HERANÇA AINDA NÃO PARTILHADA
POSSE
INVERSÃO DO TÍTULO DA POSSE
Sumário

I - Traduzindo-se a comunhão hereditária numa comunhão de direitos e numa situação de composse, o uso exclusivo por algum herdeiro de um dos bens que integra o acervo hereditário não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, a menos que haja inversão do título da posse.
II - Esta inversão pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por ato de terceiro capaz de transferir a posse.
III - Em qualquer caso, tem de haver uma eliminação ativa da composse dos demais consortes ou de algum deles, por parte do usurpador. Seja por oposição, explicita ou implícita, deste último conhecida ou cognoscível pelos outros titulares da composse, seja por ato de terceiro, ainda que inválido, capaz de a transferir.
IV - Para essa inversão ter lugar, no caso de bens imóveis, não basta o não uso da coisa comum, por parte de algum ou alguns consortes.

Texto Integral

Processo n.º 1034/23.2T8PRT.P1


Relator: João Diogo Rodrigues
Adjuntos: Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira;
                Maria da Luz Teles Menezes de Seabra


*

Sumário:
………….
………….
………….

*

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório

1- AA, intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e CC pedindo que se reconheça e declare que ela própria (A.) é legítima proprietária do prédio urbano inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...25.º, sito na Rua ..., ..., União de freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., concelho do Porto, distrito do Porto, referente a uma fração autónoma, destinada a habitação, em regime de propriedade horizontal, no rés-do-chão direito, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ...85/20080602-B, área total de terreno 195m2, área de implementação do edifício 125 m2, área bruta privativa total 361,4000 m2, área de terreno integrante das frações 70 m2.

Isto porque, em resumo, embora este prédio tenha integrado o acervo hereditário deixado por óbito dos seus pais, avós da 1.ª Ré, tem nele habitado desde o ano 1964 e, particularmente, a partir do ano do ano 2000, tem-se comportado em relação a ele como sua verdadeira dona, o que é do conhecimento dos vizinhos, transeuntes e das próprias Rés, que nunca mostraram qualquer preocupação ou interesse nesse prédio.

Daí que considere tê-lo adquirido por usucapião.

2- Contestaram as Rés, arguindo a exceção de ilegitimidade da Ré, CC, e refutando aquela aquisição, já que o direito de propriedade sobre o dito prédio está integrado no acervo hereditário referenciado pela A.

Formularam ainda pedido reconvencional.

3- A A. replicou pugnando pela improcedência da reconvenção.

4- Esta reconvenção foi subsequentemente rejeitada.

5- Terminada a fase dos articulados, foi, após audição das partes, proferida sentença na qual se julgou improcedente a exceção de ilegitimidade arguida, bem como a presente ação, absolvendo as Rés do pedido.

Na base desta última absolvição está, em síntese, o entendimento de que não está demonstrado que a A. se tenha relacionado com o aludido imóvel com intuito apropriativo e, assim, não lhe pode ser reconhecido o direito de propriedade sobre o mesmo, com base no instituto da usucapião.

6- Inconformada com esta sentença dela recorre a A., terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

“I. A Autora interpôs a presente ação para que fosse declarada a aquisição da propriedade por usucapião.

II. A Ré apresentou contestação e não impugnou especificadamente a matéria trazida aos autos pela Autora, aceitando-a e corroborando-a em alguns pontos -art.º 35.º, art.º 41.º e art.º 42.º -, impugnou os documentos 6, 8 e 10 da petição, defendeu que a Autora se encontra desprovida de animus sibi habendi

III. A Juiz a quo proferiu despacho dizendo que os autos contêm todos os elementos para conhecer do mérito da causa.

IV. Proferida sentença, o Tribunal a quo julgou totalmente improcedente o peticionado, sustentando a sua decisão na inexistência do animus por parte Autora, porquanto esta não teria agido na convicção de ser plena proprietária.

V. A Autora discorda da matéria de facto elencada, assim como da ponderação jurídica do tribunal a quo.

VI.  Devem ser aditados aos factos provados, os seguintes factos:

14. A Autora reside no referido imóvel ininterruptamente desde 1964.

15. A Autora cuidou do pai e da mãe até às suas mortes.

16. Em 1997, a mãe da Autora foi diagnosticada com a doença de alzheimer, o que causou uma alteração neurológica que causou a perda de memória e declínio cognitivo progressivos.

