IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO DO RECURSO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário

I - A impugnação da decisão de facto deve ser rejeitada quando, em razão das circunstâncias específicas do caso submetido a julgamento, em razão das regras do ónus de prova ou do regime jurídico aplicável, a alteração da decisão de facto não assume relevo para a decisão a proferir, pois que, nessas condições, a respectiva actividade jurisdicional seria acto inócuo ou inútil.
II - A subsidiariedade do recurso ao instituto do enriquecimento sem causa significa que enquanto o empobrecido poder lançar mão de outro meio legal para ser ressarcido do que perdeu não poderá formular pretensão de restituição à luz daquele instituto.
III - Porém, se já não subsistir outro meio jurisdicional para ser exercido o direito à restituição, o empobrecido deve poder socorrer-se do instituto do enriquecimento sem causa.
IV - Assim, a opção de a Autora não ter peticionado que os efeitos do divórcio retroagissem à data da separação de facto, ou a decisão que a impediu, por razões formais, de relacionar a totalidade do dinheiro comum no inventário não fez extinguir o direito àquela restituição de metade daquele dinheiro comum que também lhe pertencia e de que o Réu se locupletou indevidamente, não ocorrendo qualquer efeito preclusivo ou extintivo daquele direito imposto por lei ou por sentença transitada em julgado.

Texto Integral

Processo n.º 3600/22.4T8VFR.P1- APELAÇÃO

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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO:

1. AA intentou ação declarativa de condenação com processo comum, contra BB, peticionando a condenação do Réu a pagar-lhe a título de restituição a quantia de €24.158,86 acrescida de juros de mora vincendos a contar da citação contados à taxa legal.

Como fundamento da referida pretensão alegou em síntese que a autora e o réu foram casados, tendo-se entretanto divorciado sem que no processo de divórcio tenha sido pedido que os efeitos patrimoniais retroagissem à data da separação de facto do casal, apesar de nesse processo ter ficado provado que tal separação ocorrera em Junho de 2017, data em que o casal possuía a importância de €51.994,28 em dinheiro e títulos, da qual o réu retirou €48.317,71 em seu benefício exclusivo, apesar de saber que era dinheiro comum, locupletando-se à custa da autora, o que só foi do conhecimento desta quando foi nomeada cabeça de casal no inventário para separação de meações, pretendendo a autora com a presente ação reaver a sua parte no dinheiro comum.

2. O Réu deduziu contestação, sustentando que a autora não tendo pedido no processo de divórcio que os seus efeitos retroagissem à data da separação está impedida de intentar a presente ação e que os movimentos efectuados por si nas contas bancárias durante a separação de facto do casal foram no exercício de um direito próprio, tendo sido do conhecimento da autora, que se conformou com eles.

3. Foi concedido à Autora o exercício do contraditório relativamente à matéria de excepção deduzida na contestação, tendo a Autora respondido e concluído como na petição inicial.

4. Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual foi fixado o objeto do litigio, elencados factos assentes e enunciados os temas de prova, o qual não foi objecto de reclamação.

5. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido:
a) Condenar o réu a pagar à autora a quantia de €23.645,52, acrescida dos juros civis vencidos, desde a data da presente sentença, até efectivo e integral pagamento;
b) Condenar a autora e o réu no pagamento das custas, respectivamente, na proporção de 2% e 98%.
Registe e notifique.”

