ARRESTO
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
MASSA INSOLVENTE
Sumário


I - O arresto pode também servir para acautelar os efeitos da impugnação pauliana ou declaração de nulidade ao abrigo do disposto no art. 605 do Código Civil, se o devedor alienou bens a terceiro.
II - Se for intentado como preliminar da ação de impugnação pauliana, o requerente tem o ónus de alegar os factos que tornem provável a respetiva procedência (art. 392/2 do CPC); todavia, se já tiver sido intentada a ação, o requerente fica dispensado de alegar e provar os factos reveladores da viabilidade da ação e não tem que provar a impossibilidade de satisfação do seu direito de crédito por parte do devedor nem de provar o risco de que o adquirente do bem transmitido o faça sair do seu património – o risco de perda da garantia patrimonial é de aferir face ao património do devedor transmitente e não ao do adquirente.
III - Face ao disposto no art. 127/3, 1.ª parte, do CIRE, regulando-se a impugnação pauliana, na hipótese de insolvência do devedor, como um instrumento sem desvios face à sua estrutura típica, o credor impugnante, uma vez julgada procedente a impugnação pauliana, não está limitado ao exercício de uma pretensão à restituição do bem à massa insolvente e pode executar o bem no património do terceiro obrigado.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1). Banco 1..., CRL, intenta o presente procedimento cautelar, por apenso à ação que, sob a forma comum, corre termos pelo Juízo Central Cível e Criminal ... sob o n.º 1615/17...., contra AA e BB, pedindo que, na procedência, seja decretado o arresto da fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito em ..., ..., freguesia e concelho ..., inscrito na matriz sob o n.º ...68 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o art. ...80.
Alega, em síntese, que é titular de um crédito, no montante de € 1 997 815,42, sobre CC, pai dos requeridos, decorrente de um aval por este prestado numa livrança de que é portadora.
Esse CC, então proprietário da identificada fração autónoma, doou a mesma aos requeridos, através de escritura pública lavrada no dia 4 de janeiro de 2017.
A requerente impugnou essa doação, através da ação a que o presente procedimento cautelar foi apensado, proposta contra o doador e os donatários, na qual pediu que lhe seja reconhecido o direito de executar a fração no património destes últimos.
Foi declarada a insolvência do doador e, na sequência, o administrador da insolvência propôs ação destinada à resolução da doação em benefício da massa insolvente, o que levou a que fosse decretada a suspensão da instância na ação de impugnação proposta pela requerente.
Acontece que o administrador da insolvência desistiu do pedido de resolução da doação em benefício da massa insolvente, pelo que a ação de impugnação está em condições de prosseguir os seus termos.
O tempo que durou a suspensão da ação de impugnação, somado ao tempo que previsivelmente será necessário para a decisão, faz temer que a propriedade da fração autónoma saia da esfera jurídica dos donatários, tanto assim que a mesma foi recentemente penhorada em ação executiva que contra eles foi proposta pelo Banco 2..., SA.

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2) Sobre o requerimento, foi proferido despacho de indeferimento liminar, com a seguinte fundamentação (transcrição):
“A requerente veio deduzir o presente procedimento cautelar especificado de arresto, invocando a existência de um crédito elevado a seu favor e o receio de perder a garantia patrimonial do mesmo.
Cumpre apreciar da admissibilidade da presente providência cautelar, aferindo da existência de fundamento para o indeferimento do requerimento inicial, ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.º 1, do CPC.
Vejamos.
Pode a urgência na tutela de um determinado direito não se compadecer com o tempo que decorre entre a propositura da ação e o decretamento de uma sentença definitiva. Face a uma tal situação, o autor pode recorrer a um meio processual com carácter de urgência que permita salvaguardar o seu interesse e a utilidade da decisão que venha a ser proferida, harmonizando de forma razoável os interesses da celeridade e da segurança jurídica.
Concretamente, o regime jurídico da providência cautelar de arresto encontra-se previsto nos artigos 619.º a 622.º do CC e 391.º a 369.º do CPC.
Nos termos dos artigos 619.º, n.º 1, do CC e 391.º, n.º 1, do CPC, o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.
O requerente do arresto deve deduzir os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado (cf. artigo 392.º, n.º 1, do CPC).
Estamos perante uma providência cautelar de natureza conservatória que visa proteger a expectativa do credor relativamente à garantia geral da satisfação do seu crédito, constituída pelo património do devedor, à luz do artigo 601.º do CC, mediante a apreensão judicial de bens do devedor, tidos como suficientes para assegurar a satisfação patrimonial do crédito invocado (cf. artigos 391.º, n.º 2, 393.º, n.º 2 e 795.º, n.º 1, todos do CPC).
Sendo o arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor, o requerente, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduz ainda os factos que tornem provável a procedência da impugnação (cf. artigo 392.º, n.º 2, do CPC).
No caso presente, importa ter presente, antes de mais, que os autos principais de que estes constituem apenso se encontram suspensos por força do preceituado no artigo 127.º do CIRE.
Ora, não podendo obter-se, por via do arresto, o que o legislador pretendeu evitar com a consagração da norma prevista no artigo 127.º do CIRE, entende este Tribunal que o presente procedimento cautelar foi intentado de forma precoce.
Mais importa notar que o presente procedimento cautelar foi proposto na pendência da ação de impugnação pauliana de que estes autos constituem apenso, visando acautelar os efeitos da mesma, por forma a evitar posteriores transmissões do bem objeto daquela.
A impugnação pauliana constitui uma forma de garantia geral das obrigações, reconduzindo-se, em síntese, à faculdade que a lei concede aos credores de atacarem judicialmente certos atos válidos, ou mesmo nulos, celebrados pelos devedores em seu prejuízo.
No que concerne aos efeitos da impugnação pauliana em relação ao credor, o artigo 616.º, n.º 1, do Código Civil, preceitua que, julgada procedente a impugnação, tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.
Permitindo ao credor a agressão direta do património do terceiro, a impugnação pauliana possui um carácter pessoal ou obrigacional, aproveitando os seus efeitos apenas ao credor que a tenha requerido (cf. artigo 616.º, n.º 4, do CC).
Mesmo num caso em que o negócio em crise – o ato de transmissão do bem para terceiros - não tenha sido alvo de resolução em benefício da massa insolvente, é de sufragar o entendimento vertido, entre outros, no acórdão da Relação do Porto de 22.06.2021, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode ler:
“Tendo o devedor sido declarado em estado de insolvência, na pendência de uma ação de impugnação pauliana, a ficção traduzida na execução dos bens alienados como se eles tivessem retornado ao património do devedor e não se mantivessem na titularidade do adquirente não se justifica face aos interesses que cumpre acautelar na execução universal dos credores.
Nessa linha de raciocínio, o terceiro adquirente está obrigado a restituir à massa insolvente os bens/crédito transmitidos pelo devedor, e o credor deve reclamar o seu crédito no processo de insolvência, em concorrência com os demais credores, nos termos legais.”
No mesmo sentido, pode ler-se no acórdão do STJ de 11.07.2013, igualmente disponível em www.dgsi.pt:
“Se os executados são declarados insolventes na pendência de ação de impugnação pauliana movida pelo exequente, por razões de justiça material e respeito pela execução universal que a insolvência despoleta, os bens alienados, objeto da ação de impugnação pauliana julgada procedente, devem, excecionalmente, regressar ao património do devedor, para, integrando a massa insolvente, responderem perante os credores da insolvência.
Sendo, deste modo, o crédito do exequente, autor triunfante na ação de impugnação pauliana, tratado em pé de igualdade com os dos demais credores dos ora insolventes, assim se acolhendo a lição de Pires de Lima e Antunes Varela quando afirmam que “o credor pode ter interesse na restituição dos bens ao património do devedor, se a execução ainda não é possível ou se há falência ou insolvência, caso em que os bens revertem para a massa falida.”
De harmonia com tal entendimento, o acórdão da Relação de Guimarães de 30.05.2018, citado pelo já aludido aresto da Relação do Porto, decidiu que deve ser determinada a reabertura do processo de insolvência com a apreensão e liquidação dos bens que foram objeto de uma ação de impugnação pauliana, julgada procedente.
Outra solução afrontaria de forma clamorosa os mencionados princípios – mormente, o princípio de satisfação igualitária dos credores (princípio par conditio creditorum) -, não se compaginando as normais consequências de uma impugnação pauliana no quadro específico de insolvência do devedor.
Trata-se, pois, de uma situação em que ocorre “a necessidade de ponderação de valores que impõem desvios significativos à estrutura típica da ação pauliana” (cf. já citado acórdão do STJ de 11.07.2013).
Donde, com a eventual procedência da ação de impugnação pauliana, o bem em causa deve ser apreendido para a massa insolvente.
Daqui decorre que o arresto requerido não surtirá o efeito pretendido, de acautelar o pagamento do crédito do requerente, o qual deve ser reclamado como acontece com todos os credores, nos termos do processo de insolvência.