17. Em 2000, a mãe da Autora tinha: perda de memória episódica, dificuldade em reconhecer pessoas, um discurso mais pobre e entrecortado à procura de palavras, desorientação em espaços, alterações do comportamento, frequentes as alucinações visuais, atividade delirante, agitação e agressividade.

18. Em 2001, a mãe da Autora, apesar de literada, já não conseguia assinar, havia deixado de viver de forma autónoma, tinha que ser ajudada em tarefas antes realizadas de forma natural, como cozinhar, vestir-se, lavar-se, lidar com dinheiro.

19. Entre 2001 e 2007, a mãe da Autora encontrava-se completamente dependente, perdendo todas as suas faculdades mentais.

20. Desde o ano 2000 que a Autora se comporta como proprietária, ocupando o dito imóvel, fazendo-o seu, nele residindo até aos dias de hoje.

21. A Autora sempre usou do referido imóvel como se de sua propriedade se tratasse, confecionou todas as refeições, guardou alimentos, pernoitou diariamente, realizou a sua higiene pessoal, criou animais de estimação, guardou as suas roupas e outros pertences.

22. A Autora sempre cuidou do imóvel e da sua manutenção, mobilou e decorou a habitação.

23. A Autora realizou limpezas regularmente, consertou tetos e janelas deteriorados pelo tempo, plantou flores nas floreiras do logradouro, possui as chaves do imóvel.

24. A Autora fez festas de aniversário, celebrou o natal e a páscoa em família, com o irmão sobrevivo, convidava amigos e família para jantar e almoçar.

25. A Autora sempre teve animais de estimação, designadamente cães que recolheu da rua, adotando-os ou cuidando deles provisoriamente, naquela casa.

26. A Autora sempre se comportou em relação ao imóvel de forma aberta, espontânea, perante os vizinhos e transeuntes, como sendo a sua habitação.

27. A Autora nunca foi citada, notificada judicial ou extrajudicialmente para desocupar o referido imóvel.

28. A Ré e a sua família sempre souberam que a Autora lá residia desde 1964, por este período de tempo até então nunca promoveram quaisquer obras de restauro ou manutenção do imóvel, nunca manifestaram qualquer interesse sobre o imóvel, não visitaram o imóvel ou solicitaram qualquer visita, nunca mostraram preocupação ou interesse pelo imóvel, mantendo uma atitude de inércia absoluta em relação ao mesmo.

VII. A matéria elencada na petição deverá ser dada como provada na sua integralidade, por se considerar admitido por acordo entre partes.

VIII. A Autora também não concorda com a apreciação jurídica levada a cabo pelo tribunal recorrido.

IX. Ora, como se sabe a posse substancia-se em corpus e animus, a chamada biunivocidade possessória.

X. O corpus é a prática de atos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (ou de outros direitos reais), não sendo necessário o contacto físico, nem a plenitude do exercício de direito.

XI. O animus é propósito volitivo que determinou aquele senhorio de facto à prática daqueles atos (corpus) e, atos esses de que, razoavelmente, se infere ser seu o propósito de atuar “como sendo dono”, “como sendo titular do direito”.

XII. A posse, segundo a noção do art.º 1251.º do Código Civil, diversifica em três elementos:(1) a coisa, (2) a conexão local entre a coisa e um sujeito, como senhorio de facto sobre a coisa, (3) um senhorio de facto com exercício empírico à imagem do exercício do direito de domínio.

XIII. Ao decidir como decidiu, - “já não se pode dizer que o fez na convicção de ser a sua plena proprietária” - o tribunal confundiu um dos requisitos da posse, com um dos caracteres da posse.

XIV. A convicção da Autora em ser proprietária em nada influencia a averiguação da existência de animus.

XV. O animus não se confunde com a boa ou a má fé da posse.

XVI. O conhecimento ou a consciência, do titular da relação de senhorio de facto de que não é titular da correspondente relação jurídica não impede a existência da posse, nem do seu corpus, nem do seu animus, nos termos do art.º 1260.º, n.º 1do Código Civil.

