344º, nº 1 do CC.) relativamente à prova que lhes competia;

10. Assim, face às anteriores conclusões e aos princípios inerentes aos direitos reais (da especialidade, da coisificação, da totalidade da coisa e da elasticidade) deve ser revogada a decisão em apreço e julgada procedente a pretensão dos recorrentes;

SEM PRESCINDIR

11. Dá-se como reproduzida a matéria de factos constante do elenco dos factos provados (v.g. itens 1, 3, 7, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20) que, na opinião dos recorrentes, deve ser tida em conta e conjugada com a alegação dos artigos 20 e 21 da p.i., o que, por economia processual, se dá como reproduzido nestas conclusões;

12. O bisavô e o avô da A. esposa utilizavam uma faixa de terreno do seu próprio prédio para acederem ao prédio dos antepossuidores do R. marido, pôr ser mais fácil, mais cómodo e para encurtar caminho, conforme, aliás, a douta sentença recorrida refere, a dado passo: “Por tudo isto o Tribunal considerou que, efectivamente, à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, é verosímil que este caminho fosse utilizado …;

13. Reportando-se ao facto não provado da alínea B diz ainda a sentença recorrida:

“Quando ao ponto B, embora a testemunha FF tenha afirmado que foi o seu avô (bisavô da Autora) quem abriu o caminho para poder passar, a verdade é que, não se compreende de que forma o fez”… “esta ausência de prova da configuração anterior do caminho e de atos que possam ter sido levados a cabo para o fazer não permite afirmar que o caminho foi aberto, por anteriormente inexistir e que o foi pelo bisavô da Autora.”;

14. Da matéria de facto tida como provada, a Meritíssima Juiz “a quo” retirou conclusões que resumidamente se consubstanciam no seguinte: 1. … “os AA. não lograram provar as confrontações, nomeadamente não lograram demonstrar que a real confrontação, como alegado, era com EE.” 2. “Em segundo lugar, não se demonstrou que tenha sido o bisavô da Autora a abrir o caminho”.

3. Por fim, em nenhum momento da petição inicial invocam os AA. a aquisição originária do direito de propriedade sobre esse caminho por recurso à usucapião da faixa de terreno que entendem ser sua propriedade…;

15. Quanto à conclusão vertida no item 1. atrás mencionado, importa destacar matéria relevante que se acha incorporada nos autos que, na opinião dos recorrentes, aponta em sentido contrário: o prédio dos AA. acha-se perfeitamente demarcado pelo lado Norte através de muro divisório construído pelo vizinho EE, ou familiar (motivação da sentença recorrida); está patente nas fotografias obtidas pelo Tribunal (fot. 1 e 6) no acto da inspecção judicial realizada; e não existe demarcação entre a faixa de terreno do caminho e o restante prédio dos AA. (facto não provado C);

16. Quanto à conclusão contida no item 2. importa realçar que: em conformidade com a p.i. (art. 20º) os antepossuidores da A. esposa eram proprietários do prédio identificado em 1 do mesmo articulado, e, por serem proprietários desse prédio e arrendatários do que pertencia ao antepossuidores do R. marido, dispuseram sobre essa parcela de terreno, abrindo caminho que lhes facilitava a eles e não já aos antepossuidores do R. um melhor acesso e comodidade, o que constitui acto de posse efectiva sobre a faixa de terreno em causa;

17. O prédio dos RR. juntamente com o do irmão do R. CC (cfr. verba 23 da certidão da 2ª Vara Cível, junta na contestação) eram um só, formando um todo;

18. O caminho em causa servia aos antepossuidores da A. esposa para acederem à totalidade do prédio dito na conclusão anterior, daí que se iniciava na Rua ..., seguindo pelo prédio dos AA. até ao final dos arrendados;

19. Havia – e há – diferenciação entre o prédio dos AA. (que fica num plano superior) e o dos RR. (num inferior), sendo a divisão concretizada por um muro de suporte de terras que integra o prédio dos recorrentes;

20. O que tudo resultou evidente na inspecção ao local, no tocante ao desnível, ao muro divisório e morfologia dos respectivos solos;

21. A abertura do caminho pelo bisavô da A. esposa consistiu na demolição de uma pequena secção desse muro, no trajecto da parcela em causa, o que, aliás, foi o necessário e suficiente para viabilizar o acesso, uma vez que, do lado Nascente, na confrontação com a Rua ... não havia muro ou qualquer outro tipo de vedação;

22. Quanto ao item 3 antes referido, reafirma-se o alegado quanto aos itens 1 e 2 (os actos de posse estenderam-se a todo o prédio dos AA. devidamente demarcado; o uso do caminho para a componente de lavradio do prédio dos AA. a demolição e demais actos) constituem actos de posse efectiva sobre a parcela do caminho e todo o prédio;

23. A matéria de facto (“Factos provados” e “Não provados”) conjugada com os demais elementos de prova incorporados no processo, tendo como suporte os princípios que caracterizam o direito de propriedade, impõem que seja julgado provado e procedente o pedido de condenação dos RR. decretando a ilegalidade e ilegitimidade da ocupação da faixa de terreno em causa e a passagem dos mesmos na referida faixa;

24. A douta sentença recorrida, na opinião dos ora recorrentes, violou o disposto nos artigos 342º, nº 1, nos art. 342º, nº 2 e 344º, nº 1 (a contrario) do Código Civil, no artº 1305º e ainda no art. 1252º, nº 2, também do Código Civil, devendo ser revogada e, em consequência, julgado procedente o pedido formulado pelos AA., ora recorrentes;

25. Resulta das alegações supra que poderá eventualmente não constar da matéria de facto (“Factos Provados” e “Factos não Provados”) determinados pontos dessa matéria – embora os AA. entendam estarem contidos nos autos – que mereçam ser apreciados em 1ª instância ao abrigo do disposto na alínea d) do art. 662º do C.P.C., maxime, na alínea c) do mesmo preceito. “.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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RECURSO 2

O R., CC, vem desta decisão, igualmente, interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

“Nestes termos, pelo muito que se alegou e pelo muito que V. Exas mui doutamente suprirão, deve dar-se provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, substituindo-se por outra que considere procedente todo o pedido reconvencional efectuado pelo recorrente/réu.“.


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O R., recorrente, apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

1ª - Há erro na apreciação da matéria de facto -- isto nunca pondo em causa o princípio da livre apreciação das provas pelo Tribunal -- pois, segundo a opinião do Apelante -- e salvo o devido respeito e vénia -- não foi dada a resposta que as provas produzidas impunham.

2ª - Com efeito, como se podem considerar como provados os Factos 13, 14, 15, 16 17 e 18, quando não foi feita qualquer prova dos mesmos, quer testemunhal ou outra.

3ª - Pelo que considerar como Provados os Factos 13, 14, 15, 16, 17 e 18, é não dar-se a resposta adequada face à prova produzida em audiência de julgamento, e que não tem um mínimo de correspondência com a mesma prova produzida e com a verdade dos factos, e é ainda não se fazer uma aplicação correcta do ónus da prova!

4ª – Por isso, deve ser alterada a decisão dada sobre os factos 13, 14, 15, 16 17 e 18 e os mesmos considerados como não provados;

5ª – A decisão sobre a matéria de facto que considerou os supracitados factos como provados deve ser anulada e alterada por esse Tribunal da Relação -- dado que existem os circunstancialismos constantes do artº 662º do Cód. Proc. Civil -- que lhes deverá dar as respostas acima enunciadas.

6ª - Devendo ser considerados como não provados, que, na opinião do Apelante – e salvo o devido respeito e vénia -- as provas produzidas impõem.

7ª - No presente caso, a MMª Juiz a quo não fez uma correcta aplicação da Lei, da Justiça e do Direito, tendo violado as normas jurídicas e a lei, nomeadamente: 414º, 607º, nº4 e 5 do Cód. Proc. Civil -- com as quais se devia conformar.