Ademais, é de sublinhar que resulta da análise do processo principal - onde se mostram agora juntas certidões dos autos de insolvência -, que a aqui requerente, no processo de insolvência, ativamente procurou evitar a resolução em benefício da massa insolvente do negócio aqui impugnado, ou seja, procurou evitar precisamente a apreensão do bem para a massa.
Donde se extrai uma intenção perniciosa por parte da requerente.
Aliás, se decidiu procurar obstar à dita resolução, achou-se a requerente com a confiança de que obteria, através da ação de impugnação que intentou, a satisfação do seu crédito. Nada tendo alegado que permitisse justificar que tal confiança, entretanto, tenha ficado abalada.
Trata-se de uma conduta contraditória e abusiva, até, pois que apenas se pode explicar por visar um tratamento preferencial em face dos demais credores. Logo, procura obter um proveito ilegítimo.
Tais intenções não podem, entendemos nós, ser protegidas pelo nosso sistema jurídico.
Não podendo a tutela cautelar visar acautelar a posição de um credor numa situação como a presente, o que redundaria numa manifesta subversão das normas em apreço e do regime atinente às situações de insolvência.
O nosso sistema jurídico – enformado pelos princípios já acima mencionados – não pode ser permeável a tais perniciosas manobras, permitindo acautelar com arresto a satisfação de um credor em detrimento de outros.
Mais importa sublinhar que, no requerimento inicial do presente procedimento cautelar, o requerente estriba a sua pretensão, entre o mais, na demora dos autos principais. Sendo certo que parte dessa demora se deveu, precisamente, à impugnação da resolução por si efetuada nos autos de insolvência.
Por outro lado, verifica-se ainda que não foi alegada factualidade suficiente ao preenchimento dos requisitos do presente procedimento cautelar.
Ora, um dos requisitos do procedimento cautelar em apreço reside no justificado receio de perda da garantia patrimonial, o periculum in mora, que abrange qualquer causa idónea a provocar num homem normal o receio de perda da garantia patrimonial do seu crédito (cf. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, pág. 125).
Como é sabido – e ressaltado pela doutrina e jurisprudência -, o preenchimento do aludido requisito não se basta com um receio subjetivo, carecendo antes de estribar-se em factos concretos e objetivos.
Como ensina Abrantes Geraldes, “o critério de avaliação deste requisito não deve assentar em juízos puramente subjetivos do juiz ou do credor (isto é, em simples conjeturas, como refere Alberto dos Reis), antes deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata como fator potenciador da eficácia da ação declarativa ou executiva”, sendo, para tanto, insuficiente a “simples recusa de cumprimento da obrigação, desligada de outros fatores relacionados com a perda da garantia patrimonial” (em “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV vol., págs. 193 e 194).
No mesmo sentido, vejam-se ainda, entre outros, Lebre de Freitas (em “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, págs. 119 e 120) e Antunes Varela (em “Das Obrigações em Geral”, vol. II, págs. 463 a 465).
Acresce ainda que o requerente do arresto, relativamente ao(s) terceiro(s) adquirente(s), tem de alegar e provar o perigo de desaparecimento do bem do património desse(s) terceiro(s).
Perscrutando o caso sub judice, verifica-se que, no requerimento inicial não é alegado qualquer facto objetivo e concreto de onde, a provar-se, possa extrair-se um juízo positivo sobre o alegado perigo, ou seja, qualquer facto integrativo do justo receio da prática, pelos terceiros adquirentes, de atos de alienação e/ou oneração do bem doado e que o requerente pretende vir a executar no património destes.
De facto, nenhum ato ou conduta lhes é imputável de onde se extraia uma qualquer pretensão de onerar ou transmitir o bem em causa.
O requerimento inicial limita-se a desfiar meras desconfianças de carácter subjetivo, sem qualquer substrato fáctico, mormente estribadas no mero decurso do tempo, e no facto de os terceiros adquirentes no bem terem atingido há pouco a maioridade, detendo, por isso, capacidade jurídica para decidirem livre e autonomamente o destino do seu património.
Refere o requerente que, estando os mesmos a iniciar a sua vida adulta, é muito provável que procurem tirar proveito da atual conjuntura do setor imobiliário e procurem vender o imóvel.
Contraditoriamente, porém, afirmam que “a conservação do património pessoal sempre foi o que moveu os pais dos requeridos”, tanto mais que tal fração constituía a casa de morada de família do agregado familiar do devedor e nela continuou a residir com a sua mulher e seus filhos (cf. artigos 35.º e 36.º do requerimento inicial).
Ora, em suma, o receio de dissipação é genérica e conclusivamente alegado, apenas se tecendo especulativas hipóteses, desacompanhadas de factos objetivos de onde se conclua pela real intenção de transmitir, isto é, de onde se conclua pela iminente ou provável alienação.
Concluindo-se que a matéria factual constante dos autos se revela manifestamente insuficiente para dar como preenchidos os requisitos legais da providência cautelar requerida, impõe-se indeferir a mesma, pois que é já possível antever a inequívoca improcedência da providência cautelar apresentada.
Assim, além do demais acima exposto, o simples receio - não indiciado por factos concretos - é manifestamente insuficiente para alicerçar a tutela requerida, pelo que, atenta a sua manifesta falta de viabilidade, não estão reunidas as condições para que o presente procedimento cautelar prossiga.”
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3) Inconformada, a Requerente interpôs o presente recurso em que formulou as seguintes conclusões (transcrição):
“1.ª - Conforme resulta da certidão junta aos autos em 31.10.2023, na ação de resolução do negócio em benefício da massa insolvente n.º 514/18.... foi já proferida sentença, transitada em julgado em 10.04.2023, a determinar a extinção dessa instância, não havendo por isso justificação para a manutenção da suspensão dos autos principais, cuja cessação foi já peticionada pela recorrente em março de 2023.
2.ª - Por conseguinte, e nessa linha de entendimento, considera a recorrente que nada obstava, nem obsta, à pendência e apreciação deste procedimento cautelar, afigurando-se por isso incorreta a conclusão retirada pela Mm.ª Juiz a quo de que o presente procedimento cautelar foi instaurado de forma precoce.
3.ª - Em 27.02.2023, o administrador de insolvência, de livre e espontânea vontade, em representação dos interesses da massa insolvente, desistiu dos pedidos formulados na referida ação n.º 514/18.... (i.e. do pedido de declaração de resolução em benefício da massa insolvente de CC do negócio de doação da fração autónoma ... e da condenação dos réus a entregar à massa insolvente essa fração), com a consequente extinção do direito que aí pretendia fazer valer. - vd. n.º 2 do art.º 286.º e n.º 1 do art.º 285.º do CPC ex vi n.º 1 do art.º 17.º do CIRE
4.ª - No âmbito dessa ação, em 20.03.2023, foi proferida sentença homologatória dessa desistência do pedido, devidamente transitada, a qual constitui caso julgado material - vd, neste sentido, por exemplo, acórdão TRG de 16.05.2016, proc. n.º 275/17.6T8PTL.G1 in www.dgsi.pt
5.ª - Em correspondência com essa decisão judicial, em 18.09.2023, no âmbito do aludido processo de insolvência n.º 514/18...., concretamente no apenso “F” - de apreensão de bens -, por decisão também já transitada em julgado, o tribunal determinou a exclusão da fração autónoma ... em causa do auto de apreensão de bens, deixando assim tal fração de integrar a aludida massa insolvente.
6.ª - O caso julgado material tem força obrigatória no processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material objeto do litígio, daí que o entendimento do tribunal a quo - no sentido de que mesmo com a eventual procedência da ação de impugnação pauliana instaurada pela ora recorrente, a fração autónoma ... deverá ser apreendida para a referida massa insolvente – não é aceitável pois que viola frontalmente o caso julgado, bem como os princípios da preclusão do direito e da estabilidade das decisões judiciais.
7.ª - Pelo exposto, salvo o devido respeito, contrariamente ao entendimento da Mm.ª Juiz a quo, consideramos que o presente procedimento cautelar, proposto na pendência da ação de impugnação pauliana de que estes autos constituem apenso, visando acautelar os efeitos da mesma, por forma a evitar posteriores transmissões do bem objeto daquela, permitirá obter tal desiderato, razão pela qual não se afigura ser manifesta a improcedência do pedido formulado pela requerente/ recorrente como concluiu a Mmª Juiz a quo.
8.ª - De resto, atentas as decisões judiciais referidas nas supra 4.ª e 5.ª conclusões, certo é que a fração autónoma ...” em causa, não integrando mais, em definitivo, a massa insolvente, não responde, nem pode responder pelas dívidas da insolvência, daí que não se vislumbre qualquer atuação ou intenção perniciosa por parte da requerente /recorrente, que mais não faz do que ativa, legítima e legalmente pugnar pela defesa dos seus interesses. - Cf. art.ºs 616.º, n.ºs 1 e 4 do Cód. Civil.