XVII.   A usucapião ocorre apenas relativamente a bens certos e determinados e nunca à quota-parte de uma herança ou de uma compropriedade; a posse incidirá sobre um concreto bem herdado, considerado autonomamente.

XVIII. Caso fosse a única herdeira, a presente ação - com vista ao reconhecimento da posse e respetiva declaração de usucapião - nunca teria sido intentada, por não existirem réus com interesse em contraditar e por falta de interesse em agir da Autora.

XIX. É natural que Autora não ignorasse a realidade jurídica do imóvel e face à assumida posse de má-fé, não se vislumbra que tal conhecimento absorva o comportamento anímico da Autora, enquanto senhorio de facto.

XX. A noção de posse (1251.ºCC) exige uma atuação por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, mas não se exige ao possuidor, que para o ser, tenha que ter a convicção, a crença ou a noção de que é proprietário, ainda que isso pudesse resultar em posse de boa-fé

XXI. É de boa-fé a posse que não sendo, na sua origem violenta, se tenha constituído pensando o possuidor que tinha ele próprio o direito e que ninguém tinha direito algum sobre a coisa.

XXII. A boa ou a má fé possessória -a convicção de que é plena proprietária ou não -é aferida no momento da aquisição da posse e não posteriormente.

XXIII. Ainda que a Autora tivesse a noção de que ela própria seria a titular do direito, aquando da aquisição da posse -aquando verificação do seu animus possedendi - sempre poderia vir a reconhecer a existência de um direito sobre o imóvel na esfera jurídica de terceiros, que ainda assim não afetaria a sua boa fé.

XXIV. A ser reconhecida a usucapião por escritura pública de justificação ou por declaração judicial equacionam-se dois cenários: o possuidor está de boa fé, mas posteriormente adquire a consciência de que lesou um terceiro titular do direito; outro, que é o caso da Autora, em que o possuidor está de má fé e mantém a mesma consciência

XXV. Em ambas as situações, a posse na vertente do animus não sai prejudicada em função da cognoscibilidade da Autora em relação à titularidade do direito de propriedade; o que saí prejudicado é a verificação do decurso do tempo em função da má fé, para usucapir (artigos 1287.º, 1294.º, 1295.º, 1296.º do código civil).

XXVI. A consciência da existência de terceiros titulares da relação jurídica, mais cedo ou mais tarde, é critério e pressuposto formal para a declaração de usucapião, pois sem estes não há ação.

XXVII. No que concerne à outorga a escritura de habilitação de herdeiros por morte da sua mãe em que afirma a existência de herdeiros, assim como, à aceitação da doação do quinhão hereditário, são atos jurídicos corelacionados com a pretensão da Autora em interpor a presente ação, que representam uma expressão anímica da Autora compatível com animus possidendi.

XXVIII. A Autora assume a posição de cabeça de casal da herança, cujo conhecimento nunca lhe foi alheio.

XXIX. A Autora tinha a obrigação legal de iniciar o procedimento de habilitação legal, nos termos o art.º 210.º-c do Código Registo Civil, num prazo de 3 meses a contar do falecimento, mas a Autora só o promoveu 16 anos depois e imediatamente antes de interpor a presente ação de usucapião, com o propósito de habilitar os herdeiros a responder em tribunal pela ação de usucapião.

XXX. Fê-lo também para instruir a escritura de doação do quinhão hereditário, documento sem o qual o seu irmão nunca lhe poderia doar o quinhão.

XXXI. A Autora nunca foi alheia ao facto de que a propriedade que ocupava não lhe pertencia juridicamente, o que é tão só a manifestação de má-fé enquanto possuidora o que releva para prazos da usucapião, como a falta de título ou a posse violenta ou oculta.

XXXII. A aceitação da doação de um quinhão hereditário acautelou à Autora garantir juridicamente uma parte do imóvel, sem que tal reconhecimento dependesse exclusivamente.

XXXIIII. A Autora não tem que se considerar proprietária de pleno direito para que a biunivocidade possessória seja verificada, pelo que se assim o considerasse, estaria de boa-fé.

