QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
CONTABILIDADE ORGANIZADA
PRESUNÇÃO INILIDÍVEL
Sumário

I – Ao contrário do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, que estabelece presunções inilidíveis de insolvência culposa (que alguma doutrina e jurisprudência prefere qualificar como “ficções legais”), o n.º 3 consagra meras presunções relativas de culpa grave, não dispensando a prova do nexo de causalidade entre a conduta do administrador e a situação de insolvência.
II – Para os efeitos da presunção prevista no artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE, o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada será substancial quando comprometer ou afectar de modo relevante as finalidades dessa obrigação: dar a conhecer, de forma completa, rigorosa e fiável, a situação patrimonial e financeira da entidade a que respeita.
III – A verificação objectiva desta situação é suficiente para se considerar preenchida a base da presunção de insolvência culposa, sem necessidade de demonstração das intenções subjacentes ao comportamento em causa.
IV – As finalidades da obrigação de manter contabilidade organizada ficam comprometidas quando a contabilidade nem sequer exista, caso em que ocorre um incumprimento absoluto e, necessariamente, substancial daquele dever.
V – Embora a situação descrita no artigo 186.º, n.º 3, al. b), do CIRE, não seja, por si só, susceptível de criar ou agravar a situação de insolvência, a sua verificação apenas faz presumir a culpa grave, não dispensando a prova do nexo causal entre a actuação dos administradores e a criação ou o agravamento da insolvência.

Texto Integral

Processo n.º 1872/22.3T8AMT-C.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Por apenso ao processo especial de insolvência que AA intentou contra A... Lda., no qual foi declarara a insolvência da requerida por sentença datada de 16.01.2023, o Ministério Público requereu a abertura do incidente de qualificação de insolvência e a qualificação desta como culposa, com afetação dos gerentes (de direito e de facto) da insolvente BB e CC, com as consequências previstas no artigo 189.º, n.ºs 2 a 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos termos do disposto no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, e ordenado o cumprimento do disposto nos n.ºs 5 e 6 do mesmo artigo, o Administrador da Insolvência (AI) apresentou o parecer referido neste n.º 6, concluindo nos mesmos termos que o Ministério Público.
Cumprido o disposto no n.º 9, do mesmo artigo 188.º, os requeridos BB e CC deduziram oposição, pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita.
Não tendo sido apresentada qualquer resposta, foi dispensada a realização de tentativa de conciliação, proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio, enunciados os temas da prova e designada data para audiência de julgamento, que veio a realizar-se, após o que foi proferida sentença que termina com o seguinte dispositivo:
«Nos termos e fundamentos expostos, decide o Tribunal qualificar culposa a insolvência da devedora, “A..., Lda.”, e, em consequência:
a) Declarar afetados pela qualificação culposa da insolvência, com culpa grave, os gerentes de direito e de facto da Insolvente, os Requeridos, BB e CC;
b) Decretar a inibição dos requeridos BB e CC para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, atenta a gravidade do seu comportamento e da sua contribuição para o agravamento da situação de insolvência da Requerida;
c) Decretar a inibição dos requeridos BB e CC para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses.
d) Condenar os Requeridos BB e CC a indemnizar os credores da Devedora Insolvente, no montante dos créditos não satisfeitos e até às forças do respetivo património, fixando-se o valor dessa indemnização solidária, no montante de €30000 (trinta mil euros), atento o grau de ilicitude dos factos praticados, o grau de culpa apurado e a sua participação no agravamento da insolvência.
Custas a cargo da massa insolvente, ao abrigo do disposto no artigo 304.º, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.
Registe e notifique.»

*
Inconformados, os requeridos apelaram desta sentença, apresentando a respectiva alegação, que terminam com as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso tem como objeto o decidido na douta sentença, proferida no passado dia 13/11/2023, nos presentes autos, à margem melhor id., a qual qualificou a insolvência da “A..., Lda.”, como culposa e condenou os requerentes, BB e CC, seus sócios-gerentes, na inibição do exercício do comércio pelo período de 2 anos e 6 meses e a pagar a quantia de 30.000,00€, aos credores da Devedora Insolvente.
2. A douta sentença, ora recorrida, no âmbito do Incidente de Qualificação da Insolvência, considerou que a insolvência da sociedade insolvente denominada “A..., Lda” foi culposa, essencialmente com base em dois argumentos.
3. O primeiro, no facto de alegadamente a sociedade insolvente, desde o ano de 2016, já se encontrar numa clara situação de insolvência, na medida em que não tinha liquidez para satisfazer as suas obrigações vencidas, data em que deixou de ter atividade e de gerar receitas, tendo, simultaneamente, um passivo superior a 400.000 euros, pelo que, face a tal situação, era seu dever denunciar o contrato de arrendamento que havia celebrado, e apresentar-se à insolvência, pois esta era já evidente no final do ano de 2015, em vez de continuar a acumular dívidas como o imposto de IVA, coimas, contraordenações e custas processuais – (cf. artigo 186º, n.º 3, als. a) e b), do CIRE).
4. O segundo lugar, o facto de a sociedade insolvente denominada “A..., Lda”, através dos seus sócios-gerentes, a partir do ano de 2016, não ter cumprido a sua obrigação legal de manter uma contabilidade organizada, enquanto a sociedade não fosse dissolvida ou se apresentasse à insolvência, nomeadamente mantendo e contabilizando todos os documentos de suporte referentes à sua atividade, cumprindo as suas obrigações fiscais, in casu apresentando os respetivos (IES), e aprovando as suas contas anuais, o que não cumpriu uma vez que as mesmas nem sequer foram elaboradas – (cf. artigo 186º, n.º 2, al. h), do CIRE).
5. Ou seja, os dois argumentos essenciais, em síntese, são os seguintes:
a) os sócios-gerentes não apresentaram a sociedade à insolvência dentro do prazo previsto no artigo 18º, do CIRE, o que causou um prejuízo acrescido aos seus credores e ao Estado; e
b) o facto de a sociedade insolvente, desde o ano de 2015, ter deixado de ter contabilidade organizada.
6. Salvo o devido respeito, que é muito, CC e BB, sócios-gerentes, da sociedade insolvente, denominada “A..., Lda”, não aceitam, nem podem concordar com os argumentos e os motivos invocados na fundamentação da douta sentença, ora recorrida, e que presidiram à conclusão final de que a insolvência foi culposa, pelos motivos que se irão explanar infra.
I. Da não apresentação atempada da sociedade à insolvência, dentro do prazo previsto no artigo 18º, do CIRE, omissão que terá causado um prejuízo acrescido aos seus credores e ao Estado.
7. O artigo 186º, n.º 1 e n.º 3, als. a) e b), do CIRE, embora façam presumir a existência de culpa (grave, nos casos que se enquadrem no aludido n.º 3) dos administradores das sociedades insolventes, só permitem qualificar a insolvência como culposa se se evidenciar a existência de nexo de causalidade entre essas faltas e o estado de insolvência.
8. Isto é, as presunções ilidíveis estabelecidas no aludido n.º 3, do artigo 186º, do CIRE, não abarcam o nexo causal entre as atuações omissivas aí previstas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento, pelo que, embora dispensando-se, na aludida norma, a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência, é ainda necessário, nas situações aí abarcadas, verificar se os comportamentos omissivos aí descritos criaram ou agravaram a situação de insolvência, não bastando a simples invocação e/ou demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai.
9. Assim, a circunstância de os gerentes da sociedade insolvente, aqui recorrentes, não terem cumprido, alegadamente, o dever de requerer a sua insolvência não é suficiente para que se classifique a mesma (insolvência) como culposa.
10. Na verdade, a mera violação, pelos administradores, do dever de requerer atempadamente a declaração de insolvência da sociedade que geriam, apenas permite presumir a culpa grave, mas já não a imputação da situação de insolvência, ou o seu agravamento, à respetiva conduta.
11. Por outro lado, tendo em conta que o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelece que os créditos continuam a vencer juros, após a apresentação à insolvência, o atraso de tal apresentação nunca ocasiona qualquer prejuízo para os credores, ao contrário do que se defende na douta sentença, ora recorrida.
12. Veja-se, neste mesmo sentido, os doutos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de Fevereiro de 2011, no Proc. n.º 1283/07.0TJPRT-AG.P1 e o acórdão, de 20 de Outubro de 2009, Proc. n.º 578/06.5TYVNG-A.P1, ambos consultáveis in www.dgsi.pt e ainda o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06 de Outubro de 2011, Proc. n.º 46/07.8TBSVC-0.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt.
13. Face aos ensinamentos constantes em tais doutos arestos e tendo ainda em conta os argumentos invocados na douta sentença, ora recorrida, no qual não é indicada ou apresentada qualquer prova idónea que permita concluir pela existência de um nexo causal entre a falta de apresentação tempestiva à insolvência e o aumento dos prejuízos alegadamente sofridos pelos credores da sociedade insolvente, é forçoso concluir que não é possível qualificar como culposa a insolvência da sociedade A..., Lda.;
14. Ou seja, para que se possa qualificar uma insolvência como culposa é necessário não só alegar e provar, em concreto, a atuação culposa e dolosa do devedor, ou dos seus gerentes, mas também é necessário alegar e provar, em concreto, que tal atuação culposa ou ilícita foi a causa direta e necessária que conduziu à situação de insolvência da sociedade, atento o disposto no artigo 186º, n.º 1, do CIRE.