9.ª - A presente providência de arresto foi requerida contra o adquirente de bens do devedor, cuja aquisição foi judicialmente impugnada nos autos principais de que estes constituem apenso, pelo que a requerente / recorrente tinha apenas que alegar e sumariamente provar factualidade integradora da probabilidade da existência do seu crédito sobre o devedor CC [transmitente da fração autónoma em causa] e do justo receio de perda da garantia patrimonial relativamente ao mesmo e não já também quanto ao terceiro adquirente, o qual apenas é demandado na lide cautelar para que conserve intacto o bem adquirido e o entregue quando lhe for pedido, para eventual execução - vd., neste sentido, Ac. TRP de 17/09/2013, proc. n.º 643/12.0TBAMT-B.P1 (relator Manuel Pinto dos Santos) e Ac. do STJ de 29/05/2007 (relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt. - vd. arts. 619.º, n.º 2 do CC e 392.º, n.º 2, do CPC
10.ª - Embora a Mm.ª Juiz a quo não se pronuncie sobre o requisito da probabilidade da existência do crédito da requerente, presumindo-se por isso que concluiu pela verificação do mesmo, sempre se dirá que este se mostra preenchido, pois que a recorrente alegou ser titular de um crédito de €1.997.815,42 sobre o devedor CC, já reclamado e reconhecido no âmbito do processo de insolvência n.º 514/18...., do juiz ..., do Juízo de Comércio ....
11.ª - A requerente / recorrente alegou também um conjunto de factos objetivos donde se poderia inferir, de forma fundamentada, o justo receio de perda da garantia patrimonial, designadamente: a) a dissipação de bens do devedor e o propósito deste em não cumprir[;] b) a débil situação económica e financeira do devedor[;] c) a declaração de insolvência do devedor[;] d) a inexistência de quaisquer outros bens suficientes para assegurar o pagamento do crédito da requerente[;] e) os esforços encetados pelos réus na ação principal para protelar o início da mesma e, pois, o recebimento do crédito pela requerente, tendo já decorrido 6 anos desde a propositura da ação principal, sem que ainda se tenha iniciado a fase de discussão e julgamento[;] f) o facto de os terceiros adquirentes da fração autónoma em causa, ora requeridos/recorridos, serem filhos do devedor, estando perfeitamente conscientes de que tal fração lhes foi doada pelos seus pais para conservação do património familiar e evitar que credores pessoais dos seus pais a executem para serem ressarcidos dos seus créditos, estando igualmente conscientes de que a procedência da ação principal pode impedir um tal objetivo[;] g) o facto de nada obstar a que fração (que é garantia do crédito da requerente) possa ser transmitida a terceiros e por tal efeito ver-se a requerente numa situação fragilizada para lograr os efeitos úteis pretendidos com tal ação[;] h) o facto de sobre a fração incidir agora uma penhora realizada no âmbito do processo executivo n.º 444/20...., movida pelo “Banco 2..., S.A.”, correndo, por isso, a requerente sério risco de a fração em causa vir a ser vendida no âmbito dessa execução sem o seu conhecimento[;] i) a fração em causa poder vir a responder por obrigações não cumpridas assumidas pelos requeridos, com total perda dos efeitos úteis da ação principal visados acautelar com este procedimento cautelar.
12.ª - Assim, salvo o devido respeito, não pode perfilhar-se o entendimento da Mm.ª Juiz a quo, impondo-se, pois, que se considere alegada factualidade suficiente ao preenchimento dos requisitos do presente procedimento cautelar, o que sempre determinaria o prosseguimento dos autos.”
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4)  O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado neste Tribunal ad quem.
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II.
5 As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, está em causa, no presente recurso, saber se, ao indeferir liminarmente o requerimento inicial com os apontados fundamentos, o Tribunal a quo incorreu em erro no enquadramento jurídico dos factos, o que pressupõe o tratamento das seguintes questões: alegação de factos bastantes para substanciarem o periculum in mora; efeitos da declaração de insolvência do devedor na ação de impugnação pauliana proposta pelo credor; possibilidade de ser requerido e decretado o arresto de bens durante a suspensão da instância na ação cujo efeito útil a providência visa acautelar.
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III.
6 1) Na resposta às questões enunciadas há que considerar os factos que resultam do relatório que constitui a Parte I. e ainda os seguintes, que resultam do iter processual da ação a que o presente procedimento foi apensado, a cuja consulta procedemos através da aplicação informática de apoio à atividade dos tribunais (Citius):
1. No dia 11 de dezembro de 2017, a ora Recorrente intentou contra CC, DD, AA e BB, a ação declarativa, sob a forma comum, que corre termos pelo Juízo Central Cível e Criminal ... sob o n.º 1615/17...., formulando os seguintes pedidos: (i) a declaração de nulidade do contrato, celebrado através de escritura pública de 4 de janeiro de 2017, pelo qual o primeiro Réu, com o consentimento da 2.ª Ré, doou ao 3.º e ao 4.º Réus, a fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ... do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito em ..., ..., freguesia e concelho ..., inscrito na matriz sob o n.º ...68 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o art. ...80; subsidiariamente, (ii) a impugnação desse contrato, com o consequente reconhecimento do direito da Autora executar a identificada fração no património dos 3.º e 4.º Réus, na medida do seu interesse, cf. ref. Citius ...70, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
2. Depois da contestação dos Réus, foi apresentada certidão da sentença proferida, no dia 13 de julho de 2018, no processo n.º 514/18...., do Juízo do Comércio ..., em que foi declarada a insolvência de CC, cf. referência Citius ...79, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
3. Nos autos da ação n.º 1615/17...., por requerimento apresentado no dia 24 de julho de 2018, a ora Recorrente desistiu do pedido formulado na referida ação a título principal (declaração de nulidade do contrato, celebrado através de escritura pública de 4 de janeiro de 2017), cf. referência Citius ...38, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
4. A desistência foi homologada por sentença proferida no dia 4 de outubro de 2018, cf. referência Citius ...56, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
5. O administrador da insolvência nomeado no processo n.º 514/18.... apresentou requerimento, no dia 12 de março de 2019, a dar conhecimento de que procedeu à resolução, em benefício da massa insolvente do referido CC, do contrato de doação referido em 1., cf. referência Citius ...61, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
6. No dia 2 de maio de 2019, foi proferido o seguinte despacho: “Considerando o disposto nos artigos 125.º e 127.º, n.º 2, do CIRE, os presentes autos apenas devem prosseguir caso proceda a eventual impugnação dos atos de resolução praticados pelo Senhor Administrador da Insolvência do Réu CC”, cf. referência Citius ...00, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
7. No dia 16 de julho de 2019, o administrador da insolvência nomeado no processo n.º 514/18.... veio informar que intentou ação de resolução em benefício da massa insolvente do referido contrato de doação (apenso I dos autos insolvência), cf. referência Citius ...61, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
8. No dia 31 de outubro de 2023, foi junta certidão da sentença proferida na ação identificada no ponto anterior a homologar a desistência do pedido que nela havia sido formulado pelo administrador da insolvência, cf. referência Citius ...20, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
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7 2).1. Como se sabe, o arresto consiste num meio de preservação da garantia patrimonial que ao credor é dada pelo património do devedor (arts. 601 e 619/1 do Código Civil). Tem, portanto, uma função preventiva, correspondendo-lhe o procedimento cautelar especificado previsto nos arts. 391 e ss. do CPC. Nessa medida, posto que o procedimento cautelar “é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado”, conforme proclama o n.º 1 do art. 364 do CPC, o arresto destina-se a garantir o efeito útil da ação creditícia, conseguindo-o, em caso de procedência desta, através da sua conversão em penhora e subsequente venda na ação executiva (art. 762 do CPC). Fica assim assegurada a execução do património do devedor, acautelando-se “a utilidade da decisão de tutela definitiva” (Miguel Teixeira de Sousa, “As providências cautelares e a inversão do contencioso”, pp. 3-4, disponível no Blog do IPPC). A providência consiste na apreensão judicial de bens do devedor cujo valor se mostre suficiente para assegurar a satisfação patrimonial do crédito invocado, bens esses que são confiados a um depositário que os guarde e administre em nome do tribunal, ficando obrigado a prestar contas.
Pode afirmar-se que o arresto se traduz num “remédio de tutela indireta do crédito” (Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 223): não satisfaz diretamente o crédito invocado pelo requerente da providência; apenas conserva os bens que, através da execução patrimonial contra o devedor, garantem o seu cumprimento.
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8 2).2. Como resulta do que antecede, são dois os requisitos para que o arresto possa ser decretado: a probabilidade de existência de um direito de crédito e o justo receio de perda da garantia patrimonial desse direito.
9 Assim, nos termos do art. 392, o requerente do arresto deve, desde logo, alegar os factos que tornem provável a existência do seu direito de crédito sobre o requerido (fumus boni iuris), salvo se esses factos já tiverem sido invocados na ação principal, de que constitui apenso (art. 364/3 do CPC). Não se exige, portanto, a prova da verificação efetiva do crédito, mas apenas a probabilidade da constituição do mesmo, como também não se exige que a inerente obrigação seja certa, exigível e líquida. A propósito, RE 17.07.2008, 1777/08-2; RL 10.12.2009, 86/05.1TCFUN-B.L1-7 e RL 13.07.2010, 96/10.TVLSB-B.L1-2. Na doutrina, António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV, Coimbra: Almedina, 2000, p. 194; Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2015, p. 14; Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares cit., p. 228.