8ª - Há erro na apreciação da matéria de facto -- isto nunca pondo em causa o princípio da livre apreciação das provas pelo Tribunal -- pois, segundo a opinião do Apelante -- e salvo o devido respeito e vénia -- não foi dada a resposta que as provas produzidas impunham

9ª – Responder provado que “… Desde data não concretamente apurada até ao presente, os Réus utilizam a faixa de terreno referida para entrada e saída da parte rústica do seu prédio, com carros de bois ou tratores, para transporte de sementes, estrumes e recolha dos produtos cultivados (ponto 19) é não dar a resposta adequada face à prova produzida em audiência de julgamento, não ter em consideração os depoimentos das testemunhas EE, GG, e as declarações de parte do Réu e da Autora;

10ª - Assim, face à prova produzida impõe-se alterar os factos dados como provado no ponto 19, dando ao mesmo a seguinte redacção:

19. Desde data não concretamente apurada até ao presente, mas pelo menos desde há 50 anos, sem qualquer interrupção ou hiato, os Réus utilizam a faixa de terreno referida para entrada e saída da parte rústica do seu prédio, com carros de bois ou tratores, para transporte de sementes, estrumes e recolha dos produtos cultivados.

11ª – Responder provado que “… Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 2017, os Réus procedem à limpeza da faixa de terreno sempre que necessário, limpando as ervas que ali crescem (ponto 20) é não dar a resposta adequada face à prova produzida em audiência de julgamento, não ter em consideração os depoimentos das testemunhas EE, GG, HH e as declarações de parte do Réu;

12ª - Assim, face à prova produzida impõe-se alterar os factos dados como provado no ponto 20, dando ao mesmo a seguinte redacção:

20. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde há 50 anos, os Réus procedem à limpeza da faixa de terreno sempre que necessário, limpando as ervas que ali crescem.

13º - Responder não provado ao facto “C”: “A faixa de terreno identificada em 14 está demarcada do prédio dos Autores.”, é não dar a resposta adequada face à prova produzida em audiência de julgamento, resposta essa que não tem assim um mínimo de correspondência com a essa mesma prova produzida e com a verdade dos factos, nomeadamente com o depoimento das testemunhas EE, GG, HH e as declarações de parte do Réu;

14ª - Por isso, deve ser alterada a resposta dada ao facto “C” para ... ”Provado”.

15ª - A faixa de terreno/caminho em causa nos autos sempre integrou o prédio pertencente ao Réu e/ou seus antepossuidores.

16ª – Sendo os títulos aquisitivos dos respectivos prédios juntos aos autos por Autores e Réu, por demais evidentes e demonstrativos da propriedade do Réu relativamente à faixa de terreno/caminho em causa nos autos.

17ª – Mais, tal direito de propriedade do Réu sobre tal faixa de terreno/caminho sempre foi reconhecida quer pelos antepossuidores da Autora, que nunca o puseram causa, como se constata dos depoimentos das testemunhas EE e GG, sendo ambas peremptórias em afirmar que a Autora e os seus antecessores sabiam, que tal faixa de terreno, sempre pertenceu ao Réu e seus antepossuidores.

18ª - Mas, admitindo que o Réu não tem título aquisitivo, o que não se concede e se coloca apenas como mera hipótese académica, está o Réu, por si e seus antepossuidores, na posse titulada, de boa-fé, pública e pacífica de tal prédio, que integra a faixa terreno/caminho dos autos.

19ª - Desde logo porque o Réu por si e antepossuidores, preenchem os elementos que caracterizam a posse descritos na sua fundamentação pela MMª Juiz a quo, ou seja, o corpus, o exercício dos poderes de facto sobre a coisa, e o animus, o elemento psicológico entendido como a intenção de agir como verdadeiro titular do direito real correspondente aos atos realizados.

20ª - Como o ficou demonstrado em audiência de julgamento, nomeadamente, pelos depoimentos das testemunhas EE, GG, HH, e das declarações de parte do Réu.

21ª - O Réu por si e antepossuidores sempre utilizaram a faixa de terreno/caminho para passagem para o resto do seu prédio sempre convencidos que tal faixa de terreno/caminho é de sua propriedade.

22ª - E dúvidas não houve, em audiência de julgamento, que o Réu por si e antepossuidores sempre passaram naquela faixa de terreno na convicção de serem os seus legítimos donos.

23ª - Ora, a passagem na referida faixa de terreno/caminho, como proprietário, consuma-se com a própria passagem em si, na convicção de que o fazem, precisamente, como proprietários, como donos.

24ª - Entende a MMª Juiz a quo que além da passagem, o direito de propriedade envolve muitos outros atos possessórios e exige o exercício de outros poderes de facto para além da simples passagem, designadamente os atos atinentes a cuidar da faixa de terreno, a limpá-la, a colocar-lhe herbicidas.

25ª - Ora, esses actos atinentes que envolvem o direito de propriedade do Réu, por si e antepossuidores, foram e são praticados por eles, quando necessário.

26ª - Como o referiu a testemunha HH, quando afirmou que o Guerra limpou o terreno várias vezes: “Ele limpar sim, já o limpou mais do que uma vez. Ele limpou-o há muito tempo, isso vi eu, andava com o trator, andava um outro empregado atrás com a mangueira a chafurdar aquilo com herbicida, a queimar aquela erva toda por onde ele passava, para passar melhor.”

27ª - Bem como a testemunha EE que afirmou que o Réu e o seu antecessor sempre limparam o caminho. Até contou o episódio em que a Zon colocou nessa faixa de terreno/caminho “…uma caixa, eles foram lá por uma caixa naquele caminho e ele foi à Zon reclamar que aquilo era um caminho privado. Ele consultou um advogado e ele disse-lhe você chega lá com o trator e se o trator não passar você deita aquilo abaixo. Ele botou aquilo abaixo e a Zon não reclamou.”

28ª - A própria MMª Juiz a quo o reconhece na douta sentença proferida quando afirma: “…Na verdade, estes atos, que os Réus também praticaram sobre a faixa de terreno (cf. facto provado 20), afiguram-se já poderem corresponder a uma atuação correspondente ao exercício de um direito de propriedade, a uma posse relativa a esse direito.

29ª - Entende a MMª Juiz a quo que: “…No entanto, da factualidade demonstrada resultou que estes atos apenas se constataram estarem a ser realizados desde 2017, pelo que não se encontra decorrido o tempo necessário para a afirmação da aquisição originária por usucapião (cf. artigo 1296.º, do Código Civil).

30ª - Em suma, apenas desde 2017 se constatou que os Réus utilizam a faixa de terreno/caminho em causa nos autos de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade. Até lá, além de não ter sido possível determinar o número de anos em que os Réus passam no caminho, ainda que essa concretização tivesse sido feita, nessa altura há “uma clara insuficiência do próprio corpus possessório, sendo que (…) o corpus, consistindo no exercício de poderes de facto sobre uma coisa, “é menos um contacto com esta do que a sua imissão na zona de disponibilidade empírica do sujeito” e a intenção de domínio terá de poder inferir-se do próprio modo de atuação ou utilização” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30/05/2019 disponível em www.dgsi.pt).

31ª - Desde logo as declarações, claras e credíveis, das testemunhas EE e  GG, que são unânimes em afirmar que o Guerra e o pai sempre passaram por aquele caminho, pelo menos o seu pai, há pelo menos 50 anos, utilizam a faixa de terreno referida para entrada e saída da parte rústica do seu prédio, com carros de bois ou tratores, para transporte de sementes, estrumes e recolha de produtos cultivados, contrariam tal posição.

32ª – Não pode a MMª Juiz a quo dizer que “…apenas desde 2017 se constatou que os Réus utilizam a faixa de terreno/caminho em causa nos autos de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade…”

33ª - Quando tem a Autora, nas declarações de parte por si prestadas, a afirmar que desde os anos noventa os Réus passam lá no caminho, utilizando expressões suas:

“…Enquanto tiveram a ramada nunca passaram lá, depois botaram a ramada abaixo, eu não tenho nada a ver com isso. Depois que o meu pai cortou-lhe a veia, eles botaram a ramada abaixo e passaram lá.

- Juiz – Isso foi quando?

- Já foi em noventas. E depois de botarem a ramada abaixo passavam mas davam cabo do muro.”.

Confissão que não pode ser retirada.

34ª - Concluindo, com o devido respeito, não tem razão a MMª Juiz a quo quando afirma que “… não se constatou ser a faixa de terreno propriedade dos Réus, quer por não se ter apurado que a mesma faz parte integrante do seu terreno, quer por não se ter verificado que estes a adquiriram por usucapião.

