ARRENDAMENTO COMERCIAL
DIREITO LEGAL DE PREFERÊNCIA
LOCAÇÃO FINANCEIRA
SUBLOCAÇÃO FINANCEIRA
EFICÁCIA OBRIGACIONAL
Sumário


1- O conhecimento do mérito da causa em sede de saneador-sentença apenas é admissível quando, findos os articulados, toda a facticidade que, de acordo com as várias plausíveis de direito sobre as questões decidendas, se mostre provada por documento, confissão ou por acordo, de modo que a matéria de facto que permaneça controvertida, qualquer que seja essa solução jurídica que se dote quanto a essas questões, o resultado dessa facticidade que permanece controvertida seja insuscetível de se projetar na decisão final a proferir quanto àquelas, determinando um resultado diverso do proferido pelo julgador.
2- O direito legal de preferência do art. 1091º, n.º 1, al. a) do CC confere ao arrendatário de prédio arrendado há mais de dois anos um direito real de aquisição., que, por um lado, lhe confere um direito de crédito sobre o senhorio de o ter de notificar caso decida vender ou transmitir em dação em cumprimento o arrendado, informando-o dos termos do negócio que projeta celebrar com terceiro; e, por outro, lhe confere o direito potestativo de, na sequência dessa notificação, adquirir o arrendado nas mesmas condições oferecidas pelo terceiro interessado na sua aquisição.
3- O contrato de arrendamento tem eficácia meramente obrigacional, pelo que, alegando a autora (a título de causa de pedir) ser arrendatária de frações que lhe foram arrendadas há mais dois anos por locador financeiro, que celebrou o arrendamento na sequência de um contrato de locação financeira que celebrou com um banco (locatário financeiro e, por conseguinte, proprietário das frações arrendadas), e que locador e locatário financeiros resolveram o identificado contrato de locação financeira, vindo logo após, no mesmo documento, o banco (ex-locador financeiro) a vender as frações arrendadas ao ex-locatário financeiro, não assiste à autora o direito legal de preferência nessa compra e venda, porquanto, não detém perante o proprietário das frações a qualidade de “arrendatária”.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- RELATÓRIO

EMP01..., Lda., com sede no Edifício ..., Av. ..., ..., ..., ..., instaurou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra EMP02..., Lda., com sede na Rua ..., ... ..., e Banco 1..., S.A., com sede na Av. ..., ... ..., pedindo que se condenasse os últimos a reconhecerem o seu direito de preferência na alienação das frações ..., ..., ... e ..., do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...28, da freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...22, com a consequente transmissão do direito de propriedade sobre aquelas frações para si e, bem assim, se condenasse a 1ª Ré a restituir-lhe todos os valores de rendas pagas desde dezembro de 2022 até ao trânsito em julgado da sentença.
Para tanto alegou, em síntese: ser arrendatária das frações designadas pelas letras ..., ..., ... e ..., do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...28, da freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...22; a fração designada pela letra ... foi-lhe dada de arrendamento pela sociedade EMP03..., Lda., por documento particular de 22/04/2015, pelo prazo de 36 meses, a partir de 01/07/2015, prorrogável por períodos sucessivos de 12 meses, mediante uma contrapartida mensal de 700,00 euros, a que acresce IVA; esse escrito particular foi objeto de aditamento, outorgado a 26/12/2019, mediante o qual a EMP03..., Lda. lhe deu de arrendamento as frações designadas pelas letras ..., ..., ... e ..., pelo prazo de 96 meses, com início em 01/01/2020, prorrogável por períodos sucessivos de 12 meses, mediante uma contrapartida mensal de: 1.200,00 euros, a que acresce IVA, quanto à fração ...; de 1.500,00 euros, a que acrescente IVA, quanto à fração ...; de 1.600,00 euros, a que acresce IVA, quanto à fração ...; e de 1.750,00 euros, a que acresce IVA, quanto à fração ...; a sociedade EMP03... celebrou, em 26/06/2012, com o Banco 2..., S.A. um contrato de locação financeira imobiliária (que junta como Docs. n.ºs ... a ... em anexo à petição inicial), mediante o qual o último lhe locou diversas frações daquele prédio, entre as quais se contam as que lhe foram dadas de arrendamento; a EMP03..., Lda., por contrato de 16/12/2022, declarou transmitir para a 1ª Ré a posição de locatária no identificado contrato de locação financeira que tinha celebrado com o Banco 2..., S.A., e, por documento particular de 30/12/2022, a 1ª Ré e o 2º Réu, que, por deliberações do Conselho de Administração do Banco de Portugal sucedera ao Banco 2... na posição de proprietário dos imóveis e de locador financeiro,  declararam resolver o identificado contrato de locação financeira, tendo o 2º Réu declarado vender à 1ª Ré diversas frações, entre as quais as que lhe foram arrendadas e sem que a tivessem notificado para exercer, querendo, o direito de preferência quanto às frações que lhe estavam arrendadas; a Autora já pagou à 1ª Ré, a título de rendas, despesas e encargos, desde a data em que esta adquiriu o direito de propriedade sobre as frações, as quantias discriminadas no ponto 25º da petição inicial.
A 1ª Ré, EMP02..., Lda.”, contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Suscitou a exceção perentória da inexistência do direito legal de preferência a que a Autora se arroga titular, alegando que o contrato celebrado entre esta e a sociedade EMP03..., Lda., mediante o qual lhe cedeu o gozo das frações que identifica, não consubstancia um contrato de arrendamento comercial, mas antes um contrato atípico ou inominada, mediante o qual a sociedade EMP03..., Lda. cedeu à Autora a utilização das identificadas lojas em centro comercial e se obrigou a proporcionar-lhe um conjunto de serviços, incluindo de promoção da atividade comercial exercida pela primeira naquelas lojas.
Impugnou parte da facticidade alegada pela Autora.
Concluiu pedindo que a ação fosse julgada improcedente e absolvida do pedido.
O Réu Banco 1..., S.A. contestou, defendendo por exceção e por impugnação.
Suscitou a exceção perentória da inexistência do direito legal de preferência a que a Autora se arroga titular, alegando que a 1ª Ré, EMP02..., Lda., exerceu a opção de compra antecipada do imóvel objeto do contrato de locação financeira celebrado, nos termos do clausulado no contrato de locação financeira que outorgaram, passando a ser proprietária daquele imóvel, pelo que o Réu Banco 1..., S.A. não vendeu o imóvel em causa a um terceiro, mas sim à locatária, concretizando-se entre as partes um ato típico do contrato de locação financeira celebrado entre aquele e a 1ª Ré, o que, na sua perspetiva, não confere à Autora o direito legal de preferência na aquisição das frações que lhe tinham sido pretensamente arrendadas. Mais alegou que o contrato celebrado entre a Autora e a sociedade EMP03..., Lda., tendo por objeto as frações identificadas pela primeira na petição inicial, não integra um contrato de arrendamento, dado que, mediante a celebração desse contrato foi cedido àquela o direito de utilização do espaço correspondente às ditas frações, as quais se integram no denominado “...”, o qual constitui um empreendimento comercial, composto por várias lojas, escritórios e espaços comerciais de retalho, lazer e prestação de serviços, que se encontra sujeito a um regulamento, que aquela se obrigou a respeitar, e em que, conjuntamente com a cedência do espaço, lhe foi concedido o acesso a todas as infraestruturas de apoio que integram o referido empreendimento, como sejam: os serviços de limpeza, manutenção, segurança, promoção, espaços de diversão e lazer, decoração, iluminação, climatização e parque de estacionamento, e em que a mesma se obrigou a pagar uma contrapartida financeira por esses serviços, bem como as despesas e encargos comuns de acordo com a sua utilização do espaço. Daí que, na sua perspetiva, o contrato celebrado entre a Autora e a sociedade EMP03..., Lda. é um contrato de cedência de espaços em centro de escritórios, ao qual deverá ser aplicável a disciplina jurídica dos contratos de utilização de espaços em centros comerciais, pelo facto de, tal como neste, o contrato celebrado espelhar uma realidade que supera, em larga medida, a função económico-social e típica de um simples contrato de arrendamento, tratando-se, por isso, não de um contrato de arrendamento comercial, mas um contrato atípico, submetido à disciplina jurídica estipulada pelos contratantes, ao qual não é aplicável o direito legal de preferência que é reconhecido ao arrendatário.
Impugnou parte da facticidade alegada pela Autora.
Concluiu pedindo que a ação fosse julgada improcedente e se absolvesse aquela do pedido.
A Autora respondeu, pronunciando-se quanto aos documentos juntos pelos Réus em anexo às contestações, mas aproveitando para responder à matéria de exceção que fora alegada pelos últimos nesse articulado, advogando que as frações que lhe foram dadas de arrendamento se integram no denominado “...”, que é um prédio constituído em propriedade horizontal, com condomínio constituído e em funcionamento e que, por isso, não consubstancia um centro comercial; os imóveis que lhe foram arrendados são frações autónomas de um prédio constituído em propriedade horizontal, e não espaços  indiferenciados de uma universalidade, em que a 1ª nem sequer é proprietária da totalidade das frações autónomas que integram esse prédio constituído em propriedade horizontal, o que, na sua perspetiva, afasta a unicidade que caracteriza um centro comercial.
Concluiu pela improcedência da exceção perentório suscitada pelo 1º Réu Banco 1... quando pretende que a transmissão das frações tivesse ocorrido no exercício da opção de compra no âmbito do contrato de locação financeira celebrado, advogando que do teor da escritura do negócio celebrado, a sociedade EMP03..., Lda. cedeu a sua posição de locatária naquele contrato de locação financeira à 1ª Ré, EMP02..., Lda.; esta última acordou com o Réu Banco 1..., S.A. a resolução desse contrato de locação financeira e, uma vez resolvido, o Réu Banco 1..., S.A. vendeu as frações à 1ª Ré, onde se incluem as que lhe foram arrendadas pela EMP03..., Lda..
Por despacho proferido em 23/10/2023 concedeu-se à Autora o prazo de dez dias para exercer o contraditório relativamente às contestações apresentadas, nos termos do art. 3º, n.º 4 do CPC, e notificou-se as partes para se pronunciarem quanto à eventual dispensa de realização de audiência prévia.
A Autora respondeu à matéria de exceção invocada pelos Réus nas contestações nos mesmos moldes em que já se tinha pronunciado, acrescentando que o edifício onde se integram as frações que lhe foram arrendadas tem condomínio constituído e em funcionamento e que é gerido como o “mais vulgar condomínio”, além de que se trata de um simples prédio com lojas no rés-do-chão e escritórios nos pisos superiores, com corredores de acesso aos mesmos, sem que disponha de corredores largos, nem zonas de estar e de lazer, que tenham sido gizadas para que as pessoas neles circulem e permaneçam, consumindo nas diversas lojas comerciais que o integram.