10 Por outro lado, o requerente deve também alegar factos que substanciem um “fundado receio de perda da garantia patrimonial do crédito”, o que corresponde ao periculum in mora. Este requisito “deve ser apreciado objetivamente, ou seja, independentemente de qualquer valoração da conduta do devedor” (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 598). No mesmo sentido, Marco Carvalho Gonçalves (Providências Cautelares cit., p. 230), depois de esclarecer que estão em causa “atos de ocultação, disposição, alienação ou oneração do património do devedor”, escreve que não é exigível “qualquer conduta dolosa ou fraudulenta nesse sentido.”
O mesmo autor acrescenta que “as razões de facto devem ser fundadas em elementos objetivos, atinentes à consistência económica do objeto da garantia, e subjetivos, revelados pelo comportamento processual e/ou extraprocessual do devedor.” Acrescenta ainda (p. 233) que “qualquer circunstancialismo que, justificada e plausivelmente faça perspetivar o perigo de se tornar inviável ou altamente precária essa realização, é passível de conduzir ao decretamento da providência.”
Trata-se, por outro lado, de um “juízo dirigido para o futuro”, sustentado em critérios de probabilidade. Dito de outra forma, o credor arrestante não tem de demonstrar a existência de um receio certo, mas antes de um receio provável.
Esse receio tem, no entanto, de ser justo, o que sucede quando, perante a concreta situação, “qualquer pessoa, de são critério, em face do modo de agir do devedor, e colocada no seu lugar [o do credor], também temeria vir a perder o seu crédito” (RL 12.06.2012, 14067/11.2T2SNT-A.L1-1). É assim manifestamente insuficiente para o decretamento da providência “a mera alegação de hipóteses, suspeições, conjeturas ou considerações puramente subjetivas quanto ao receio de perda da garantia patrimonial do crédito” (Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares cit., p. 232).
Por outro lado, na verificação deste requisito há que considerar diversos fatores, tais como “o montante do crédito, a maior ou menor capacidade de solvabilidade do devedor, a forma da sua atividade, a sua situação económica e financeira, a natureza do seu património, a dissipação ou extravio de bens, a ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de não cumprir, o próprio montante do crédito” (RP 09.01.2003, 0232328).
Nesta perspetiva, de acordo com a sistematização de Marco Carvalho Gonçalves, têm vindo a ser considerados, entre outros, como fatores admissíveis para a demonstração do receio de perda da garantia patrimonial do direito de crédito os seguintes:
– o montante elevado do crédito, associado à falta de liquidez do devedor;
– a suspeita de fuga do devedor;
– a dificuldade considerável ou acrescida na recuperação do crédito;
– o facto de o único bem conhecido do devedor ser um crédito em dinheiro que este detém sobre o próprio credor;
– a circunstância de o património do devedor se encontrar onerado para garantia de um passivo elevado;
– o facto de o devedor estar acumulado de dívidas, não lhe sendo conhecido qualquer património;
– a redução acentuada do património do devedor, associada à existência de dívidas de valor superior ao dos seus ativos;
– a insuficiência do património conhecido do devedor, aliada ao facto de este ter abandonado a atividade profissional que constituía a sua única fonte de rendimento;
– a desproporção acentuada entre o montante do crédito exigido e o valor do património conhecido, sendo este facilmente ocultável;
– o fundado receio de ocultação de bens do devedor;
– o receio de subtrações indiscriminadas (por exemplo, vendas ou prodigalidades), designadamente a existência de atos simulados de venda ou de oneração de bens, assim como a transmissão gratuita de bens a favor de terceiros;
– a alienação de determinados bens ou a transferência dos mesmos para o estrangeiro, ficando o património do devedor reduzido a bens que, pela sua natureza, dificilmente encontrarão um comprador em sede de venda judicial;
– a alienação de determinados bens a um terceiro, encontrando-se o devedor a negociar com aquele a venda do único bem que ainda subsiste no seu património, sendo o devedor e o terceiro conhecidos no meio empresarial como não sendo titulares de quaisquer bens penhoráveis;
– a alienação do único património conhecido do devedor, no seguimento de uma sentença condenatória, face à previsível execução da sentença;
– a tentativa de alienação do património em prejuízo dos credores, associada à exiguidade desse património;
– a pendência de diversas execuções contra o devedor e/ou a oneração do seu património com penhoras;
– o risco de a sociedade devedora se preparar para encerrar a sua atividade, pretendendo os seus sócios constituir uma nova sociedade, para não pagar aos credores;
– o risco concreto de insolvência do devedor; ou
– a frustração de contactos com o devedor, por facto que lhe seja imputável, associada ao risco de dissipação do seu património, para que o arresto seja admissível, não relevam apenas as atitudes predeterminadas, intencionais, dolosas, por parte do devedor, no sentido de frustrar a realização do crédito, nomeadamente alienando ou dissipando bens do seu património, a fim de os subtrair à ação do credor.
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11 2).3. O arresto pode também servir para acautelar os efeitos da impugnação pauliana ou declaração de nulidade ao abrigo do disposto no art. 605 do Código Civil, se o devedor alienou bens a terceiro. Neste caso, deve ser requerido contra o adquirente dos bens (art. 619/2 do Código Civil). Se for intentado como preliminar da ação, o requerente tem o ónus de alegar os factos que tornem provável a respetiva procedência (art. 392/2 do CPC)[1]; todavia, se já tiver sido intentada a ação, o requerente fica dispensado de alegar e provar os factos reveladores da viabilidade da ação e não tem que provar a impossibilidade de satisfação do seu direito de crédito por parte do devedor nem de provar o risco de que o adquirente do bem transmitido o faça sair do seu património – o risco de perda da garantia patrimonial é de aferir face ao património do devedor transmitente e não ao do adquirente. Neste sentido, STJ 28.11.2000 (00A3813), relatado pelo Juiz Conselheiro José da Silva Paixão, e RL 28.05.2015 (3778/14.0T8GMR-B.G1), relatado pelo Juiz Desembargador Manuel Bargado. Na doutrina, Maria de Fátima Ribeiro (“Art. 619.º”, AAVV, José Carlos Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa: UCE, reimpressão, 2021, p. 739).
Conclui-se, assim, em STJ 8.02.2001 (00A3812), relatado pelo Juiz Conselheiro Ribeiro Coelho, que “[h]á, porém, razões para entender que nesta modalidade específica de providência a lei é menos exigente do que na generalidade dos restantes casos.
O nº 1 do art. 619º do CC condiciona o arresto comum à existência do justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito, o que faz recair sobre o credor o ónus de alegar e provar, com suficiente grau de probabilidade, que o crédito existe e que a sua efetivação prática, ou cobrança, corre risco se não for decretado o arresto. O art. 407º, nº 1 do CPC [= art. 392/2 do CPC de 2013] é espelho fiel deste encargo.
Mas o nº 2 daquele art. 619º estatui, de modo mais sumário, que o arresto pode ser requerido pelo credor contra o adquirente de bens do devedor, caso tenha sido judicialmente impugnada a transmissão.
Não se afirma aqui, designadamente, que esta segunda modalidade de arresto está condicionada à verificação da viabilidade da impugnação nem da necessidade da apreensão do bem transmitido para acautelamento da eficácia prática do direito de crédito invocado.
E o nº 2 do citado art. 407º confirma esta diferença, na medida em que, alargando a possibilidade de ser requerido o arresto aos casos em que ainda não tiver sido impugnada a aquisição - com o que excede aquela previsão do CC –, manda que nestes casos - e, naturalmente, só neles, ao contrário do que se passa na primeira hipótese visada – sejam deduzidos os factos que tornem provável a procedência da impugnação.
Nada disto tem lugar quando já tiver sido intentada a ação de impugnação, ficando o requerente dispensado de alegar e provar os factos reveladores da viabilidade desta, o que bem se compreende se atentarmos no regime especial que quanto ao ónus da prova consta do art. 611º do CC.
Nem tem que provar a impossibilidade de satisfação do seu direito de crédito por parte do devedor, nem tem que provar o risco de que o adquirente do bem transmitido o faça sair do seu património; o risco de perda da garantia patrimonial é de aferir face ao património do devedor transmitente – e não face ao do adquirente – e é evidenciado pela procedência da impugnação.
Caberá apenas ao requerente o encargo de demonstrar, sempre com atenção à menor exigência de certeza própria dos procedimentos cautelares, que é credor.”
Neste sentido, pode ver-se ainda RL 20.01.2015 (618/13.1TCFUN-B.L1-7), relatado pela Juíza Desembargadora Maria do Rosário Morgado, no qual se escreve que “a intervenção do adquirente tem a ver com a faculdade concedida ao credor de obter a declaração de ineficácia dos atos de transmissão dos bens do devedor que se poderia vir a revelar-se inútil, caso não fosse possível pedir a sua prévia apreensão. Este é demandado na lide cautelar para que conserve intacto o bem adquirido e o entregue quando lhe for pedido, para eventual execução. São, portanto, apenas os pressupostos da impugnação da transmissão, cuja alegação e prova sumária se reclama do requerente do arresto, no que se refere ao adquirente do bem.”