XXXIV. A manifestação desta vontade (de usucapir ou de garantir juridicamente o reflexo do seu domínio de facto) nada invalida o comportamento da Autora quanto ao propósito volitivo que determinou a prática de atos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, bem pelo contrário, é a sua manifestação anímica.

XXXV. A manifestação anímica da Autora enquanto aceitante da doação do quinhão hereditário, é exatamente a mesma que a levou a impulsionar a ação de usucapião contra a Ré.

XXXVI. O animus só ganha relevo jurídico na medida em que exteriorize em termos gerais, ou por palavras, escrito ou qualquer outro meio direito de manifestação de vontade, ou quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, o revelem (art.º 217.º e 295.º do código civil)., ou se o legislador sobre ele estabelece uma presunção (art.º 349.º do Código Civil).

XXXVII. No art.º 1252.º, n.º 2 estabelece-se que, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do n.º 2do art.º 1257.º.

XXXVIII. A ilisão de tal presunção passaria pela demonstração cabal, pela ré, de que a vontade consubstanciada nos respetivos atos jurídicos é diversa da presumida, o que não fez nem tal se poderá depreender.

XXIX. Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, o que exerce o poder de facto sobre a coisa.

XL. Os modos de aquisição da posse, autonomizados no art.º 1263.º do Código Civil, não são taxativos, entre os quais subsiste a prática reiterada com publicidade dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito.

XLI. Sem prejuízo de entendimento diferente, não cremos que a posse da Autora fosse adquirível por inversão do título da posse.

XLII. A substituição de uma posse precária, em nome alheio, por uma posse em nome próprio, dá-se por duas formas: por facto de terceiro, que, dizendo-se dono da coisa, ou seja, seu possuidor, transfere ao detentor essa posse - o que notoriamente não é o caso; ou por oposição feita pelo detentor ao direito da pessoa em nome do qual exercia a detenção e por esta não repelida no prazo e pelas formas legais -o que também não é aplicável ao caso.

XLIII. Porquanto, para que a inversão por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía aconteça, importa que o detentor torne, diretamente, conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de atuar como titular do direito.

XLIV. A rácio da inversão do título da posse, como uma das formas de aquisição da posse, garante ao possuidor precário, por um lado, dar início ao prazo da sua posse efetiva e, por outro lado, assegurar ao titular do direito de propriedade o efetivo momento em que se dá essa inversão, ou seja, o momento em que se desencadeou tal alteração anímica dentro do espírito do possuidor precário, garantindo também ao titular do direito reagir através dos mecanismos de defesa da posse.

XLV. Mas a mãe da Autora, que padecia de alzheimer, perdeu totalmente as suas capacidades cognitivas em 2001 e estava sob dependência e representação direta da Autora, pelo que não se alcança como poderia haver por parte da Autora uma oposição categórica, traduzida em atos positivos, materiais ou jurídicos, quando por um lado era a sua representante legal e cuidadora informal e, por outro, que quaisquer atos fossem por lidos ou compreendidos pela titular do direito, sua mãe, por forma a inverter o título.

XLVI. Esta categoria de aquisição de posse não dispensa a intervenção de terceiro consciente e cognoscível,o que não foi o caso.

XLVII. A oposição exercida pelo detentor precário tem de ser ostensiva em relação àquele em nome de quem possuía, sendo que não deixa de ser pública, quando não é propriamente conhecida de toda a gente, é-o acima de tudo, quando é conhecida do interessado direto ou indireto.

XLVIII. É assim exigível que o detentor torne “diretamente” conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial,quer extrajudicialmente)a sua intenção de atuar, no plano dos factos e empiricamente, “como sendo” titular do direito.

XLIX. A inversão do título de posse é uma inversão do animus: o animus não relevante transforma-se em animus relevante

L. Face à matéria dada como provada, não poderia a Autora inverter qualquer título, nem garantir que o proprietário de pleno direito (sua mãe e representante da herança do pai) tomasse conhecimento dessa alteração de comportamento e desse propósito.