Concluiu pela sua improcedência das exceções perentórias suscitadas pelas Rés, e declarou nada ter a opor a que se dispensasse a realização de audiência prévia.
O Réu Banco 1... declarou nada ter a opor a que se dispensasse a realização de audiência prévia.
No mesmo sentido se pronunciou a 1ª Ré, desde que lhe fosse concedido prazo para alterar os seus requerimentos probatórios e para reclamar dos despachos que viessem a ser proferidos.
Em 22/11/2023, proferiu-se saneador-sentença em que: se dispensou a realização de audiência prévia; se proferiu despacho saneador tabular; se fixou o valor da causa em 123.166,74 euros, e se conheceu do mérito da causa, tendo-se julgado a ação improcedente e absolvido os Réus do pedido, constando esse saneador-sentença da seguinte parte dispositiva:
“Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido:
a) Absolver as rés dos pedidos;
b) Condenar a autora nas custas do processo”.

Inconformada com o decidido, a Autora, EMP01..., Lda., interpôs recurso, em que formulou as conclusões que se seguem:
1- Vem o presente recurso interposto do douto despacho do insigne tribunal a quo, datado de 22.11.2023, que determinou a improcedência da ação interposta pela aqui Recorrente, porque, no seu entender – com o qual a Recorrente não pode conformar-se – “não se vislumbra como circunscrever o contrato em causa no radar do regime do arrendamento, designadamente para efeitos de direito de preferência. Afinal, do suprarreferido contrato verifica-se uma similitude com os fundamentos que levaram a jurisprudência a concluir que os contratos de utilização de loja em centro comercial se subsumiam à figura do contrato atípico.”.
2- Crê a Recorrente que, salvo o devido respeito por melhor entendimento, mal andou o Tribunal a quo ao entender ser de enquadrar o edifício denominado “...” no conceito de “centro comercial” e, consequentemente, ao aplicar ao objeto do presente dissídio a norma geral, prevista no n.º 1 do artigo 405.º do Código Civil, ao invés do regime especial da locação, consagrado nos artigos 1022.º a 1120.º do mesmo diploma.
3- Ora, conforme é consabido, não é o nome que se dá a um contrato que vai definir ou vincular a subsunção dele à lei, e o contrato outorgado entre a Recorrente e a primitiva locatária tem todas as características que configuram a relação contratual de arrendamento, pelo que, salvo o devido respeito, de maneira nenhuma pode a Recorrente compadecer-se com o entendimento seguido pelo Mm. Juiz a quo.
4- Um centro comercial é um estabelecimento comercial único, dotado de clientela própria, com um proprietário próprio e gerido sob uma administração própria, integrado por lojas e espaços distribuídos de acordo com uma planificação técnica e estratégica, a que se somam espaços comuns de circulação e lazer, com todas as infraestruturas de apoio – serviços de limpeza, manutenção, ventilação, segurança e promoção – com o objetivo de assegurar a exploração integrada das diversas atividades comerciais de retalho e de prestação de serviços, de forma harmoniosa e com uma gestão centralizada. Feito este enquadramento preliminar, e atentando no conceito daquilo que é um verdadeiro centro comercial, facilmente se constata que não é este o caso do ....
5- Ora, o empreendimento denominado “...” é um prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, que em pouco ou nada se assemelha a um centro comercial qua tale. Do mesmo modo, o objeto da relação contratual aqui apreciada são frações autónomas, concretas e determinadas, e não um espaço sem autonomia jurídica.
6- Em suma, o Edifício denominado “...”:
i. é um prédio constituído em regime de propriedade horizontal;
ii. com o condomínio constituído e em funcionamento nos termos do disposto nos artigos 1417.º e seguintes do Código Civil;
iii. os imóveis locados são frações autónomas dele e não espaços indiferenciados de uma universalidade;
iv. a EMP04... nem sequer é proprietária da totalidade das frações autónomas do prédio, afastando a unicidade que caracteriza um centro comercial;
v. não é um centro comercial qua tale, mas sim um simples prédio com lojas no rés-do-chão e escritórios nos pisos superiores, com corredores de acesso aos mesmos e entradas independentes;
vi. não possui lojas âncora;
vii. nem WC’s de uso público;
viii. não tem largos corredores, nem zonas de estar e de lazer;
ix. não existem ações de promoção do espaço como um todo;
x. não existe um sistema de ventilação comum às diversas frações;
xi. não há uma obrigatoriedade de estabelecer horários comuns de abertura e encerramento das lojas e escritórios.
7- Por tudo, é por demais evidente que, apesar do nome atribuído ao contrato, a relação jurídica que existiu entre a Recorrente e a EMP03... e existe entre a Recorrente e a EMP04... assenta num puro contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais.
8- O contrato de exploração de loja num centro comercial trata-se de um tipo contratual inominado, que se caracteriza pela cedência do gozo de um espaço – uma loja –, para o exercício de uma atividade comercial ou de prestação de serviços. As lojas que integram um centro comercial, encontram-se inseridas num complexo imobiliário coletivo, composto por diversas lojas, com comércios e serviços variados, e por espaços comuns de lazer, o que determina a sujeição a uma organização coletiva, com regras de funcionamento gerais do próprio centro comercial. 
9- Já no que se refere ao contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais, como é o caso do contrato que existiu entre a Recorrente e a EMP03... e existe entre a Recorrente e a EMP04..., o mesmo é regulado por disposições imperativas, e as frações objeto do contrato são exploradas individualmente. Há um afastamento do princípio geral da liberdade de estipulação, decorrente do princípio da autonomia privada, e emergem dos princípios da proteção das expectativas de confiança do destinatário e da proteção de segurança do tráfego jurídico.
10- Resulta, assim, ostensivamente prejudicado o decidido pelo Insigne Tribunal a quo, sendo insofismável a qualificação do edifício e da sua administração como um típico condomínio e da relação entre a Recorrente e EMP03... e EMP04... como um claro arrendamento, com todas as legais consequências daí emergentes.

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11- De igual modo, enferma a sentença de um manifesto erro, ao sustentar que a transmissão dos imóveis ocorreu no âmbito do exercício da opção de compra previsto no contrato de locação financeira.
12- Por escrito datado de 16.12.2022, a EMP03... declarou transmitir para a EMP04... a posição contratual de locatária no contrato de locação financeira que tem por objeto, entre outras, as frações das quais é arrendatária a Recorrente. Subsequentemente, a então locatária EMP04... e o locador financeiro, Banco 1..., S.A., declararam resolver o contrato de locação financeira em crise. Uma vez resolvido o contrato, o Banco 1... declarou vender à EMP04... as referidas frações autónomas. 
13- A adquirente – que, antes de o ser, foi locatária do Banco e locadora da Recorrente – bem sabia, ao comprar, que os imóveis estavam onerados com contratos de arrendamento à aqui Recorrente, há bem mais de dois anos.
14- Assim sendo, na sequência da cessão da posição contratual de locatária financeira a EMP04... tomou a posição da EMP03..., Ld.ª nos contratos de arrendamento em vigor sobre aquelas frações, tendo notificado a Recorrente, que lhe deveria passar a pagar a si a contrapartida financeira pela utilização das quatro frações.
15- Ou seja, a Recorrente mantém-se na posição de arrendatária das frações autónomas acima referidas, - tal como se mantinha à data da compra e venda pelo Banco 1... à EMP04... – tendo apenas alterado a entidade que figura na qualidade de senhorio e tendo a atual senhoria adquirido o direito de propriedade sobre os imóveis.
16- Erra, de modo flagrante, o Insigne Tribunal a quo ao sustentar que a transmissão dos imóveis para a EMP04... ocorreu ao abrigo do exercício da opção de compra no âmbito de contrato de locação financeira imobiliária.
17- Tal não só não é verdade, como é desmentido pela própria escritura, da qual resulta que a EMP03... cedeu a posição de locatária à EMP04...; que esta acordou com o Banco 1... a resolução do contrato de locação financeira imobiliária; e que, resolvido o contrato, e já sem qualquer vínculo contratual, o Banco 1..., na qualidade de proprietário das frações em apreço, desoneradas, as vendeu à EMP04....
18- De todo o modo, e sem prescindir do que veio de se alegar, sempre a diferença do preço da compra e venda face ao valor residual contratado - € 1.000,00 – viria demonstrar que a compra e venda dos imóveis não foi no âmbito e por efeito do contrato de locação financeira.
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19- Mais, não pode, igualmente, a Recorrente aquiescer com a posição sufragada pelo Insigne Tribunal a quo quando refere que, face à cessação da locação financeira, a sublocação caduca imediatamente, razão pela qual caducaria também o direito de preferência da Recorrente.
20- A Recorrente tem vindo a pagar as prestações mensais à EMP04..., a título de rendas, despesas e encargos, desde a data em que esta adquiriu o direito de propriedade sobre as frações, até ao presente, e, naturalmente, continuará a pagar as rendas que se vencerem até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na presente ação.
21- A faculdade de o locatário originário ceder a terceiro parte ou a totalidade do espaço locado, quando exercida, configura um novo contrato, regido pelas suas próprias regras e condições, pelo que a extinção da locação originária não deve, em si mesma, implicar automaticamente a extinção da sublocação.
22- A proteção do sublocatário, como a aqui Recorrente, como ocupante legítimo do espaço, é um elemento central na justificação da manutenção da sublocação.  
23- Além disso, o respeito pelos princípios da autonomia contratual, boa-fé e a proteção do sublocatário justificam a manutenção da sublocação, assegurando a continuidade das relações jurídicas estabelecidas no âmbito desse contrato específico.  
24- Em jeito de conclusão, sempre se repita que a EMP04... bem sabia, ao adquirir as frações, que os imóveis estavam onerados com contratos de arrendamento à aqui Recorrente, há bem mais de dois anos.
25- Ora, através da cessão da posição contratual de locatária financeira, a EMP04... tomou a posição da EMP03... nos contratos de arrendamento em vigor sobre aquelas frações. Tendo, aliás, notificado a Recorrente, de que lhe deveria passar a pagar a si a contrapartida financeira pela utilização das quatro frações.
26- Pelo que, nesta sequência, a Recorrente mantém-se na posição de arrendatária das frações autónomas, tendo apenas alterado a entidade que figura na qualidade de senhorio e tendo a atual senhoria adquirido o direito de propriedade sobre os imóveis.
27- Contudo, não obstante a Recorrente se mantenha na posição de arrendatária, nem o Banco 1..., nem a adquirente EMP04..., procederam à sua notificação para exercer o direito legal de preferência que lhe assistia na venda das frações autónomas, ao arrepio das instruções constantes dos artigos 416.º, 1410.º e 1091.º do Código Civil.