15. Aplicando-se o mesmo critério quanto à previsão legal estatuída na alínea b), do n.º 3, do artigo 186º, do CIRE, nomeadamente nos autos inexistem quaisquer elementos probatórios que permitam concluir que a falta de elaboração das contas anuais, dentro do respetivo prazo legal, por parte dos recorrentes, bem como a sua não submissão a depósito e publicitação na Conservatória do Registo Comercial, por si só não permite qualificar a insolvência como culposa, porquanto é também é necessário alegar e provar, em concreto, que tal atuação culposa ou ilícita foi a causa direta e necessária que conduziu à situação de insolvência da citada sociedade.
16. Nesta conformidade, não existindo nos autos quaisquer elementos probatórios que permitam concluir que foi a atuação culposa ou ilícita dos sócios-gerentes da sociedade insolvente, nomeadamente o aludido atraso em apresentá-la à insolvência e não publicitação e depósito das suas contas de exercício anuais, que foram as causas diretas e necessárias do alegado prejuízo agravado causado aos seus credores, pelo que não é, assim, possível qualificar como culposa a insolvência por não estarem preenchidos os requisitos necessários para o efeito, estatuídos nas alíneas a) e b), do n.º 3, do artigo 186º, do CIRE.
II. Da falta de contabilidade organizada desde o ano de 2015.
17. Quanto ao segundo aspeto invocado na douta sentença, ora recorrida, mormente que, alegadamente, os sócios-gerentes da sociedade insolvente sabiam, desde o final do ano de 2015, que a mesma estava falida, pois desde tal data deixou de ter atividade comercial e de ter contabilidade organizada, para além de ter deixado de aprovar e publicitar as contas dos exercícios anuais, como era seu dever, aspetos que fundamentaram a qualificação da insolvência como culposa, salvo o devido respeito, que é muito, cumpre dizer que tais argumentos não correspondem de todo à verdade do ocorrido, pelos motivos que se passam a explanar infra.
18. Como é do conhecimento geral, a partir do ano de 2009, devido à crise económica mundial, Portugal foi intervencionado pela “Troika”, a fim de evitar a “banca rota”, não tendo a empresa insolvente, como é óbvio, escapado a tal crise económica, tendo a sua atividade sido drasticamente diminuída, ficando a mesma praticamente suspensa, devido à falta de encomendas, situação que se agravou muito seriamente a partir do ano de 2012 e se manteve até meados do ano de 2015.
19. Apesar da crise, os sócios-gerentes da sociedade insolvente resolveram não desistir e tentaram manter a sua atividade na esperança de que, nos dois anos seguintes (2013 e 2014), a situação económica melhorasse e as suas encomendas retomassem o ritmo anterior e consequentemente conseguissem sobreviver e manter os seus postos de trabalho e o dos seus trabalhadores, os quais tinham filhos de tenra idade que necessitavam do seu apoio.
20. Por outro lado, em meados/finais do ano de 2014, as autoridades governamentais e económicas nacionais e europeias começaram a difundir a informação que a partir do ano de 2015 a situação económica iria melhorar substancialmente.
21. Face a tais notícias e mantendo o firme intuito de salvar a empresa e os postos de trabalho, os sócios-gerentes da sociedade insolvente, resolveram restruturar a dívida que tinham contraído, no decurso do ano de 2004, junto da Banco 1..., a qual ainda estavam a pagar, tendo para o efeito contraído, em 20/10/2014, um financiamento, no montante de €240.762,69 e, em 04/09/2015, um segundo financiamento, no montante de €71.957,74.
22. Os quais serviram para a sociedade insolvente pagar o remanescente da dívida contraída em 2004, junto da Banco 1..., sendo o valor sobrante utilizado como fundo de maneio para assegurar o pagamento das suas despesas correntes e consequentemente garantir o seu funcionamento, durante o ano de 2015, até que obtivessem novas encomendas, uma vez que, como se disse, nessa altura, previa-se que a economia portuguesa iria crescer substancialmente.
23. Infelizmente a crise económica arrastou-se durante mais alguns anos, não tendo consequentemente o número de encomendas aumentado, antes pelo contrário, pelo que, quando a sociedade insolvente esgotou o fundo de maneio obtido com a aludida restruturação bancária, a mesma não conseguiu cumprir os seus compromissos mais básicos, tais como pagar os impostos, pagar as mensalidades relativas aos empréstimos contraídos – in casu os da referida restruturação -, pagar aos fornecedores, pagar diversos outros compromissos assumidos, acabando apenas por conseguir pagar os salários e as despesas essenciais que permitissem manter a empresa a funcionar.
24. Face a tal situação e à sucessiva falta de trabalho, a sociedade insolvente deixou de faturar, porque pura e simplesmente não tinha encomendas, pelo que e consequentemente também deixou de enviar faturas para a sua contabilista, acabando, com o decurso do tempo, por deixar de ter contabilidade organizada, desde o ano de 2016.
25. Sendo, assim, forçoso concluir, quanto à alegada falta de contabilidade organizada, que a sociedade insolvente, como se disse anteriormente, a partir de 2015 deixou de faturar, porque pura e simplesmente não tinha encomendas, situação que se manteve durante alguns anos, motivo pelo qual também não emitia faturas e se não emitia faturas consequentemente não as podia remeter para a sua contabilista.
26. Por sua vez, como não tinha encomendas, a sociedade insolvente também não adquiria matéria prima, motivo pelo qual também não tinha faturas de fornecedores para enviar à sua contabilista, razões pelas quais a sociedade insolvente foi forçada a deixar de ter contabilidade organizada.
27. Em síntese, pelos motivos anteriormente invocados, salvo o devido respeito que é muito, ao contrário do que se entendeu na douta sentença, ora recorrida, os aqui recorrentes entendem que os factos dados como provados não são suficientes para se concluir que está preenchida a previsão legal estabelecida na alínea h), do n.º 2, do artigo 186º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
vejamos.
28. O Tribunal a quo perfilhou o entendimento da aplicabilidade do artigo 186º n.º 2, al. h), do CIRE, à presente insolvência, com base, essencialmente, na factualidade dada como provada no Ponto L), na sentença/recorrida, onde se diz que: “A Insolvente não tem contabilidade organizada desde o final do ano de 2015, altura em que deixou de emitir faturas” (…).
29. Conforme melhor se irá esclarecer infra, a não existência de contabilidade organizada, que foi entendida pelo Tribunal a quo como demonstrativo que, à data da insolvência, a devedora não tinha contabilidade organizada, não é suficiente para se poder considerar preenchido o requisito estabelecido no artigo 186.º n.º 2 alínea h) do CIRE, e consequentemente para que se possa concluir e imputar aos aqui recorrentes uma insolvência culposa.
30. Na verdade, nesta matéria, o que releva não é tanto a contabilidade enquanto registo dos fluxos financeiros e operações comerciais, mas antes enquanto evidenciação do comportamento negocial do empresário, a violação da obrigação de manter a contabilidade organizada só pode ser tida em termos substanciais quando dessa omissão resulte não ser possível indicar com segurança a causa da insolvência e os seus responsáveis – (cf. douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-12-2019, no Processo n.º 167/09.2TYLSB-C.L1-1, disponível em www.dgsi.pt).
31. Por sua vez, o douto acórdão da Relação de Coimbra, de 08-02-2011, Proc. n.º 1543/06.8TBPMS-O.C1, disponível em www.dgsi.pt, defende igualmente que o incumprimento deve: “considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental”.
32. Ou seja: o que é verdadeiramente relevante para os efeitos do estatuído na alínea h), do n.º 2, do artigo 186º, do CIRE, não é tanto a contabilidade enquanto registo dos fluxos financeiros e operações comerciais, mas antes a possibilidade de se evidenciar qual o comportamento negocial do empresário, razão pela qual a violação da obrigação de manter a contabilidade organizada só se pode ser tida em conta, em termos substanciais, quando dessa omissão resulte não ser possível indicar com segurança a causa da insolvência e os seus responsáveis – (cf., neste sentido, o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-03-2021, Processo n.º 3071/16.4T8STS-F.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt).
33. Ora, no caso dos autos não foi dado como provado, nem tão pouco foi invocado por qualquer interveniente processual, qualquer facto ou matéria que comprove que a omissão de efetivação da contabilidade da sociedade insolvente, aqui recorrente - no período compreendido entre o ano de 2015 até ao ano de 2022 – verificou-se ou teve a sua origem num qualquer nexo de causalidade com a situação de insolvência da sociedade ou que a falta de contabilidade tenha causado qualquer dificuldade de compreensão da sua situação patrimonial e financeira por parte de terceiros.