LI. O que na verdade aconteceu, desde 2001 e até então, é que a Autora passou a comportar-se como proprietária plena, agindo reiteradamente e à vista de todos numa relação de domínio de facto, “aproveitando-se” do estado da sua mãe e com efetivo conhecimento por parte da ré e da sua família, cuja demência profunda conheciam e sem a oposição dos demais herdeiros ou qualquer tentativa de restituição, mesmo após o falecimento de sua mãe.

LII. A Autora exerce posse sobre o imóvel suprarreferido, posse essa, efetiva, causal, direta e em nome próprio. quanto aos caracteres, a sua posse é não titulada (art.º 1259.º, n.º1 a contrario), de má-fé (art.º 1260.º, n.º1a contrario), pacífica (art.º 1261.º, n.º1) e pública (art.º 1262.º).

LIII. Há assim uma posse mantida por mais de 20 anos.

LIV. Releva a ausência de título e a má-fé da Autora para o decurso do prazo de usucapião que a 31 de dezembro de 2021 (no máximo) perfez os 20anos exigíveis ao abrigo dos artigos 1287.º, 1288.º e 1296.º do Código Civil.

LV. A decisão em causa é uma decisão surpresa.

LVI. As respostas às questões colocadas pela Meritíssima Juiz a quo são aqui respondidas neste recurso de apelação.

LVII. Era expectável que a matéria alegada pela Autora fosse dada integralmente como provada.

LVIII. Principalmente ao indicar previamente que os autos continham todos os elementos para que, desde logo, se pudesse conhecer do seu mérito.

LIX. Terá sido precipitado não realizar uma audiência de julgamento se respostas àquelas questões seriam facilmente descortinadas com a matéria de facto trazida aos autos, que não foi assente.

LX. Nestes termos, deverão V. Exas. revogar a sentença em crise e, bem assim, julgar procedente a ação, por provada, declarando-se a aquisição pela Autora do prédio urbano melhor identificado nos autos, por usucapião, reconhecendo-se a Autora como sua legítima proprietária.

LXI. Sem prejuízo e subsidiariamente, deverão v. exas. revogar a decisão em crise e ordenar a marcação de audiência de julgamento com vista a aferir-se do animus possidendi da Autora”.
É, em suma, o que pede.
7- As RR. responderam pugnando pela confirmação do julgado, por inteiramente conforme com a prova produzida e o direito aplicável.
8- Recebido o recurso e preparada a deliberação, cumpre tomá-la.


*

II- Mérito do recurso

1- Definição do seu objeto

Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto deste recurso, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações da recorrente [artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil (CPC)], cinge-se a saber se:

a) A sentença recorrida constitui uma decisão surpresa;

b) Deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto;

c) Deve ser reconhecido à A. o direito de propriedade sobre o prédio supra referido;

d) Caso assim não se entenda, se o processo deve prosseguir para julgamento, com vista a apurar o “animus”, por parte da A..


*

2- Fundamentação

A- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

1. DD faleceu a 8/11/1994 no estado de casado com EE, sob o regime da comunhão geral de bens.

2. EE faleceu a 14/2/2007, no estado de viúva.

3. Tendo deixado como seus herdeiros os seus filhos, a Autora, AA, FF e GG.

4. GG faleceu em 29/3/2006, no estado de casado com CC, sob o regime da comunhão de bens adquiridos, tendo deixado uma filha, BB.

5. O casamento entre GG e CC foi contraído em 17/7/1977.

6. Por escritura pública de habilitação de herdeiros outorgada em 20/12/2022, a Autora declarou o falecimento de EE, declarando “Que a falecida não fez testamento ou qualquer disposição de última vontade e como herdeiros legítimos sucederam-lhe:

Os seus dois filhos:

FF (…)

AA (…)

A sua neta, filha do seu filho pré-falecido GG

BB (…)

Afirma para todos os efeitos de direito que as pessoas indicadas são as únicas e universais herdeiras da Autora da herança não havendo quem com elas concorra.”.

7. Em 10/1/2023, FF, o seu cônjuge, HH, e a Autora outorgaram um documento particular perante advogado e devidamente autenticado, nos termos do qual o FF e a Autora declararam ser “irmãos e legítimos herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai, DD (…) da qual fazem parte bens imóveis e da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da sua mãe, EE, (…) da qual fazem parte bens imóveis.”.