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28- Sem prescindir de tudo o que se veio de expender, e sempre com o muito e devido respeito, revelava-se de fulcral importância a produção de prova que sustentasse os factos controvertidos, e permitisse, mormente, esclarecer o Tribunal acerca da configuração jurídica em que se insere o prédio objeto do litígio em causa nos presentes autos e, consequentemente, do contrato que lhe subjaz.
29- Ora, como se sabe, apenas em situações excecionais é possível conhecer do mérito da causa em sede de despacho saneador, prescindindo-se da produção de prova indicada pelas partes.
30- Apenas seria de admitir que se pudesse conhecer do mérito da causa, ainda que parcialmente, neste momento processual, caso o processo contivesse todos os elementos aptos a proferir uma decisão ponderada, sustentada e inequívoca, conforme previsto no artigo 595.º, n.º 1 do CPC, o que não sucede in casu.
31- Face a tudo o que se veio de expor, conclui-se que, no momento em que proferiu o despacho recorrido, o processo não continha elementos suficientes ou idóneos a emanar uma decisão de forma antecipada, devendo o Mm. Juiz ter-se abstido de proferir saneador-sentença e, ao invés, deveria fazer prosseguir os autos para assegurar as diligências de produção de prova que garantissem a justa composição do litígio e a boa decisão da causa.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, revogando-se o despacho saneador-sentença proferido a 22.11.2023 – com a referência ...57 – e:
i) Ser o despacho recorrido revogado, revogando-se o douto decisório recorrido, na parte que se vem de sindicar, com as legais consequências;
Caso assim não se entenda, o que se equaciona por mera cautela de patrocínio, 
ii) Ser o despacho recorrido revogado e substituído por outro que não se pronuncie sobre o mérito da causa, determinando a produção de prova em audiência de julgamento.

O Réu Banco 1..., S.A. contra-alegou, pugnando no sentido de que o recurso seja julgado ....
Também a Ré EMP02..., Lda. contra-alegou, pugnando no sentido de que o recurso seja julgado improcedente ....
A 1ª Instância admitiu o recurso interposto como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito) nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar as seguintes questões:
a- se o saneador-sentença recorrido, ao julgar improcedente a ação e ao absolver os apelados (Réus) do pedido, padece de erro de direito, uma vez que, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito suscetíveis de serem aplicadas à questão decidenda nos autos, existe matéria de facto que permanece controvertida, impondo-se, em consequência, revogar o saneador-sentença recorrido e ordenar o prosseguimento dos autos, com a formulação de temas de prova quanto a essa facticidade e a subsequente realização de audiência final; 
b- a conterem os autos todos os elementos de facto que permitem ao tribunal, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito suscetíveis de serem aplicadas à questão decidenda nos autos, conhecer já do mérito da causa, se se impõe revogar o saneador-sentença recorrido, por a decisão de mérito nele proferida padecer de erro de direito e, em consequência, julgar procedente a ação e condenar os apelados no pedido.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade com relevância para a decisão a proferir no âmbito da presente ação:
1- No âmbito de um acordo denominado de contrato de locação financeira imobiliária, cujo teor aqui se dá por reproduzido, o Banco 2..., S.A. adquiriu e deu em locação à sociedade “EMP03..., Ld.ª” diversas frações autónomas que integram o prédio urbano, constituído no regime da propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...28, da freguesia ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...22.º, tendo locado a esta última, inicialmente pelo prazo de dez anos, e depois, até ../../2029, por documento autenticado outorgado a 26.6.2012, objeto de dois aditamentos, entre outras, as frações ..., ..., ... e ....
2- Na sequência das deliberações do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 3 e 11 de agosto de 2014, o Banco 1..., S.A. sucedeu ao Banco 2..., S.A. na posição de proprietário dos imóveis e locador financeiro.
3- O teor do acordo, entre autora e EMP03..., denominado de contrato de cedência de espaço, de 22-4-2015, que aqui se dá por reproduzido, inclusive o aditamento de 26-12-2019.
4- Por escrito datado de 16.12.2022, cujo teor aqui se dá por reproduzido, a EMP03... declarou transmitir para a R. EMP02..., Ld.ª, que declarou tomar, a posição contratual de locatária no supra denominado contrato de locação financeira acima referido.
5- O teor da escritura denominada de compra e venda, entre as Rés, de 30-12-2022, que aqui se dá por reproduzido, sendo que, nesse documento, antes de declararem a compra e venda a R. EMP02..., Ld.ª e o Banco 1..., S.A. declararam resolver o supra denominado contrato de locação financeira.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A- Do conhecimento do mérito da causa em sede de saneador-sentença.
Estabelece o art. 595º, n.º 1, al. b) do CPC que: “O despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória”.
Decorre desse dispositivo legal que a cognoscibilidade imediata de todos ou de parte dos pedidos ou de alguma exceção perentória, em sede de despacho saneador, apenas é admitida quando o processo contenha já toda a matéria de facto pertinente para conhecer daqueles, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito que lhes sejam aplicáveis, tornando-se, por isso, desnecessária a produção de prova para o apuramento de facticidade que permaneça controvertida, por qualquer que seja o resultado que se venha a alcançar quanto a essa facticidade, esta, de acordo com essas diversas soluções plausíveis de direito, ser insuscetível de se projetar na solução final que quanto a essas questões decidendas se adotou, tornando-se, por isso, a produção de prova um ato inútil e, como tal, proibido por lei, nos termos do art. 130º do CPC, que apenas posterga os princípios da economia e da celeridade processuais.
Daí que o conhecimento do mérito da causa logo no despacho saneador seja uma situação que se revela as mais das vezes anormal e excecional, posto que o normal é que, findos os articulados, exista matéria de facto que permaneça controvertida e que seja suscetível de se projetar em sede da decisão de mérito a proferir quanto à questão decidenda, tendo em consideração as várias soluções jurídicas plausíveis quanto a essa questão, não devendo o julgador da 1ª Instância descurar que, nesta sede, não releva a solução jurídica que postula sobre essa questão, ainda que seja a sufragada pela doutrina e jurisprudências maioritárias, uma vez que não pode, nem deve olvidar que, em caso de recurso, podem vir a ser sufragadas outras posições doutrinais e/ou jurisprudenciais distintas em relação às quais a facticidade que permanece controvertida é suscetível de se projetar na decisão a proferir sobre as  questões decidendas (por determinar uma decisão final distinta quanto a elas que a proferida), com a consequente anulação da decisão judicial que proferiu.
De resto, o referido cuidado que se impõe ao julgador da 1ª Instância deve também ser adotado pelo Tribunal da Relação, sobretudo quando não decida em última instância, em que não deve descurar que havendo vários entendimentos doutrinários e/ou jurisprudenciais sobre as questões decidendas e que, segundo alguns desses entendimentos plausíveis, a facticidade que permanece controvertida é suscetível de se projetar na decisão de mérito a proferir, poderá ver a decisão de mérito que proferiu ser anulada pelo STJ em sede de recurso de revista para ampliação do julgamento da matéria de facto e que, nessa situação, longe de promover a economia e a celeridade processuais, ao conhecer prematuramente de mérito, acabou por assumir uma conduta processual contrária a esses princípios.
Neste sentido, expendem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa que: “A antecipação do conhecimento de mérito pressupõe que, independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente de a mesma favorecer uma ou outra das partes. Assim acontecerá quando: a) Toda a matéria de facto relevante esteja provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documento: nestas circunstâncias, é inviável a elaboração de temas de prova e, por isso mesmo, mostra-se dispensável a audiência final, nada obstando a que o juiz proceda à imediata subsunção jurídica; b) quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos: se, de acordo com as soluções plausíveis da questão de direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo a decisão de mérito; se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum as condições de procedência da ação, torna-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil o prosseguimento da ação para audiência final; mutatis mutandis quando se trate de apreciar de que forma os factos alegados pelo réu poderão interferir na decisão final, pois se tais factos, enquadrados na defesa por exceção, ainda que provados, se revelem insuficientes ou inócuos para evitar a procedência da ação, inexiste qualquer razão justificativa para o aditamento da decisão; c) Quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental, caso em que o juiz proferirá despacho saneador-sentença, depois de ter convidado as partes a juntar a prova documenta necessária, nos termos do art. 590º, n.º 2, al. c). Com efeito, a audiência final, em torno dos factos abarcados pelos temas da prova, não se destina no essencial à apresentação de outros meios de prova, sujeitos a livre apreciação, pelo que se impõe a antecipação da decisão sobre o mérito da causa; d) Nem sequer está afastada a possibilidade de apreciação do mérito, apesar da existência de outras soluções plausíveis sustentadas em matéria de facto ainda controvertida, desde que o juiz esteja ciente da segurança da sua decisão, embora neste caso deva avaliar os riscos de uma posterior anulação pela Relação, com fundamento na necessidade de ampliação da matéria de facto (art. 662º, n.º 2, al. c) in fine); na verdade, a sua eventual revogação (no âmbito do recurso de apelação interposto nos termos do art. 644º, n.º 1, al. b)) pode prejudicar o efeito de aceleração emergente da antecipação parcial da apreciação do mérito da causa; é aqui que a utilização do prudente critério do juiz pode servir para selecionar os casos em que, apesar das divergências, se justifica o julgamento antecipado, no confronto com aqueles em que será preferível a enunciação dos temas da prova e a posterior atividade instrutória, com vista ao apuramento dos  factos que interessem à correta e completa integração jurídica; como critério geral de atuação, deve o juiz optar entre proferir a decisão do mérito da causa ou relegá-la para depois da audiência final, depois de fazer um juízo de prognose acerca da relevância ou não dos factos ainda controvertidos”[2] (destacado nosso).
Debruçando-se sobre a atuação do Tribunal da Relação no âmbito do recurso de apelação quando a 1ª Instância tenha omitido pronúncia quanto a factos essenciais ou complementares (não os julgando provados, nem não provados na decisão recorrida), quando a decisão por aquela proferida quanto a essa facticidade se revela obscura ou contraditória, de modo a tornar-se ininteligível, equívoca ou imprecisa ou reveladora de incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida jurídica do caso, ou quando se exija a ampliação da matéria de facto, Abrantes Geraldes sustenta, em termos que se subscreve na integra, que: “verificado algum dos referidos vícios, para além de serem sujeitos a apreciação oficiosa da Relação, esta poderá supri-los a partir dos elementos que constem do processo ou da gravação” e que nos casos em que se “exija a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo”, impõe-se a anulação da decisão recorrida e ordenar a ampliação do julgamento de facto a essa facticidade, tratando-se também ela de “faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objetiva de factos relevantes”, advertindo, porém, que a anulação do julgamento para ampliação da decisão da matéria de facto “deve ser encarada com rigor acrescido e reservada para os casos em que se revele indispensável. Não basta que os factos tenham conexão com alguma das “soluções plausíveis da questão de direito”. Considerando a fase em que agora nos encontramos, a Relação deve ponderar o enquadramento jurídico em face do objeto do recurso ou de outros elementos a que oficiosamente puder atender, contando também com o que possa esperar-se de uma eventual intervenção do Supremo ao abrigo do disposto no art. 682º, n.º 3. Por outro lado, tal como sucede com as anteriores situações, a anulação da decisão da 1ª Instância apenas deve ser decretada se não constarem do processo todos os elementos probatórios relevantes. Ao invés, se estes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas”. E conclui que: “Em qualquer dos casos, a anulação do julgamento deve ser sempre uma medida de último recurso, apenas legítima quando de outro modo não for possível superar a situação, por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provado, tendo em conta, além do mais, os efeitos negativos que isso determina nos vetores da celeridade e da eficácia”[3].