35ª - Assim, mesmo que outro título não tivesse, o que não se concede, sempre o Réu, por si e antepossuidores, adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio (do qual a faixa de terreno/caminho é parte integrante), usucapião que aqui se invoca para todos os efeitos legais.

36ª – Pelo que tem o Réu o direito a ver reconhecido judicialmente o direito de propriedade sobre a totalidade do prédio (do qual a faixa de terreno/caminho é parte integrante).

37ª - Assim foram violadas as disposições dos artigos, 342º, 344º, 1305º, 1252º, 1287º e 1296º todos do Código Civil“.


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Os AA. apresentaram CONTRA-ALEGAÇÕES, pugnando pela improcedência do recurso do R., CC.

Argumentam que o recurso da matéria de facto do R. quanto aos factos 13, 14, 15, 16, 17 e 18 dos factos provados não deverá ser admitido.

Apresentam as seguintes CONCLUSÕES:

1. O recorrente CC, nas alegações e conclusões que apresenta, pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto proferida em 1ª instância, e para tal deve obrigatoriamente especificar os 3 requisitos essenciais do art. 640, nº 1 do C.P.C.;

2. E indica como concretos pontos de facto incorrectamente julgados os factos provados da douta sentença sob os itens 13, 14, 15, 16, 17 e 18, ou seja, todo o conjunto da matéria de facto que é desfavorável às suas pretensões, incluindo também a dos itens 19º e 20º, traduzindo, em termos práticos, uma impugnação “in totum”;

3. Ao indicar a decisão que, no entender do mesmo, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, o mesmo não especifica, conforme o legal e obrigatoriamente previsto, limitando-se também a alegar em bloco: que todos os factos devem ser dados como provados;

4. Pensam os AA. ora alegantes que o R. CC o que pretende é, no fundo, um segundo julgamento de toda a matéria de facto, pese embora ter vindo a ser decidido superiormente que “Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas suas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em vários blocos de factos e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna”(Ac. do STJ de 05/09/2018)”.

5. Pretende, assim o recorrente em causa um segundo julgamento da matéria de facto “in totum”, quando tem sido uniformemente decidido que se deve dar primazia aos princípios da oralidade, da livre apreciação da prova e da imediação e que, só em casos de manifesto erro de julgamento, deve ser alterada a matéria de facto dada como provada (entre outros: Ac. Relação do Porto, de 04/04/2005 ITIJ nº 0446934; Ac. Relação do Porto de 10/07/2006 ITIJ Pº 0653629 e Ac. S.T.J. de 27/09/2005 ITIJ nº 05A2200);

6. A meritíssima Juiz “a quo” respondeu acertadamente à matéria de facto, sendo certo que, a partir dela, e das alegações e conclusões da apelação que aqueles interpuseram a sentença deveria ser no sentido da procedência da acção;

7. Conjugadamente considerado o depoimento da testemunha FF, nomeadamente as afirmações constantes do mesmo, mencionadas nestas alegações, são assertivas, claras e sem margem para dúvidas, e levam a concluir, com convicção e certeza, da veracidade de tal depoimento (aquele terreno e aquele caminho eram do avô e hoje são da AA aqui A.);

8. Assim, o depoimento desta testemunha FF, conjugado com o resultado da inspecção judicial, mereceu à meritíssima Juiz “a quo” credibilidade tal que lhe permitiu formar convicção sobre a realidade dos factos, baseada também e designadamente na análise crítica dos depoimentos, naquela inspecção judicial e também nas regras da experiência comum; aliás, ouvindo tal depoimento é como se, recuando no tempo, estivessem os intervenientes processuais na companhia da mesma aquando dos factos relatados: a configuração do terreno e caminho; o local da rapagem das ervas e do pasto das vacas, da passagem da Rua ... para o terreno dos ... pelo caminho aberto pelo avô no terreno do mesmo para aceder ao terreno daqueles (que havia sido arrendado ao dito Avô da testemunha);

9. Não lhe mereceram credibilidade os depoimentos das testemunhas GG, pelo facto de estar desavindo com a A. AA e de relações cortadas com a mesma, e da testemunha EE cujo testemunho é deveras frágil e eivado de má vontade contra os AA., ora recorridos;

10. Vieram ambos depôr a juízo, inventando um novo caminho, demarcado por 3 esteios de pedra;

11. O prédio dos AA., recorridos nesta apelação, é composto por vários socalcos: dois a Nascente, na confrontação com a Rua ..., (um a seguir ao outro), com mato, pinheiros, eucaliptos e austrálias (vegetação densa); e o último socalco desse terreno, situado a Poente desse prédio que era – e é – de lavradio e plano; o leito do caminho em declive, não tem qualquer socalco;

12. O R. CC, recorrente nesta apelação, nunca alegou em qualquer articulado a existência de três marcos (cfr. art. 28 da contestação/reconvenção; e o tal marco mais não era que uma pedra que integrava a ramada daquele recorrente (dep. da test. EE, por ele indicada);

13. O depoimento falso destas duas testemunhas levou-as a inventar um caminho alternativo pelo meio do pinhal caminho esse que nunca existiu, nem sequer podia existir, pois que a Nascente, na confrontação desse cabeceiro (socalcos de mato e árvores) com a Rua ... e o passeio que margina esta, não existe qualquer vestígio ou marcas de entrada de carros de bois ou tractores ou de passagem de pessoas; nem o mesmo era viável porque – agora não – mas anteriormente estava povoado de densa vegetação; entre a Rua ... a Nascente e o terreno de lavradio permanecem ainda os socalcos, sem vestígios ou marcas da passagem, pelo meio do terreno dos AA., de carros de bois, tractores ou máquinas agrícolas, como bem observou o Tribunal aquando da inspecção judicial ao local; e as regras da experiência comum, das quais se apreende que os lavradores não fazem 2 caminhos no mesmo terreno para serventia da mesma terra de lavradio;

14. Se não bastasse a fragilidade e falsidade dos depoimentos das testemunhas GG e EE, também a topografia e as características do local aí observadas desacreditam totalmente os seus depoimentos relativamente aos factos essenciais em discussão nesta lide;

15. Importa referir e esclarecer o invocado depoimento da A. AA pois que efectivamente resulta de todo ele, conjugadamente analisado, que “enquanto tiveram a ramada nunca passaram lá… depois botaram a ramada abaixo; Em noventas depois de botarem a ramada abaixo passaram por lá mas o meu pai cortou-lhes a veia ou seja opôs-se a essa passagem, a qual bem se vê, pelo depoimento em causa, que foi abusiva, esporádica e circunstancial, sem permanência por ter sido “cortada a veia” ao CC e ao falecido pai deste;

16. O que em nada contradiz o depoimento da dita A., corroborado pelas testemunhas por si indicadas, no sentido de que só após a colocação da tabuleta com as indicações de venda do terreno é que o recorrente CC começou a praticar os actos descritos nos artigos 27º a 30º da petição inicial que motivaram a interpelação dos AA. através da notificação judicial avulsa de oposição e denúncia desses abusos e fazerem cessar os mesmos;

17. Os segmentos dos demais depoimentos que o recorrente CC invoca não reproduzem o contexto global de cada um deles; e todos e cada um deles conjugados entre si não permitem concluir pela procedência das pretensões daquele;

18. Tendo em conta a motivação apresentada pela meritíssima Juiz “a quo” na douta sentença que proferiu, bem como o anteriormente alegado, e ainda o alegado recurso de apelação que os AA. apresentaram, entendem estes que as pretensões deduzidas pelo recorrente CC são destituídas de fundamento.“.


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II - FUNDAMENTAÇÃO.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, as questões a decidir, são as seguintes:

A) Modificação da matéria de facto dos factos 13 a 20 dos factos provados e alínea c) dos factos não provados.

Sua admissibilidade/rejeição.

B) Em face da factualidade dada como provada – sem alteração da decisão da primeira instância –, deverá ser julgado procedente o “pedido de condenação dos RR. em ver decretada a ilegalidade e ilegitimidade da ocupação da faixa de terreno e passagem pela mesma” – recurso dos AA.


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OS FACTOS

A sentença ora em crise deu como provada e não provada a seguinte factualidade.