8. Mais declarou o referido FF que “com expresso consentimento que aqui lhe presta a primeira outorgante mulher, cede por doação à segunda outorgante (a Autora), sua irmã, livre de quaisquer ónus e encargos o quinhão que lhe pertence em ambas as heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de seu pai e de sua mãe.”

9. Nesse ato declarou a Autora aceitar a doação nos seus precisos termos.

10. Na conservatória do registo predial do Porto, freguesia ..., sob o n.º ...85/20080602 mostra-se descrita a fração autónoma designada pela letra “B” correspondente ao rés-do-chão direito, com logradouro e entrada pelo n.º ...77 do prédio situado na Rua ..., no Porto.

11. Tal fração autónoma mostra-se inscrita a favor dos falecidos identificados em 1 e 2 mediante a inscrição Ap. ...7 de 1981/01/23.

12. A Autora, que reside no imóvel, por vezes, deu de arrendamento a estudantes um dos seus quartos.

13. A Autora nunca ignorou a existência de vários titulares do direito de propriedade sobre o imóvel.


*

B- Análise dos fundamentos do recurso

Em primeiro lugar, é importante deixar claro que, ao contrário do defendido pela Apelante, a sentença recorrida não se pode considerar, em relação a ela (Apelante), uma decisão surpresa. Efetivamente, antes de proferir essa sentença, o Tribunal recorrido exarou nos autos, no dia 13/06/2023, o seguinte despacho: “Os autos contêm todos os elementos para que, desde já, se possa conhecer do seu mérito pelo que as partes deverão ser notificadas para, querendo, em 10 dias, se pronunciarem (art.º 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil)”. E, na decorrência desta ordem, não só a referida notificação foi concretizada (por ofício eletrónico expedido no dia seguinte, 14/06/2023), como ambas as partes manifestarem a sua concordância com o procedimento anunciado pelo Tribunal. Mais: a A., inclusive, apresentou, no dia 29/06/2023, aquilo a que apelidou de alegações finais.

Neste contexto, assim, não se tendo a sentença recorrido desviado do fundamento alegado pela A. para justificar o direito de propriedade de que se arroga titular (a usucapião), nada de inesperado há nessa sentença, a não ser, eventualmente, o seu sentido decisório para a A., porque, para as Rés, é aquele por que propugnaram, pelo que esse era um dos resultados com que aquela, ou seja, a A., podia contar.

Donde, nenhum atropelo há às regras processuais que regulam esta matéria e especialmente, ao princípio do contraditório (artigo 3.º do CPC).

Esclarecido este aspeto, analisemos as demais questões.

Como vimos, aquilo que a A. pretende, através da presente ação, é que lhe seja reconhecido o direito de propriedade (exclusivo) sobre um imóvel que diz ter integrado o acervo hereditário deixado por óbito dos seus pais. E isso porque nele sempre habitou, desde o ano de 1964, mas, particularmente, a partir do ano 2000, em que a sua mãe terá perdido as faculdades mentais [acabou por falecer no dia 14/02/2007 e o seu pai já tinha falecido antes, no dia 08/11/1994] e em que passou a relacionar-se com aquele imóvel em termos tais [nos seus dizeres, a sua posse é não titulada, de má-fé, pacífica e pública] que adquiriu a propriedade do mesmo por usucapião.

Ora, como veremos, este direito, atendendo ao alegado pela A. na petição inicial, não lhe pode ser reconhecido. E não há necessidade sequer de ampliar a matéria de facto julgada provada na sentença recorrida ou de prosseguir com os autos para a audiência final, como aquela pretende, para o decidir.

Vejamos porquê.

Não sofre dúvida - aliás, a A. reconhece-o - que o prédio em causa foi pertença dos seus pais. À data dos respetivos óbitos, assim, passou a fazer parte (na medida do direito detido por cada um deles) dos correspondentes acervos hereditários (artigo 2024.º do Código Civil). Acervos que passaram, portanto, a ser constituídos por uma comunhão de direitos da qual a A. e os restantes herdeiros ou seus representantes (como é o caso da Ré, BB) passaram a ser também contitulares e compossuidores[1], independentemente da respetiva apreensão material (artigo 1255.º do Código Civil).