Em suma, decorre do excurso antecedente que o julgador apenas deve conhecer de mérito em sede de saneador-sentença quando, findos os articulados, a facticidade já assente, por prova documental, por acordo ou por confissão, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito quanto à questão decidenda, for suficiente, e em que, portanto, a facticidade que permaneça controvertida, qualquer que seja o resultado da prova que viesse a ser produzida quanto à mesma, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito quanto à questão decidenda, for insuscetível de se projetar na decisão final quanto a esta, determinando uma decisão distinta; de contrário, deverá formular temas de prova e ordenar o prosseguimento dos autos para julgamento, para, uma vez estabelecida uma plataforma sólida quanto à facticidade alegada e que se quedou provada e não provada, então sim, proferir decisão de mérito, de acordo com o enquadramento jurídico que entenda oportuno, mas não fechando a porta a que as instâncias superiores tenham de eventualmente anular a decisão recorrida para ampliação da matéria de facto face a um enquadramento jurídico das questões decidendas do que foi realizado pelo tribunal recorrido.
Por isso, o julgamento antecipado de exceção ou da ação logo em sede de despacho saneador revela-se, as mais das vezes, uma situação excecional, sem que se descure que sempre que essa situação excecional se verifique, o julgamento antecipado não constitui uma simples faculdade que assiste ao julgador, sujeita a critérios de oportunidade ou de conveniência deste, mas um dever, inerente aos princípios gerais da economia e da celeridade processuais[4].
Assentes nas premissas que se acabam de expor, a apelante começou, nas alegações de recurso, por imputar ao saneador-sentença sob sindicância erro de direito, advogando que, contrariamente ao que nela foi decidido, o “...” não é um centro comercial e que o contrato que celebrou, em 22/04/2015, posteriormente objeto de aditamento, em 26/12/2019, mediante o qual a sociedade EMP03..., Lda., lhe cedeu o uso das frações ..., ..., ... e ..., não consubstancia um contrato de utilização de loja em centro comercial, mas antes um contrato de arrendamento para fins não habitacionais (cfr. conclusões 1º a 10º).
Mais advoga que, contrariamente ao decidido, aquela não é subarrendatária das ditas frações, posto que tal “é desmentido pela própria escritura, da qual resulta que a EMP03... cedeu a posição de locatária à EMP04...; que esta acordou com o Banco 1... a resolução do contrato de locação financeira imobiliária, e que, resolvido o contrato, e já sem qualquer vínculo contratual, o Banco 1..., na qualidade de proprietário das frações em apreço, desoneradas, as vendeu à EMP04...” (cfr. conclusões 11 a 18º).
Porém, já nas conclusões 28º a 30º das suas alegações de recurso, a apelante sustenta que existe facticidade que permanece controvertida (sem que a identifique) e advoga que, na sua perspetiva, se impunha que o julgador a quo se “tivesse abstido de proferir saneador-sentença e, ao invés, deveria fazer prosseguir os autos para assegurar as diligências de produção de prova que garantissem a justa composição do litígio e a boa decisão da causa”.
Concluiu pedindo, a título principal, que esta Relação revogue o saneador-sentença recorrido, com as legais consequências e, subsidiariamente, anule aquele e determine a produção da prova.
Antes de mais, incumbe precisar que, no saneador-sentença sob sindicância, a 1ª Instância não qualificou o acordo celebrado entre a apelante e a sociedade EMP03..., Lda., mediante o qual esta cedeu à primeira o gozo das frações autónomas acima identificadas como contrato de utilização de utilização de loja em centro comercial, nem qualificou o “...” onde essas frações se localizam como constituindo um centro comercial, mas antes o que nele se decidiu foi que, sendo a doutrina e a jurisprudência dominantes no sentido de que os contratos de utilização de loja em centro comercial não consubstanciam um contrato de arrendamento comercial, mas antes um contrato atípico, sujeito ao que foi convencionado entre as partes, de acordo com a sua liberdade contratual, face aos termos do que foi clausulado no acordo escrito, datado de 22/04/2015, outorgado entre a apelante e a sociedade EMP03..., Lda., junto em anexo à petição como Doc. n.º ... (intitulado de “Contrato de Cedência de Espaço” “...”), objeto do aditamento escrito, datado de 26/12/2019, celebrado entre as mesmas contratantes (junto também em anexo à petição  e intitulado de “1ºAditamento ao Contrato de Cedência de Espaço ...”),  verifica-se “uma similitude” entre o que foi acordado nesses contratos “e os fundamentos que levaram a jurisprudência a concluir que os contratos de utilização de loja em centro comercial se subsumiam à figura do contrato atípico” e, perante essa similitude, concluiu que o identificado contrato (e respetivo aditamento) celebrado entre a apelante e a EMP03..., Lda. tendo por objeto as ditas frações, não configura um contrato de arrendamento, mas antes, tal como os contratos de utilização de loja em centro comercial, um contrato atípico e, em consequência, afastou a aplicação ao mesmo do regime jurídico da locação, mormente do direito de preferência reconhecido ao arrendatário nos casos do art. 1091ºdo CC.
Dito por outras palavras, como bem realça o apelado Banco 1..., S.A., no saneador-sentença recorrido não se concluiu que o “...” seja um centro comercial, nem que o contrato celebrado entre a apelante e a EMP03..., Lda. e o respetivo aditamento, configure um contrato de utilização de loja em centro comercial, mas sim que o “...”, atenta a configuração espelhada no contrato, é uma realidade similar, paralela, com pontos comuns aos verificados nos centros comerciais e que, por conseguinte, o contrato celebrado entre a apelante e a EMP03..., e o respetivo aditamento, atento ao que neles foi clausulado entre os outorgantes, atenta a similaridade que apresenta com o contrato de utilização em centro comercial, é também ele, por identidade de razões, um contrato atípico e que, por isso, também conduz ao afastamento da aplicação àquele do regime jurídico previsto para o contrato de arrendamento comercial.
Depois, se bem interpretamos as alegações de recurso da apelante, apesar de advogar existir matéria de facto que permanece controvertida e que revela para a questão decidenda nos autos, pretende, a título principal, que se julgue procedente o recurso e se revogue o saneador-sentença sob sindicância, por erro de direito, e se substitua o mesmo por acórdão em que se julgue a ação procedente e se condene os apelados no pedido, e apenas, a título subsidiário, solicita que se anule aquele saneador-sentença e se ordene a produção de prova quanto à facticidade que alega (sem que, reafirme-se, a identifique) permanecer controvertida e relevar para a questão decidenda nos autos, quando, salvo melhor opinião, a  ordem da decisão a proferir é precisamente a contrária.
Com efeito, caso se verifique que, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito suscetíveis de serem aplicadas à pretensão de tutela judiciária formulada pela apelante, com fundamento na concreta causa de pedir que alegou na petição, ou quanto às exceções que foram invocadas pelas apeladas em sede de contestação, ou das contra exceções que a apelante opôs a essas exceções na resposta às contestações, existir facticidade integrativa da causa de pedir que foi alegada na petição inicial, ou das exceções que foram alegadas pelas apeladas da contestação, ou das contra exceções que a apelante opôs àquelas exceções nas respostas que apresentou às contestações que permanece controvertida e que, de acordo com as várias soluções jurídicas plausíveis de direito, poderá determinar uma solução de mérito distinta daquela que foi proferida pela 1ª Instância (de improcedência da ação, com a consequente absolvição dos apelados do pedido), conforme antedito, impõe-se anular o saneador-sentença recorrido e ordenar a formulação de temas de prova quanto a essa facticidade alegada e que permanece controvertida e que permita esse eventual enquadramento jurídico distinto do que foi suposto pelo tribunal a quo, seguindo-se a posterior realização de audiência final.
Note-se que, diversamente do pretendido pela apelada EMP02..., Lda., essa decisão impor-se-á, independentemente da apelante não ter identificado nas alegações de recurso a concreta facticidade que, na sua perspetiva, permanece controvertida, uma vez que, tal como já se demonstrou, trata-se de questão que é do conhecimento oficioso da Relação, pelo que, verificado que seja que existe efetivamente matéria de facto que foi alegada e que permanece controvertida e que, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito é suscetível de se projetar na decisão de mérito a proferir quanto ao pedido, exceções ou contra exceções, cumpre ao tribunal ad quem, independentemente de qualquer iniciativa das partes, anular o saneador-sentença recorrido e ordenar a produção de prova quanto a essa concreta facticidade.
Posto isto, a apelante instaurou a presente ação pretendendo que os apelados, EMP02..., Lda. e Banco 1..., S.A., sejam condenados a reconhecerem o direito legal de preferência a que se arroga titular na alienação das frações ..., ..., ... e ... do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, que melhor identificada no art. 1º da petição inicial, com a consequente transmissão do direito de propriedade sobre essas frações para a mesma e, bem assim, se condene a 1ª Ré a pagar-lhe o valor das rendas que vem pagando, desde dezembro de 2022 até ao trânsito em julgado da sentença.
Como fundamento (causa de pedir) dessa pretensão alegou ser arrendatária dessas frações, em virtude da fração ... lhe ter sido cedida pela sociedade EMP03..., Lda., pelo período de 36 meses, a partir de 01/07/2015, prorrogável por períodos sucessivos, mediante um contrapartida mensal de 700,00 euros, a que acresce IVA, por documento escrito outorgado a 22/04/2015, o qual foi objeto de aditamento, por documento escrito outorgado pelas mesmas contratantes, em 26/12/2019, mediante o qual a EMP03..., Lda., lhe cedeu as frações ..., ..., ... e ..., pelo período de 96 meses, com início em 01/01/2020, prorrogável por períodos sucessivos de 12 meses, mediante as contrapartidas mensais que especifica no art. 7º da petição inicial, tudo conforme documentos escritos que junta em anexo à petição inicial como Docs. n.ºs ... e ... e que declara dar “por integralmente reproduzidos, nos termos e para todos os legais efeitos” (cfr. arts. 1º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º da p.i.).