Na doutrina, pronuncia-se expressamente neste sentido Marco Carvalho Gonçalves (Providências Cautelares cit., p. 240) quando escreve que: “(…) afigura-se que o requerente do arresto não carece de alegar factos que demonstrem a existência de um periculum in mora quanto ao terceiro/transmissário. É que o terceiro/transmissário deve ser demandado, conjuntamente com o devedor, em litisconsórcio necessário natural, não porque o credor tenha, quanto a ele, qualquer justo receio de extravio, dissipação ou ocultação do bem objeto de transmissão, mas apenas para assegurar que esse bem seja conservado intacto no seu património, garantindo-se, dessa forma, a ineficácia de quaisquer atos subsequentes de disposição do bem. De resto, o periculum in mora resulta demonstrado pelo facto de o devedor ter transmitido o seu património a um terceiro, diminuindo ou inutilizando, dessa forma, a garantia patrimonial do direito de crédito de que o requerente se arroga titular.”
12 Por outro lado, neste caso, o procedimento cautelar de arresto pressupõe a existência de duas ações principais – uma ação de cobrança de dívida e uma ação declarativa para impugnação da validade ou da eficácia do ato de transmissão do bem objeto de arresto (RE 19.12.2013, 184/13.8TBSRP-A.E1; RL de 10.05.2018, 2738/15.9T8OER-A.L1). Assim, se as duas ações forem propostas conjuntamente, sendo nelas demandados, em coligação, todos os réus, pelo facto de existir uma relação de prejudicialidade ou de dependência entre os pedidos (art. 36/1), o procedimento cautelar deve ser apensado aos autos desse processo principal (art. 364/2). Diferentemente, se as duas ações foram propostas em separado, o procedimento cautelar de arresto deve ser apensado à ação de impugnação da transmissão, por força do disposto no art. 364/2 (RL 19.10.2006, 6767/2006-2), sem prejuízo da possibilidade de qualquer uma das partes requerer a apensação dessas duas ações, ao abrigo do art. 267, pelo facto de se encontrarem preenchidos os pressupostos de admissibilidade da coligação. Ressalva-se, no entanto, a possibilidade de o crédito estar incorporado num documento com força executiva, permitindo assim que o credor lance mão da ação executiva sem prévia necessidade de obter uma sentença condenatória.
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13 2).4. As considerações que antecedem permitem-nos a resposta à 1.ª questão: como resulta evidente, no requerimento inicial foram alegados factos suficientes para substanciarem a afirmação do justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito da Recorrente.
Com efeito, estamos perante um arresto com o qual se pretende assegurar os efeitos úteis de uma ação de impugnação pauliana que está pendente. Nessa ação é alegado que o ato impugnado – uma doação feita a descendentes – foi levado a cabo com o objetivo de, mediante a retirada da identificada fração autónoma do património do doador, evitar que o credor obtenha a satisfação do seu crédito pelo produto da respetiva venda, o que já de si é suficiente para afirmar o periculum in mora.
A isto acresce que a declaração de insolvência do devedor evidencia que este não tem património que lhe permita cumprir para com o conjunto dos seus credores, o que adensa o juízo acabado de fazer.
Ainda que se entendesse que o periculum in mora deve ser demonstrado quanto ao terceiro transmissário, sempre teríamos de chegar à mesma conclusão: a pendência de uma ação executiva contra os transmissários, em que foi penhorada a fração que a Requerente pretende que seja arrestada, demonstra que há o perigo de a mesma desaparecer do património dos donatários, tornando assim inútil a impugnação.
Por estas razões, concluímos que, neste particular, assiste razão à Recorrente, havendo, assim, no despacho recorrido, um erro na subsunção da situação de facto ao conceito indeterminado de justo receio do art. 391/1 do CPC.
Acresce, por outro lado, que a Recorrente alegou, na ação de impugnação pauliana a que foi apensado o procedimento, que é titular de um direito de crédito sobre o doador decorrente de um aval por este prestado, o que equivale à afirmação de que o seu direito está incorporado num documento que serve de “abre-te Sésamo” da ação executiva (art. 703/1, c), do CPC), tornando, assim, desnecessário o seu prévio reconhecimento judicial.
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14 3).1. Passamos para a segunda questão, a qual pressupõe que se atente no disposto no art. 127 do CIRE, do seguinte teor:
“1. É vedada aos credores da insolvência a instauração de novas ações de impugnação pauliana de atos praticados pelo devedor cuja resolução haja sido declarada pelo administrador da insolvência.
2. As ações de impugnação pauliana pendentes à data da declaração da insolvência ou propostas ulteriormente não serão apensas ao processo de insolvência, e, em caso de resolução do ato pelo administrador da insolvência, só prosseguirão os seus termos se tal resolução vier a ser declarada ineficaz por decisão definitiva, a qual terá força vinculativa no âmbito daquelas ações quanto às questões que tenha apreciado, desde que não ofenda caso julgado de formação anterior.
3. Julgada procedente a ação de impugnação, o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do artigo 616.º do Código Civil, com abstração das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos.”
Fixam-se aqui três regras: no n.º 1, proíbe-se a propositura de ações de impugnação pauliana de atos cuja resolução haja sido declarada pelo administrador da insolvência; no n.º 2, determina-se a não apensação ao processo de insolvência e impede-se o prosseguimento das ações de impugnação pauliana pendentes em caso de resolução, a não ser que esta venha a ser declarada ineficaz por decisão definitiva, o que evidencia a subsidiariedade da impugnação pauliana relativamente à resolução; por fim, no n.º 3, delimitam-se os efeitos das ações de impugnação pauliana procedentes através de uma remissão para o art. 616 do Código Civil e determina-se que o crédito não será afetado por plano de insolvência ou de pagamentos.
No n.º 1 do art. 616 do Código Civil diz-se que “[j]ulgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.” No n.º 4 acrescenta-se que “[o]s efeitos da impugnação pauliana aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido.” Estas normas são aquelas em que, como escrevem Pires de Lima / Antunes Varela (Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 633), “[o] carácter pessoal da impugnação pauliana aparece afirmado especialmente.” Na primeira, “ao atribuir ao credor o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse”; na segunda, “não atribuindo aos outros credores quaisquer direitos sobre esses bens.”
Deste regime resultam ainda duas consequências: (i)) sacrificando o ato apenas na medida do interesse do credor impugnante, “mostra-se claramente que ele não está afetado por qualquer vício intrínseco capaz de gerar a sua nulidade, pois se mantém de pé, como ato válido, em tudo quanto excede a medida daquele interesse” (Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado cit., pp. 454-456); e (ii)) operando a impugnação apenas em relação ao credor impugnante, isso significa que ocorre apenas a relativa ineficácia de alienação para efeito do credor impugnante executar os bens alienados como se eles nunca tivessem saído do património do devedor. Note-se que não era esta a solução legal consagrada no art. 1044 do Código de Seabra, preceito onde se dizia que rescindido o ato ou contrato, revertem os bens alienados ao cúmulo dos bens do devedor, em benefício do credor”, o que levava alguns os autores a qualificarem a pauliana como ação anulatória e outros como ação revogatória ou rescisória.
No Código Civil vigente, o legislador optou por seguir o projeto elaborado por Vaz Serra (BMJ n.º 75, pp. 5 e ss.), para quem a impugnação pauliana não deveria ter por efeito a anulação ou a resolução das alienações feitas pelo devedor em prejuízo dos credores. Ela consiste antes numa ação pessoal destinada a fazer valer apenas um direito de crédito do autor: “o ato contra o qual esta ação se dirige não é nulo, mas válido, pois não tem qualquer vício interno que impeça a sua validade. Os credores só podem impugná-lo contra aqueles que, em consequência da má fé ou do locupletamento, podem dizer-se responsáveis para com eles – e isto é incompatível com a nulidade.” Em anotação ao Ac. do STJ de 13.10.77 (RLJ, 111.º, p. 154), o mesmo autor escreveu que “se fosse uma ação de anulação (ou, como alguns preferem dizer, uma ação real) o seu resultado seria a anulação do ato impugnado, de sorte que se destruiriam, com eficácia real, isto é, erga omnes, os efeitos, mesmo passados. O que não pode ser. O exercício da ação está subordinado a requisitos (má fé, locupletamento) que repelem aquele resultado. Se, por exemplo, o comprador vende de novo a coisa a terceiro, este só pode ser acionado no caso de má fé: a sua compra não cai, portanto, só porque cai a primeira, o que é justo, pois não há motivo para tratar o segundo comprador pior que o primeiro.
A ação pauliana é dada aos credores somente para obterem, contra terceiro, que procedeu de má fé ou se locupletou, a eliminação do prejuízo que sofreram com o ato impugnado. Daqui resulta o seu carácter pessoal ou obrigacional. O autor na ação exerce contra o réu um direito de crédito, o crédito de eliminação daquele prejuízo.”
Não restam, portanto, quaisquer dúvidas acerca do carácter vincadamente pessoal da ação pauliana. O impugnante é, salienta Manuel Henrique Mesquita (RLJ, 128.º, pp. 254-255), “o titular de um direito de crédito – o direito à restituição de determinado valor – perante o terceiro a quem o devedor alienou os bens, não podendo pôr em causa a validade do negócio de alienação, nem invocar qualquer direito real sobre os bens alienados.”