6. Inconformado, o Réu interpôs recurso de apelação da sentença final, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
I – A Rec.te não se conforma com a sentença que julgou procedente o pedido formulado pela A., discordando quer do julgamento da matéria de facto efectuado pelo Tribunal recorrido – impugnando, por conseguinte, a decisão de facto -, quer da matéria de direito.
II – Com relevância para o presente recurso, e que é objecto de impugnação, são os seguintes factos julgados provados e não provados, por referência à sentença, cujo julgamento se pretende ver alterado:
“19) E isto sem o conhecimento e sem autorização da autora.”
“b) Sendo tudo isto do conhecimento da A. e que se conformou com aquilo.”
III - No que respeita à matéria de facto, o Mmo. Juiz a quo não fez correcta apreciação da prova, mostrando-se adequadas as respostas à sentença, quando, em rigor, deveria acontecer exactamente o contrário.
IV – Requerendo-se a renovação da prova considerando-se o depoimento de parte da A., aos minutos 3,27, 4,50, 6,28, que deverá ser conjugado com a assentada, e das declarações da testemunha CC, aos minutos 6,35 e 6,50, ambos gravados na aplicação informática, na sessão única da audiência de julgamento;
V – A A. confirmou que tinha o cartão bancário da conta da Banco 1..., onde era creditado o seu ordenado e da qual pagava as suas contas, não sendo, assim, credível que não tivesse sequer reparado que durante cinco meses tivessem sido creditadas e debitadas valores consideráveis;
VI – No que concerne à conta Banco 2..., também estava disponível o acesso, e sistematicamente foi incentivada a retirar o saldo, total ou parcialmente, apenas não o tendo feito porque não quis;
VII – Não poderá senão concluir-se que a A. conhecia, ou podia conhecer, os movimentos das contas, e conformou-se com eles, sendo isso que nos dizem o seu depoimento, as declarações da mãe, e as regras da experiência.
VIII – Sendo certo que o Juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção, como decorre do n.º 5 do artigo 607.º do Código do Processo Civil, cabe-lhe analisar criticamente cada depoimento, e a sua conjugação com os demais meios de prova e as regras da experiência comum, o que, no caso vertente, não sucedeu.
IX – Assim sendo, não poderá, com o devido respeito, concluir-se senão em sentido contrário à do Mmo. Juiz a quo quanto aos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, nos termos sobreditos, o que se requer;
X - A alteração da resposta a estas questões de facto é importante para a sorte da causa - ainda que não seja a única razão que deve determinar a sua improcedência-, porquanto, da procedência de tal impugnação necessariamente decorrerá outra a solução de Direito para presente acção.
XI – Por outro lado, ao invés do decido em sede de sentença, o Rec.te mantém que o recurso à figura do enriquecimento sem causa está vedado à A., atenta a sua natureza subsidiária, e aquela ter tido, precedentemente, ocasião de reclamar em sede própria que os efeitos patrimoniais do divórcio retroagissem à data da separação de facto..
XII - A adopção da tese da admissibilidade após o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio da possibilidade de fixar a data de cessação das relações patriminiais, mesmo que se admitisse – o que o Rec.te não concede -, no caso em concreto estaria prejudicada atento o facto de em sede de inventário já ter sido proferida sentença transitada em julgado que negou essa pretensão, sendo que, a ser assim, abria-se caminho a violar o caso julgado duas vezes… o que, certamente, nunca foi intenção do legislador.
XIII – A sentença recorrida violou, entre outros normativos que Vossas Excelências doutamente suprirão, o disposto nos artigo 474.º e 1789.º do Código Civil, e 607., n.º 5, do Código do Processo Civil.
Concluiu, pedindo que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências

7. A Apelada apresentou contra-alegações pugnando pela confirmação do julgado

8. Foram observados os vistos legais.

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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes perante o Tribunal de 1ª instância, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos, não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. [1]
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As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
1ª Questão-Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2ª Questão-Admissibilidade de recurso ao instituto do enriquecimento sem causa.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1) A A. e o R. contraíram casamento católico no dia 21 de Junho de 1997, sem convenção antenupcial.
2) Na pendência do casamento nasceram DD, em ../../2003 e EE, em ../../2005, ambos registados como filhos da Autora e do Réu.
3) Em Junho de 2017, a Autora saiu da casa de morada de família e mudou-se para Espinho.
4) Desde então que Autora e Réu não vivem debaixo do mesmo tecto, não fazem refeições em conjunto e não partilham o mesmo leito conjugal.
5) Os contactos entre Autora e Réu reduziam-se às questões relacionadas com os filhos.
6) No dia 11 de Janeiro de 2021, a A. apresentou um pedido de divórcio sem consentimento do cônjuge.
7) Por sentença proferida no Pº 97/21.0T8VFR, do Juízo de Família e Menores, Juiz 1 em Santa Maria da Feira, notificada no dia 6/7/2021, o casamento foi dissolvido por divórcio, sendo que nesse processo não foi pedido que os efeitos patrimoniais retroagissem à data da separação do casal.
8)À data da separação de facto, o casal tinha dinheiro comum correspondente a poupanças obtidas com a exploração do seu negócio de papelaria e ganhos provindos do salário que a Autora auferia.
9) Esse dinheiro correspondia, à data de Maio de 2017, ao seguinte: 10)No Banco 2..., S.A.:
Depósito na conta à ordem n.º ..., no valor de 5,34€; Depósito na conta à ordem n.º ..., no valor de 386,66; Plano de poupança reforma, no valor de 822,37€; e
Aplicações de prazo fixo, no valor de 32.500,00€. 11)No Banco 1..., S.A.:
Conta Poupança (depósito à ordem) n.º ..., no valor de 15.001,05€;
Conta de activos financeiros n.º ..., com 1.068 títulos em acções (36 acções do Banco 3..., 385 acções da A..., 222 acções da B..., 40 acções da C..., 31 acções da D...), em nome da Autora e do Réu, respectivamente, no valor de 1.647,80€ e 1.862,41€, num total de Euros 3.666,57.
12)No que tange à conta à ordem n.º ... do Banco 1..., S.A., para além de outras operações de pagamento e levantamentos, o Réu:
Transferiu, para conta não concretamente apurada, a quantia de Euros: 3.000,00, no dia 20 de Junho de 2017;
Transferiu para a sua conta as quantias de 2.000,00€, de 2.500,00 e de 2.500,00€, respectivamente, nos dias 28 de Setembro de 2017, 23 de Outubro de 2017 e 24 de Outubro de 2017;
Procedeu a dois levantamentos, nos dias 24 de Outubro de 2017 e 27 de Outubro de 2017, respectivamente, no valor de Euros: 4.450,00 e 300,00; e
Transferiu, para conta não concretamente apurada, a quantia de Euros: 242,77, a 28 de Novembro de 2017.
13)No que tange à conta à ordem n.º ..., do Banco 2..., S.A., entre outras operações bancárias, o Réu:
Retirou a quantia de 20.000,00€, do depósito a prazo, da conta do Banco 2..., que era do casal e transferiu-a para uma conta da sua mãe, FF, ficando a conta de aplicações a prazo fixo com um saldo de 12.500,00€.
Efectuou uma mobilização do depósito a prazo, no valor de Euros: 500,00, no dia 05 de Julho de 2017; e de Euros: 2.000,00, no dia 31 de Julho de 2017, para esta conta;
Transferiu, para uma conta sua, a quantia de 400,00€, no dia 06 de Julho de 2017, e a quantia de 1.000,00€, no dia 31 de Julho de 2017;
No dia 10 de Agosto de 2017, efectuou uma mobilização do depósito a prazo, no valor de Euros: 8.000,00, para esta conta;
No dia 10 de Agosto de 2017, transferiu, para uma conta sua, a quantia de Euros: 8.000,00; No dia 10 de Agosto de 2017, o Réu transferiu, para uma conta sua, a quantia de Euros: 1.800,00; e
No dia 21 de Agosto de 2017, efectuou uma mobilização do depósito a prazo, no valor de Euros: 1.800,00, para esta conta.
14)No que tange à conta à ordem n.º ..., do Banco 2..., S.A., entre outras operações bancárias, o Réu:
No dia 25 de Agosto de 2017, transferiu, para uma conta sua, a quantia de 2.300,00€;
No dia 02 de Agosto, efectuou uma transferência, para uma conta sua, da quantia de 150,00€; No dia 08 de Agosto, efectuou uma transferência, para uma conta sua, da quantia de 8.000,00€;
No dia 21 de Agosto, efectuou uma transferência, para uma conta sua, da quantia de 1.800,00€; e
No dia 25 de Agosto, efectuou uma transferência, para uma conta sua, da quantia de 2.300,00€.
15)As mobilizações a prazo supra mencionadas foram realizadas a partir da conta poupança rendimento n.º ..., do Banco 2....
16)Por força das operações bancárias efectuadas pelo Réu, a conta da Banco 1... passou a apresentar o saldo de 10,00€.
17)Por força das operações bancárias efectuadas pelo Réu, no final de Agosto de 2017, as contas do Banco 2... tinham um saldo de Euros: 4.842,36, de depósitos à ordem e 200,00€ de aplicações de prazo fixo.
18)O Réu retirou, para si, a quantia de 47.291,05€ das contas do casal, usando-a em seu benefício. 19)E isto sem o conhecimento e sem a autorização da autora.
20)A autora teve conhecimento da movimentação do dinheiro comum pelo Réu quando foi nomeada cabeça de casal no inventário de separação de meações e lhe competia apresentar a relação de bens, em data posterior a 12.11.2021 (data do despacho de designação de cabeça-de-casal).