1.1. Factos provados

Com relevância para a decisão a proferir, mostram-se provados os seguintes factos:

1. Encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º ...33, o prédio rústico composto por terreno de lavradio e mato, com área inscrita de 1.000m2, sito no Lugar ..., na União de Freguesias ... e ..., com as seguintes confrontações: Norte e poente - II; Sul - JJ; Nascente - caminho público.

2. Pela Ap. ...5 de 2000/11/07, foi registada a aquisição a favor de KK.

3. O referido prédio encontra-se igualmente inscrito na matriz sob o artigo ...56, com origem no artigo ...97 e com as seguintes confrontações: Norte – Caminho; Sul – JJ; Poente - LL; Nascente – Estrada.

4. Como titulares inscritos na matriz consta o nome dos aqui Autores.

5. Por escritura pública outorgada em 13 de Março de 2008 no Cartório Notarial da Drª MM, KK declarou doar, com reserva de usufruto vitalício e os Autores declararam aceitar a doação do prédio identificado em 1 e 3.

6. KK faleceu a 6 de Maio de 2011.

7. A Autora, por si e os seus pais, avós e bisavós, durante um número de anos não concretamente apurado, semearam o prédio identificado em 1 e 3, plantaram, tratam as culturas, regando-as e colhendo os frutos e produtos das mesmas, cortam matos e madeiras existentes no cabeceiro do mesmo e limpam as silvas e ervas daninhas.

8. Encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia, o prédio urbano, sob o n.º ...11, o prédio misto composto por casas sobradadas, dependências, pátio e terra lavradia, sito na Rua ..., ... ..., com as seguintes confrontações: a Norte com NN e outros; a Sul com OO e PP e caminho de servidão; do Nascente com estrada; e do Poente com QQ e outros, e com as seguintes áreas: coberta de 102m2, dependências de 32m2, pátio 64m2 e terreno de lavradio 9.150m2.

9. Pela AP. ...74 de 2010/09/29, foi registada uma doação, tendo como sujeitos ativos os aqui Réus e como sujeitos passivos LL e RR.

10. Pela mesma AP foi registado usufruto a favor de LL e RR, entretanto falecidos.

11. O referido prédio encontra-se igualmente inscrito na matriz urbana sob o artigo ...72, com origem no artigo ...68 e na matriz rústica sob o artigo ...68, com origem no artigo ...03 e, quanto a esta última, com as seguintes confrontações: Norte: SS; Sul: Próprio; Nascente: TT; Poente: UU.

12. Desde período não concretamente apurado que o Réu, por si e os seus antecessores, cultivam o prédio identificado em 8 e 11 na sua parte rústica, semeando, entre outros, milho e nabos.

13. Em data não concretamente apurada e por período não concretamente apurado, mas há mais de 75 anos, o bisavô e o avô da Autora cultivaram o prédio identificado em 8 e 11, como caseiros, sendo os senhorios os antecessores do Réu.

14. Nessa altura não concretamente apurada, o bisavô e o avô da Autora utilizavam uma faixa de terreno com cerca de 2 (dois)m de largura e 59,60m de comprimento, situada do lado Norte do prédio identificado em 1 e 3.

15. Assim o faziam por ser mais perto e mais cómodo para chegar do Lugar ..., onde o bisavô da Autora e o avô residiam, ao prédio identificado em 8 e 11, em vez de dar a volta e entrar pelo Lugar ... (hoje Rua ...), por onde este prédio tinha entrada.

16. Por essa faixa de terreno/caminho entravam as pessoas e os carros de bois, transportando o que fosse necessário para o cultivo do prédio, e saíam com os produtos cultivados do mesmo.

17. A referida faixa de terreno tem início na Rua ... e estende-se até ao prédio identificado em 8 e 11, inexistindo delimitação entre a faixa e este prédio, e continuando mesmo depois deste.

18. Quando o bisavô e o avô da Autora deixaram de ser caseiros do prédio identificado em 8 e 11, deixaram igualmente de utilizar esse caminho, em data não concretamente apurada, mas pelo menos há 75 anos.

19. Desde data não concretamente apurada até ao presente, os Réus utilizam a faixa de terreno referida para entrada e saída da parte rústica do seu prédio, com carros de bois ou tratores, para transporte de sementes, estrumes e recolha dos produtos cultivados.

20. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 2017, os Réus procedem à limpeza da faixa de terreno sempre que necessário, limpando as ervas que ali crescem.

1.2. Factos não provados

A. As reais confrontações do prédio identificado em 1 e 3, ao contrário do que aí consta, são que, do lado Norte, o prédio confronta com EE que adquiriu o terreno antes da construção do imóvel lá implantado a VV, que, por seu turno, o havia adquirido a NN.

B. A faixa de terreno/caminho identificada em 14 foi aberta pelo bisavô da Autora.

C. A faixa de terreno identificada em 14 está demarcada do prédio dos Autores.

Quanto aos restantes factos alegados pelas partes, não constam nem do elenco dos factos provados nem dos não provados, por se tratarem de alegações conclusivas, conterem alegações de direito ou serem irrelevantes para a decisão da causa, quer no sentido da decisão que se seguirá, quer tendo em consideração todas as soluções plausíveis de direito.“.


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DE DIREITO.

A)

Do recurso 2 – em que é corrente o R. CC

Modificação da matéria de facto dos factos 13 a 20 dos factos provados e alínea c) dos factos não provados.

Sua admissibilidade/rejeição.

Os factos em discussão são os seguintes:

Dos factos provados.

13. Em data não concretamente apurada e por período não concretamente apurado, mas há mais de 75 anos, o bisavô e o avô da Autora cultivaram o prédio identificado em 8 e 11, como caseiros, sendo os senhorios os antecessores do Réu.

14. Nessa altura não concretamente apurada, o bisavô e o avô da Autora utilizavam uma faixa de terreno com cerca de 2 (dois)m de largura e 59,60m de comprimento, situada do lado Norte do prédio identificado em 1 e 3.

15. Assim o faziam por ser mais perto e mais cómodo para chegar do Lugar ..., onde o bisavô da Autora e o avô residiam, ao prédio identificado em 8 e 11, em vez de dar a volta e entrar pelo Lugar ... (hoje Rua ...), por onde este prédio tinha entrada.

16. Por essa faixa de terreno/caminho entravam as pessoas e os carros de bois, transportando o que fosse necessário para o cultivo do prédio, e saíam com os produtos cultivados do mesmo.

17. A referida faixa de terreno tem início na Rua ... e estende-se até ao prédio identificado em 8 e 11, inexistindo delimitação entre a faixa e este prédio, e continuando mesmo depois deste.

18. Quando o bisavô e o avô da Autora deixaram de ser caseiros do prédio identificado em 8 e 11, deixaram igualmente de utilizar esse caminho, em data não concretamente apurada, mas pelo menos há 75 anos.

19. Desde data não concretamente apurada até ao presente, os Réus utilizam a faixa de terreno referida para entrada e saída da parte rústica do seu prédio, com carros de bois ou tratores, para transporte de sementes, estrumes e recolha dos produtos cultivados.

20. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 2017, os Réus procedem à limpeza da faixa de terreno sempre que necessário, limpando as ervas que ali crescem.

Dos factos não provados.

C. A faixa de terreno identificada em 14 está demarcada do prédio dos Autores.


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i) Sustenta o R., CC, apelante, que os pontos dos factos provados 13, 14, 15, 16, 17 e 18, devem ser dados como não provados – conclusões 2ª a 6ª.

ii) Por sua vez os pontos 19 e 20 dos factos provados deveriam merecer resposta distinta – conclusões 9ª a 12ª :

19. Desde data não concretamente apurada até ao presente, mas pelo menos desde há 50 anos, sem qualquer interrupção ou hiato, os Réus utilizam a faixa de terreno referida para entrada e saída da parte rústica do seu prédio, com carros de bois ou tratores, para transporte de sementes, estrumes e recolha dos produtos cultivados.

20. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde há 50 anos, os Réus procedem à limpeza da faixa de terreno sempre que necessário, limpando as ervas que ali crescem.

iii) Por fim, a alínea c) dos factos não provados deverá merecer resposta de provado – conclusões 13ª a 14ª.


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Os argumentos do recorrente, R. – recurso 2.

Quanto ao primeiro grupo de factos, identificados sob i), argumenta o recorrente que os pontos 13 a 18, porque fundamentados no depoimento da testemunha FF, deverão ser dados como não provados pois que a dita testemunha não merece a credibilidade que lhe foi atribuída pela M.ma Juíza.