Ora, no âmbito da comunhão de quaisquer direitos, como é o caso, em que há uma comunhão hereditária, são aplicáveis as regras da compropriedade (artigo 1404.º, do Código Civil)[2]. E, nesta, o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele. A menos que tenha havido inversão do título da posse (artigo 1406.º, n.º 2, do Código Civil). E essa pode ser obtida “por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por ato de terceiro capaz de transferir a posse” (artigo 1265.º, do Código Civil). Em qualquer caso, tem de haver uma eliminação ativa da composse dos demais consortes ou de algum deles, por parte do usurpador. Seja por oposição, explicita ou implícita, do detentor, seja por ato de terceiro, ainda que inválido, capaz de a transferir[3].

Não basta, com efeito, em regra e particularmente no caso de bens imóveis, o não uso da coisa comum, por parte de algum ou alguns consortes. A posse, é sabido, traduz-se num poder de facto sobre uma coisa, acompanhada da intenção de sobre ela exercitar um determinado direito real, o denominado “animus”, mas aquele poder, também apelidado de “corpus” ou elemento empírico, não tem de se traduzir, sempre e necessariamente, num contacto físico e permanente do possuidor com a coisa. “A posse existe logo que a coisa entra na nossa órbita de disponibilidade fáctica, que sobre ela podemos exercer, querendo, poderes empíricos”[4]. E, por isso, mais do que o referido contacto físico e permanente, o que a lei exige para a reconhecer é a possibilidade de a exercitar[5]. A posse – prescreve o artigo 1257.º, n.º 1, do Código Civil -, “mantém-se enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar”. E só se extingue quando tal não suceder e a lei o permita. Seja por abandono[6], seja pela perda ou destruição material da coisa ou por esta ser colocada fora do comércio, seja pela cedência, seja ainda pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de um ano (artigo 1267.º, n.º 1 do Código Civil).

A nova posse, porém, no caso da inversão do título por parte do compossuidor contra os demais ou algum deles, como decorre do já exposto, tem de resultar de atos positivos (materiais ou jurídicos), que revelem inequivocamente a sua oposição à posse deles, sem que estes a contradigam[7]. E, para isso, essa oposição não pode deixar de ser deles conhecida ou cognoscível. Caso contrário, a composse tem de se presumir exercida com respeito pelos direitos de todos os seus titulares. Designadamente, o direito de uso que, por regra, também é comum (artigo 1406.º, n.º 1, do Código Civil).

Ora, tendo isto presente, temos para nós como líquido que, no caso, não foi alegado nenhum facto de onde resulte a inversão do título já referenciada. Designadamente, por via da oposição também já aludida.

Foi alegado pela A., efetivamente, que habita o prédio em causa, ininterruptamente, desde o ano de 1964 e que, particularmente, a partir do ano do ano 2000 (data a partir da qual a sua mãe perdeu as respetivas faculdades mentais), passou a dispor desse prédio como sua verdadeira proprietária. Mais concretamente, como refere, nele “confecionou todas as refeições, guardou alimentos, pernoitou diariamente, realizou a sua higiene pessoal, criou animais de estimação, guardou as suas roupas e outros pertences”. Por outro lado, “sempre cuidou do imóvel e da sua manutenção, mobilou e decorou a habitação (…) sem prejuízo de outras despesas de manutenção, que pelo decurso do tempo já não estão documentadas”. “Bem assim, realizou limpezas regularmente, consertou tetos e janelas deteriorados pelo tempo, plantou flores nas floreiras do logradouro, possui as chaves do imóvel”. Acresce que “fez festas de aniversário, celebrou o Natal e a Páscoa em família, com o irmão sobrevivo, convidava amigos e família para jantar e almoçar”. Sempre teve ainda “animais de estimação, designadamente cães que recolheu da rua, adotando-os ou cuidando deles provisoriamente, naquela casa”. “Por várias vezes, “deu de arrendamento” a estudantes um dos quartos do imóvel”. Isto, pese embora nunca ter ignorado “a existência dos vários titulares do direito de propriedade sobre o imóvel”, “assim como aqueles, entre as quais as Rés, sempre souberam que a Autora lá residiu por este período de tempo até então”.