15 Não era assim a pauliana prevista no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo DL n.º 132/93, de 23.04, alterado pelo DL n.º 315/98, de 20.10: como o impugnante agia em benefício de todos os credores, a procedência da ação provocava uma efetiva restituição do bem à massa falida, conforme dispunha o art. 159 daquele diploma. Não se verificava uma restituição na medida do interesse do credor impugnante, mas sim na medida do interesse de todos os credores: o produto da venda era distribuído entre todos os credores, independentemente de quem havia requerido a impugnação do ato.
Se o bem em causa já não se encontrasse no património do seu adquirente, eram aplicáveis as regras dos números 2 e 3 do art. 616, revertendo, contudo, o valor a pagar à massa falida (Pedro Macedo, Manual de Direito de Falências, II, Coimbra: Almedina, 1968, p. 223). Isto implicava que, na impugnação coletiva, o pedido devesse ser o de declaração da ineficácia relativa do ato impugnado, com condenação na entrega dos bens à massa falida num determinado prazo (art. 159/1 e 2 do CPEREF), ou no pagamento de uma quantia, nos casos e termos dos n.ºs 2 e 3 do art. 616. Se a impugnação tivesse sido interposta por um credor antes da declaração de falência do devedor, mas a sua decisão final fosse proferida em momento ulterior a essa declaração, o tribunal devia efetuar uma convolação do pedido adequado aos efeitos da impugnação individual para uma sentença típica duma impugnação coletiva, sem que disso resultasse qualquer violação do disposto no art. 661 do Código de Processo Civil (João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Coimbra: Almedina, 2004, pp. 281-282).
O CPEREF foi, entretanto, revogado pelo DL n.º 53/2004, de 18.03, que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE). Neste último não consta, com ressalva do art. 127/3, qualquer regra especial relativa aos efeitos da impugnação pauliana, pelo que são aplicáveis as regras gerais previstas no art. 616, aproveitando a procedência da impugnação apenas ao credor impugnante. Sinal de que esta omissão resultou duma opção do legislador e não de qualquer esquecimento é, como nota João Cura Mariano (Impugnação Pauliana, cit., p. 250), o facto de no n.º 2 do art. 127, expressamente dedicado às ações de impugnação pauliana, se ter declarado que estas nunca seriam apensas ao processo de insolvência, quer já se encontrassem propostas, quer a sua proposição ocorresse ulteriormente à declaração de insolvência. Além disso, no n.º 3 do mesmo artigo, é feita uma referência explícita que aos efeitos desta ação é aplicável o disposto no art. 616.
16 Seguimos assim o entendimento de Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, pp. 248-229) quando conclui que, face ao regime vigente, “regulando-se (…) a impugnação pauliana na hipótese de insolvência do devedor como um instrumento livre de desvios à estrutura típica, o credor impugnante, uma vez julgada procedente a impugnação pauliana, deixa de estar limitado ao exercício de uma pretensão à restituição do bem à massa insolvente e pode executar o bem no património do terceiro obrigado.” Só não seria assim se, como na vigência do CPEREF, existisse a pauliana coletiva.
Esta leitura está em conformidade com a restrição imposta pelo n.º 4 do art. 616 do Código Civil, indiscutivelmente abrangido pela remissão do n.º 3 do art. 127 do CIRE, sendo feita pela maioria da jurisprudência e da doutrina.
Assim, pode ler-se em STJ 15.01.2019 (3134/14.0TBBRG.G1.S1), relatado pela Juíza Conselheira Graça Amaral, que “[o] regime da impugnação pauliana caracteriza-se, quanto aos efeitos da procedência da respetiva ação, enquanto direito pessoal de restituição, porquanto o ato visado não é afetado na sua validade intrínseca, apenas deixa de produzir efeitos em relação ao credor impugnante e só na medida do seu interesse, ou seja, uma vez satisfeito o direito do credor o ato impugnado permanece integralmente válido. Nesse sentido, os efeitos da impugnação aproveitam apenas o credor que a tenha requerido e, como decorrência lógica da inexistência de nulidade ou anulação do ato, isto é, atenta a preservação da validade “condicionada” do ato, não é possível falar de um “regresso” do bem alienado ao património do devedor, sendo que, igualmente, não deixa de existir o ónus que sobre esse bem entretanto se tiver constituído – cf. artigos 616.º e 617.º, ambos do Código Civil. (…) atenta a natureza da ação de impugnação pauliana, em caso de inexistência ou improcedência da ação de resolução por parte do administrador, não pode a procedência daquela assumir efeitos coletivos no sentido de beneficiar a massa insolvente.” No mesmo sentido, pode ler-se em STJ 19.12.2018 (930/13.0TVPRT.P1.S1), relatado pela Juíza Conselheira Catarina Serra, que “[a] resolução em benefício da massa visa a recuperação do bem ou valor em prol do coletivo dos credores enquanto a impugnação pauliana opera apenas em benefício do credor impugnante.”
Ainda no mesmo sentido, RC 1.03.2016 (631/15.4T8CBR-A.C1), relatado pelo Juiz Desembargador Emídio Santos, e RC 11.04.2019 (1542/13.3TBMGR-K.C1), relatado pelo Juiz Desembargador Barateiro Martins.
Na doutrina, para além de Catarina Serra, vide Luís de Carvalho Fernandes / João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado. Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) Anotado. Legislação Complementar, 2.ª ed., Lisboa: Quid Juris, 2013, p. 518), Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra: Almedina 2022, pp. 276-277), Marco Carvalho Gonçalves (Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Coimbra: Almedina, 2023, pp. 421-422), Fernando Gravato Morais (Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Coimbra; Almedina, 2008, pp. 43 e 199) e Francisco Mendes Correia (“Impugnação Pauliana, sob a Sombra da Resolução em Benefício da Massa”, AAVV, “V Congresso de Direito da Insolvência”, Coimbra: Almedina, 2015, pp. 129 e ss.).
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17 3).2. Como se percebe da exposição acabada de fazer, entendemos que procedem, nesta parte, as conclusões da Recorrente, enfermando o despacho recorrido de erro na interpretação da norma do art. 127/3, 1.ª parte, do CIRE.
Admitimos que esta solução pode não ser a mais conforme à natureza universal do processo de insolvência. Afigura-se, no entanto, que não é possível fugir-lhe, pois corresponde indiscutivelmente à que foi adotada pelo legislador. Ignorar isto seria incorrer no erro que é realçado por Lon Fuller, “Case of the Speluncean Explorers”, Harvard Law Review, Vol. 62, n.º 4, fevereiro de 1949.
De notar que o aresto do STJ de 11.07.2013, relatado pelo Juiz Conselheiro Fonseca Ramos, invocado no despacho recorrido, foi proferido perante uma hipótese de facto diferente da que é objeto do presente procedimento: tendo sido ali realizada uma doação de bem imóvel e estando pendente, no momento da procedência de impugnação pauliana, uma execução para pagamento de quantia certa contra os doadores, foram estes declarados insolventes. Trata-se de uma situação que, como nota Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência cit., pp. 250-251), “raramente se configura, uma vez que o credor opta, normalmente, por executar o bem no património do obrigado.” Analisando  aresto, a autora conclui que a decisão do STJ “não contraria diretamente o disposto no n.º 2 do art. 127, uma vez que a ação pendente dos autos era, não uma ação de impugnação pauliana (ação declarativa), mas uma ação de execução (a subsequente execução). Depois, (…) a execução não corria, como é habitual, contra o terceiro transmissário, mas contra os devedores / insolventes. Foi esta última circunstância que permitiu ao STJ convocar o disposto no art. 88 (onde se determina a suspensão das ações executivas que atinjam os bens integrantes da massa insolvente) e propiciou a restituição do bem ao património dos insolventes (à massa insolvente), convertendo a execução (singular) em curso numa execução universal ou em benefício de todos os credores[RC1] [AMVL2] .”
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18 4).1. Passamos para a última questão, em relação à qual pouco há a dizer.
A instância da ação de impugnação pauliana ficou suspensa, em observância do disposto no art. 127/2 do CIRE, até decisão da ação proposta pelo administrador da insolvência com vista ao exercício do direito potestativo de resolver, em benefício da massa, a doação impugnada.
Essa ação findou com a homologação, por sentença, da desistência do pedido, a qual tem como consequência a extinção do referido direito potestativo, deixando assim aberto o caminho para que a ação de impugnação pauliana prossiga os seus termos.
A suspensão da instância com fundamento na pendência de causa prejudicial cessa ipso facto, sem necessidade de decisão nesse sentido, quando esta estiver definitivamente julgada (art. 276/1, c), do CPC), o que pressupõe o trânsito em julgado da respetiva decisão (Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 560).
Desconhece-se, no entanto, se a sentença homologatória proferida na ação de resolução transitou em julgado (a certidão judicial remetida pelo Juízo do Comércio ... é omissa e o Tribunal a quo não teve o cuidado de pedir o seu complemento).