O apelante procede à transcrição das passagens que no seu entender descredibilizam o seu depoimento.

Quanto ao segundo grupo de factos, pontos 19 e 20 dos factos provado, deverão ter resposta distinta face ao depoimento das testemunhas HH, FF, EE, GG, e declarações de parte da A. mulher.

Por último, quanto ao facto não provado em c), deverá o mesmo ser dado como provado em face das declarações do R..

Por sua vez, os apelados, AA./recorridos, vêm sustentar que o recurso da matéria de facto deverá ser rejeitado pois que o apelante, R., impugna em bloco a factualidade que pretende ver alterada, sem que especifique facto a facto a sua discordância.


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Como vimos são as conclusões do requerimento de recurso quem fixa o objecto do recurso.

Vejamos.

Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.

A Doutrina tem vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.

Nesta sede, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª Ed., em anotação à norma supratranscrita importa reter o seguinte.

a) Em primeiro lugar, deve o recorrente obrigatoriamente indicar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”;

b) Em segundo lugar, tem o recorrente que indicar “os concretos meios probatórios” constantes dos autos que impõe sobre aqueles factos (alínea a)) decisão distinta da recorrida;

c) Em terceiro lugar, em caso de prova gravada, terá de fazer expressa menção das passagens da gravação relevantes;

d) Por fim, recai o ónus sobre o recorrente de indicar a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de factos impugnadas (alínea a)).

Com a imposição destes requisitos o legislador faz recair sobre o recorrente o ónus de alegação, de modo reforçado, para que a instância de recurso não se torne aleatória e imprevista, ie, que os recursos possam ter natureza genérica e inconsequente (neste sentido o autor citado, in ob. cit., pág. 166).

Assim, será caso de rejeição total ou parcial do recurso da impugnação da decisão da matéria de facto, nos seguintes casos:

a) Ocorrer a falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto – artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.

b) Ocorrer a falta de indicação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.

c) Ocorrer a falta de indicação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes dos autos, designadamente, documentos, relatórios periciais, ou registados, designadamente, depoimentos antecipadamente prestados, ou nele gravados, com expressa indicação das passagens da gravação que funda diversa decisão.

d) E por fim, ocorrer a falta de indicação expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido por cada segmento da impugnação.

Como refere, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in ob. cit, 5.ª Ed., pág. 169, em anotação ao artigo supratranscrito, a apreciação rigorosa destes requisitos deve ocorrer sempre, pois só assim se dá efectiva validade ao princípio da auto-responsabilidade das partes. Com efeito, são as partes e não o Tribunal que fixam o objecto do recurso através das conclusões. O Tribunal de 2.ª instancia deste modo poderá proceder a um verdadeiro novo julgamento da matéria de facto, tendo como baliza a fixação do tema a decidir, os concretos pontos de facto.

Mais, é de atender ao decidido pelo recente Ac do Supremo Tribunal de Justiça de UJ de 14.11.2023, n.º 12/2023, do qual consta: “Nos termos do art. 640.º/1/c, do CPCivil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões do recurso a decisão alternativa pretendida, desde que essa indicação seja feita nas respetivas alegações “.

Na fundamentação do citado Ac. pode-se ler:

Em síntese, decorre do artigo 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.

O recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, cumpre o ónus constante do n.º 1, c), do artigo 640, se a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, constar das conclusões, mas também da leitura articulada destas últimas com a motivação do vertido na globalidade das alegações, e mesmo na sequência do aludido, apenas do corpo das alegações, desde que do modo realizado, não se suscitem quaisquer dúvidas.”.


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Ponderando e apreciando a instância de recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, o R., recorrente, preenche os requisitos para tal.

De acordo com jurisprudência pacífica e unânime do Supremo Tribunal de Justiça, quando o conjunto de factos em discussão correspondem à mesma realidade e os meios de prova a considerar são comuns aos factos deve ser admitida a impugnação. Neste sentido Ac do Supremo Tribunal de Justiça 1372/19.9T8VFR.P1.S1 de 27.10.2021, relatado pelo Cons CHAMBEL MOURISCO, Ac do Supremo Tribunal de Justiça 2424/21.0T8CBR.C1.S1 de 10.05.2023, relatado pelo Cons JÚLIO GOMES e Ac Tribunal da Relação de Guimarães 5936/19.2T8BRG.G1 de 03.03.2022, relatado pelo Des JOSÉ FLORES.

Ora a factualidade dos pontos 13, 14, 15, 16, 17 e 18, dizem respeito à mesma realidade fáctica – se em certa altura temporal os antepassados dos AA. para aceder ao prédio que é agora do R. faziam-no por um prédio que era seu – versão factual alegada pelos AA..

Deste modo, não é caso de rejeição do recurso do R., nesta parte.


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Prosseguindo.

O recorrente indica claramente o sentido que pugna por ver alterado por este Tribunal da Relação do Porto e indica qual a argumentação da valoração dos diversos meios de prova.

Pelo exposto o recorrente, nesta parte, preenche os apontados requisitos, pelo que se impõe o seu conhecimento.

Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem, efectivamente, poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.

Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência do invocado erro de julgamento.

Não se ignora o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e que essa imediação está mais presente no tribunal da 1.ª instância. Todavia, ainda assim, o resultado dessa imediação deve ser objetivado em argumento probatório, suscetível de discussão racional, além do mais, para evitar os riscos da arbitrariedade“, in Ac. Supremo Tribunal de Justiça, 62/09.5TBLGS.E1.S1, de 02.11.2017, relatado pelo Cons. TOMÉ GOMES, in dgsi.pt.

A primeira instância fundamentou a sua convicção com relevância para os pontos em discussão, do seguinte modo:

(…)

A convicção do Tribunal relativamente aos factos 13 a 16 formou-se, essencialmente, através do depoimento da testemunha FF e da inspeção ao local levada a cabo.

Com efeito, a circunstância de o bisavô da Autora ter sido arrendatário dos antecessores do prédio dos Réus foi relatada pela testemunha FF, que referiu, reiterando por duas vezes, que o seu avô (e portanto bisavô da Autora) “alugou uma coisa ao Guerra” e que cultivava os terrenos dele, como um arrendamento. Não se olvida que FF foi a única testemunha que afirmou esta circunstância, no entanto, isto não afasta, necessária e automaticamente a convicção quanto à sua realidade porquanto o Tribunal considera que esta singularidade testemunhal se deve à impossibilidade de tal facto ser declarado pelas restantes testemunhas face à antiguidade dos mesmos. Ou seja, este facto apenas foi relatado por esta testemunha porque apenas esta o podia afirmar, não tendo as restantes testemunhas conhecimento deste facto porque não podiam ter. Concretizando, FF, com 90 anos de idade, apesar de, na altura, ser de tenra idade, refere lembrar-se desta circunstância, o que é verosímil uma vez que é neta e filha do bisavô e do avô da Autora, desconhecendo-se se existem, vivos, outros netos que igualmente o pudessem declarar mas sabendo-se que pelo menos o pai da Autora já se encontra falecido. Por outro lado, não podia a testemunha HH afirmar este facto (relativamente ao qual respondeu “não sei nada de caseiros”), nem a testemunha EE (que afirmou, referindo-se à Autora e aos seus ascendentes que “Nunca vi eles a plantarem o terreno do Guerra”), porquanto ambos apenas residem perto do terreno dos Autores, há cerca de 40 e 50 anos, respetivamente pelo que não o poderiam saber. No mesmo passo, também não se olvida que a testemunha GG, irmão da Autora, afirmou que o seu avô nunca cultivou os terrenos do Guerra, no entanto, o seu depoimento comprometido pela circunstância de se encontrar desavindo com a sua irmã, aqui Autora, fazendo estremecer a sua credibilidade principalmente nestas questões relevantes, aliado ao facto de acompanhar estas afirmações com a expressão “que eu me lembre nunca cultivou” e “o meu pai é que nunca vi de certeza a fazer os terrenos do Guerra”, demonstrativas de uma incerteza quanto ao seu avô ter cultivado o terreno dos Réus, não permitiu abalar a credibilidade do Tribunal quanto a esta realidade. No fundo, estas testemunhas não conhecem esta realidade porque não a podiam conhecer, e não pode a inexistência, por impossibilidade absoluta, de demais prova impedir o Tribunal de dar como demonstrados determinados factos, sendo certo que não resulta do depoimento desta testemunha FF qualquer razão que lhe retire credibilidade. Antes pelo contrário, não obstante a idade avançada da testemunha, demonstrou uma vivacidade admirável e alguma desenvoltura na forma de se expressar, robustecendo o seu depoimento ao contar uma história associada ao seu avô utilizar este caminho não só por ser mais perto para chegar ao terreno dos Réus mas também por ter vergonha de passar na Rua ..., mais movimentada, por algo menos correto que terá feito.