Por outro lado, “sempre se comportou em relação ao imóvel de forma aberta, espontânea, perante os vizinhos e transeuntes, como sendo a sua habitação”.

Ora, não obstante esta sua conduta, “nunca foi citada, notificada judicial ou extrajudicialmente para desocupar o referido imóvel”. “As Rés nunca promoveram quaisquer obras de restauro ou manutenção do imóvel, nem nunca manifestaram qualquer interesse sobre o imóvel”. Mais: “as Rés nunca visitaram o imóvel ou sequer solicitaram qualquer visita”, nunca mostraram preocupação ou interesse pelo imóvel, mantendo uma atitude de inércia absoluta em relação ao mesmo”.

Assim, neste contexto, entende que lhe deve ser reconhecido o direito de propriedade sobre este imóvel, por o ter adquirido por usucapião.

Ora, como já adiantámos, esse direito, com base nestes factos, não lhe pode ser reconhecido. E não lhe pode ser reconhecido porque, assentando o mesmo numa posse exclusiva da parte da A., dos factos transcritos (e não há outros alegados relevantes para este efeito) não resulta nenhuma oposição, explicita ou implícita, ao uso de tal imóvel, particularmente, perante as Rés, capaz de consubstanciar a necessária inversão do título de posse. Não houve oposição explicita porque, simplesmente, a A. não a reproduz factualmente. E não houve oposição implícita porque também não alegou qualquer facto que, com toda a probabilidade, a revelem – artigo 217.º, n.º 1, do Código Civil. Referimo-nos, por exemplo, à mudança de fechaduras, com o conhecimento das Rés e sem lhes facultar cópias em prazo razoável, ou outro facto com idêntico alcance, no sentido de traduzir uma oposição inequívoca da A. ao uso do imóvel a que aquelas também têm direito.

Donde, repetimos, porque não há outros factos alegados e relevantes para esse efeito e aqueles que a A. pretende, agora, que se julguem demonstrados (e supra transcritos na cl.VI) também não vão, substancialmente, além dos já transcritos, só se pode concluir que, não estando suficientemente caracterizada a inversão do título de posse, por parte da A., o direito de propriedade (exclusivo) de que a mesma se arroga titular sobre o prédio em causa só podia ter sido, como foi, julgado improcedente. Daí a improcedência também deste recurso.


*

III- Dispositivo

Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se o decidido na sentença recorrida.


*

Em função deste resultado, as custas da ação e deste recurso serão suportadas pela Apelante – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.


*


Porto, 20/02/2024.
João Diogo Rodrigues
Alberto Taveira
Maria da Luz Seabra
____________
[1] No sentido desta composse, Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, Coimbra, 1967, pág. 77 e Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3ª Edição, Almedina, pág. 207.
[2] Neste sentido, Ac. STJ de 15/02/2022, Processo n.º 929/14.9TBAMT.P2.S1 e Ac. STJ de 21/04/2022, Processo n.º 2691/16.1T8CSC.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, págs. 313 e 314.
[4] Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, (Coordenação de Francisco Liberal Fernandes, Maria Raquel Guimarães e Maria Regina Redinha), Coimbra Editora, pág. 262.
[5] Neste sentido, por exemplo, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª Edição Revista e Actualizada (Reimpressão), Coimbra Editora, Ldª, pág. 15.
[6] O abandono, no entanto, como causa de perda da posse - como refere Manuel Henrique Mesquita, ob. cit., pág. 95 -, “não tem aplicação à posse dos direitos reais de natureza perpétua (o caso típico é o da propriedade sobre imóveis), isto é, daqueles direitos reais que não se extinguem por renúncia do titular. Em relação a estes direitos valerá o princípio consagrado no art, 1257.º, n.º1, nos termos do qual (…) a posse se mantém enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar”.
[7] Neste sentido parece pronunciar-se Manuel Henrique Mesquita, ob. cit., pág. 86.