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19 4).2. O acabado de referir não é, porém, decisivo: ainda que a instância da ação de impugnação esteja suspensa, a Recorrente pode socorrer-se do procedimento cautelar que for adequado à salvaguarda do seu efeito útil, por força do disposto no art. 275/1 do CPC.
Neste sentido, é clara lição de Miguel Teixeira de Sousa (Código de Processo Civil Online, CPC: art. 130.º a 361.º, Versão de 2023/10, pp. 161-162, disponível no Blog do IPPC): “(a) Durante a suspensão da instância só podem ser praticados, pelo tribunal ou pelas partes, atos urgentes – que são, neste contexto, os atos destinados a evitar um “dano irreparável” (n.º 1 1.ª parte; tb art. 137.º, n.º 2). (b) Apesar da suspensão da instância é permitido realizar, p. ex., a produção antecipada da prova (art. 419.º s.) e a citação urgente (art. 226.º, n.º 4, al. f), e 561.º) e, naturalmente, a própria propositura destes processos, como é o caso dos procedimentos cautelares (art. 363.º, n.º 1).” No mesmo sentido, António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Almedina, 2018, p. 319.
Deste modo, também neste particular o despacho recorrido enferma de erro na subsunção da situação de facto, procedendo as conclusões da Recorrente.
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20 5).1. Respondidas as questões enunciadas, concluímos que o recurso deve proceder in totum com a consequente revogação do despacho recorrido e a substituição da decisão nele plasmada por outra a determinar que o procedimento cautelar prossiga os seus termos.
Não havendo norma que preveja isenção (art. 4.º/2 do RCP), o presente recurso está sujeito a custas. A responsabilidade pelo seu pagamento deve ser fixada nesta sede: art. 607/6, ex vi do art. 663/2.
No art. 527/1 diz-se que “[a] decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
De acordo com o n.º 2 do preceito, presume-se iuris et de iure que dá causa à ação, incidente ou recurso quem perde. Assim, de acordo com José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 419, “[q]uanto à ação, perde-a o réu quando é condenado no pedido; perde-a o autor quando o réu é absolvido do pedido ou da instância. Quanto aos incidentes, paralelamente, é parte vencida aquela contra a qual a decisão é proferida: se o incidente for julgado procedente, paga as custas o requerido; se for rejeitado ou julgado improcedente, paga-as o requerente. No caso dos recursos, as custas ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha ou não provimento).”
Concluímos, deste modo, que o princípio da causalidade continua a funcionar em sede de recurso, devendo a parte neste vencida ser condenada no pagamento das custas, tendo presente, contudo, a especificidade acima apontada quanto à constituição da obrigação de pagamento da taxa de justiça, pelo que tal condenação envolve apenas as custas de parte e, em alguns casos, os encargos. Apenas nos casos em que não haja vencedor nem vencido, onde, por isso, não pode funcionar o princípio da causalidade consubstanciado no da sucumbência, rege o princípio subsidiário do proveito processual, de acordo com o qual pagará as custas do processo quem deste beneficiou. Dito de outra forma, sempre que haja um vencido, com perda de causa, é sobre ele que deve recair, na precisa medida desse decaimento, a responsabilidade pela dívida de custas. Fica vencido quem na causa não viu os seus interesses satisfeitos; se tais interesses ficam totalmente postergados, o vencimento é total; se os interesses são parcialmente satisfeitos, o vencimento é parcial. Conforme se referiu em RL 22.01.2019 (45824/18.8YIPRT-A.L1), “existindo um vencedor, por princípio e natureza, não lhe pode ser imputada a responsabilidade pela obrigação do pagamento das custas por ser de afastar, naturalmente, a causalidade. Ou seja, por regra, o vencedor é aquele que obteve ganho de causa. Ainda que este ganho de causa implique necessariamente um proveito, não é este proveito que releva quando se recorre ao respetivo princípio subsidiário, pois que, tal como resulta do n.° 1 do art. 527°, n.° 1 do CPC, apenas não havendo vencimento é que funciona o critério subsidiário do proveito.
21 Mas havendo um vencedor e não se encontrando uma parte vencida, esta não pode ser condenada no pagamento de custas porque não se verifica a causalidade (não deu causa à ação ou ao recurso), mas também aquele não o pode ser precisamente por ter havido vencimento (o que afasta o critério do proveito). Nestas situações, impõe-se encontrar uma outra solução. Será apenas quando perante a resolução do litígio não se descortine nem um vencido, nem um vencedor, que a responsabilidade tributária terá de assentar então no critério do proveito, isto é, em função das vantagens obtidas.”
É o que sucede no caso vertente, em que não há um vencido, tanto que esta instância de recurso decorreu sem contraditório, em observância do disposto nos arts. 393/1 e 641/7 do CPC.
As custas devem, portanto, ser suportadas pela Recorrente.
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22 5).2.1. O que antecede tem importância no que tange ao pagamento do remanescente da taxa de justiça que é devida por este recurso, certo como é que o valor processual do incidente foi fixado em montante superior a € 275 000,00.
Nos termos do artigo 530/1 do CPC, a taxa de justiça só é paga pela parte que demande na qualidade de autor, ou réu, exequente ou executado, requerente ou requerido, recorrente e recorrido, conforme o previsto no RCP.
As regras gerais sobre a taxa de justiça relativa às ações e aos recursos estão previstas no artigo 6.º do diploma, do qual decorre ser devida pelo impulso processual do interessado e fixada em função do valor e complexidade da causa, e que se aplicam, na falta de disposição especial, os valores contantes da tabela I-A, relativos às ações, e que nos recursos é sempre fixada nos termos da tabela I-B.
A tabela I insere ainda a vertente C, que se reporta à taxa de justiça agravada pelo tribunal e à devida pelas sociedades comerciais consideradas litigantes de massa, conforme os artigos 6.º/5 e 13.º/3.
Cada uma das aludidas vertentes daquela tabela contém 13 escalões de valor processual da causa, o último de € 250 000,01 a € 275 000, a que corresponde, em relação àquelas vertentes, I-A, I-B e I-C –, a taxa de justiça no montante de 16 UC, 8 UC e 24 UC, respetivamente.
Assim, nas ações, nos recursos e nas espécies processuais da autoria de sociedades comerciais litigantes de massa, cujo valor processual não exceda o montante de € 275 000, as partes apenas devem pagar a taxa de justiça no montante correspondente a 16 UC, 8 UC e 24 UC, respetivamente.
Além desse valor de taxa de justiça, só é devido pelas partes, a final, por cada € 25 000 ou fração de valor processual, a taxa de justiça correspondente a 3 UC no caso da coluna I-A, a taxa de justiça correspondente a 1,5 UC no caso da coluna I-B, e a taxa de justiça correspondente a 4,5 UC no caso da coluna I-C.
Ao acréscimo do valor processual da ação, do recurso, e da espécie processual objeto do conceito de litigância de massa, quanto a cada € 25 000 ou fração, as partes estão sujeitas à obrigação de pagamento futuro do correspondente a 3 UC, 1,5 UC e 4,5 UC.
É esse acréscimo de taxa de justiça, para além do quantitativo inicialmente pago pelas partes, nas ações ou nos recursos, que a lei designa por remanescente da taxa de justiça, a que se reporta o n.º 7 do artigo 6.º do RCP.
Decorre deste normativo que, nas causas de valor superior a € 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerando na conta final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz, de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o seu pagamento total ou parcialmente.
Esta norma concretiza o mandamento constitucional do art. 20 da CRP, o qual, como corolário do direito fundamental de acesso ao direito, aos tribunais e à justiça, impede a fixação de taxas de tal forma elevadas que percam um mínimo de conexão razoável com o custo e a utilidade do serviço prestado e, na prática, impeçam pela sua onerosidade a generalidade dos cidadãos de aceder aos Tribunais.
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23 5).2.2. Quanto ao órgão jurisdicional a quem incumbe a apreciação dos pressupostos da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, o art. 6.º/7 do RCP apenas se refere expressamente ao juiz, conceito que pode abranger o coletivo dos juízes dos tribunais superiores, a quem compete a decisão quanto a custas no âmbito dos recursos, nos termos previstos nos arts. 607/6, 663/2, e 679 do CPC.
Como já vimos, resulta do disposto nos arts. 527/1 e 529/1, do CPC, conjugados com os arts. 1.º/2 e 6.º/1 e 2, do RCP e as tabelas I-A e I-B anexas a este diploma, que os incidentes, as ações e os recursos são considerados processos ou procedimentos autónomos para efeito de sujeição ao pagamento de custas stricto sensu e de taxa de justiça, ou seja, funciona o princípio da autonomia. Este princípio tem como consequência que a decisão de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista genericamente no art. 6.º/7 do RCP, é do juiz da primeira instância, no que concerne às ações lato sensu, e do coletivo de juízes dos tribunais superiores quanto aos recursos ou aos incidentes cujo objeto seja o acórdão em causa, por exemplo os de reforma dos acórdãos. De facto, é indubitável, dado o disposto no n.º 7 do art. 6.º do RCP, que a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça não pode deixar de resultar da avaliação judicial, no caso concreto, sobre a verificação dos respetivos pressupostos.