Mais alegou que a sociedade EMP03..., Lda. celebrou um acordo escrito com o Banco 2..., S.A., que qualificaram de “contrato de locação financeira imobiliária”, mediante o qual o último deu àquela “em locação diversas frações”, incluindo as que lhe vieram a ser arrendadas, contrato esse que sustenta ter sido objeto de dois aditamentos, juntando aos autos esse contrato e respetivos aditamentos, em anexo à petição inicial, como Docs. ... a ... (cfr. art. 2º da p.i.).
Alegou ainda que a sociedade EMP03..., Lda., cedeu, em 16/12/2022, a sua posição contratual naquele “contrato de locação financeira” à 1ª Ré, conforme Doc. n.º ..., que junta em anexo à petição inicial (cfr. art. 13º da p.i.); e que, em 30/12/2022, a 1ª Ré e o 2º Réu declararam resolver o contrato de locação financeira celebrado e que, uma vez resolvido esse contrato, este último vendeu à 1ª Ré um total de 175 frações, onde se incluem as frações que lhe tinham sido arrendadas, tudo conforme Doc. n.º ..., que também junta em anexo à petição inicial (cfr. arts. 14º e 15º da p.i.).
Finalmente, alega que nem a 1ª Ré, nem o 2º Réu a notificaram para que exercesse, querendo, o seu direito de preferência que lhe assiste enquanto arrendatária das identificadas frações (cfr. art. 21º da p.i.).
Acontece que, quer a 1ª Ré, EMP02..., Lda., quer o 2º Réu Banco 1..., S.A. opuseram ao pedido da  apelante de exercer o seu pretenso direito legal de preferência, enquanto arrendatária das ditas frações, na alegada compra e venda destas efetuada pelo 2º Réu à 1ª Ré, a exceção perentória da inexistência do direito legal de preferência que esta se arroga titular, sustentando que o contrato que a mesma celebrou (e o respetivo aditamento) com a sociedade EMP03..., Lda., mediante o qual lhe cedeu o gozo das ditas frações autónomas, não consubstancia um contrato de arrendamento comercial, mas antes um contrato atípico, similar ao contrato de utilização de loja em centro comercial, atendo-se nessa sua alegação os Réus exclusivamente ao que ficou clausulado entre a apelante e a sociedade EMP03..., Lda. no contrato escrito datado de 22/04/2015, e no respetivo aditamento de 26/12/2019, juntos em anexo à petição inicial como Docs. n.ºs ... e .... Assim, sustentaram as apelantes, em suma, que: mediante a celebração desse contrato a sociedade EMP03... não só proporcionou à apelante o gozo das frações, mas vinculou-se a prestar-lhe um conjunto de serviços, que se traduzem numa vantagem na perspetiva da promoção da atividade comercial exercida pela mesma, em que as frações cedidas não se integram num prédio qualquer, mas antes num empreendimento comercial, denominado ..., que constitui um espaço construído e concebido para funcionamento de vários estabelecimentos de comércio e de serviços, de acordo com um plano prévio, tecnicamente concebido e que oferece aos lojistas/utilizadores e ao consumidor adequada e diversificada concentração de atividades comerciais e de serviços, permitindo aos mesmos beneficiarem de uma economia de escala, acedendo a um tipo de benefícios ou vantagens (publicidade e comodidades capazes de atraírem a clientela para o local) que, atuando isoladamente, não lograriam realizar (cfr. arts. 8º e ss. da contestação apresentada pela 1ª Ré e arts. 60º e ss. da contestação apresentada pelo Réu Banco 1...).
Acresce que o Réu Banco 1..., S.A., alegou, ainda, como fundamento do afastamento do direito legal de preferência que a apelante se arroga titular na compra e venda das identificadas frações que, o acordo escrito datado de 30/12/2022, celebrado entre aquele e a 1ª Ré foi celebrado ao abrigo de uma campanha que tinha em vigor e que era direcionada a clientes com leasings imobiliários, que permitia a esses clientes converterem os contratos de leasing em contratos de mútuo com hipoteca, em que aquele financiava a aquisição pelos locadores dos bens objeto dos mencionados contratos de locação financeira, tendo sido, nesse contexto, que acordou com a 1ª Ré em extinguirem o contrato de locação financeira celebrado, por exercício antecipado da opção de compra nele previsto, e por intermédio do contrato de mútuo com hipoteca financiou a aquisição pela  1ª Ré das 175 frações, onde se contam as cedidas à apelante (cfr. arts. 10º a 13º da contestação apresentada pelo Réu Banco 1..., S.A.).
No que tange a essa matéria de exceção alegada pelo Réu Banco 1..., S.A., a apelante, nas respostas às contestações de 27/09/2023 e 03/11/2023, limitou-se a sustentar que essa facticidade é “desmentida pelo teor da escritura, da qual resulta que: (1) a EMP03... cedeu a posição de locatária à Ré EMP02... Lda.; (2) esta acordou com o Réu Banco 1... a resolução do contrato de locação financeira imobiliária; e (3) resolvido o contrato e já sem qualquer vínculo contratual, o Réu Banco 1... vendeu às frações à Ré EMP02..., Lda.”, com o que, salvo melhor opinião, impugnou o alegado pelo apelado Banco 1..., S.A..
E quanto à restante matéria de exceção que foi alegada por ambos os apelados, a apelante alegou nas ditas respostas às contestações que, não obstante o clausulado no contrato que celebrou com a EMP03..., Lda. e respetivo aditamento, mediante o qual esta lhe cedeu o gozo das frações em discussão nos autos, que:
- o edifício denominado “...” é um prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, não sendo um centro comercial (cfr. arts. 9º e 10º da resposta de 03/11/2023);
- esse edifício tem condomínio constituído e em funcionamento (cfr. arts. 13º da resposta de 03/11/2023);
- a Ré EMP02..., Lda. não é dona da totalidade das frações que integra o prédio (cfr. arts. 15º e 16º da resposta de 03/11/2023);
- o prédio é gerido como o mais vulgar e paradigmático condomínio (cfr. art. 18º da mesma resposta); e
- o edifício é um simples prédio com lojas no rés-do-chão e escritórios nos pisos superiores, com corredores de acesso aos mesmos, não tendo corredores largos, nem zonas de estar e de lazer, que tenham sido gizados para que as pessoas neles circulem e permaneçam, consumindo nas diversas lojas comerciais que o integram (cfr. arts. 19º e 20º daquela resposta).
No saneador-sentença sob sindicância, abstraindo totalmente da alegação da apelante que se acaba de transcrever e valendo-se exclusivamente do clausulado no acordo escrito celebrado, em ../../2015, entre a apelante e a sociedade EMP03..., Lda., e no respetivo aditamento de 26/12/2019, isto é, no teor dos documentos juntos pela apelante como Docs. n.º ... e ... em anexo à petição inicial, a 1ª Instância concluiu que: “à luz da jurisprudência dominante, não se vislumbra como circunscrever o contrato em causa no radar do arrendamento, designadamente, para efeitos de direito de preferência. Afinal, do suprarreferido contrato verifica-se uma similitude com os fundamentos que levaram a jurisprudência a concluir que os contratos de utilização de loja em centro comercial se subsumiam à figura do contrato atípico”. E concluiu que: “o paralelismo é tal que nos leva a afastar o contrato em causa do âmbito do regime do contrato de arrendamento para efeitos de direito de preferência” e, em consequência, julgou a ação improcedente e absolveu os apelados do pedido.
 O acordo escrito outorgado, em 22/04/2015, entre a apelante e a sociedade EMP03..., Lda., e, bem assim, o aditamento a esse contrato, outorgado entre aquelas, em 26/12/2019, juntos em anexo à petição inicial como Docs.  ... e ..., consubstanciam documentos particulares (arts. 362º, 363º, n.ºs 1 e 2 do CC).
Apesar de apelante e apelados não terem invocado a falsidade desses documentos, nem terem impugnado as assinaturas que nele se encontram apostas, não tendo o apelado Banco 1..., S.A. (ou o seu antecessor, Banco 2..., S.A.) sido parte neles contratantes, ou seja, sendo estranhos a esses documentos, o contrato em análise e o respetivo aditamento fica submetida ao princípio da livre apreciação da prova.
Porém, o teor do clausulado nesse contrato (e respetivo clausulado) não foi impugnado pelas partes e, consequentemente, encontra-se provado.
Contudo, salvo melhor opinião, nem esse clausulado permite concluir que as obrigações que nele foram assumidas pela apelante e pela EMP03..., Lda. tenham sido efetivamente (em termos ontológicos) cumpridas, nem permite apreender em que medida em que o nele se encontra clausulado (ainda que cumprido) torna similar (ou não) aquele empreendimento a um centro comercial e, portanto, não contradiz a facticidade que foi alegada pela apelada na resposta às contestações que acima se transcreveu e que configura matéria de contra exceção às exceções invocadas pelas apeladas nas contestações de que o empreendimento (“...”), atenta a sua configuração, obrigações assumidas pela EMP03..., Lda. perante aquela e que se encontram espelhadas no contrato (e respetivo aditamento) que celebraram e que efetivamente lhe presta faz do empreendido em causa uma realidade económica e social que em tudo é similar a um centro comercial e que, também o contrato celebrado entre a apelante e a EMP03..., Lda. (e seu aditamento) deva ser juridicamente qualificado como um contrato atípico, cuja disciplina jurídica fica sujeita à liberdade contratual, tal como sucede com o contrato de utilização de loja em centro comercial.
No saneador-sentença recorrido a 1ª Instância limitou-se ao clausulado naquele contrato e respetivo aditamento.
Ora, conforme acabado de referir, esse clausulado a que se ateve exclusivamente a 1ª Instância no saneador-sentença recorrido não se extrai (nem a 1ª Instância ou as partes extraíram semelhante conclusão) que o “...” onde se localizam as frações cedidas à apelante configure um “centro comercial” e que a conceção técnica desse empreendimento e as obrigações que foram assumidas pela EMP03..., Lda. perante a apelante no contrato que celebraram sejam de molde a integrar os ocupantes das lojas e dos diversos escritórios que constituem aquele empreendimento numa realidade especial – o centro comercial/ou num empreendimento com características similares –, em que esta realidade económico-social especial funciona ela própria como uma empresa, permitindo aos lojistas integrar-se num complexo imobiliário, composto por diversas lojas, com comércios e serviços variados e complementares e por espaços comuns de lazer, num todo organizado, capaz de atrair clientela e proporcionar-lhes maiores lucros.