2. O Tribunal de 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:
a) Os movimentos financeiros que o R. efectuou nas contas bancárias durante a separação de facto visou fazer face ao pagamento do condomínio do apartamento onde o casal tinha vivido, à prestação do empréstimo bancário que contraíram para a aquisição do mesmo e às despesas relacionadas com o vestuário, alimentação, educação e saúde dos filhos.
b) Sendo tudo isto do conhecimento da A. e que se conformou com aquilo.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
1ª Questão-Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Perante as exigências estabelecidas no art. 640º do CPC, constituem ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a seguinte especificação:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
“Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primeiro: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Segundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Terceiro: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas. 
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.”[2]
Analisadas as conclusões deste recurso, que estabelecem os limites do objecto da apelação e, consequentemente, do poder de cognição do Tribunal de 2ª instância, concluímos que tais ónus de impugnação da matéria de facto foram suficientemente cumpridos pelo Apelante, ao fazer constar das conclusões de recurso, os factos impugnados, a decisão alternativa e os meios de prova constantes do processo, que em seu entender, sustentam a pretendida alteração da decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, fazendo constar as passagens exactas das gravações dos depoimentos em que funda este recurso.
Segundo o disposto no art. 662º nº 1 do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Importa, pois, apurar se foi produzida prova cabal e consistente que imponha decisão diferente da que foi tomada pelo tribunal a quo, sobre os factos mencionados pelo Apelante na Conclusão II.
A esse propósito alegou o Apelante que pretende ver alterados os pontos 19 dos factos provados e a alínea b) dos factos não provados, sustentando que em rigor deveria acontecer exactamente o contrário.
Se bem entendemos a pretensão do Apelante, pretenderá que o ponto 19 dos factos provados transite para os factos não provados e, por seu turno que a alínea b) dos factos não provados transite para os factos provados.
A redação de tais factos impugnados é a seguinte:
Ponto 19 dos factos provados- “ E isto sem o conhecimento e sem autorização da autora”;
Alínea b) dos factos não provados- “sendo tudo isto do conhecimento da A. e que se conformou com aquilo.”
Como da própria redação dos pontos impugnados se vê, estes factos não podem ser reapreciados desgarrados dos demais, sendo que o ponto 19 dos factos provados tem de ser devidamente articulado com a matéria a cujo conhecimento nele se faz alusão e que está dado como provado nos pontos 12 a 18 dos factos provados- levantamentos e transferências que o réu fez de dinheiro comum (ponto 8 dos factos provados) para outras contas suas ou de outrem retirando-o da disponibilidade da Apelada.
O ponto 19 dos factos provados vem no seguimento do ponto 18 dos factos provados no qual ficou demonstrado (não tendo sido impugnado neste recurso) que “o Réu retirou, para si, a quantia de €47.291,05 das contas do casal, usando-a em seu benefício.”
Defende o Apelante que o depoimento de parte da Apelada, as declarações da testemunha CC (mãe da Apelada) e as regras de experiência impõem que se conclua que a Apelada conhecia, ou podia conhecer, os movimentos das contas e conformou-se com eles.
Atendendo ao objecto da ação sob apreciação, segundo o pedido e a causa de pedir apresentados pela Apelada/Autora- restituição de metade dos saldos bancários que eram dinheiro comum do ex-casal à luz do enriquecimento sem causa- e perante os fundamentos de oposição suscitados pelo Apelante, não vemos de que forma a alteração dos pontos de facto impugnados poderá ter alguma utilidade na pretendida revogação da sentença condenatória que foi proferida e que constitui o objecto deste recurso, não tendo sequer o Apelante justificado em que medida as alterações propostas permitiriam reverter a sentença recorrida como se lhe impunha.