34. Sendo certo que, também não resulta da matéria de facto dada como provada na douta sentença, ora recorrida, que os recorrentes tenham incumprido em termos substanciais ou tenham originado ou mesmo contribuído para o não cumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada e/ou até que tenham mantido uma contabilidade fictícia ou mesmo uma dupla contabilidade ou até praticado alguma irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da sua situação patrimonial e financeira por parte dos seus credores.
35. Pelo que, atento o anteriormente invocado, não se provou qualquer facto que estabeleça um nexo causal entre a não efetivação da contabilidade organizada, durante os anos de 2015 até 2022, e os pressupostos previstos na alínea h), do n.º 2, do artigo 186º, do CIRE.
36. Na medida em que não ficou demonstrado, como se impunha, que o facto da insolvente/devedora não ter tido, em determinado período temporal, a sua contabilidade devidamente organizada, tenha dificultado ou impedido, por parte dos seus credores e terceiros, a análise da sua situação económico-financeira e das causas que levaram à sua insolvência e dos seus responsáveis, não resultando tão pouco do teor dos autos que os recorrentes ao agir de tal forma, tenham agido dolosamente ou com culpa grave, ao contrário do que foi doutamente decidido na sentença ora recorrida.
37. Pelo que, dos factos dados como provados não se pode concluir que os gerentes da sociedade insolvente, de forma ardilosa, prosseguiram uma atividade ruinosa, contraindo novos créditos e procedendo à venda do seu património, com o único intuito de agravar a situação patrimonial da insolvente, violando de forma reiterada o disposto no artigo 186º, do CIRE.
38. E/ou, muito menos se pode concluir, que os mesmos incumpriram as suas obrigações de gerentes, porque não lhes convinha, ou seja de forma culposa e/ou dolosa, nomeadamente que não cumpriram o dever de apresentar a sociedade recorrente à insolvência, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 3º, 18º e 186º, todos do CIRE.
39. Nesta conformidade, com base nos factos dados como provados na douta sentença, ora recorrida, e atentos os demais elementos probatórios coligidos nos autos, não é possível concluir que BB e CC, sócios-gerentes da sociedade insolvente, violaram o disposto nos artigos 185º e 186º, n.º 1, n.º 2, al. h) e n.º 3, als. a) e b), ambos do CIRE, e consequentemente também não se pode concluir que existem fundadas, objetivas e suficientes razões para se qualificar a Insolvência como Culposa, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2, do artigo 188º, daquele diploma legal.
40. Para além de, atentas as razões e fundamentos anteriormente invocados, não podem os recorrentes BB e CC, sócios-gerentes da sociedade insolvente, serem condenados na inibição do exercício do comércio pelo período de 2 anos e 6 meses e muito menos podem ser condenados a pagar uma indemnização, no valor de 30.000,00€, aos credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos até às forças do seu respetivo património.
41. Pelo exposto, requer-se a esse venerando e douto Tribunal da Relação que declare procedente a presente apelação e, consequentemente, revogue o despacho recorrido, declarando simultaneamente que a insolvência da sociedade recorrente foi fortuita, para todos os legais efeitos aplicáveis».
*
O Ministério Público respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela total improcedência do recurso interposto e pela confirmação da sentença recorrida, formulando as seguintes conclusões:
«1 - Conforme entendimento pacífico da jurisprudência, perante a verificação de cada uma das situações previstas nas diversas alíneas do nº 2 do citado artigo 186º, a insolvência é sempre considerada como culposa, sem necessidade da demonstração do nexo de causalidade a que se reporta o nº 1 do mencionado preceito, por aquela norma não presumir apenas a existência de culpa, mas também a existência de causalidade entre a atuação dos administradores do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência.
2 - A partir do momento em que os ora recorrentes começaram a incumprir de forma generalizada as suas obrigações para com os seus credores a partir de finais do ano de 2015, como se pode constatar da motivação apresentada pelos recorrentes, e:
“42. Entretanto, devido ao incumprimento das suas obrigações, incluindo os aludidos contratos de mútuo/restruturação, entre outros compromissos assumidos com terceiros, os credores, incluindo o Banco 1..., instauraram contra a insolvente os seguintes processos executivos:
§ Processo Executivo n.º 49/13.3TBMCN, Lousada, Juízo de Execução -Juiz 2, Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este;
§ Processo Executivo n.º 4102/15.0T8LOlJ, Lousada, Juízo de Execução - Juiz 2, Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este;
§ Processo Executivo n.º 50/13.0TBMCN, Lousada, Juízo de Execução — Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este,”
ao ser-lhes vedada a possibilidade de aferirem a verdadeira situação económico-financeira da devedora, com a não apresentação das contas e das declarações de IES, e, bem assim, de identificarem a existência de bens do seu activo, permitindo aos ora recorrentes dar-lhes o destino desconhecido e impedir que os seus créditos pudessem ser pagos com o produto da venda de tais bens, não nos restam dúvidas que tal comportamento se traduziu necessariamente numa diminuição efectiva do seu activo e um consequente aumento do valor do passivo da A..., Lda., e contribuiu para o agravamento da situação da sua insolvência.
3 - Do mesmo modo, como bem se salienta na sentença recorrida, quer na matéria de facto provada, quer na sua fundamentação, que no enquadramento jurídico, a não apresentação da A..., Lda à insolvência pelo menos a partir de finais de 2015, também conduziu a um aumento do seu passivo, designadamente e que se conheça, para com a Autoridade Tributária e Aduaneira, no valor de 44.562,30€. E, também, aumentou os créditos referentes ao local arrendado onde tinha as suas instalações, por via das rendas vencidas e não pagas até à data da declaração de insolvência. Tal como se verifica da reclamação e da lista de créditos reconhecidos.
4 - Sendo certo, que este agravamento de dividas não teve qualquer beneficio porque a inolvente já tinha cessado a sua actividade desde 2015.
5 - Na verdade, o passivo conhecido da ora insolvente já era superior a 320.000€ à data da cessação das actividade (finais de 2015), o aumento verificado posteriormente em 202.618,38€, passando o passivo para 522.618,38€, não pode ser desconsiderado, sobretudo porque a insolvente, pelos vistos, já não tinha quaisquer bens passiveis de serem penhorados.
6 - Pelo contrário e como bem foi entendido e decidido na sentença recorrida, o aumento das dívidas da insolvente nesse montante traduziu-se num indubitável agravamento substancial da sua situação de insolvência.
7 - Mostrando-se deste modo verificado o nexo causal, não só, entre a não apresentação atempada da A..., Lda à insolvência, como também, entre a não apresentação das contas anuais à fiscalização e ao seu deposito para publicação e o agravamento considerável da situação de insolvência em que aquela sociedade já se encontrava em finais de do ano de 2015.
8 - Decorrendo de tal factualidade a verificação da presunção de culpa grave dos ora recorrentes, na qualidade de sócios e gerentes da insolvente, presunção que eles não lograram contrariar e ilidir.
9 - A sentença recorrida ao julgar culposa a insolvência da A..., Lda, por violação do disposto na alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, e ao afetar com culpa grave pela sua atuação BB e CC, enquanto gerentes de direito e de facto daquela, nos termos das alíneas a) e b), do nº 3, do mencionado preceito, bem como ao aplicar-lhe as respetivas sanções estabelecidas no artigo 189º, daquele diploma, conformou-se com o estatuído nos mencionados preceitos legais e nos demais que regem sobre esta matéria, tanto no CIRE, como no CPC, e sempre com o total respeito pelos princípios gerais de direito que informam o nosso sistema jurídico.
10 - Falecem e improcedem, assim, todas as conclusões das alegações do recurso apresentadas pelos recorrentes apelantes BB e CC, pelo que, em consequência, e, como tal, se impõe a improcedência do recurso na sua totalidade».
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas por cada uma das recorrentes, as questões a decidir traduzem-se em saber se os factos julgados provados permitem qualificar a insolvência como culposa, ao abrigo do disposto no artigo 186.º, n.ºs 1, 2, al. h), e 3.
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III. Fundamentação
A. Fundamentação de Facto
1. Factos provados
O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
A) A Requerida “A..., Lda.” foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais, em 16.01.2023, por ação apresentada a juízo em 21.12.2022, a requerimento de uma credora.
B) A Requerida “A..., Lda.” foi constituída em 16.12.1998, com o objeto social de Fabricação de artigos de granito e de mármores; com sede social no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Marco de Canaveses, com o capital social de 5.000,00 euros, dividido em duas quotas, de valor nominal de 2.500,00 euros, cada uma, pertencentes aos sócios BB e CC, obrigando-se a sociedade com a assinatura conjunta de dois gerentes e tendo sido nomeados gerente os sócios BB e CC, desde a constituição da sociedade.
C) A requerida “A..., Lda.” aprovou e publicou na respetiva Conservatória de Registo Comercial as suas contas referentes aos exercicios dos anos de 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2013.
D) A requerida “A..., Lda.” não publicou na respetiva Conservatória de Registo Comercial as suas contas referentes ao exercicio dos anos de 2012, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021.
E) No apenso de reclamação de créditos foram reconhecidos créditos no montante global de 522.618,38 euros, aos seguintes credores: B... SA, no montante de 315.618,74 euros, à Autoridade Tributária no montante de 44.562,30 euros, à C..., no montante de 12.635,33, à sociedade “D..., S.A.”, no montante de 70.916,64 euros, e à sociedade “E..., S.A”, no montante de 77.385,37 euros.
