PROCESSO DE INVENTÁRIO
PARTILHA SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
Sumário

O decurso do prazo de trinta dias estabelecido no art.º 1104.º do CPC preclude o direito a deduzir reclamação à relação de bens e a impugnar os créditos e dívidas do acervo a partilhar.

Texto Integral

Apelação nº 1802/21.0T8AVR-B.P1

Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Lina Castro Baptista
  Fernando Vilares Ferreira


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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

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         Apelante: AA (interessado).

         Apelado: BB (interessada cabeça de casal).  

         Juízo de família e menores de Oliveira do Bairro – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.


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         No presente inventário para partilha dos bens comuns na sequência de divórcio que BB intentou contra AA no Cartório Notarial da Dr.ª CC, na ..., remetidos os autos a tribunal (a requerimento da requerente), foi observada a seguinte tramitação, no que releva à economia da presente apelação:
         - em 27/09/2021 foi proferido despacho que nomeou o requerido AA como cabeça-de-casal, determinando a sua citação para, ‘no prazo de 30 dias, apresentar a relação de bens elaborada nos termos do disposto no art.º 1098.º aplicável “ex vi” do art.º 1084.º n.º 2 do Código de Processo Civil na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 117/2019 de 13/00 e apresentar o compromisso de honra do fiel exercício das suas funções, por escrito, nos termos do disposto na al. e) do n.º 3 e n.º 4 do art.º 1097.º do mesmo diploma legal – cfr. art.º 1100.º n.º 2 al. b) e 1102.º do Código de Processo Civil na redacção referida’, mais determinando fosse cumprido o ‘disposto no n.º 3 do art.º 1100.º do Código de Processo Civil na redacção supra referida aplicável “ex vi” do disposto no art.º 1084.º n.º 2 do mesmo diploma legal’,
         - por não ter sido apresentada a relação de bens, apresentou-se em 29/03/2022 a requerente a suscitar incidente de remoção do cabeça-de-casal e, cumprido o contraditório, foi proferida decisão em 9/06/2022 que, considerando que o cabeça-de-casal incumprira os seus deveres (por terem decorrido, depois de citado, mais de oito meses sem que apresentasse a relação de bens, como lhe fora determinado, sem que para tanto apresentasse qualquer justificação),  decidiu pela remoção do requerido do cargo de cabeça-de-casal, nomeando para o exercício do cargo a requerente e ordenando fosse a mesma notificada para apresentar a relação de bens,
         - apresentou a cabeça-de-casal, em 14/07/2022, a relação de bens e em 14/09/2022 foi proferido despacho a ordenar o cumprimento do art. 1104º, ex vi art. 1084º, nº 2, do CPC, sendo enviadas em 16/09/2022 cartas para notificação dos interessados,
         - nada sendo requerido, foi em 28/10/2022 proferido despacho a ordenar a notificação do requerido para prestar determinadas informações, a indicar a forma da partilha e a agendar data para a realização da conferência de interessados (art. 1110, nº 2, b) e 1111º, ex vi art. 1084º, nº 2 do CPC), ordenando a notificação dos interessados com a advertência prevista nos nº 5 e 6 do art. 1110º do CPC (ex vi art. 1084º, nº 2 do CPC),
         - em 21/11/2022 foi realizada a conferência de interessados, estando presentes requerente e requerido (tendo este prestado as informações solicitadas no despacho de 28/10/2022), sendo determinada, deferindo requerimento das partes nesse sentido, a suspensão da instância por trinta dias (art. 272º, nº 4 do CPC),
         - em 24/11/2022 o requerido juntou aos autos procuração a favor de mandatário,
- em 11/01/2023 foi proferido despacho que declarou cessada a instância e ordenou a notificação dos interessados para que dissessem o que tivessem por conveniente quanto ao prosseguimento do processo,
- em 31/01/2023 o requerido apresentou o requerimento alegando (e indicado as provas que, a propósito, oferecia):
1. Durante o período de suspensão da instância, e apesar de todos os esforços, não foi exequível lograr com êxito uma solução razoável para a partilha entre os interessados, porquanto:
1.1 O valor apresentado dos bens móveis encontra-se excessivamente sobrevalorizado, sem qualquer verosimilhança com a realidade;
1.2 As verbas que se encontram na posse do aqui interessado são as seguintes: placa de fogão marca Jocel, forno marca AEG, microondas marca Talent MT243, máquina de lavar roupa marca Electrónica, um frigorifico marca LG 349SXF, um conjunto de mesas e cadeiras, uma secretária e um móvel de sala, o que pode atingir um máximo de mil euros, como melhor consta das fotografias que ora se juntam como documento n.º 1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