 Se em abstracto poderia relevar para eventual conhecimento da prescrição esta não foi invocada (não sendo de conhecimento oficioso).
Em bom rigor, perante o já dado como provado nos pontos 18 e 20 dos factos provados, factos que o Apelante não põe em causa, os pontos de facto impugnados não assumem relevância, como veremos de seguida.
 O Apelante impugnou aqueles dois factos mas deixou de fora da impugnação o ponto 20 dos factos provados, que assim se mantém incólume, no qual está dado como provado que “a Autora teve conhecimento da movimentação do dinheiro comum pelo Réu quando foi nomeada cabeça de casal no inventário de separação de meações e lhe competia apresentar a relação de bens, em data posterior a 12.11.2021 (data do despacho de designação de cabeça de casal).”
Este ponto 20 dos factos provados só pode significar que as referidas movimentações pelo Réu/Apelante do dinheiro comum feitas todas entre Junho e Outubro de 2017 não foram do conhecimento e/ou autorizadas pela Apelada pois que só delas veio a tomar conhecimento posteriormente- em data posterior a 12.11.2021- quando foi incumbida de apresentar a relação de bens do ex-casal, concluindo-se que com elas não se conformou porque de seguida instaurou esta acção para reaver metade do referido dinheiro comum.
Por conseguinte, conformando-se o Apelante com o que foi dado como provado no referido ponto 20 é totalmente incongruente, bem como inconsequente, a impugnação do ponto 19 dos factos provados, pois que mesmo que por hipótese fosse eliminado o ponto 19 dos factos provados a conclusão a extrair do ponto 20 conduziria ao mesmíssimo resultado e, consequentemente em nada alteraria a decisão recorrida.
O mesmo acontece com a pretendida alteração da alínea b) dos factos não provados, desde logo porque a matéria nela vertida não é o inverso do que consta do ponto 19 dos factos provados, uma vez que vem na sequência do facto dado como não provado sob  a alínea a), que não foi objecto de impugnação, do qual consta que “os movimentos financeiros que o R. efectuou nas contas bancárias durante a separação de facto visou fazer face ao pagamento do condomínio do apartamento onde o casal tinha vivido, à prestação do empréstimo bancário que contraíram para a aquisição do mesmo e às despesas relacionadas com o vestuário, alimentação, educação e saúde dos filhos.”
Assim sendo, o que se deu como não provado sob a alínea b) é que a matéria de facto vertida na alínea a) fosse do conhecimento da A. e que com isso se tenha conformado, não se reportando tal alínea ao conhecimento dos factos dados por provados sob os pontos 12 a 18.
Afigura-se-nos que, mais uma vez, a alteração não se impõe, desde logo porque as razões apresentadas pelo Apelante para tais movimentações mantêm-se não provadas uma vez que a alínea a) dos factos não provados não foi impugnada.
As alterações pretendidas pelo Apelante teriam de ter algum efeito útil, possibilitando reverter a sentença recorrida, à luz das várias soluções plausíveis de direito, porquanto a impugnação da decisão de facto não constitui um fim em si mesmo, antes se mostra admitida enquanto meio ou instrumento que visa permitir à parte que impugna a decisão de facto a revogação/alteração da decisão final.
É maioritária a jurisprudência que sustenta que a impugnação da decisão de facto é de rejeitar quando, em razão das circunstâncias específicas do caso submetido a julgamento, em razão das regras do ónus da prova ou do regime jurídico aplicável, a eventual alteração da decisão de facto não assume relevo para a decisão a proferir, pois que, em tal circunstancialismo, a respectiva actividade jurisdicional revelar-se-ia como inconsequente ou inútil. [3]
Afigura-se-nos ser este manifestamente o caso, pelas razões acima expostas, pois que mantendo-se incólume a demais matéria de facto, mormente os pontos 18 e 20 dos factos provados e a alínea a) dos factos não provados, as pretendidas alterações seriam totalmente inconsequentes não permitindo alterar o sentido decisório da sentença recorrida.
Deste modo, improcede este segmento recursivo.