F) O crédito da Autoridade Tributária sobre a Requerida respeita aos seguintes tributos: 174,76 euros de custas administrativas, vencidas no ano de 2011, 1.300,78 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos nos anos de 2012 e 2013, 466,25 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2013, 895,71 euros de IRS e custas administrativas, vencidos no ano de 2014, 146,97 euros de IUC e custas administrativas, vencidos no ano de 2013, 137,71 euros, de IRS e custas administrativas, vencidos no ano de 2014, 465,87 euros, de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2014; 393,68 euros de IUC e custas administrativas, vencidos no ano de 2010; 635,05 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2014; 587,62 euros de IRS e custas administrativas, vencidos no ano de 2014; 3.426,41 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2014; 4.661,52 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2015; 1.954,80 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2015; 1.804,27 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2015; 2.816,77 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2015; 67,79 euros de taxas de portagens e custas administrativas, vencidas no ano de 2015; 1.148,15 euros de IRC e custas administrativas, vencidos no ano de 2016; 16,27 euros de taxas de portagens e custas administrativas, vencidas no ano de 2015; 2.188,99 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidas no ano de 2016; 663,24 euros de taxas de portagens e custas administrativas, vencidas no ano de 2016; 184,95 euros de taxas de portagens e custas administrativas, vencidas no ano de 2016; 459,55 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidas no ano de 2016; 888,86 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2016; 460,82 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2016; 1.386,26 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2017; 459,72 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2017; 500,73 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2017; 916,84 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2017; 496,64 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2017; 492,49 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2018; 2.059,95 euros de IRC e custas administrativas, vencidos no ano de 2018; 1.369,44 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2018; 486,40 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2018; 456,17 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2018; 484,31 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2018; 909,43 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2018; 480,30 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2018; 454,28 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2019; 2.073,52 euros de IRC e custas administrativas, vencidos no ano de 2019; 409,83 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2019; 557,63 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2019; 904,98 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2019; 552,80 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2019; 776,56 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos no ano de 2019; 611,77 euros de IVA e custas administrativas, vencidos no ano de 2019; 1.775,46 euros de coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas, vencidos nos anos de 2020 e 2021.
G) O crédito reconhecido à credora AA proveio de um empréstimo concedido à Insolvente em 03.06.2013, no montante de 1.500,00 euros, com a obrigação de o restituir até 30.06.2013.
H) Pese embora não reclamado nem reconhecido na Insolvência, por se mostrar prescrito, a Insolvente foi devedora à Segurança Social da quantia global de 43.292,01 euros, por contribuições vencidas e não pagas, referentes a julho e agosto de 2011, junho a novembro de 2012, janeiro a maio e agosto a dezembro de 2013, janeiro a dezembro de 2014, e janeiro a dezembro de 2015.
I) A sociedade “F..., Unipessoal, Lda.” foi constituída em 13.04.2012, com o objeto social de Comercialização, exportação, importação e transformação de granitos e rochas; com sede social na Rua ..., ..., Marco de Canaveses, com o capital social de 5.000 euros, dividido em duas quotas de valor nominal de 2.500 euros, cada uma, pertencentes aos sócios BB e CC, obrigando-se a sociedade com a assinatura de dois gerentes e tendo sido nomeados gerentes ambos os sócios que cessaram funções em 19.03.2013, por renúncia, tendo sido designado gerente DD, por deliberação de 19.03.2013; tendo sido alterado o contrato de sociedade em 31.03.2014, para sociedade unipessoal por quotas, sendo unificadas as duas quotas que foram transmitidas, nessa data, para DD e passando a sociedade a obrigar-se com a assinatura de um gerente, por deliberação de 28.02.2014.
J) Em 13.07.2012, a Insolvente transmitiu à sociedade “F..., Unipessoal, Lda.” a propriedade dos veículos com as matrículas ..-..-ZA e ..-..-RH.
K) A Requerida não entregou à autoridade Tributária as suas Declarações de IES referentes aos exercicios de 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021.
L) A Insolvente não tem contabilidade organizada desde o final do ano de 2015, altura em que deixou de emitir faturas.
M) Contra a Insolvente corriam termos os seguintes processo executivos na data da declaração de insolvência: n.º 49/13.3TBMCN, Juízo de Execução - Juiz 2, Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este; n.º 4102/15.0T8LOlJ, Juízo de Execução - Juiz 2, Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este; e n.º 50/13.0TBMCN, Juízo de Execução - Juiz 1, Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este.
N) Com data de Dezembro de 2004 foi celebrado entre a sociedade credora “D..., S.A.”, como locadora, e a sociedade insolvente, como locatária, o Contrato de Arrendamento Comercial de Duração Limitada, tendo por objeto parte do Prédio Rústico denominado “Quinta ...”, sito na Freguesia ..., concelho de Marco de Canavezes, inscrito na matriz rústica sob o no artigo ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canavezes, com cerca de 8 hectares, tendo sido cedida uma parte deste prédio, com a área de 5.807m2, local onde a insolvente desenvolveu a sua atividade, mediante a renda anual de 6.000,00 euros, pelo prazo de cinco anos, com inicio em 01.01.2005 e termo em 31.12.2009, renovável por períodos mininos de 2 anos, enquanto não for denunciado (com a antecedência de 1 ano).
1. A Insolvente não apresenta movimentos a crédito nem a débito na conta por si titulada no Banco 1..., desde 27.11.2017.
2. No período de 01-01-2015 até 03-08-2023, na conta titulada pela Insolvente no Banco 2... apenas constam dois movimentos a crédito, respetivamente nos valores de 967,12 euros, com data de 25.05.2022, e 359,89 euros, com data de 03.08-2023, os quais serviram para pagamento dos débitos existentes até essa data, referentes a despesas com manutenção da conta, não existindo outros movimentos a débito.
3. No período compreendido entre 01-12-2019 até 31-12-2022 a Insolvente não tem registo de trabalhadores por conta de outrem na Segurança Social.
3. A Insolvente cessou a sua atividade em IVA junto da Autoridade Tributária em 31.12.2015.
4. Da Lista de créditos Reconhecidos apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência no apenso de reclamação de créditos consta reconhecido ao credor “D..., S.A.” um crédito no montante global de 70.916,64 euros, referente a rendas vencidas e não pagas dos meses de novembro de 2013 e seguintes, num total de 112 meses, sendo o valor de cada renda mensal no montante de 563,45 euros, perfazendo o montante de 63.106,40 euros, acrescido de juros vencidos.
5. A Insolvente não impugnou a Lista de créditos Reconhecidos apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência no apenso de reclamação de créditos.
6. A sociedade “F..., Unipessoal, Lda.” nunca pagou qualquer valor pela ocupação do prédio rústico denominado “Quinta ...”, sito na Freguesia ..., concelho de Marco de Canavezes, inscrito na matriz rústica sob o no artigo ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canavezes”.
7. A sociedade “F..., Unipessoal, Lda.” ocupa o prédio rústico denominado “Quinta ...”, sito na Freguesia ..., concelho de Marco de Canavezes, inscrito na matriz rústica sob o no artigo ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canavezes, a título de empréstimo e com o intuito de impedir algum vizinho de se apoderar de alguma parcela do terreno ou da madeira das árvores.
8. O crédito reconhecido ao credor “B..., S.A.”, no montante global de 314.668,80 euros, mostra-se vencido desde 04.09.2015.
9. O crédito reconhecido ao credor “E..., S.A.”, no montante global de 77.385,37 euros, mostra-se vencido desde 18.05.2012, quanto montante de 16.864,70 euros, e desde 28.11.2012, quanto ao montante de 31.663,30 euros, sendo o restante valor reconhecido a título de juros vencidos.
10. Sob o n.º 1351/21.6T8MCN, correu termos no J1 do Juízo Central Cível da Comarca do Porto Este, ação de despejo instaurada pelo credor “D..., S.A.”, contra a Insolvente, com fundamento no não pagamento de rendas vencidas desde o mês de novembro de 2013 até 23 de novembro de 2021, no valor total de 54.269,15 euros, a qual foi extinta, na sequencia da declaração de insolvência da Devedora.
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2. Factos não provados
O Tribunal a quo julgou não provado:
a) Que os Requeridos BB e CC fizeram desaparecer os bens da devedora em benefício próprio ou de terceiros, designadamente, as suas máquinas e os seus equipamentos, contra os interesses da devedora e dos seus credores.
b) As circunstâncias de tempo e do modo como foram transmitidos bens da Insolvente, as máquinas e equipamentos com que esta desenvolvia a sua atividade, e se foram alienados de forma gratuita para dissipar o património da Insolvente a favor de pessoa especialmente relacionada.
c) Que a Insolvente tivesse gerado receitas nos últimos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
d) Que a Insolvente tenha celebrado com a sociedade “D..., S.A.” algum acordo, escrito ou verbal, que a libertasse da obrigação de pagar a renda estipulada no contrato celebrado entre ambas em dezembro de 2004.
e) Que o contrato de arrendamento celebrado entre a Insolvente e a sociedade “D..., S.A.” tenha sido denunciado por alguma das partes e o locado tivesse sido entregue à Senhoria.
f) Que os Requeridos BB e CC tenham prestado falsas informações ao Sr. Administrador de Insolvência.