Acresce referir que, se é certo ser atualmente maioritário (se não praticamente pacífico) o entendimento doutrinário e jurisprudencial  de que o contrato de utilização de loja em centro comercial configura um contrato atípico, que tem por objeto a cedência do gozo de uma loja integrado num centro comercial e a prestação de um conjunto de serviços essenciais que respeitam não só ao rendimento do espaço em si, mas também ao funcionamento dos bens e serviços de interesse comum, possibilitando a utilização daquele espaço com os benefícios inerentes à organização e manutenção daquela realidade empresarial em funcionamento, que é o centro comercial, em que a obrigação assumida pelo locador/entidade gestora do centro não revestem a natureza de dever acessório de conduta, nem de dever acessório de prestação principal, fazendo, antes, parte do dever principal que constitui o cerne daquela obrigação, e em que a prestação pecuniária paga pela utilização de um espaço não é devida pela simples cedência do espaço em si, mas pela cedência de um espaço especial, capaz de atrair clientela e proporcionar maiores lucros, por se encontrar integrado no referido todo organizado e valorizado[5], não convém desconsiderar que nem todos os denominados “centros comerciais” ou espaços similares gozam do mesmo modelo organizativo que permita a sua individualização e considerá-los como constituindo uma realidade económico-social distinta face ao tradicional contrato de arrendamento comercial ou, pelo menos, o afastamento da figura do contrato misto de locação e de prestação de serviços.
 Com efeito, conforme escreve Pedro Romano Martinez, se em relação “aos grandes centros comerciais que, nas últimas dezenas de anos, se instalaram no país, não é de pôr em causa a natureza atípica de contratos de instalação de lojistas, pelo menos como, na maior parte das vezes, estes negócios se apresentam”, em que se verifica “uma integração do lojista no conjunto formado pelo centro, com base numa prévia seleção, condicionada por fatores empresariais diversos”, em que “o centro comercial, para além de prestar inúmeros serviços, ele próprio constitui uma empresa em funcionamento” e em que, por isso, “a atividade dos lojistas não teria o mesmo sentido sem as infraestruturas da empresa em que se instalou, como sejam os parques de estacionamento, os elevadores, as escadas rolantes ou a decoração”, e em que “o centro comercial  foi concebido em termos de distribuição de lojas por zonas e andares, de enquadramento do comércio com a restauração (fixando zonas para restaurantes, bares, etc.) e atividades lúdicas, nomeadamente salas de cinema”, em que a esses aspetos “acresce a propaganda realizada pelo centro em benefício dos vários lojistas”, concluindo que, em tais casos, “a cessão do gozo de um espaço num imóvel integra-se num contrato complexo, perdendo autonomia. O centro comercial, ao ceder o espaço, integra o lojista na empresa e, por isso, o contrato em questão é atípico”, logo adverte que nem todos os centros comerciais apresentam a situação factual descrita. “Principalmente nos pequenos centros comerciais e nas galerias comerciais, o organizador dos mesmos limita-se a ceder os espaços em tosco, obrigando-se, por vezes, a fornecer serviços de limpeza e segurança que são cobrados aos lojistas”. E conclui que, “nestes casos em que cabe aos próprios lojistas montar o seu estabelecimento num espaço que lhes é cedido, sem qualquer integração empresarial, o contrato de cedência do espaço deve ser qualificado como de locação, podendo eventualmente tratar-se de um contrato misto de locação e de prestação de serviços”[6].
Revertendo ao caso em análise, não sendo indiscutivelmente o “...”, um centro comercial e não permitindo o clausulado no contrato celebrado entre a apelante e a sociedade EMP03..., Lda. e respetivo aditamento, junto aos autos em anexo à petição inicial como Docs. n.ºs ... e ..., com base nos quais os apelados sustentaram a matéria de exceção em função da qual o contrato em análise não configuraria um contrato de arrendamento, mas antes um contrato similar ao contrato de utilização de loja em centro comercial, salvo o devido respeito por posição contrária, não podia a 1ª Instância, com base exclusivamente nesse clausulado concluir em igual sentido, quando se verifica que a apelante opôs à dita exceção perentória invocada pelos apelados, nas respostas às contestações de 27/09/2023 e de 03/11/2023, que:
- O edifício denominado “...” é um prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, não sendo um centro comercial (cfr. arts. 9º e 10º da resposta de 03/11/2023);
- Esse edifício tem condomínio constituído e em funcionamento (cfr. arts. 13º da resposta de 03/11/2023);
- A Ré EMP02..., Lda. não é dona da totalidade das frações que integra o prédio (cfr. arts. 15º e 16º da resposta de 03/11/2023);
- O prédio é gerido como o mais vulgar e paradigmático condomínio (cfr. art. 18º da mesma resposta); e
- O edifício é um simples prédio com lojas no rés-do-chão e escritórios nos pisos superiores, com corredores de acesso aos mesmos, não tendo corredores largos, nem zonas de estar e de lazer, que tenham sido gizados para que as pessoas neles circulem e permaneçam, consumindo nas diversas lojas comerciais que o integram (cfr. arts. 19º e 20º daquela resposta).
Na verdade, tendo essa facticidade sido alegada pela apelante como contra exceção à exceção perentória que fora alegada pelas apeladas nas contestações, a mesma permanece controvertida, apesar de relevar para a questão decidenda, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito quanto à qualificação jurídica do contrato celebrado entre a apelante e a EMP03..., Lda., por contender, nomeadamente, com as concretas características do empreendimento denominado “...”, com as específicas obrigações que foram assumidas pela EMP03..., Lda. perante a apelante no âmbito do denominado “Contrato de Cedência de Espaço” que com ela celebrou (e respetivo aditamento) e com os serviços que efetivamente lhe presta, tudo, por forma a apurar-se da invocada similitude (ou não) desse empreendimento com um verdadeiro e real centro comercial e da consequente similitude (ou não) do contrato e  do respetivo aditamento celebrado entre a apelante e a EMP03..., Lda., tendo por objeto as identificadas frações, com o contrato de utilização de loja em centro comercial, ou se antes se trata de um contrato de arrendamento comercial, ou ainda perante um contrato misto de arrendamento comercial e de prestação de serviços.
Nesta sede impõe-se, aliás, precisar que o alegado pela apelante de que a Ré EMP02..., Lda. não é dona da totalidade das frações que integra o prédio e o empreendimento, consubstancia facticidade que apenas pode ser provada através de documento autêntico, mais concretamente, através de certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial relativa à constituição do  prédio em que se situa o denominado “...” em propriedade horizontal e das concretas frações que integram esse prédio e aquele empreendimento (no caso deste não abranger todo o prédio) e, bem assim, das frações desse prédio constituído em propriedade horizontal (ou da parte dele que constitui o identificado empreendimento) cuja propriedade se encontre inscrita no registo em nome de terceiro, que não a apelada EMP02..., Lda.
As mencionadas certidões prediais não se encontram juntas aos autos, pelo que, nos termos do disposto no art. 590º, n.º 2, al. a) do CPC, impunha-se que a 1ª Instância, no exercício do poder-dever que lhe é conferido por essa disposição legal (e cujo incumprimento, quando se projeta na sentença ou no saneador-sentença, como, em princípio, seria o caso, determina a sua nulidade[7]) notificar a apelante para que juntasse aos autos, em prazo que lhe deveria fixar, as referidas certidões emitidas pela Conservatória do Registo Predial destinadas a fazerem prova do que por ela foi alegado.
Por sua vez, a alegação da apelante de que “o prédio é gerido como o mais vulgar e paradigmático condomínio”, porque se trata de uma alegação conclusiva, demandava que a 1ª Instância, nos termos do disposto nos arts. 590º, n.º 4 do CPC, no exercício do poder-dever vinculado que lhe é conferido por essa norma, tivesse, em princípio, notificado a apelante para suprir as insuficiências alegatórias, alegando os factos concretos que permitiam que assim tivesse concluído, factos esses que, naturalmente, ficariam sujeitos ao contraditório dos apelados, nos termos do n.º 5 do art. 590º.
Destarte, conforme sustenta a apelante acontecer, a qualificação do empreendimento “...” como realidade económica e social similar a um centro comercial e a qualificação do contrato (e respetivo aditamento) celebrado entre aquela e a sociedade EMP03..., Lda. como contrato atípico (cujo regime jurídico, à semelhança do contrato de utilização de loja em centro comercial, ficou submetido ao regime jurídico acordado entre os contratantes), operado no saneador-sentença, revelou-se efetivamente prematuro, perante a facticidade de contra exceção que permanece controvertida e que foi alegada pela mesma nas respostas às contestações.

Avançando…
Considerou o julgador a quo no saneador-sentença recorrido que, ainda que se considerasse que o contrato (e respetivo aditamento) celebrado entre a apelante e a sociedade EMP03..., Lda., tendo por objeto as frações em discussão nos autos consubstanciava um contrato de arrendamento comercial, que a apelante “não beneficiava de direito de preferência na qualidade de arrendatária (em rigor, subarrendatária)”, na medida em que, “como se refere no contrato de cedência de espaço, a EMP03... é locatária financeira, isto é, a mesma não é proprietária do imóvel, mas locatária financeira. (…). É com base nesta locação financeira que a locatária, a EMP03..., a proprietária económica contrata com a autora. Ora, a entender-se que este contrato é de natureza locatícia, então, terá se se concordar que se trata de uma sublocação, pois esta, nos dizeres do art. 1060º do CC, é quando o locador a celebra com base no direito de locatário que lhe advém de um precedente contrato locativo. Contudo, o art. 1091º do CC, atribui o direito de preferência ao arrendatário e não ao subarrendatário” e, também, por aqui, julgou improcedente a ação e absolveu os apelados do pedido. 
Acontece que a apelante imputa ao assim decidido erro de direito, advogando que “erra, de modo flagrante, o Insigne Tribunal a quo ao sustentar que a transmissão dos imóveis para a EMP04... ocorreu ao abrigo do exercício da opção de compra no âmbito de contrato de locação financeira imobiliária. Tal não só não é verdade, como é desmentido pela própria escritura, da qual resulta que a EMP03... cedeu a posição de locatária à EMP04...; que esta acordou com o Banco 1... a resolução do contrato de locação financeira imobiliária; e que, resolvido o contrato, e já sem qualquer vínculo contratual, o Banco 1..., na qualidade de proprietário das frações em apreço, desoneradas, as vendeu à EMP04...” (conclusões 16ª e 17ª).
O erro de direito que a apelante imputa ao decidido funda-se exclusivamente na interpretação literal que emerge do teor do contrato celebrado, em ../../2022, entre o apelado Banco 1..., S.A. e a apelada EMP02...”, intitulado de “Compra e venda”, junto em anexo à petição inicial como Doc. n.º ..., em que os aí contratantes declararam acordar “na resolução do contrato de locação financeira” (celebrado entre o Banco 2..., S.A. e a sociedade EMP03..., Lda., em 26/06/2012, e objeto de dois aditamentos – cfr. art. 2º da p.i.) e em que, “em consequência da referida resolução do contrato de locação financeira, o Banco 1... declarou vender à sociedade EMP02..., Lda.”, pelo preço já recebido e calculado em 26 do corrente mês de dezembro, de 10.883.664,51 euros as referidas frações autónomas”.