Acresce que esta utilização da faixa de terreno/caminho por questões de comodidade, além de ter sido por esta testemunha relatada, é compatível com aquela que foi a perceção do Tribunal aquando da realização da inspeção ao local, porquanto percorreu o trajeto da Rua ... ao prédio dos Réus e do prédio dos Réus, parte do caminho até à Rua ..., constatando que, efetivamente, o mesmo é relevantemente mais longo, o que foi igualmente constatado pela testemunha WW, vizinha da Autora que, uma vez, visitou o prédio para o adquirir, afirmando que o terreno “É mais perto da casa da AA até ao terreno do que da casa do Guerra até ao terreno”.

Por tudo isto o Tribunal considerou que, efetivamente, à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, é verosímil que este caminho fosse utilizado para chegar da atual Rua ... ao prédio dos Réus de forma a que o cultivo, no âmbito do arrendamento que foi feito pelo bisavô e avô da Autora, fosse feito de modo mais cómodo.

De referir ainda que todos estes elementos corroboraram as declarações da Autora, que relatou as mesmas circunstâncias, permitindo, assim, atribuir-lhe credibilidade no relato das mesmas.

Especificamente quanto às medidas da faixa de terreno e a sua configuração (factos 14 e 17) foram aquelas aceites por acordo entre as partes, alcançado na fase dos articulados (cf. Artigo 27.º da Contestação) e esta retirada da própria perceção do Tribunal na inspeção ao local, a qual também se retira das fotografias tiradas na referida diligência e juntas aos autos.

Quanto ao facto 18, valorou-se a circunstância de os próprios Autores terem reconhecido que o arrendamento terminou há mais de 30 anos e que, desde essa data, mais ninguém utilizou o caminho. Acontece que, a testemunha FF, cuja credibilidade acolhida foi já explicitada, afirmou que o caminho deixou de ser utilizado quando era “pequenina”. Ora, fazendo as contas básicas, ainda que FF considere ser pequena até aos 15 anos, pelo menos há 75 anos (atendendo a que tem 90) que o caminho deixou de ser utilizado pelos antecessores da Autora. Não se olvida que a Autora terá dito que utilizava esse mesmo caminho para cultivar o seu próprio terreno, no entanto, além de ter sido confusa na explicitação dessa utilização - referindo que nunca usaram trator, apenas carros de bois, mas depois dizendo que deixaram de cultivar o terreno em 2018, sendo altamente inverosímil que ainda se usassem carros de bois há apenas 5 anos - essa afirmação é incompatível com tudo aquilo que alega desde logo porque afirmam perentoriamente que o caminho foi aberto para possibilitar que os antecessores da Autora fossem da Rua ... ao terreno dos Réus, evitando que dessem a volta, nunca referindo que o utilizavam também para o cultivo do seu próprio prédio mesmo nessa altura. Depois, na própria petição inicial, são os Autores quem reconhece que o caminho não é utilizado desde que o arrendamento cessou o que contraria frontalmente a afirmação de que o caminho era também usado para chegar ao cultivo do terreno dos Autores.

A afirmação do facto 19 resultou inequívoca por ter sido afirmado unanimemente por praticamente todas as testemunhas, ou seja, por FF, HH, EE, GG e mesmo pela própria Autora, inexistindo dúvidas que o Réu utiliza aquele caminho, o que se afigura dever-se à circunstância de ser mais fácil por ali passar com o trator face àquilo que a própria testemunha HH explicou, referindo, ainda que de forma indignada por entender que o caminho pertence aos Autores, que o Réu percorre o caminho uma vez que o trajeto pela Rua ... até ao terreno dos Réus é mais “manhoso”, quando se passa com o trator, do que se chegar ao seu prédio através da Rua ..., pela faixa de terreno em causa nos autos.

A dificuldade quanto a esta factualidade residiu, então, tão só, em determinar desde quando o fazem os Réus porquanto a Autora afirma que tal aconteceu em 2017 apenas, quando colocou uma tabuleta a dizer “vende-se”. A testemunha HH também o referiu, no entanto, não o fez de forma espontânea, tendo-se limitado a responder “sim” quando perguntado o que não conferiu grande credibilidade, tendo esta sido definitivamente abalada quanto a este aspeto quando, mais para a frente no seu depoimento, acaba por demonstrar que o momento que fixa como a partir do qual o Réu começou a utilizar a faixa de terreno terá sido o falecimento do pai do Réu, referindo que “Há 10 anos o Guerra não passava lá porque há 10 anos o pai ainda era vivo.”, o que é, aliás, congruente com o depoimento de FF que igualmente afirmou que “o Guerra serviu-se do caminho só quando o pai morreu”.

Todavia, apesar de se saber que, pelo menos desde 2017 o Réu utiliza a faixa de terreno para passar, porque os Autores assim o reconheceram, e sendo possível conjeturar que o fazia após a morte do pai do Réu (cuja data se desconhece mas que, necessariamente, tem de ser posterior a 2010, uma vez que realizou uma doação com reserva de usufruto nessa data-cf. facto provado 9 e 10), o Tribunal não consegue fixar uma data ou um número aproximado de anos durante os quais o Réu utiliza este caminho. Na verdade, a prova relativa a esta circunstância não foi clara e inequívoca, pois, embora a prova trazida pelos Réus, essencialmente a testemunha EE, tenha afirmado que desde que se lembra (pelo menos há 50 anos, que será desde quando a testemunha lá reside) que ali passam os Réus, tal depoimento é contrariado pelo da testemunha HH e de FF, que afirmaram que o Réu apenas passa depois do falecimento do seu pai. Ora, não vislumbrando o Tribunal razões para atribuir maior credibilidade a umas testemunhas do que a outras, fica impossibilitado de formar a sua convicção quanto ao tempo de utilização do caminho pelo Réu. Não se ignora que a testemunha GG depôs no mesmo sentido que a testemunha EE mas a verdade é que a fragilidade da credibilidade daquela testemunha, atribuída pelo facto de estar de relações cortadas com a Autora, sua irmã, e de ter demonstrado alguma animosidade para com esta, não permite ao Tribunal a convicção segura de que o Réu e seu antecessor sempre passou naquela faixa de terreno. No mesmo passo, também as declarações de parte do Réu, que referiu que pelo menos há 60 anos aquele caminho é utilizado, confrontadas com as declarações de parte da Autora em sentido contrário, não permitiram concluir com segurança a data desde a qual, pelo menos, os Réus e antecessores utilizam o caminho. No fundo, atendendo a que o Tribunal nada mais tem para alicerçar a sua convicção quanto a este facto para além do depoimento das testemunhas, a concretização daquela data dependia de que se vislumbrassem razões para atribuir maior credibilidade a uns depoimentos do que a outros, ora pela razão de ciência das testemunhas, ora pela congruência com outros meios de prova. No entanto, face à contradição entre os depoimentos das testemunhas e à ausência de demais elementos atributivos de credibilidade às testemunhas trazidas pelos Réus (pelo contrário, realça-se a fragilidade do depoimento do irmão da Autora, GG pelo facto de estar de relações cortadas com a Autora e ser amigo do Réu) inexistem fatores que permitam ao Tribunal afirmar que os Réus utilizam o caminho “desde sempre” ou, pelo menos há 60 anos.

Coisa diferente se pode afirmar quanto ao facto 20, porquanto todas as referências que foram feitas à utilização da faixa de terreno pelos Réus e antecessores se circunscreviam à passagem por ali, ninguém referindo que “desde sempre” os Rés limpam a faixa de terreno. Ao invés, reconheceram os Autores, na sua petição inicial, que desde 2017 os Réus já limparam as ervas que ali crescem, e a testemunha HH que o Réu limpa a faixa de terreno, contando que este já utilizou herbicidas para “queimar” as ervas que ali crescem, o que, uma vez que afirma que o Réu só ali passa após o falecimento do pai do Réu, que refere ter sido “há meia dúzia de anos”, terá acontecido aproximadamente nesta altura.