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B. Fundamentação de Direito
1. Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (mas já não com culpa leve ou levíssima), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Dispõe, por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham praticado alguma das condutas tipificadas nas suas diversas alíneas.
É praticamente uniforme na jurisprudência o entendimento de que este n.º 2 consagra presunções juris et de jure, pelo que a prova de alguma das situações ali contempladas determina, inexoravelmente, a qualificação da insolvência como culposa, dispensando a prova tanto do dolo ou da culpa grave do gerente ou administrador, como do nexo de causalidade entre a sua conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, e não admitindo prova em contrário, nos termos do disposto no artigo 350.º, n.º 2, parte final, do Código Civil (CC).
Alguma doutrina, com eco numa jurisprudência minoritária, suscita reservas quanto à qualificação das regras deste n.º 2 como verdadeiras presunções – que o artigo 349.º do CC define como «as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – e quanto à sua falta de autonomia relativamente ao n.º 1.
Neste sentido, Rui Pinto Duarte escreve o seguinte: «o n.º 1 do art. 186.º contém uma proposição que visa ligar certos efeitos (mediados pela qualificação da insolvência como culposa) ao facto de a insolvência ter sido criada ou agravada por actuação dolosa ou culposa do devedor ou dos seus administradores; o n.º 2 não tem, pelo menos, nalgumas das suas alíneas, por objecto ligar o estabelecimento desse facto a outros, como seria próprio de uma presunção, antes contém proposições substantivas especiais, que em parte são concretizações da proposição geral e em parte afastamentos dela; na medida em que não visam a aplicação do n.º 1, os enunciados do n.º 2 não são presunções da existência da hipótese de facto nele descrita; as regras do n.º 3, essas sim, admitindo a categoria das presunções legais (sobre cuja utilidade tenho dúvidas, por entender que as mesmas se reconduzem tendencialmente a regras sobre ónus de prova e ficções), podem ser qualificadas como presunções de a insolvência ter sido criada ou agravada por actuação dolosa ou culposa dos administradores do devedor» (Responsabilidade dos administradores: coordenação dos regimes do CSC e do CIRE, III Congresso de Direito da Insolvência, Cord. Catarina Serra, Coimbra 2015, p. 160, nota 22).
No mesmo sentido, escreve-se o seguinte no ac. TRP de 10.02.2011 (proc. n.º 1283/07.0TJPRT-AG.P1):
«Neste contexto, e como se refere em douto acórdão do Tribunal Constitucional referido pelo recorrente – acórdão n.º 570/2008 – “… é duvidoso que na previsão do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE se instituam verdadeiras presunções… o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal de situações típicas de insolvência culposa”.
Por isso que seja mais correcto afirmar-se em nosso entender, que nas situações a que se faz referência no artº 186º, nº2, do CIRE, mais do que uma presunção legal, se verifica o que Batista Machado define – “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, págs. 108 e 109 – como “ficções legais”, pois que, o que o legislador extrai a partir do facto base, não é um outro facto, mas antes uma conclusão jurídica, numa remissão implícita para a situação definida no nº 1 do artº 186º do CIRE. E por isso que, à semelhança das presunções juris et de jure não admita prova em contrário, sendo que dispensa a alegação – e consequentemente a prova – de qualquer outro facto, ficcionando desde logo, a partir da situação dada, a verificação da situação de insolvência dolosa».
Seja como for, estas diferentes qualificações da natureza das regras do n.º 2 não geram dissensos relevantes quanto ao seu efeito prático: a prova de uma das hipóteses previstas naquele n.º 2 conduz necessariamente à qualificação da insolvência como culposa e à afectação do seu autor por esta qualificação.
Nos termos do n.º 3, do mesmo artigo 186.º do CIRE, presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido alguma das obrigações descritas nas suas alíneas.
É pacífico na jurisprudência e na doutrina que esta norma consagra verdadeiras presunções juris tantum da culpa grave a que alude o n.º 1 do mesmo artigo, que apenas serão afastadas se o visado lograr fazer prova do contrário, nos termos do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 350.º do CC.
Menos pacífica começou por ser a questão de saber se esta presunção abrange igualmente o nexo de causalidade, isto é, se esta norma dispensa igualmente a prova do nexo de causal entre a conduta do administrador (que se presume gravemente culposa) e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Na jurisprudência sempre foi claramente maioritária a resposta negativa a esta questão. Neste sentido, escreveu-se o seguinte no ac. do TRC de 16.09.2014 (proc. n.º 1146/12.8TBCVL-B.C1):
«A qualificação da insolvência como culposa pressupõe, (…) de acordo com a norma citada [referindo-se ao artigo 186.º, n.º 1, do CIRE]: que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por determinada conduta ou actuação do devedor ou dos seus administradores; que tal actuação seja dolosa ou gravemente culposa e que esta actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Contudo, o nº 2 da norma citada enuncia um conjunto de situações, cuja verificação determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, presumindo o legislador – sem admitir prova em contrário, como decorre da expressão “considera-se sempre” – que em tais situações a insolvência é sempre culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Situação diversa ocorre nas situações previstas no nº 3 da norma citada, onde apenas se presume a existência de culpa grave, sem dispensa, portanto, da demonstração do nexo causal entre o comportamento do devedor – que a lei presume como gravemente culposo – e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Por outro lado, e ao contrário do que acontece nas situações a que alude o nº 2, a presunção de culpa estabelecida no nº 3 pode ser ilidida mediante prova em contrário (conclusão que se impõe em face do disposto no art. 350º, nº 2, do C.Civil e em face da circunstância de a lei o não proibir)».
No mesmo sentido, a título meramente exemplificativo, vide os ac. do STJ de 06.10.2011 (proc. n.º 46/07.8TBSVC-O.L1.S1) e de 29.10.2019 (proc. n.º 434/14.3T8VFX-C.L1.S1), o ac. do TRC de 14.01.2014 (proc. n.º 785/11.9TBLRA-A.C1) e os ac. do TRP de 10.02.2011 (proc. n.º 1283/07.0TJPRT-AG.P1) e de 27.10.2020 (proc. n.º 1139/19.4T8AMT-B.P1).
Mas alguma jurisprudência minoritária, com o apoio de diversa doutrina, vinha fazendo uma leitura distinta da norma deste n.º 3.
Assim, escreveu-se no ac. do TRC, de 22.11.2016 (proc. n.º 2675/13.1TBLRA-E.C1) que «[o] incumprimento do dever de apresentação à insolvência, acarretando uma presunção de culpa qualificada na insolvência (art. 186º, nº3, al. a)), dispensa a prova do nexo causal entre tal facto e a criação ou agravamento da insolvência, onerando o devedor com o ónus da prova de que não foi a sua conduta que deu causa à insolvência ou ao seu agravamento, mas outros fator externo ou independente da sua vontade».
Na doutrina, Catarina Serra sustentou que o n.º 3, do artigo 186.º, do CIRE «consagra não meras presunções (relativas) de culpa grave, como vinha defendendo grande parte da jurisprudência portuguesa, mas autênticas presunções (relativas) de insolvência culposa (ou de culpa na insolvência), como tem sido entendido mais recentemente» (O Regime Português da Insolvência, 5.ª ed., Coimbra 2012, p. 141).
Tal como afirmavam os defensores da tese maioritária, cremos que este entendimento de que a presunção abrange o próprio nexo de causalidade não tinha a indispensável correspondência na letra da lei, como impõe o artigo 9.º, n.º 2, do CC (neste sentido: Rui Pinto Duarte, cit., p. 161, nota 24; ac. do TRP, de 10.02.11, já antes citado).
Em todo o caso, julgamos que a questão está hoje ultrapassada, por força da nova redacção do corpo do n.º 3, do artigo 186.º, do CIRE, introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que, numa clara interpretação autêntica deste preceito, passou a afirmar que se presume unicamente a existência de culpa grave, não prescindindo, portanto, da prova do nexo de causalidade exigido pelo n.º 1, do mesmo artigo.
Para além do exposto, importa ainda realçar que, como se afirma no ac. do STJ, de 29.10.2019 (proc. n.º 434/14.3T8VFX-C.L1.S1), «[a] insolvência culposa tem consequências gravosas, previstas nos n.2 e 3 do art.189º do CIRE, traduzidas em inibições várias, às quais é conferida publicidade, por via da inscrição no registo civil e no registo comercial. Por isso, deve a matéria de facto provada fornecer uma inequívoca demonstração do preenchimento dos requisitos exigidos pelas diversas hipóteses do art.186º do CIRE».
2. No caso concreto, resulta da exposição antecedente que o tribunal a quo qualificou a insolvência como culposa por considerar verificadas as circunstâncias previstas na al. h), do n.º 2, e nas alíneas a) e b), do n.º 3, estas conjugadas com o n.º 1, todos do artigo 186.º do CIRE.