Ora, essa avaliação, no que tange aos recursos, só pode ser feita pelo tribunal superior. O tribunal de 1.ª instância apenas está habilitado a proceder a essa avaliação em função da globalidade do processo, donde não resulta que a possa fazer também especificamente no que concerne aos recursos. Neste sentido, Salvador da Costa, “Dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça”, disponível no Blog do IPCC.[2]
A discussão que se vem travando, na jurisprudência do STJ, a propósito da competência em razão da hierarquia para a dispensa do remanescente da taxa de justiça é outra e consiste em saber se a decisão de dispensa está limitada à tramitação autónoma em cada e por cada um dos graus de jurisdição ou se deve ser alargada a toda a tramitação processual, pelo que só deve ser feita no final, cabendo, assim, ao tribunal do último grau de jurisdição a apreciação da dispensa/redução da taxa de justiça devida não só nesse órgão, mas também nos graus precedentes, abarcando toda a tramitação.
Segundo uma das posições jurisprudenciais sobre tal matéria, o STJ apenas tem competência para se pronunciar sobre a dispensa da taxa de justiça remanescente relativamente ao recurso de revista (STJ 30.06.2020, 2142/15.9T8CTB); segundo outra posição, que atualmente é a dominante, cabe ao último grau de jurisdição a apreciação da dispensa/redução da taxa de justiça devida não só nesse órgão, mas também nos graus precedentes, abarcando toda a tramitação (STJ 29.03.2022, 2309/16.2T8PTM.E1-A.S1, 12.04.2023 (18932/16.2T8LSB.L3.S1, e 30.05.2023, 903/13.2TBSCR.L2.S1). Salvador da Costa (“A apreciação pelo STJ da dispensa (ou redução) do remanescente da taxa de justiça”, disponível no Blog do IPCC[3]), critica esta segunda posição, escrevendo que “não tem fundamento legal, porque a lei de custas em geral, incluindo a de processo cível, não prevê ou possibilita o diferir da apreciação da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça pelo tribunal da 1.ª instância para o tribunal da Relação, ou pelo Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça” e concluindo que “o Supremo Tribunal de Justiça só tem competência para apreciar e decidir a questão da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça relativamente aos recursos de revista, tal como o tribunal da Relação só a tem no atinente aos recursos de apelação, salvo em via de recurso.”
Afastada está, segundo cremos, a posição que defendia que não compete ao STJ, ainda que tenha decidido em último grau, emitir pronúncia sobre o pedido de dispensa do pagamento das taxas de justiça remanescentes – referentes à 1ª instância, Relação e Supremo –, mas sim ao tribunal da causa (o tribunal onde a ação foi proposta e para onde, em caso de recurso, o processo regressa definitivamente) que compete decidir, oficiosamente ou a requerimento da parte, sobre a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça (STJ de 2.03.2021, 939/15.4T8CSC.L1).
Deste modo, cabe a esta Relação – que, além do mais, atuou como o tribunal do último grau de jurisdição (ut art. 14/1 do CIRE) –, decidir da dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida por este recurso de apelação.
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24 5).2.3. Isto dito, o RCP dispõe, no art. 6.º/1, que a taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor e complexidade da causa de acordo com o presente Regulamento, aplicando-se, na falta de disposição especial, os valores constantes da tabela I-A.
Nos termos do art. 11.º, a base tributável para efeitos de taxa de justiça corresponde ao valor da causa, com os acertos constantes da tabela I, e fixa-se de acordo com as regras previstas na lei do processo respetivo.
O Tribunal Constitucional, chamado a pronunciar-se sobre as normas contidas nos aludidos arts. 6.º e 11.º do dito Regulamento, no Ac. n.º 421/2013 (DR, II Série, de 16.10.2013), entendeu que as mesmas são inconstitucionais quando interpretadas no sentido de que o montante da taxa de justiça é definido em função do valor da ação sem qualquer limite máximo, não se permitindo ao tribunal que reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a complexidade do processo e o caráter manifestamente desproporcional do montante exigido a esse título. Fez, portanto, uma leitura dos preceitos a partir da matriz normativa em que a taxa de justiça assume, como todas as taxas, natureza bilateral ou correspetiva, constituindo contrapartida devida pela utilização do serviço público da justiça por parte do respetivo sujeito passivo, dispondo o legislador de uma larga margem de liberdade de conformação em matéria de definição do montante das taxas, na coerência de ser necessário que a causa e justificação do tributo possa ainda encontrar-se, materialmente, no serviço recebido pelo utente, pelo que uma desproporção manifesta ou flagrante com o custo do serviço e com a sua utilidade para tal utente afeta claramente uma tal relação sinalagmática que a taxa pressupõe.
Neste contexto, como vimos, o art. 6.º/7 do RCP confere ao Tribunal a possibilidade de dispensar as partes do pagamento do remanescente da taxa de justiça ou de reduzir o seu montante, a requerimento ou oficiosamente, atendendo:
- à complexidade da causa, aferida à luz, nomeadamente, dos critérios constantes do n.º 7 do art. 530 do CPC; e
- e à conduta processual das partes.
Segundo o art. 530/7 do CPC, consideram-se de especial complexidade, para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça, as ações que: "a) contenham articulados ou alegações prolixas; b) digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; c) impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas.”
No que respeita à conduta processual das partes, deverá ter-se em conta o disposto nos arts. 8.º e 7.º/1 do CPC, onde se estatui o dever de as partes agirem de boa fé e de cooperarem mutuamente e com o tribunal para com brevidade e eficácia se alcançar a justa composição do litígio.
O valor da ação não deve ser utilizado como critério autónomo, conforme resulta do disposto no art. 529/2 do CPC. Com efeito, de acordo com esse preceito, "[a] taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente e é fixado em função do valor e complexidade da causa, nos termos do Regulamento das Custas Processuais."
Correspondendo ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente, a taxa de justiça não depende, pois, da utilidade que se retira de uma ação ou recurso – i. é, com o vencimento da ação ou do recurso –, pois que a parte vencedora nem sequer a suporta, a título definitivo, já que essa taxa vai entrar em regra de custas e quem a suporta, a título definitivo, é a parte que perde o recurso – ou a ação.
Em suma, os critérios de cálculo da taxa de justiça, pela direta relação que têm, em termos económicos, com o condicionamento do exercício do direito de acesso à justiça, justificam os dispositivos de salvaguarda e de garantia de proporcionalidade entre o valor cobrado ao cidadão que recorre ao sistema público de administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efetivamente lhe foi prestado (arts. 2.º e 18/2 da CRP), evitando soluções de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efetivo exercício de um tal direito.
No caso vertente, a questão objeto do recurso não pode ser considerada como complexa e, conforme se constata pela leitura da presente decisão, é tratada pela doutrina e foi já objeto de apreciação, em situações similares, pelos tribunais superiores.
O recurso decorreu sem contraditório dos requeridos. A conduta da requerente pautou-se pela correção: expôs, na sede própria, a respetiva tese de forma objetiva, com observância dos deveres de boa fé, cooperação, razoabilidade e prudência, obtendo vencimento.
Tudo ponderado, à luz dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade que devem necessariamente condicionar o juízo aplicativo da referida norma flexibilizadora citada, em situações paralelas e equiparáveis à dos presentes autos, não pode deixar de se concluir que a cobrança de outros valores, como contrapartida da tramitação processual descrita, violaria efetivamente o princípio da proporcionalidade.
Neste contexto, a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça encontra plena justificação nos princípios constitucionais que regulam o acesso ao direito e aos tribunais.
***
V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o presente recurso de apelação e, em consequência:
Revogar o despacho recorrido;
Determinar que o procedimento cautelar de arresto prossiga os seus termos.
Custas a cargo da Recorrente que fica dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida pelo presente recurso.
Notifique.
*
Guimarães, 1 de fevereiro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator)
Rosália Cunha (1.º Adjunta)
Alexandra Viana Parente Lopes (2.ª Adjunta)



[1] Como se escreve em RG 9.04.2019 (2595/16.8T8VCT-C.G1), relatado pelo Juiz Desembargador Alcides Rodrigues, “o regime do n.º 2 do art. 392 do CPC, na medida em que admite a possibilidade de, nos casos de arresto requerido contra o adquirente dos bens do devedor, a providência ser requerida previamente à ação de impugnação judicial da aquisição, visando assim reforçar a eficácia do arresto já que se salvaguarda o secretismo do seu procedimento até à sua efetivação (art. 393/1 do CPC), impõe uma interpretação corretiva do n.º 2 do art. 619º do CC, já que este exigia a prévia propositura da impugnação judicial da transmissão (o que poderia fazer perigar a função da providência de arresto, designadamente no caso de os bens arrestados não estarem sujeitos a registo).”
[2] https://drive.google.com/file/d/18HfsyFPk9OIpwwmK-6iPEANqGZELVz9z/view?pli=1
[3] https://drive.google.com/file/d/14NcuC7n0Y_ayBiWZPMSFwhT48y2qSFeH/view