1.3 As verbas relativas ao conjunto de sofás, os tapetes, as cortinas, os candeeiros, os jogos de lençóis e roupas de cama e conjuntos de toalhas foram levadas pelo cabeça de casal, numa carrinha, aquando do divórcio, assim como as verbas relativas ao conjunto de camas e cortinas que não foram relacionadas;
1.4 Nunca existiram quatro televisores, nem o cilindro de água, a máquina de lavar roupa já se encontrava na altura avariada e o computador fixo era uma ferramenta de trabalho do interessado facultado na altura pela Entidade Empregadora “A...” e por isso propriedade desta.
2. Quanto ao bem imóvel, existem divergências insanáveis quanto à sua natureza.
3. Salvo melhor entendimento, o prédio urbano aqui relacionado como bem comum, não reveste essa natureza.
4. Trata-se de um bem próprio do interessado AA. A casa foi construída no terreno da mãe do interessado AA, no mesmo lote, onde também se encontra construída a casa daquela, inicialmente erigida ainda, em momento anterior à constância do matrimónio com dinheiro próprio daquele e concluída já na pendência do casamento.
5. Quando muito, a provar-se que a cabeça de casal contribuiu com o dinheiro próprio, tal contribuição só poderá ser valorizada como benfeitoria útil, por força do disposto no artigo 216.º do Código Civil.
6. Tanto assim é que a cabeça de casal no seu requerimento inicial de propositura de Inventário, reconhece que “…apenas será objecto de partilha as benfeitorias inscritas sob o artigo matricial urbano n.º ...86 da freguesia ..., Concelho de Ílhavo”.
7. Neste mesmo sentido, também a douta sentença de divórcio já transitada em julgado, homologatória do acordo entre as partes que na Letra D. bens comuns do casal aceitaram como única verba as “benfeitorias inscritas sob o artigo matricial urbano n.º ...86 da freguesia ..., Concelho de Ílhavo, constante do competente Serviço de Finanças”.
8. Face ao exposto, também é de impugnar para todos os efeitos legais, o teor da Certidão negativa já junto aos autos, por não corresponder à verdade o teor inscrito nos quadros 04 por inexistir quaisquer ante possuidores, assim como as confrontações são errôneas.
9. Por outro lado, quanto ao passivo apresentado, o interessado não o poderá legitimamente reconhecer. Senão Vejamos:
10. No acordo homologado por sentença transitada em julgado no processo de divórcio, o A. e R. foi acordado atribuir a utilização da casa de morada de família ao cônjuge marido, A., aqui interessado AA, até à partilha;
11. No acordo foi fixada o direito de utilização da casa sem o pagamento de qualquer contrapartida;
12. Não pode agora a cabeça de casal a posteriori decorrido mais de uma década, ver-se pecuniariamente compensada por uma utilização exclusiva que ela própria anuiu;
13. Nesse sentido vai o douto Acórdão do STJ de 13.10.2016, disponível em www.dgsi.pt, relatado pelo Con. Lopes Rego, que decidiu “O acordo dos cônjuges, judicialmente homologado, no qual se não prevê o pagamento de qualquer compensação pecuniária pelo uso exclusivo da casa, nele atribuído a um dos cônjuges, deve ser interpretado à luz do princípio da impressão no destinatário, no sentido de que as partes não contemplam o pagamento de qualquer quantia como contrapartida da utilização do imóvel”.
14. Podia ter recorrido à faculdade prevista no disposto no n.º 3 do artigo 1793.º do Código Civil, o que durante mais de uma década não acedeu, deixando a inércia prevalecer.
15. Nessa medida, não poderá o interessado aceitar o reconhecimento do passivo apresentado nesta sede.
Nestes termos e nos mais de direito, e porque, subsistem matéria e questões que podem influir na partilha e nos bens a partilhar, sob pena de grave prejuízo do interessado e violação do direito ao contraditório, requer-se a V. Exa. o que entender por conveniente para apuramento da matéria aqui suscitada.’
- em 6/02/2023 a mandatária do requerido veio renunciar ao mandato, facto notificado aos interessados,
- em 17/04/2023, apreciando o requerimento apresentado pelo requerido em 31/01/2023, foi proferido despacho com o seguinte teor:
Por manifestamente intempestivo, não admito o articulado e respectivos meios de prova apresentados e, consequentemente, determino o seu desentranhamento e devolução ao apresentante, condenando-o, por manifestamente anómalo, no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 2 UC - cfr. art.º 1104.º aplicável "ex vi" do art.º 1084.º n.º 2 do Código de Processo Civil e art.º 7.º n.º 4 e 8 do Regulamento das Custas Processuais.’
Deste despacho, pretendendo a sua revogação e substituição por outro que ‘admita o articulado de reclamação à relação de bens’ e ordene a tramitação do ‘incidente de reclamação’, recorre o interessado AA, terminado as alegações pela formulação das seguintes conclusões:

- Atentas as datas em que foi notificado o Recorrente dos despachos supra-referidos, que estão discriminados nas alegações de recurso e constam dos autos, e os despachos proferidos sobre a matéria, decorreram os seguintes dias do prazo para apresentação da relação de bens pelo Recorrente:

A) 30 dias com início da suspensão da instância (22/11/2022 a 21/12/2022);

B) 30 dias, entre o terminus do prazo de suspensão da instância (21/12/2022) que com as férias judiciais do Natal iniciou em 04/1/2023.

C) Tendo decorrido, nos termos do referido nas alíneas anteriores tal suspensão veio a terminar 21/12/2022, ou seja, no dia imediatamente anterior ao início das férias judiciais do Natal.

D) Pelo que a prática o prazo para reclamar iniciaria a sua contagem a 04/01/2023.

E) Quando foi deduzido o requerimento de reclamação de bens, em 31/01/2023, o que salvo devido respeito por opinião diversa, estaria dentro do prazo legal de 30 dias.

F) Ainda não tinha decorrido o prazo para o Recorrente, deduzir oposição à relação de bens, nos termos do n.º 1 e 2 do artigo 1104º do CPC;

G) Decorrendo a contagem do prazo para dedução oposição da relação de bens, por parte do Recorrente, este prazo não tinha expirado;

H) Logo, o Recorrente reclamou tempestivamente do teor da reclamação de bens apresentada pela Cabeça-de-Casal.

I) Pois o Recorrente nunca foi notificado do que quer que fosse, ainda que a 18/11/2022.

J) Tudo isto denota que a Mma. Juíza (que se deparou com um prazo de suspensão da instância e mais um prazo de oposição à relação de bens apresentada pelo cabeça de casal), para que as partes chegassem a acordo no âmbito deste processo, não atentou nos prazos em causa.

L) Deverá assim, revogar-se a Douto Despacho ora recorrido, datado de 17/04/2023, substituindo-o por outro que admita o articulado de reclamação à relação de bens apresentada pela Cabeça-de-Casal e, consequentemente, sigam os demais termos do incidente de reclamação.
Contra-alegou a cabeça de casal pela improcedência da apelação e em defesa do despacho recorrido.