Os recorrentes discordam, por considerarem que a factualidade provada não permite considerar verificada nenhuma daquelas previsões normativas, pelo que importa analisar os factos provados à luz destas normas.
2.1. Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
São, portanto, três as situações que podem servir de base a esta presunção: o incumprimento substancial da obrigação de manter contabilidade organizada; a manutenção de uma contabilidade fictícia ou de uma dupla contabilidade; a prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
No caso concreto, provou-se que a Insolvente não tem contabilidade organizada desde o final do ano de 2015, altura em que deixou de emitir faturas (ponto L) dos factos provados), mais se tendo provado que cessou a sua atividade em IVA junto da Autoridade Tributária em 31.12.2015 (2.º ponto 3. dos factos provados) e que não entregou à autoridade Tributária as suas Declarações de IES referentes aos exercícios de 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021 (ponto K) dos factos provados).
Não está, assim, em causa que a insolvente tenha mantido uma contabilidade fictícia ou de uma dupla contabilidade, nem que tenha praticado alguma irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. Perante aquela factualidade, a questão que se coloca é a de saber se ocorreu um o incumprimento substancial da obrigação de manter contabilidade organizada.
A respeito da interpretação das previsões do artigo 188.º, n.º 2, do CIRE, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, Lisboa, 2005, p. 15) escrevem o seguinte: «De uma maneira geral, as situações previstas nas várias alíneas do n.º 2 não suscitam difíceis problemas de interpretação, sem prejuízo de, na sua aplicação concreta, se dever atender às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor. Aponta nesse sentido o recurso que nelas se faz a conceitos indeterminados, de que são exemplos significativos os que se identificam nos seguintes termos: «em parte considerável» [al. a)], «criado ou agravado artificialmente [a. b)], «preço sensivelmente inferior [al. c)], incumprido em termos substanciais» [al. h)]».
Julgamos ser consensual na doutrina e na jurisprudência que o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada será substancial quando comprometer ou afectar de modo relevante as finalidades dessa obrigação. Neste sentido vide, a título de exemplo, o ac. do TRG, de 19.10.2020 (proc. n.º 1373/17.T8CHV.G1, rel. Heitor Gonçalves), o ac. do STJ, de 02.03.2023 (proc. n.º 3071/16.4T8STS-F.P1.S1, rel. Ana Paula Boularot) e o ac. do TRC, de 14.03.2023 (proc. n.º 1937/21.9T8CBR-A.C1, rel. Maria Catarina Gonçalves).
A obrigação de dispor de contabilidade organizada recai, por força do artigo 123.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), sobre as sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais entidades que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola, com sede ou direção efetiva em território português, bem como sobre as entidades que, embora não tendo sede nem direção efetiva naquele território, aí possuam estabelecimento estável.
Esta obrigação visa, primacialmente, permitir o apuramento e o controlo do lucro tributável, como decorre daquela norma, conjugada com o artigo 17.º do CIRC, maxime o seu n.º 3.
Para esse efeito, a contabilidade deve, para além do mais, refletir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo a que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes; todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário; as operações devem ser registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras.
Segundo Luís Brito Correia, citado no ac. do TRG, de 19.10.2020 (proc. n.º 1373/17.T8CHV.G1, rel. Heitor Gonçalves), «“chama-se contabilidade à compilação, registo, análise e apresentação de informações, em termos monetários, sobre operações patrimoniais” (Direito Comercial, I-257), devendo a sua elaboração ser orientada segundo os princípios de clareza e de verdade, por isso implica o arquivo em pastas próprias, por ordem cronológica, de todos os documentos relativos a actos com expressão patrimonial (v.g. compras e vendas, entradas e saídas de caixa e operações bancárias), de molde a permitir às autoridades públicas a verificação da regularidade tributária e o conhecimento pelos sócios da situação patrimonial da empresa, e servindo também “para verificar a regularidade da actuação do comerciante, nomeadamente em caso de falência, tendo em vista o interesse público” (cfr. obra citada, p. 253)».
Em suma, a obrigação de manter contabilidade organizada configura um instrumento destinado a dar a conhecer, de forma completa, rigorosa e fiável, a situação patrimonial e financeira da entidade a que respeita. Logo, nas palavras do ac. do TRC de 14.03.2023 antes citado, «o incumprimento dessa obrigação será substancial quando (…) não fornece uma imagem compreensível, completa e fiável da situação financeira da empresa, seja porque os termos em que foi organizada não permitem ou dificultam, de modo relevante, a exacta interpretação e compreensão da situação financeira que que ali se pretendeu retratar, seja porque induz à percepção de uma situação financeira que diverge, em termos substanciais e relevantes, da real situação da empresa». No mesmo sentido, vide o ac. do STJ, de 19.10.2021 (proc. n.º 421/19.5T8GMR-A.G1.S1, rel. Pinto de Almeida).
Deste modo, como se acrescenta no mesmo acórdão do TRC, citando os acórdãos do STJ de 05.07.2022 e de 19.10.2021, as três situações previstas na al. h), do n.º 2, do artigo 186.º, do CIRE, pressupõem a demonstração de um «prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor», expressamente mencionado a respeito da última daquelas situações.
A jurisprudência que julgamos ser maioritária entende que a verificação objectiva da situação descrita na alínea que vimos analisando é suficiente para se considerar preenchida a base da presunção de insolvência culposa, sem necessidade de demonstração das intenções subjacentes ao comportamento em causa.
Porém, alguma jurisprudência vem defendendo que o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada apenas será substancial se aquele comportamento objectivo for acompanhado de elementos factuais que revelem o intuito de ocultar a situação financeira da empresa.
Neste sentido se pronunciou o ac. do STJ de 02.03.2021 acima citado, no qual, a propósito de uma situação semelhante à destes autos, se afirma que, isoladamente considerada, a ausência da organização da contabilidade inculca a existência de uma irregularidade contabilística, mas já não «que tenha havido por banda da devedora um qualquer comportamento tendente a esconder, alterar, ou adulterar as contas da empresa, por forma a dar a entender um giro comercial diverso do existente e muito menos que tivesse fugido às regras gerais do POC, porquanto foi pura e simplesmente omitida, nem tão pouco se indicia que esta omissão tivesse implicado um prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora», pelo que aquela omissão, por si só, não demonstra «aquele incumprimento substancial que a norma exige» e, por conseguinte, não leva sem mais à declaração de insolvência culposa.
Em sentido contrário, defendendo que «a intenção ou os objectivos visados com o comportamento que lhe está subjacente são factores totalmente alheios ao juízo a fazer sobre a verificação (ou não) da situação prevista na norma citada», argumenta-se no ac. do TRC de 14.03.2023 que «além de essa especial exigência não encontrar o mínimo apoio na letra da lei, a exigência de prova de um comportamento praticado com aquela intenção e objectivos equivalia, ao que parece, a exigir a prova de um comportamento doloso (porque de outro modo não poderia ser considerado o comportamento de alguém que não cumpre os seus deveres em relação à contabilidade com a intenção e o propósito de adulterar as contas da empresa e de, por essa via, ocultar a sua verdadeira situação financeira e impedir que as causas da insolvência ou do seu agravamento fossem do cabal conhecimento de quem analisa a contabilidade da empresa) quando é certo que, nas situações previstas no n.º 2 do art.º 186.º (onde se insere a alínea em questão), o legislador pretendeu prescindir de qualquer análise ou juízo relativamente à culpa do agente, bastando-se com a verificação objectiva das situações aí descritas. Entendemos, portanto, que esse incumprimento tem que ser visto em termos objectivos – independentemente, portanto, das motivações e intenções que lhe estão subjacentes e da culpa ou grau de culpa que lhe esteja associado – em face das concretas anomalias que são evidenciadas na contabilidade».
Poderá contra-argumentar-se que a culpa (na modalidade de dolo ou de culpa grave) que o artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE presume de forma inilidível tem como referência a criação ou o agravamento da situação de insolvência e não o prejuízo para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
Em todo o caso, nada na letra ou no espírito da referida norma permite afirmar que o legislador pretendeu consagrar uma espécie de “dolo específico” relativo à intenção de causar prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. Pelo contrário, decorre do que já ficou exposto que a exigência desse prejuízo relevante se limita a densificar o conceito indeterminado de “incumprimento substancial”, pelo que configura apenas um dos elementos objectivos da base da presunção.
Deste modo, aderimos à tese que começámos por apresentar como sendo maioritária na jurisprudência. Assim sendo, não podemos deixar de concluir como o ac. do TRC que vimos citando: «A situação prevista na referida alínea h) tem-se, portanto, como verificada quando a contabilidade não permite perceber e compreender a exacta e real situação patrimonial e financeira da empresa ou cria dificuldades sérias e relevantes para essa compreensão, seja porque tal contabilidade nem sequer existe (incumprimento absoluto – e, necessariamente, substancial – do dever de manter contabilidade organizada), seja porque a contabilidade existente omite elementos essenciais para aquela compreensão, seja porque contém incorrecções ou irregularidades (formais ou materiais) que são susceptíveis de afectar e condicionar, de modo relevante e significativo, aquela percepção e compreensão ou seja porque existe uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade que, obviamente, não reflecte a realidade».