(…)

Por fim, quanto ao ponto C, tendo-se verificado alguma discussão, em sede de audiência de julgamento, quanto a saber se o caminho/faixa de terreno se encontrava demarcado, por marcos, do terreno dos Autores, não foi possível ao Tribunal afirmar que a “pedra” que se encontra retratada na fotografia 4.b) junta pelos Réus com a contestação/reconvenção é, efetivamente, um marco, sendo certo que inexistia qualquer outro indício de ali alguma vez terem existido marcos.

(…)“.

Conhecendo.

Foi ponderada a prova documental, mencionada na fundamentação de facto da sentença em crise, ouvida a prova produzida em audiência de julgamento e disponibilizada a este Tribunal, declarações de parte e a prova testemunhal.

Este Tribunal de recurso quanto à factualidade em discussão, não pode acompanhar a argumentação do apelante. Trazendo à colação os meios de prova, expressamente invocados ou chamados em auxílio pretensão apresentada pelos apelantes, os mesmos não são suficientes para atingir tal desiderato.

Importa ter presente que a prova produzida deve ser conjugada, harmonizada e ponderada no seu conjunto enquanto base da convicção formulada pelo Tribunal, não sendo legítimo valorizar meios probatórios isolados em relação a outros, sopesando os critérios de valoração, numa perspectiva racional, de harmonia com as regras de normalidade e verosimilhança, mas sempre com referência às pessoas em concreto e à especificidade dos factos em apreciação.

Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem, efectivamente, poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.

Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Mais é de afirmar, que não basta que um interveniente, parte ou testemunha, relate uma certa versão factual, para que a mesma seja apreciada e declarada como a verdadeira ou a mais próxima da verdade – leia-se verdade processualmente adquirida de acordo com as regras processuais. A mesma – versão factual – deverá passar pelo crivo da apreciação processual que o julgador deverá fazer, usando de todo o seu saber jurídico e de experiência de vida e de normalidade. Caso a versão seja desconforme com tais critérios deverá ser apreciada de modo a declarar como não provada tal factualidade.

A nossa jurisprudência tem expressado como critérios de apreciação do depoimento no sentido da sua credibilização:

- a segurança, clareza e coerência reveladas nos depoimentos;

- a serenidade, objetividade, desinteresse, imparcialidade a forma escorreita e sincera como depõem;

- a naturalidade e fluidez do discurso;

- a preocupação em responder apenas aquilo que viu e ouviu;

- a objetividade, caráter direto, isenção, consistência e pormenorização.

Em sentido oposto, têm sido considerados como fatores desabotatórios da credibilidade a emprestar aos depoimentos:

- a pouca firmeza, a insegurança e vagueza; um depoimento vago e abstrato, nada esclarecedor sobre as circunstâncias concretas de uma determinada operação de crédito;

- a ambiguidade e o pouco conhecimento dos factos;

- o assentamento do depoimento em convicções, opiniões ou conjeturas, sem concretização do tempo, modo e lugar do conhecimento dos factos que a testemunha pretende transmitir.”, LUÍS PIRES DE SOUSA, in Prova Testemunhal, 2016, pág. 319.

Respigando a decisão de fundamentação da matéria de facto, confrontando-a com os diversos meios de prova, este Tribunal não pode deixar de acompanhar na integra a fundamentação e o decidido pela M.ma Juíza.

Quanto ao primeiro grupo de factos, identificados sob i), também para este Tribunal, o meio de prova determinante é o depoimento da testemunha FF.

Com efeito, de modo consistente, coerente e espontâneo, esta testemunha, apresenta um depoimento claro e cristalino, no sentido da factualidade dada como provada. Tal como afirma, o Tribunal a quo, é conjugação da prova por inspecção judicial, que podemos acompanhar pela fotografias juntas aos autos, e a prova testemunha – depoimento de FF –, que é determinante para a fixação da factualidade em questão. Na realidade, quer as declarações de parte, A., mulher e R., quer a demais prova testemunhal, pela razões expressamente referidas na sentença em crise (as quais damos aqui por reproduzidas, de novo), não permitem colocar em causa a credibilidade atribuída à dita testemunha.

Com efeito, a argumentação do recorrente, para que o depoimento da testemunha FF seja desvalorizado, não obtém por parte deste Tribunal vencimento, pois que a fundamentação elaborada pela M.ma Juíza de julgamento, supratranscrita, não merece qualquer reparo por parte deste Tribunal face à sua clareza e lógica. Esta testemunha, é no nosso juízo, a única que demonstrou ter conhecimento directo dos factos a que depôs.

Na realidade, para se considerarem provados factos não basta que as partes ou as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.

Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.

A convicção do julgador formar-se-á de acordo com a hipótese factual que apresentar mais indícios, mais variados e que permita ter uma compreensão global e coerente de todos os factos. Do manancial probatório, os indícios referidos estão todos do lado da tese dos AA.. Quanto aos depoimentos, mormente, o depoimento da citada testemunha FF, importa verificar se o depoimento se harmoniza ou contradize com tais indícios. É certo e natural que se alguns dos depoimentos se harmonizarem com os indícios antes mencionados, a convicção do juiz tenderá a considerar que são estes os depoimentos que correspondem à realidade histórica, pois têm apoio nesses indícios, e não de acordo com os outros depoimentos, porquanto estes outros não gozam de quaisquer apoios, pois não podendo ser todos verdadeiros ao mesmo tempo, por se excluírem mutuamente, uns têm de ser preteridos e outros acolhidos.

No caso, o depoimento da testemunha FF, a quem se atribuiu credibilidade suficiente, para que a factualidade em causa fique demonstrada judicialmente, por ter contacto directo com a realidade sobre que depôs. O seu discurso é espontâneo, sendo o seu relato lógico e coerente.

Pelo exposto não tem vencimento a pretensão do recorrente quanto aos pontos os pontos dos factos provados 13, 14, 15, 16, 17 e 18.

Relativamente, aos pontos 19 e 20.

Pugna o recorrente, R., para que os citados pontos de facto tenham redacção distinta, que seguem assinalado a negrito.

19. Desde data não concretamente apurada até ao presente, mas pelo menos desde há 50 anos, sem qualquer interrupção ou hiato, os Réus utilizam a faixa de terreno referida para entrada e saída da parte rústica do seu prédio, com carros de bois ou tratores, para transporte de sementes, estrumes e recolha dos produtos cultivados.

20. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde há 50 anos, os Réus procedem à limpeza da faixa de terreno sempre que necessário, limpando as ervas que ali crescem.

Sustenta tal no depoimento da testemunha HH e FF, que no seu entender foram mal valoradas pelo Tribunal a quo, e pela valoração positiva das testemunhas EE e LL e declarações de parte da A., AA.

Uma vez mais, face aos meios de prova à disposição deste Tribunal, fazendo a sua valoração probatória de acordo com as regras do direito probatório, não podemos deixa de concluir tal como o fez a M.ma Juíza.

Dando aqui por reproduzida a motivação, teremos de concluir por as citadas testemunhas, EE e LL, não apresentaram depoimento de modo a se poder afirmar que tal realidade assim se passou.

Trazendo à colação o supra exposto quanto aos anteriores pontos de facto, efectivamente as incongruências dos seus discursos, conjugadas com o congruente depoimento da testemunha FF, sendo aqui relevante a afirmação do Tribunal a quo do valor atribuída à inspecção judicial realizada. Aderimos ao raciocínio afirmado pala M.ma Juíza quanto ao modo como não se pode fixar o período temporal relativamente ao qual se pode afirmar que os RR. utilizam a faixa de terreno para aceder ao seu prédio.

A apontada discordância quanto a menor credibilidade das testemunhas EE e CC que é descrita na sentença para a fixação de tal matéria – determinação do período temporal – não merece por parte deste Tribunal reparo. Efectivamente, os meios de prova, no sue conjunto e que tiveram por objecto esta matéria, não apresentaram a fiabilidade necessária e requerida para que seja declarada provada.