Ora, tendo o apelado Banco 1..., S.A., em sede de exceção perentória de inexistência do direito legal de preferência que a apelante se arroga titular na compra e venda das frações que lhe foram cedidas pela sociedade EMP03..., Lda., alegado (na contestação) que o contrato acabado de referir foi celebrado entre aquele e a 1ª Ré ao abrigo da opção de compra antecipada por parte da locatária (a 1ª Ré) que lhe era conferido nos termos da cláusula 11º do contrato de locação financeira celebrado, em que, ao abrigo de uma campanha publicitária que levara a cabo e que tinha em vigor, direcionada a clientes com leasings imobiliários, financiou a conversão daquele contrato de locação financeira imobiliária num contrato de mútuo com hipoteca, que permitiu à 1ª Ré fazer aquela opção de compra, tendo sido, nesse contexto, que acordaram na extinção do contrato de locação financeira por exercício antecipados da opção de compra (cfr. arts. 10º a 13º da contestação apresentada pelo apelado Banco 1..., S.A.), tendo essa facticidade sido impugnada pela apelante nas respostas a essa contestação, tendo em consideração as regras interpretativas dos negócios jurídicos que se encontram enunciadas nos arts. 236º a 238º do CC, e tendo presente que a busca da vontade real dos declarantes e o seu conteúdo constitui matéria de facto[8], naturalmente que a facticidade assim alegada pelo Réu Banco 1... não pode deixar de assumir relevância, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito, quanto à referida decidenda nos autos, pelo que, neste conspecto, a decisão recorrida também seria prematura.
Finalmente, considerou a 1ª Instância, no saneador-sentença recorrido, que, “antes de declararem a compra e venda, a Ré EMP02..., Lda. e o Banco 1..., S.A. declararam resolver o supra denominado contrato de locação financeira”, pelo que, nos termos do art. 1051º, al. c) do CC, sempre se imporia concluir que o pretenso contrato de arrendamento comercial celebrado entre a apelante e a EMP03..., S.A. teria caducado.
A apelante imputa ao decidido erro de direito alegando, além do mais, que: “tem vindo a pagar as prestações mensais à EMP04..., a título de rendas, despesas e encargos, desde a data em que esta adquiriu o direito de propriedade sobre as frações, até ao presente, e, naturalmente, continuará a pagar as rendas que se vencerem até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na presente ação”.
No art. 25º da petição inicial a apelante alegou que “já pagou à Ré EMP02..., Lda.”, a título de renda, despesas e encargos, desde a data em que esta adquiriu o direito sobre as frações os seguintes valores: (passando a concretizá-los), e juntou aos autos, como Docs. ... a ...4, em anexo à petição inicial as respetivas faturas.
Essa facticidade não foi impugnada pela apelada EMP02..., Lda., a qual, inclusivamente, juntou aos autos, como DOC. n.º ..., em anexo à contestação, uma carta, registada com a/r, datada de 05/01/2023, em que se lê: “Serve a presente para informar V. Exas. que, por escritura de compra e venda realizada no pretérito dia 30 de dezembro de 2022, a sociedade signatária adquiriu o prédio urbano sito na Avenida ..., n.ºs (…), nomeadamente, as frações designadas pelas letras ..., ..., ... e ..., (…), que se encontram atualmente cedidas a V. Exas, (…). Em face do exposto, a atual proprietária das frações é, para todos os legais efeitos, a sociedade signatária, (…), a quem V. Exas deverão, doravante, efetuar o pagamento das contrapartidas mensais referentes às mensalidades de janeiro de 2023 e seguintes para o IBAN (…)”.
Sucede que, a facticidade alegada pelo apelante no identificado art. 25º da petição inicial, foi impugnado pelo apelado Banco 1..., S.A. (cfr. art. 6º da contestação), pelo que essa facticidade encontra-se controvertida.
Daí que, perante as várias soluções plausíveis de direito quanto à questão decidida pela forma supra descrita pela 1ª Instância, impunha-se, em princípio, elaborar tema da prova quanto os referidos pagamentos que a apelante vem alegadamente efetuando à 1ª Ré e quanto às circunstâncias (a que título) em que vem efetuando os mesmos à apelada EMP02..., Lda.  
Resulta do excurso antecedente que, contrariamente ao decidido pela 1ª Instância, o estado do processo não lhe permitia, sem necessidade de mais provas, conhecer imediatamente das questões acabadas de referir e que conheceu no saneador-sentença recorrido, o que não significa que, independentemente do referido, não pudesse desde já conhecer nele do pedido, por este, atenta a relação jurídica delineada pela apelante na petição inicial (causa de pedir), ser manifestamente improcedente.
Com efeito, como bem foi alegado pelo apelado Banco 1..., S.A., a aceitar-se que a relação contratual existente entre a apelante e a EMP03..., Lda. e, posteriormente, transferida para a apelada EMP02..., Lda., tem natureza locatícia, então essa relação contratual seria uma sublocação, porque dependente de um prévio contrato de locação financeira na qual a apelante sustenta a legitima utilização do imóvel. É que, conforme resulta da própria causa de pedir alegada pela apelante na petição inicial, esta não celebrou qualquer contrato de arrendamento com o Banco 2..., S.A. (antecessor do apelado Banco 1..., S.A.), proprietária das frações, mas antes celebrou esse pretenso contrato (de arrendamento) com a EMP03..., S.A., que era mera locatária financeira das frações que pretensamente lhe foram arrendadas. Por conseguinte, a não ter esse pretenso contrato arrendamento que celebrou com a locatária financeira (a EMP03..., Lda., posteriormente, transferido para a 1ª Ré) tendo por objeto essas frações caducado em consequência da resolução do contrato de locação financeira operada pelos apelados (conforme foi decidido no saneador-sentença sob sindicância, mas em relação ao que a apelante não se conforma, imputando ao decidido erro de direito), então, porque esse pretenso contrato de arrendamento não foi celebrado com o proprietário das frações (o Banco 2..., S.A., agora o apelado Banco 1..., S.A.), por via do princípio da eficácia relativa dos contratos, incluindo, do identificado pretenso contrato de arrendamento celebrado entre apelante e a EMP03..., Lda., não assiste à apelante o direito de preferência legal do art. 1091º, n.º 1, al. a) do CC.
Vejamos: 
O art. 1091º, n.º 1, al. a) do CC, na redação introduzida pela Lei n.º 64/2018, de 29/10, confere ao arrendatário um direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos.
Trata-se de um direito legal de preferência, por derivar diretamente da lei, em que visando permitir o acesso do arrendatário à propriedade de prédio que lhe esteja arrendado há mais de dois anos, por razões de interesse e ordem pública[9], o legislador conferiu o direito àquele de, em determinadas condições (ser arrendatário do prédio há mais de dois anos), caso o senhorio decida vendê-lo ou transmiti-lo em dação em cumprimento a terceiro, poder adquirir a respetiva propriedade em igualdade de condições das oferecidas por esse terceiro interessado na sua aquisição.
Por isso, “a essência do direito de preferência está na circunstância de se atribuir ao respetivo titular prioridade ou primazia na celebração de certo negócio, desde que ele manifeste vontade de o realizar nas mesmas condições (tanto por tanto) que foram acordadas entre o sujeito vinculado à preferência e um terceiro”[10].
O direito legal de preferência confere, por um lado, ao preferente (arrendatário) um verdadeiro direito de crédito sobre o obrigado à preferência (senhorio) de o ter de notificar caso decida vender ou transmitir em dação em cumprimento o arrendado, dando-lhe conhecimento dos termos do negócio que projeta celebrar com o terceiro (prestação positiva de facere), e um direito potestativo de, na sequência dessa notificação, declarar que pretende preferir, adquirindo o prédio nas mesmas condições que são oferecidas pelo terceiro interessado na sua aquisição. Essa declaração, “conjugada com a do notificante, dará origem a uma relação creditória equiparável, pelo seu conteúdo e efeitos, a um contrato-promessa bilateral, ou tornará mesmo perfeito o contrato definitivo, se em ambas as declarações (a do obrigado à preferência, que equivale a uma proposta de contrato, e a do preferente, que se traduz na aceitação dessa proposta) houver sido observada a forma exigida para a celebração deste contrato; finalmente, o direito (creditório) de exigir, após ter declarado a vontade de exercer a preferência, que o obrigado a esta realize com ele o negócio projetado, sempre que aquela declaração não baste para a consumar”[11].
De acordo com a doutrina e a jurisprudência maioritárias o direito legal de preferência consubstancia um verdadeiro real de aquisição, na medida em que é oponível ao terceiro adquirente da coisa e é igualmente atendível nos processos de execução ou de liquidação, como a insolvência, não carecendo esse direito de ser registado por ser de presumir que é conhecido de toda a gente, pela própria natureza das coisas[12].
O direito legal de preferência recai, conforme antedito, sobre o senhorio quando decida vender o prédio arrendado, ou transmiti-lo em dação em cumprimento, e o arrendatário detenha essa qualidade perante o senhorio (transmitente da propriedade do arrendado) há mais de dois anos.
Ora, tendo presente a causa de pedir alegada pela apelante na petição inicial para fundamentar o direito de preferência de compra e venda das frações ..., ..., ... e ..., vendidas pelo Réu Banco 1..., S.A. à Ré “EMP02..., Lda.”, a qualidade de arrendatária de tais frações não lhe advém de qualquer contrato de arrendamento que tivesse celebrado com o apelado Banco 1..., S.A. ou com o antecessor deste (Banco 2..., S.A.”, proprietário das frações, posto que é a própria apelante que alega naquele articulado inicial que as frações lhe foram dadas (pretensamente) de arrendamento pela sociedade EMP03..., Lda., enquanto locatária financeira, no âmbito de um contrato de locação financeira que celebrou com o Banco 2..., Lda..
Sendo o contrato de locação aquele pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um coisa, mediante retribuição (art. 1022º do CC), tendo, por isso, o contrato de arrendamento apenas efeitos obrigacionais, por força do princípio da relatividade dos contratos, as obrigações que dele emergem  apenas vinculam os neles contratantes, não vinculando os terceiros, designadamente, no que ao caso dos autos interessa, o Banco 2..., S.A., que à data da celebração desse pretenso contrato de arrendamento era proprietário das frações que a sociedade EMP03..., Lda., enquanto locatária financeira, arrendou à apelante, de onde é indiscutível que o contrato de arrendamento celebrado pela apelante com a EMP03... (posteriormente transmitida para a apelada EMP02..., Lda.) não é oponível, nem vincula a proprietária das frações, ou seja, o locador financeiro (Banco 2..., S.A., atualmente, o apelado Banco 1..., S.A.), proprietário daquelas frações, não conferindo, por isso, à apelante a qualidade de arrendatária dessas frações perante o último, proprietário daquelas (que sucedeu ao Banco 2..., S.A., na propriedade das frações em causa e no contrato de locação financeira que celebrou com a EMP03..., S.A.), que, por isso, não pode ver a sua liberdade contratual limitada de as vender a quem entenda, por força do art. 1091º, al. a) do CC, por via de um contrato de arrendamento celebrado entre a locatária financeira (a EMP03..., Lda., atualmente, a apelada EMP02..., Lda.) ao qual é alheio.