Nestes termos, não podemos acompanhar os recorrentes quando concluem que os factos provados a respeito da inexistência de contabilidade organizada desde o final de 2015 são insuficientes para sustentar a qualificação da insolvência como culposa.
Como se afirma na decisão recorrida e, de resto, se afigura de linear clareza, a inexistência de encomendas, a não aquisição de matéria prima e as consequentes não emissão de facturas pelos fornecedores e não emissão de facturas aos clientes, não só não obstavam, como não dispensavam a insolvente da obrigação de manter uma contabilidade organizada, que reflectisse, para além do mais, a referida inexistência de fornecimentos e de aquisição de mercadorias, de forma a permitir às autoridades públicas a verificação da regularidade tributária e o conhecimento pelos sócios da situação patrimonial da empresa, bem como a verificação da regularidade da actuação da insolvente, maxime em caso de insolvência.
Acresce que, como se refere na mesma decisão e veremos melhor infra, o passivo da insolvente foi aumentando ao longo destes anos, porque esta manteve em vigor um contrato de arrendamento gerador de obrigações que se foram vencendo periodicamente e porque o não cumprimento das suas obrigações fiscais geraram novas dívidas relacionadas com coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas. Ora, também este aumento do passivo deveria estar reflectido na contabilidade que a insolvente estava obrigada a manter organizada.
Não é, assim, aceitável a afirmação dos recorrentes de que não ficou demonstrado que a falta de contabilidade tenha causado qualquer dificuldade de compreensão da situação patrimonial e financeira da insolvente por parte de terceiros, como se pudéssemos partir do pressuposto de que estes conheciam ou não deviam ignorar a situação patrimonial e financeira da insolvente, inclusivamente a ausência de encomendas e de aquisição de matérias primas.
Afirmam os recorrentes que «o que é verdadeiramente relevante para os efeitos do estatuído na alínea h), do n.º 2, do artigo 186º, do CIRE, não é tanto a contabilidade enquanto registo dos fluxos financeiros e operações comerciais, mas antes a possibilidade de se evidenciar qual o comportamento negocial do empresário, razão pela qual a violação da obrigação de manter a contabilidade organizada só se pode ser tida em conta, em termos substanciais, quando dessa omissão resulte não ser possível indicar com segurança a causa da insolvência e os seus responsáveis». Mas não basta que esta possibilidade de se evidenciar a causa da insolvência ocorra a posteriori, designadamente no âmbito do próprio processo de insolvência ou dos seus incidentes, exigindo-se que essa possibilidade ocorra a todo o tempo, sob pena de se tornar numa informação inútil. É, como vimos, a impossibilidade de aceder a essa informação actualizada que justifica a presunção que vimos analisando.
Também não podemos aceitar – sendo até difícil de compreender – a afirmação dos recorrentes de que «no caso dos autos não foi dado como provado, nem tão pouco foi invocado por qualquer interveniente processual, qualquer facto ou matéria que comprove que a omissão de efetivação da contabilidade da sociedade insolvente, aqui recorrente - no período compreendido entre o ano de 2015 até ao ano de 2022 – verificou-se ou teve a sua origem num qualquer nexo de causalidade com a situação de insolvência da sociedade». Já vimos anteriormente que a verificação de alguma das situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2, ao artigo 186.º, do CIRE, faz presumir de forma inilidível não apenas a culpa, mas também o próprio nexo de causalidade, pelo que este não tem de ficar demonstrado, nem pode ser afastado por prova em contrário.
A mesma observação nos merece a alegação dos recorrentes de que não resulta dos autos «que os recorrentes ao agir de tal forma, tenham agido dolosamente ou com culpa grave, ao contrário do que foi doutamente decidido na sentença ora recorrida» e que «os gerentes da sociedade insolvente, de forma ardilosa, prosseguiram uma atividade ruinosa, contraindo novos créditos e procedendo à venda do seu património, com o único intuito de agravar a situação patrimonial da insolvente, violando de forma reiterada o disposto no artigo 186º, do CIRE», pois tal alegação pretende fazer tábua rasa da presunção inilidível que vimos analisando.
Pelas razões expostas, também não têm razão os recorrentes quando afirmam que, ao basear-se apenas no ponto L) dos factos provados, a sentença recorrida assentou em meras suposições. Na verdade, a sentença recorrida baseou-se na previsão que o próprio legislador erigiu em base da presunção inilidível de insolvência culposa. Quando muito, foi o próprio legislador que se baseou numa suposição assente na observação da realidade – de que a inobservância da obrigação de manter uma contabilidade organizada indicia e/ou visa esconder uma insolvência culposa – para determinar a base dessa presunção. Não houve, assim, qualquer violação dos princípios constitucionais consagrados os artigos 3.º, 18.º, n.º 2, 202.º, n.º 2, e 203.º, da Constituição da República Portuguesa.
Em suma, importa confirmar a decisão recorrida na medida em que julgou verificada a situação prevista no artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE, tanto bastando para que se qualifique a insolvência como culposa.
Não obstante, não é despiciendo verificar se estão igualmente preenchidas as previsões das alíneas a) e b), do n.º 3, do artigo 186.º, do CIRE, e, no caso afirmativo, se tal verificação é suficiente para sustentar a qualificação da insolvência como culposa.
2.2. Nos termos deste artigo 186.º, n.º 3, al. a), presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.
Esta presunção remete-nos para o disposto no artigo 18.º do CIRE, de acordo com o qual o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la. Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º.
De acordo com o citado artigo 3.º, n.º 1, é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. Esta definição legal de insolvência erige como critério aferidor dessa situação a impossibilidade financeira de cumprir as obrigações vencidas, não relevando outros critérios, inclusivamente a evolução dos capitais próprios. Note-se que a diferença entre o activo e o passivo só serve de critério aferidor da insolvência nas situações previstas no n.º 2 do mesmo artigo 3.º, não relevando esta norma para os efeitos do dever de apresentação à insolvência, atenta a remissão efectuada pelo artigo 18.º do CIRE. Como se escreve no ac. do TRP de 27.10.2020, já antes citado, «para a situação de insolvência assume importância decisiva tão só o “fluxo de caixa”, no sentido de que o devedor apenas se torna insolvente quando é incapaz, por ausência de liquidez suficiente, de pagar as suas dívidas no momento em que elas se vencem, e não revela perspectivas de que o venha a ser (veja-se, por todos, Prof. Menezes Leitão, Dtº da Insolvência, 2ª ed., pg.77)».
No caso concreto, os factos apurados revelam que a insolvente está impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas desde o final de 2015.
Desde logo porque, nessa altura, já se tinha vencido a parte mais significativa das obrigações que ainda permanece em dívida: perscrutados aqueles factos, verificamos que no final do ano de 2015 já se haviam vencido parte das dívidas referidas no ponto F), no valor de 19.952,23 €, a dívida referida no ponto G), no valor de 1.500,00 €, a dívida referida no ponto H), no valor de 43.292,01 €, parte da dívida referida no ponto 4, no valor de 14.649,70 € acrescido de juros de mora, a dívida referida no ponto 8, no valor de 314.668,80 €, e a dívida referida no ponto 9, no valor global de 77.385,37 € (48.528,oo € + juros), ultrapassando o total destas dívidas os 470 mil euros.
Aquela conclusão é corroborada pelos factos descritos nos pontos 1 a 3 a respeito dos movimentos das contas bancárias da insolvente e da ausência de registo de trabalhadores por sua conta na Segurança Social, bem como pelo facto, já antes mencionado, de a devedora ter cessado a sua atividade em IVA junto da Autoridade Tributária em 31.12.2015, todos eles reveladores de que deixou de ter actividade que gerasse liquidez que lhe permitisse satisfazer as obrigações já vencidas.
De resto, esta situação de impossibilitada de cumprir as obrigações vencidas foi expressamente reconhecida – ainda que contextualizada – na alegação de recurso apresentada pelos recorrentes, designadamente nas conclusões n.º 21 a 24, para cujo teor se remete, onde afirmam que a sociedade insolvente esgotou o fundo de maneio de que dispunha, que havia obtido com a restruturação bancária que descreve, pelo que não conseguiu cumprir os seus compromissos mais básicos, incluindo o pagamento dos impostos, mais esclarecendo que, face a esta situação e à falta de trabalho, deixou de ter contabilidade organizada, o que, como também já vimos, ocorreu a partir do final de 2015.
Nestes termos, está também demonstrado o conhecimento que os gerentes da devedora tinham ou, pelo menos, deviam ter de que esta se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas desde o início de 2016, o que sempre se presumiria de forma inilidível, visto estar demonstrado o incumprimento generalizado das obrigações tributárias, previstas no artigo 20.º, n.º 1, al. g), do CIRE, em conformidade com o disposto no artigo 18.º, n.º 3, do mesmo código.
Pelo exposto, os factos apurados revelam que a devedora incumpriu o dever de requerer a declaração de insolvência, o que faz presumir a existência de culpa grave, nos termos do citado artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE.