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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         Delimitação do objecto do recurso

Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações, a questão colocada à apreciação deste tribunal consiste em apreciar, tão só, da tempestividade do articulado apresentando pelo requerido apelante em 31/01/2023.


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FUNDAMENTAÇÃO

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            Fundamentação de facto

A matéria factual a ponderar é a que resulta exposta no relatório que precede.


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            Fundamentação de direito

De confrangedora simplicidade (inusual, em questões suscitadas em recurso) a solução da questão suscitada na apelação, ponderando o termo inicial do prazo indicado na lei para que os interessados apresentem reclamação à relação de bens e impugnem os créditos e dívidas do acervo a partilhar (leia-se, no caso de inventário para partilha de bens do casal, relação dos bens e créditos e dívidas do património comum – arts 1014º, nº 1, d) e e) e art. 1084º, nº 2 do CPC – na versão introduzida pela Lei 117/19, de 13/09) e, bem assim, a natureza peremptória de tal prazo, implicando a sua não observância a perda do direito de praticar o acto.

O termo inicial do prazo (de trinta dias) para que os interessados deduzam reclamação à relação de bens e/ou impugnem os créditos e dívidas do acervo a partilhar corresponde à data da sua citação/notificação nos termos do art. 1104º do CPC (aplicável ao inventário para separação de meações, como o dos autos).

Ponderando que a carta para notificação do apelante para os termos do art. 1104º do CPC foi enviada em 16/09/2022, o prazo de trinta dias esgotara-se e completara-se antes de realizada, em 21/11/2022, a conferência de interessados onde esteve presente o requerido apelante e na qual foi decretada a suspensão da instância por trinta dias (aliás, tal prazo já se mostrava esgotado quando em 28/10/2022 foi proferido o despacho a indicar a forma à partilha e a agendar a conferência de interessados) – e por isso que se mostrava já esgotado o prazo para a reclamação da relação de bens e para impugnar créditos e dívidas quando em 31/01/2023 o apelante veio apresentar requerimento suscitando tais questões.

Decorrido tal prazo peremptório, esgotou-se o direito à prática do acto (art. 139º, nº 2 do CPC) – o decurso do prazo tem efeitos preclusivos, conduzindo à impossibilidade da prática do acto[1] (no caso, da dedução da reclamação/impugnação dos créditos e dívidas), sendo certo que no actual regime do processo de inventário os interessados têm o ónus de invocar e de concentrar numa única peça toda as reclamações/impugnações que considerem oportunas, o que implica que a não dedução de tais reclamações/impugnações nesse momento (e no respeito e observância de tal prazo de trinta dias contado da sua citação/notificação para os termos do art. 1104º do CPC) determina efeitos preclusivos quanto a tais iniciativas (regime diverso do que estava a propósito consagrado no art. 1348º do CPC de 1961, que se integra no modelo geral dos processos de natureza contenciosa, sendo o efeito preclusivo actualmente estabelecido justificado, além do mais, por razões de celeridade e de eficácia da resposta a um conflito de interesses, que importa resolver, em torno da partilha da herança/património do extinto casal)[2].

Patente, pois, a improcedência da apelação, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (em jeito de sumário – nº 7 do art. 663º do CP) na seguinte proposição: o decurso do prazo de trinta dias estabelecido no art. 1104º do CPC preclude o direito a deduzir reclamação à relação de bens e a impugnar os créditos e dívidas do acervo a partilhar.


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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em manter o despacho recorrido.

Custas pelo apelante (sem prejuízo do apoio judiciário que lhe possa vir a ser concedido).


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Porto, 20/02/2024

(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
João Ramos Lopes
Lina Castro Baptista
Fernando Vilares Ferreira
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[1] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 163.
[2] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2020, Reimpressão, pp. 567/568.