Com efeito, o direito legal de preferência que o mencionado preceito confere ao arrendatário apenas se verifica nos casos em que o senhorio decida vender ou dar em dação em cumprimento o arrendado a um terceiro e o contrato de arrendamento celebrado entre o senhorio e o arrendatário vigore há mais de dois anos, o que pressupõe que o senhorio seja proprietário do arrendado, o que não é o caso dos autos.
Neste sentido expende Aragão Seia que: “Os atos de alienação ou de constituição de direitos sobre o prédio, não prejudicam o direito do preferente por, em relação a ele, serem ineficazes, tendo este o direito de o adquirir nos mesmos termos em que foi vendido. Se o local foi dado de arrendamento pelo proprietário e, no decurso dele, o direito de propriedade veio a desmembrar-se em nua propriedade e usufruto, o arrendatário pode preferir na venda ou dação em cumprimento de qualquer desses direitos que, conjuntamente, integram o direito de propriedade, sob pena de o arrendatário poder vir a ser lesado, já que é o usufrutuário que passa a ser o senhorio e, como tal, a exercer os respetivos direitos. É que o usufruto, como jus in re aliena, representa uma compressão ou limitação do direito de propriedade e este, dada a sua elasticidade, só retoma a amplitude primitiva pela extinção daquele. Se o local foi dado de arrendamento pelo usufrutuário, o arrendatário só poderá preferir na venda ou dação em cumprimento do direito de usufruto,  já que o nu proprietário é alheio ao arrendamento[13].
Destarte, alegando a apelante, em termos de causa de pedir (na petição inicial), que o pretenso contrato de arrendamento tendo por objeto as frações que identifica foi celebrado entre aquela e a sociedade EMP03..., S.A., esta última enquanto locadora no contrato de locação financeira que celebrou com o Banco 2..., S.A., tendo esse pretenso contrato de arrendamento eficácia meramente obrigacional, não produzindo, por isso, efeitos vinculativos em relação a terceiros, nomeadamente, quanto ao locador financeiro (Banco 2..., S.A., agora, o apelado Banco 1..., S.A.), proprietário de tais frações, em relação ao qual é alheio, não se verificam os requisitos legais do art. 1091º, n.º 1, al. a) do CC para lhe ser conferido o direito legal de preferência prevista nessa disposição legal, porquanto, o proprietário das frações (o apelado Banco 1..., S.A.) não celebrou com aquela qualquer contrato de arrendamento, mas antes a última celebrou o alegado contrato de arrendamento com quem não era proprietária das frações que lhe foram pretensamente arrendadas, mas apenas locatária financeira destas (a sociedade EMP03..., Lda.) e, por isso, mera locadora daquelas.
A entender-se que, na sequência da resolução do identificado contrato de locação financeira, o pretenso contrato de arrendamento não caducou (conforme foi decidido pela 1ª Instância no saneador-sentença sob sindicância, mas não é aceite pela apelante), não se verificam os pressupostos legais da al. a), do n. 1, do art. 1091º, n.º 1, al. c) para ser conferido o direito legal de preferência nele consagrado em relação ao proprietário das ditas frações, isto é, o apelado Banco 1..., S.A., uma vez que este é alheio ao pretenso contrato de arrendamento celebrado entre a apelante e a sociedade EMP03..., Lda..
Daí que a pretensão de tutela judiciária (pedido) deduzido pela apelante na petição inicial, com fundamento na pretensa causa de pedir que alegou nesse articulado inicial seja manifesta improcedente, impondo-se que, a 1ª Instância, no saneador-sentença tivesse imediatamente conhecido do pedido, julgando-o improcedente (como fez), com os concretos fundamentos que se acabam de enunciar, por os autos já conterem todos os elementos de facto que, segundo as várias soluções plausíveis de direito suscetíveis de serem aplicados a esse fundamento, permitir dele conhecer e, em consequência, julgar antecipadamente improcedente a ação e absolver os apelados do pedido.
Resulta do que se vem dizendo que, embora com fundamentos distintos dos que foram sufragados pela 1ª Instância, impõe-se concluir pela improcedência da presente apelação e, em consequência, confirmar a decisão de mérito constante do saneador-sentença recorrido.
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Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- O conhecimento do mérito da causa em sede de saneador-sentença apenas é admissível quando, findos os articulados, toda a facticidade que, de acordo com as várias plausíveis de direito sobre as questões decidendas, se mostre provada por documento, confissão ou por acordo, de modo que a matéria de facto que permaneça controvertida, qualquer que seja essa solução jurídica que se dote quanto a essas questões, o resultado dessa facticidade que permanece controvertida seja insuscetível de se projetar na decisão final a proferir quanto àquelas, determinando um resultado diverso do proferido pelo julgador.
2- O direito legal de preferência do art. 1091º, n.º 1, al. a) do CC confere ao arrendatário de prédio arrendado há mais de dois anos um direito real de aquisição., que, por um lado, lhe confere um direito de crédito sobre o senhorio de o ter de notificar caso decida vender ou transmitir em dação em cumprimento o arrendado, informando-o dos termos do negócio que projeta celebrar com terceiro; e, por outro, lhe confere o direito potestativo de, na sequência dessa notificação, adquirir o arrendado nas mesmas condições oferecidas pelo terceiro interessado na sua aquisição.
3- O contrato de arrendamento tem eficácia meramente obrigacional, pelo que, alegando a autora (a título de causa de pedir) ser arrendatária de frações que lhe foram arrendadas há mais dois anos por locador financeiro, que celebrou o arrendamento na sequência de um contrato de locação financeira que celebrou com um banco (locatário financeiro e, por conseguinte, proprietário das frações arrendadas), e que locador e locatário financeiros resolveram o identificado contrato de locação financeira, vindo logo após, no mesmo documento, o banco (ex-locador financeiro) a vender as frações arrendadas ao ex-locatário financeiro, não assiste à autora o direito legal de preferência nessa compra e venda, porquanto, não detém perante o proprietário das frações a qualidade de “arrendatária”.
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V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em, com os fundamentos acima expostos, julgar a presente apelação improcedente e, em consequência, confirmam a decisão de mérito constante da parte dispositiva do saneador-sentença recorrido.
*
Custas da apelação pela apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.
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Guimarães, 14 de março de 2024

José Alberto Moreira Dias – Relator
Gonçalo Oliveira Magalhães – 1º Adjunto
José Carlos Pereira Duarte – 2º Adjunto                 

   

[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, págs. 721 e 722.
[3] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, págs. 293 a 295.
[4] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, págs. 383 a 384.
[5] Acs. STJ., de 10/09/2020, Proc. 3454/16.08LRA.C1.S1; R.L., de 09/02/2017, Proc. 11378/16.4T8SNT.L1-2; R.P., de 19/02/2015, Proc. 709/14.1TBPVZ-A.P1, in base de dados da DGSI, onde constam os restantes acórdãos que se venha a fazer referência, sem menção em contrário; Antunes Varela, “Centros Comerciais (Shopping Centers) Natureza Jurídica dos Contratos de Instalação dos Lojistas, Coimbra Editora, 1995, em que, a fls. 51 a 52,  onde expende: “Para que haja contrato de instalação de lojistas num centro comercial é naturalmente necessário que exista a prévia constituição da nova unidade global que é o centro, e que os lojistas, ao explorarem a loja que lhes é entregue, pretendam integrar-se nessa organização. E para que a organização funcione como tal, como verdadeiro shopping center, é necessário que o fundador ou o organizador assuma outras obrigações, que possibilitem o exercício concertado da atividade comercial dos múltiplos lojistas, nos termos integrados em que ele foi planeado”. E conclui, a fls. 57 a 58: “Fica assim inquestionavelmente demonstrado, quer pela análise estrutural da relação, quer pelo exame funcional do ato, que o contrato de instalação de cada um dos lojistas no centro comercial (shopping center), nem se reduz, quanto à sua complexa natureza jurídica, a um simples contrato de locação, nem cabe sequer no esquema angular do contrato misto de locação e prestação de serviços. Por um lado, no conjunto das vantagens patrimoniais normalmente proporcionadas ao lojista pelo fundador, criador ou organizador do centro cabem a cada passo elementos (como a proximidade de estabelecimentos com excecional poder de atração sobre o público, a existência de jogos para crianças, a criação de zonas de lazer, a utilização de parques de estacionamento, a fruição de coisas de uso comum, etc.) que, embora de incontestável expressão económica, não cabem nem no simples gozo do imóvel onde a loja se situa, nem no simples esquemas dos serviços relativamente aos quais o lojista dispõe de um verdadeiro direito de crédito. Por outro lado, a instalação do comerciante na loja do centro tem como escopo principal a integração do lojista no conjunto organizado de atividades comerciais que constituem o tenant mix específico de cada nova unidade global, inteiramente estranha ao contrato de locação, mesmo de locação de estabelecimento comercial”.
[6] Pedro Romano Martinez, “Contratos Comerciais”, Principia, págs. 30 e 31.
[7] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 707, notas 47 e 48.
[8] Acs. STJ., de 11/11/1992, Proc. 003424; de 16/05/1989, Proc. 078604; RG., de 06/02/2020, Proc. 6986/18.8T8BR-G1
[9] Ac. T.C. n.º 299/2020, publicado no D.R. n.º 183, 1ª Série, de 18/09/2020, págs. 16 e ss., onde se pondera que: “O direito legal de preferência do arrendatário urbano com finalidade comercial, industrial, profissão libera, ou habitacional, e do arrendatário rural destina-se a proteger as organizações produtivas, a estabilidade da habitação e o trabalho rural.
[10] Henrique Mesquita, “Obrigações Reais e ónus Reais”, Almedina, 1990, pág. 189.
[11] Henrique Mesquita, ob. cit., págs. 225 a 228; em igual sentido, Antunes Varela, RLJ, ano 105, págs. 12 a 13, em que expende que: “Por um lado, o preferente é titular de um verdadeiro direito de crédito, quer a preferência tenha, quer não tenha eficácia real, como sucede com os direitos legais de preempção, a preferência atribui ainda a esse sujeito a titularidade de um direito real de aquisição”.
[12] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10ª ed., Almedina, pág. 379; Acs. STJ. de 29/04/2020, Proc. 81/05.0TBMTS.P1.S1; de 27/11/2018, Proc. 1458/17.1T8PRT.P1.S1; R.G., de 19/10/2017, Proc. 1832/15.0T8GMR.G1.
[13] Jorge Alberto Aragão Seia, “Arrendamento Urbano”, 6ª ed., Almedina, págs. 291 e 292.