Por fim, quanto à factualidade da alínea c) dos factos não provados (A faixa de terreno identificada em 14 está demarcada do prédio dos Autores):

Dizendo esta matéria respeito ao mesmo núcleo de facto apurada e decidida pela primeira instância, teremos que trazer à liça o que anteriormente se afirmou e decidiu quanto aos meios de prova valorados e ponderados.

Os variados meios de prova a que o Tribunal a quo se socorreu para fundamentar a resposta negativa, não permitiram afirmar que a existência de uma pedra corresponderia a um marco que demarcada o terreno por onde era feita a dita passagem, e que tal terreno por via de tais marcos seria propriedade dos RR..

Argumenta o R. apelante que as suas declarações são elas próprias suficientes para se afirmar tal realidade, conjugadas com os depoimentos das testemunhas EE e GG.

Nada mais longe da verdade processual.

Tal como atrás afirmado estas duas testemunhas não merecem por parte deste Tribunal a credibilidade suficiente para afirmar aqueloutra realidade, também para esta realidade não são suficientes para afirmar tal realidade, ie, dar como provado.

A fim de evitar redundâncias de argumentação, este Tribunal chega à mesmíssima conclusão que a 1ª instância quanto à resposta a esta factualidade – facto não provado.

Pelo exposto improcede o recurso quanto à matéria de facto.


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B)

Em face da factualidade dada como provada – sem alteração da decisão da primeira instância –, deverá ser julgado procedente o “pedido de condenação dos RR. em ver decretada a ilegalidade e ilegitimidade da ocupação da faixa de terreno e passagem pela mesma” – recurso dos AA – ou se porventura será procedente a pretensão dos RR..

A resposta é negativa quanto a ambas pretensões.

Face à factualidade dada como provada, que ficou intocada por via do presente recurso, não há que alterar o decidido.

Vejamos.

Na instância de recurso dos AA. estes pugnam pela condenação dos RR. a ver declarada como ilegal e ilegítima a ocupação da faixa de terreno/ caminho /passagem. Argumentam que da factualidade se conclui que são donos de tal prédio, pelo que devem ser os RR, condenados em tal pedido.

O recurso do R., CC, está todo ele sustentado na alteração da factualidade, que como ficou decidido supra, foi julgado improcedente.

Ambos os recorrentes, AA. e R., pugnam pela procedência das suas pretensões sustentadas no instituto da usucapião, por referência à uma determinada “parcela/faixa de terreno”, que quer um quer o outro, entendem que faz parte do seu prédio.

O R. sustenta que tal parcela de terreno é sua propriedade por o haver adquirido por usucapião – conclusões 18ª e seguintes.

A posse é uma situação de facto que a lei protege juridicamente, dada a aparência da existência de um direito real que resulta da actuação de certa pessoa, que é o possuidor.

A posse decompõe-se nos seguintes elementos, autónomos, mas que devem coexistir:

a) O corpus que é elemento material da posse e que consiste na possibilidade física de exercer influência imediata sobre uma coisa sem entraves da parte de outrem.

Estamos perante um conjunto de actos materiais de detenção, uso gozo e transformação exercidos sobre a coisa. Quanto aos actos jurídicos, tais como o arrendamento e a venda, não podem constituir o corpus porque são possíveis mesmo por parte de quem não possui. São actos que respeitam ao direito de propriedade.

b) O animus, animus possidendi, ou intenção de possuir, que é o elemento moral da posse, introduzido pela teoria objectiva, pode definir-se como a vontade de se exercer o direito real que se traduz nos actos materiais, como se fora seu titular.

O legislador de 1966 aceitou a teoria subjectiva da posse - exigência do animus.

A actuação de facto correspondente no exercício do direito, por parte do possuidor, constitui o corpus da posse. O corpus apresentado neste artigo como elemento essencial da posse, o que não impede que, excepcionalmente, em casos de posse derivada, a lei pressuponha o corpus independentemente da apreensão material da coisa. É o que acontece, por exemplo, em relação aos sucessores, que são havidos como continuadores da posse do causante, desde o momento da morte deste, independentemente da apreensão material da coisa (art. 1255.º), e ainda nos casos de constituto possessório (art. 1264.º).

Ao elemento subjectivo – o animus – não se refere ostensivamente o artigo 1251.º, mas ele deriva de outras disposições do Código, especial- mente do preceito do artigo 1253.º. Não são havidos, na verdade, como possuidores, mas como meros detentores ou possuidores precários, nos termos da alínea a), «os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito»; nos termos da alínea b), «os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito» e, nos termos da alínea c), «os representantes ou mandatários do possuidor e, de uma maneira geral, todos os que possuem em nome de outrem».“, ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, Código Civil Anotado, 2.ª  ED., pág. 5 e seguintes.

No mesmo sentido, Código Civil Anotado, Cord ANA PRATA, 2017, em anotação ao artigo 1251.º, pág. 18 e seguintes, quando afirma “dever ter-se no animus possidendi um requisito positivo da posse.

A determinação concreta deste animus não é, naturalmente, psicologista, antes é feita de modo objetivo e razoável.

A jurisprudência aponta em igual sentido. Entre muitos outros, podemos consultar, Ac Tribunal da Relação do Porto 0322806, de 10.07.2003, relatado pelo Des HENRIQUE ARAÚJO:

A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião – art. 1287º do CC.

A verificação da usucapião depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo.

A posse decompõe-se, ela própria, em dois elementos: o corpus, que se identifica com os actos materiais (detenção/fruição) praticados sobre a coisa com o exercício de certos poderes sobre ela; o animus, elemento psicológico, que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.

Mas a posse conducente à usucapião tem ainda de revestir duas características: tem de ser pública e pacífica. Os demais requisitos de que a lei fala (boa ou má fé, título, etc.) apenas influem no prazo – v. Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 1967, pág. 112.

Sopesando a boa doutrina, acompanhada pela jurisprudência citada, entre outra, e regressando aos factos dados como provados – pois só a estes o julgador pode lançar mão para dizer o Direito, e já não àqueles que pereceram no crivo da prova –, é inequívoco que perece a pretensão de ambos os recorrentes.

Para tanto, socorremo-nos do decidido pela M.ma Juíza.

Entendeu a M.ma Juíza que apenas ficou demonstrado que quer AA. e RR. são proprietários dos seus prédios com as descrições exaradas no registo.

Relativamente à faixa de terreno em discussão, que ambos se arrogam proprietários, decidiu-se que os AA. não lograram fazer prova de que a dita faixa de terreno faz parte do seu prédio. Mais decidiu que os RR., igualmente não demonstraram tal realidade.

Relativamente à pretensão dos AA. a sentença em crise fundamentou a sua decisão com três argumentos. Primeiro, que “as confrontações do prédio dos Autores a Norte, tal como descritas na certidão predial e na caderneta predial, infirmam a integração da faixa de terreno naquele prédio”. Segundo não ficou demonstrado ”que tenha sido o bisavô da Autora a abrir o caminho“. Por último, que “em nenhum momento da petição inicial invocam os Autores a aquisição originária do direito de propriedade sobre esse caminho por recurso à usucapião (sendo que à sua posse poderia juntar-se a dos seus antecessores) da faixa de terreno que entendem ser sua propriedade”.

Efectivamente percorrendo os autos, designadamente, a alegação dos AA. e a factualidade dada como provada, quanto aos AA. apenas temos com provado que estes passam e usam a dita faixa de terreno. Por quanto tempo e com que intenção, os factos nada nos dizem.

Não se podendo concluir por a dita faixa de terreno pertencer ou ser parte integrante do prédio dos AA., não poderá proceder o pedido de condenação dos RR. a reconhecer tal.

Deste modo, confirmando-se o decidido pela primeira instância, improcede o recurso dos AA..

Quanto ao recurso do R., marido, não ficou demonstrado que tal faixa de terreno fosse sua, mas somente que os RR. a usam, sem ficar demonstrado por período de tempo anterior a 2017 e com que intenção.

Desta feita, aderindo na integra à fundamentação da primeira instância e pelos considerandos atrás expostos, terá que ser improcedente a pretensão do R. recorrente.


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III DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela R. (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

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Porto, 20 de Fevereiro de 2024
Alberto Taveira
Maria da Luz Seabra
Rui Moreira
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto o relatório elaborado pelo Exmo. Senhor Juiz.