2ª Questão-Admissibilidade de recurso ao instituto do enriquecimento sem causa.
A pretensão de restituição formulada pela Autora/Apelada tem como fundamento legal o enriquecimento sem causa, instituto que foi devidamente abordado na sentença recorrida, que analisou de forma assertiva os requisitos de que depende a procedência de uma pretensão à luz daquele instituto.
O Apelante apenas se insurge contra o entendimento do tribunal a quo de que a Apelada possa lançar mão do enriquecimento sem causa para reclamar dele a sua parte no dinheiro comum de que ele se apropriou em benefício próprio- do dinheiro comum que totalizava €52.225,63 à data da separação de facto, o Apelante retirou para si a quantia de €47.291,05- argumentando que o enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária e a Apelada teve a oportunidade de reclamar em sede própria que os efeitos patrimoniais do divórcio retroagissem à data da separação de facto, não o tendo feito e, tendo-lhe sido negado tal direito no inventário ficou impedida de fazer valer este direito.
Dispõe o art. 473º, n.º 1 CC que aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
A razão de ser do instituto do enriquecimento sem causa é a de que nenhuma pessoa deve locupletar-se injustificadamente à custa alheia, sendo essa a base da consagração do enriquecimento sem causa como fonte autónoma de obrigações (art. 437º n.º 1CC).
Refere Antunes Varela, que o instituto do enriquecimento sem causa tem por finalidade “ ... abranger todas as situações, mediante as quais uma pessoa obtém certa vantagem patrimonial à custa de outra, independentemente da natureza e da origem do acto de onde elas procedem... ”[4]
Tal como consta da sentença recorrida, o enriquecimento sem causa pressupõe, como resulta do preceituado no art. 473ºn.º 1 CC, a verificação cumulativa dos seguintes três pressupostos:
i.- que alguém obtenha um enriquecimento;
ii.- que esse enriquecimento seja obtido à custa de outrem;
iii.- que esse enriquecimento não tenha causa justificativa.
Sobre os pressupostos do enriquecimento sem causa, socorremo-nos na doutrina, de Almeida Costa, Direito das Obrigações, pág. 491; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, pág. 410; Antunes Varela, ob. cit, pág. 448 e, na jurisprudência, entre outros, dos Ac STJ de 30.03.2023, Proc. Nº 4415/19.2T8MAL.P1.S1; Ac STJ de 22.06.2021, Proc. Nº 4158/17.1T8CBR.C1.S1; Ac RP de 4.10.2021, Proc. Nº 6159/19.6T8VNG.P1; Ac RL 22.06.2023, Proc. Nº 26690/21.2T8LSB-A.L1-2 e Ac  RC de 7.02.2023, Proc. Nº 1707/20.1T8CTB.C1, todos consultáveis in www.dgsi.jstj.pt..
No caso sub judice, tal como se escalpelizou na sentença recorrida e o Apelante não questiona, não restam quaisquer dúvidas de que o Apelante obteve um enriquecimento atento o incremento obtido no seu património, por ter retirado para si a importância de €47.291,05 do dinheiro que era comum do casal, deixando disponível para ser partilhado com a Apelada apenas a importância de €4.934,58.
Por via da retirada pelo Apelante daquele dinheiro que constituía dinheiro comum e que deveria poder ser dividido, pertencendo também à aqui Apelada, viu esta o seu património diminuído.
O enriquecimento injustificado é aquele que, segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito, deve pertencer a outrem (neste sentido, Antunes Varela, ob. cit., pág. 455 e, I. Galvão Telles, ob. cit., pág. 186-187), ou dito de outra maneira, o enriquecimento será injustificado quando inexistam “normas que autorizem a conservação excepcional do enriquecimento”( neste sentido Menezes Leitão, ob. cit., pág. 461 e A. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, I vol., AAFDL, 1980, pág. 46 e 56).
Quanto à medida da restituição, como referem A. Varela e P. Lima, “o enriquecido não está obrigado a restituir todo o objecto da deslocação patrimonial operada. Deve apenas restituir aquilo com efectivamente se acha enriquecido à custa do empobrecido.”[5]
E este enriquecimento, assim calculado, ( ...) “ corresponderá à diferença entre a situação real e actual do beneficiado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria, se não fosse a deslocação patrimonial operada.[6]
Não fosse a conduta do Apelante de ter retirado a maior parte do dinheiro comum depois de separado de facto da Apelada, e antes de ter sido instaurado o inventário subsequente ao divórcio, aquando desse processo aquele dinheiro existiria nas contas bancárias do casal e poderia ser partilhado, correspondendo o enriquecimento à diferença entre o valor que o Apelante retirou das contas e aquele que teria direito a receber do dinheiro comum.
Por conseguinte, é inegável que se mostram verificados os apontados requisitos do enriquecimento sem causa, patentes da factualidade apurada nos autos, dela resultando evidente que o Apelante se enriqueceu à custa da autora, retirando para si do dinheiro comum mais do que tinha direito, locupletando-se injustificadamente com a importância de €23.645,52, quantia essa que foi condenado a restituir à Apelada na sentença recorrida.