Afirmam, porém, os recorrentes que a sentença recorrida não indica ou apresenta qualquer prova idónea que permita concluir pela existência de um nexo causal entre a falta de apresentação tempestiva à insolvência e o aumento dos prejuízos alegadamente sofridos pelos credores da sociedade insolvente, pelo que é forçoso concluir que não é possível qualificar como culposa a insolvência da sociedade A..., Lda.
Não têm razão.
É certo que o aumento do passivo por força do vencimento de juros sobre os débitos da devedora, que naturalmente ocorre na generalidade das situações de incumprimento, não basta para configurar um agravamento para os efeitos do artigo 186.º do CIRE, sob pena de termos de considerar culposas praticamente todas as insolvências, caso em que teria feito mais sentido incluir esta situação no n.º 2 do referido artigo (neste sentido, vide o ac. do TRC de 16.09.2014, antes citado).
Mas, no presente caso, para além do vencimento de juros, a não apresentação à insolvência, a par da manutenção do contrato der arrendamento referido no ponto N) dos factos provados, permitiu que as respectivas rendas se fossem vencendo mensalmente e, por essa via, o constante aumento do valor em dívida a esse título (cfr. pontos 4 e 5 dos factos julgados provados), apesar de as instalações em causa estarem a ser utilizadas gratuitamente por outra sociedade (cfr. pontos 6 e 7 dos factos provados).
Afirmam, porém, os recorrentes que, na contestação apresentada na acção de despejo referida no ponto 10 dos factos provados, a ora insolvente alegou que, desde meados do ano de 2013, acordou com a senhoria que se manteria no locado sem pagar mensalmente as rendas acordadas, situação que se manteve até ao dia 23 de Novembro de 2021, data em que deu entrada em juízo a referida acção de despejo; mais afirmam que esta acção veio a ser julgada extinta por inutilidade superveniente da lide, devido à declaração da sua insolvência, pelo que as rendas reclamadas nestes autos pela credora D..., S.A. não podem ser consideradas ou classificadas como um prejuízo para os credores, na medida em que a aludida ação de despejo não se pronunciou sobre a sua existência.
Mas esta alegação dos recorrentes ignora que o reconhecimento deste ou doutros créditos para os efeitos do processo de insolvência não só não está dependente da sua prévia declaração judicial, como esta nem sequer se revela suficiente para esse efeito, como decorre do disposto no artigo 128.º, n.º 5, do CIRE, nos termos do qual «mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento». Na verdade, o reconhecimento judicial do crédito no âmbito de uma acção intentada pelo respectivo titular contra o devedor/insolvente não tem força executiva no processo de insolvência. Só a sentença que, neste processo, julgar verificado esse crédito terá essa força. E isto é assim porque o legislador quis conferir a todos os credores a possibilidade de discutir o passivo do insolvente, na medida em que a verificação deste acaba por interferir com o grau de satisfação de cada um dos créditos. Coerentemente, atribuiu legitimidade a todos os interessados para impugnar os créditos reclamados, como resulta, entre outros preceitos, do disposto nos artigos 130.º, 136.º, n.º 2, e 146.º. Em contrapartida, as decisões proferidas no processo de insolvência têm força executiva dentro e fora deste processo, como resulta do disposto no já aludido art. 233.º, n.º 1, al. c), do CIRE.
Acresce que dos pontos 4 e 5 dos factos provados nestes autos resulta que da lista dos créditos reconhecidos apresentada pelo AI no apenso de reclamação de créditos é reconhecido ao credor “D..., S.A.” um crédito no montante global de 70.916,64 €, referente a rendas vencidas e não pagas dos meses de Novembro de 2013 e seguintes, num total de 112 meses, sendo o valor de cada renda mensal no montante de 563,45 euros, perfazendo o montante de 63 106,40 euros, acrescido de juros vencidos. Mais resulta que a Insolvente não impugnou essa lista de créditos reconhecidos. Em contrapartida, não se provou que a insolvente tenha celebrado com a sociedade D..., S.A. algum acordo, escrito ou verbal, que a libertasse da obrigação de pagar a renda estipulada no contrato celebrado entre ambas em dezembro de 2004, nem que este contrato de arrendamento tenha sido denunciado por alguma das partes e o locado tivesse sido entregue à Senhoria – cfr. alíneas ) e e) dos factos não provados. Não tendo os recorrentes impugnado a decisão sobre estes factos, está demonstrado o crédito relativo às rendas, mesmo as vencidas de 2016 em diante.
De resto, consultado o apenso de reclamação de créditos (apenso A), verifica-se que este crédito foi aí reconhecido e graduado, por decisão já transitada em julgado.
Para além do aumento da dívida relativa às rendas que se foram vencendo, os factos apurados evidenciam também que a não apresentação à insolvência permitiu igualmente o aumento das dívidas tributárias, como decorre do ponto F) dos factos provados, onde se pode divisar o vencimento de dívidas de IRC, IVA, taxas de portagens, coimas, encargos de processos de contraordenação e custas administrativas ao longo dos anos de 2016 a 2021, num total de quase 25 mil euros.
Está, assim, correcta a conclusão do Tribunal a quo de que a insolvente incumpriu o dever de apresentação a insolvência e que tal contribuiu para o agravamento da sua situação de insolvência por via do vencimento de novas dívidas que aquela apresentação teria obstado, o que, por si só, fundamenta a qualificação da insolvência como culposa, ao abrigo do disposto no artigo 186.º, n.ºs 1 e 3, al. a), do CIRE.
2.3. Resta apreciar o último dos fundamentos invocados na decisão recorrida para qualificar a insolvência como culposa.
Nos termos do artigo 186.º, n.º 3, al. b), do CIRE, presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
No caso concreto provou-se que a requerida A..., Lda. não publicou na respetiva conservatória de registo comercial as contas referentes aos exercícios dos anos de 2012, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021 (cfr. ponto d) dos factos provados).
É, assim, absolutamente inquestionável que se presume a existência de culpa grave, nos termos daquela norma.
Acresce que, ao contrário do que entendem os recorrentes, decorre dos factos apurados e de tudo quanto ficou exposto supra que está igualmente estabelecido o nexo de causalidade que o n.º 1, do artigo 186.º, do CIRE igualmente pressupõe.
É certo que nada foi alegado ou ficou demonstrado que permita estabelecer qualquer relação entre a obrigação de depositar as contas e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. De resto, não se vislumbra em que termos a falta de elaboração e depósito das contas, por si só, possa criar ou agravar a situação de insolvência. Como escreve Rui Estrela de Oliveira (cit., p. 244), esta conduta, «a ocorrer, poderá constituir um indício de que algo corria mal para os lados da sociedade em causa, mas nunca poderemos subsumi-la à causa da produção ou do agravamento do estado de insolvência».
Ainda assim, afigura-se claro que a lei não permite dispensar a prova do nexo causal previsto no n.º 1 do artigo 186.º, sob pena de se transformar esta presunção de culpa grave numa presunção (ou ficção legal) de insolvência culposa (que apenas se distanciaria das presunções ou ficções consagradas no n.º 2 por ser ilidível), ou seja, sob pena de adoptarmos a interpretação que chegou a ser defendida à luz da anterior redacção do n.º 3 do artigo 186.º, já antes referida, mas que foi afastada pela interpretação autêntica levada a cabo pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro.
Impõe-se, portanto, concluir que, estando verificada a presunção de culpa grave prevista no artigo 186.º, n.º 3, al. b), do CIRE, a qualificação da insolvência como culposa dependerá, ainda, da demonstração do nexo de causalidade entre a criação ou o agravamento da situação de insolvência e o comportamento dos gerentes da devedora, o qual se presume gravemente culposo.
Ora, já decorre do que ficou exposto a respeito das consequências da não apresentação à insolvência que os factos provados permitem estabelecer o nexo de causalidade entre o comportamento dos aqui requeridos e o agravamento da situação de insolvência. Mesmo que não possamos afirmar que a insolvência foi criada pela actuação dos requeridos, sabemos que foi agravada por essa mesma actuação, a qual se presume gravemente culposa.
Deste modo, entendemos que a decisão recorrida não merece censura quando fundamenta a qualificação da insolvência como culposa também no disposto no artigo 186.º, n.º 3, al. b), do CIRE, conjugado com o n.º 1, do mesmo artigo.
3. Pelas razões expostas, impõe-se confirmar a qualificação da insolvência como culposa.
Por conseguinte, nada obstava à condenação dos requeridos na inibição do exercício do comércio, nos termos previstos no artigo 189.º, n.º 2, al. c), do CIRE, e no pagamento da indemnização prevista na al. e) do mesmo número, sendo certo que os recorrentes não invocaram quaisquer outros argumentos que pudessem obstar a estas condenações ou determinar a redução do período de inibição e/ou do valor da indemnização fixadas na sentença recorrida, pelo que se impõe confirmar igualmente estas decisões.
Nestes termos, na total improcedência da apelação, incumbe aos recorrentes o pagamento das respectivas custas, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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IV. Decisão
Pelo exposto, nos Juízes desta 2.ª secção do Tribunal da Relação do Porto julgam totalmente improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 20 de Fevereiro de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Anabela Dias da Silva
João Proença