A questão suscitada em sede do presente recurso resume-se apenas a apreciar se por força do princípio da subsidiariedade previsto no art. 474º do CC, deve ser negado à Apelada esse direito à restituição pretendida e à qual o Apelante foi condenado.
Dispõe o artigo 474 do CC que “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.
O Apelante sustentou que a Apelada devia ter pedido na ação de divórcio que os efeitos patrimoniais retroagissem à data da separação de facto e, como não o fez ficou impedida de conseguir os efeitos daí decorrentes (preclusão).
Em reforço da sua posição argumentou também que a Apelada formulou a pretensão de partilhar o dinheiro comum que existia à data da separação de facto do casal, em sede do inventário para separação de meações e que tal direito lhe foi negado por decisão transitada em julgado.
Afigura-se-nos que essa argumentação não colhe e tem porventura o condão de reforçar a conclusão de que a Apelada pode lançar mão do enriquecimento sem causa para reaver a parte do dinheiro comum que lhe pertencia, quer porque já não dispõe de outro meio legal para reverter o empobrecimento sofrido que tem como contrapartida um indevido enriquecimento do Apelante, quer porque o direito à restituição pretendida não ficou precludido só porque a autora não pediu no processo de divórcio que a fixação dos efeitos patrimoniais do divórcio retroagissem à data da separação de facto.
Contrariamente ao que parece defender o Apelante, o direito da Apelada a receber a sua quota parte daquele dinheiro comum não se extinguiu, nem lhe foi negado por sentença transitada em julgado, o que lhe foi negado no inventário foi apenas e só o direito de relacionar o dinheiro comum existente à data da separação do casal, apenas lhe tendo sido permitido relacionar o dinheiro comum que permanecia nas contas do ex-casal à data do divórcio.
O enriquecimento carecerá de causa justificativa sempre que o direito não o aprove ou consinta, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida, isto é, que legitime o enriquecimento.
Decorre dos autos, inclusivamente por alegação do próprio Apelante e reiterada pela Apelada (embora não conste do elenco dos factos provados, consta do processo de inventário por nós consultado) que a Apelada viu ser-lhe negado no inventário subsequente ao divórcio que aquele dinheiro fosse nele relacionado e objecto de partilha por não ter pedido no processo de divórcio que os efeitos patrimoniais retroagissem á data da separação de facto, não tendo tido sucesso por essa via quanto à pretensão de vir a receber a sua parte do dinheiro comum que por direito lhe pertencia.
A sentença recorrida abordou essa questão, tendo concluído que no caso em apreço “efectivamente, a Autora não dispõe de outro meio para reagir e para obter a parte do bem comum correspondente ao dinheiro que se encontrava depositado nessas contas e que lhe cabia, razão por que este último requisito se encontra plenamente verificado. Ou seja e em suma: resulta arredada a possibilidade abstracta de, por qualquer outra via, consagrada na lei, repor a situação dos bens tal como querida e ordenada pelo Direito, que atribui aos cônjuges o direito à sua meação no património comum, de que os valores que o Réu retirou das contas bancárias em causa fazia parte.”
A dado passo, consta da sentença recorrida uma citação de JÚLIO GOMES, na obra O Conceito de Enriquecimento, O Enriquecimento Forçado e os Vários Paradigmas do Enriquecimento Sem Causa, pp. 416, 421-422, segundo a qual a solução da subsidiariedade adoptada no CC “deve ser entendida sem exagero, apenas subsistindo uma situação que justifica a invocação da subsidiariedade quando o outro mecanismo permite atingir idêntico resultado e até, eventualmente, quando não se revela mais oneroso para o agente”.
Estamos em crer que a análise deste pressuposto da subsidiariedade deverá convocar uma averiguação casuística sobre se existe no caso concreto uma efectiva e actual possibilidade de a parte, através de outro fundamento e à luz de outro instituto jurídico (responsabilidade contratual, responsabilidade extracontratual, nulidade ou anulabilidade do acto…) poder reaver, de quem ficou enriquecido sem causa justificativa e à custa do seu património, o quantitativo de que ficou empobrecida.
Isto é, a subsidiariedade do recurso ao instituto do enriquecimento sem causa reconduzir-se-á seguinte proprosição: enquanto a parte que ficou empobrecida poder lançar mão de outro meio legal para ser ressarcida do que perdeu não poderá formular pretensão de restituição à luz do enriquecimento sem causa.
Se já não subsistir outro meio para ser exercido o direito à restituição do que é seu por direito, deve poder socorrer-se do instituto do enriquecimento sem causa.
Será, assim, irrelevante se originariamente a Apelada podia ter lançado mão do pedido de fixação dos efeitos patrimoniais do divórcio à data da separação de facto do casal (faculdade que não usou), quer porque esse reconhecimento por si só também não lhe permitiria obter a restituição da parte do dinheiro que se provou pertencer-lhe e que o Apelante fez seu, quer porque essa restituição lhe foi negada no inventário subsequente ao divórcio ao ter sido impedida de relacionar o dinheiro que era comum do casal mas que já não existia aquando do divórcio.
Enquanto aquele processo estava pendente podia sustentar-se que através desse meio a Apelada poderia peticionar a partilha do dinheiro comum do casal reavendo a sua parte, como efectivamente o fez.
Tendo-lhe sido negado o direito a relacionar a totalidade do dinheiro comum à data da separação de facto no referido inventário (em função da data da sentença de divórcio), a Apelada deixou de ter outro meio de reaver aquilo que era dela por direito.
Porém, contrariamente ao defendido pelo Apelante, a opção de não ter peticionado que os efeitos do divórcio retroagissem à data da separação de facto, ou a decisão que a impediu de relacionar a totalidade do dinheiro comum no inventário não extinguiu o direito da Apelada à restituição da metade do dinheiro comum que também lhe pertencia e de que o Apelante se locupletou indevidamente, não existindo qualquer efeito preclusivo daquele direito imposto por lei ou por sentença transitada em julgado.
Repete-se, não foi proferida qualquer decisão a declarar extinto o direito à restituição da quota parte do dinheiro comum que a Apelada agora pretende exercer.
 Pelo contrário, tendo a Apelada esgotado os meios legais de que dispunha para que lhe fosse restituída a parte do dinheiro que o ex-marido retirou do dinheiro comum e com o qual este se enriqueceu indevidamente à custa do património que também era da Apelada, de forma ilegítima e injustificada, tem de lhe ser concedida a derradeira possibilidade de reaver o dinheiro a que tem direito através do enriquecimento sem causa, sob pena de, sendo-lhe negado tal direito à luz de uma interpretação da subsidiariedade como princípio absoluto ( que não é) se estar a dar cobertura a uma actuação do Apelante, violadora dos princípios gerais de direito e da boa fé.
Como escrevem os profs. Pires de Lima e Antunes Varela (in “Ob. cit., pág. 433”) “a subsidiariedade da acção de enriquecimento tem, no entanto, de ser entendida em termos hábeis. Pode originariamente a lei não permitir o exercício da acção de enriquecimento, em virtude de o interessado dispor de outro direito e, posteriormente, facultar o recurso àquela acção, em consequência da caducidade desse direito”.[7]
A subsidiariedade do enriquecimento sem causa não pode ser utilizada de forma a subverter o propósito assumido pelo legislador de que ninguém se deve enriquecer injustificadamente à custa de outrem.
O propósito subjacente ao princípio da subsidiariedade reconduz-se a impor ao requerente que esgote os meios jurídicos de que primacialmente dispõe para ver satisfeito o direito à restituição do que é seu por direito, só podendo socorrer-se do enriquecimento sem causa quando, existindo esse direito à restituição, não tenha logrado obter esse efeito através dos meios de que se socorreu, não devendo impedir-se que essa restituição possa ser peticionada só porque o requerente não conseguiu que com outros fundamentos e lançando mão de outros meios essa restituição fosse efectuada.
O instituto do enriquecimento sem causa não deixa de ser um último recurso, do qual o empobrecido poderá lançar mão quando tentou, embora sem êxito, que a restituição se efectivasse através da invocação de outro fundamento legal.
Este nosso entendimento encontra ecos naquele que doutrinal e jurisprudencialmente se mostra consolidado quanto à problemática do início do prazo de prescrição em caso de enriquecimento sem causa, de acordo com o qual se permite a restituição ao abrigo do enriquecimento sem causa mesmo depois de prescrito o direito à indemnização se se entender que, apesar de negado o direito à restituição à luz de uma causa de pedir ( responsabilidade civil) o titular desse direito à restituição possa mesmo assim exercê-lo socorrendo-se do instituto do enriquecimento sem causa, sem que lhe possa ser oposta a preclusão do direito.
Chamamos à colação o entendimento sufragado no Ac RP de 12.09.2022, confirmado pelo Ac STJ de 30.03.2023, que embora tenha tido como cerne da questão a decidir o início do prazo de prescrição em caso de enriquecimento sem causa, os considerandos ali utilizados são, a nosso ver, transponíveis para o caso sub judice no que à subsidiariedade do enriquecimento sem causa se refere, entendimento que acompanhamos por ser aquele que melhor observa os princípios da unidade do sistema jurídico.
Lemos nesses arestos, que “atendendo à natureza subsidiária do enriquecimento sem causa, consagrado no art. 474º Cód. Civil- nos termos do qual não há lugar à restituição por enriquecimento enquanto a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”, (…) “ na verdade, se o empobrecido elegeu outra via, ainda que sem sucesso, não pode recorrer ao instituto do enriquecimento sem causa enquanto essa via não estiver esgotada, sob pena de lhe ser oposto o princípio da subsidiariedade do enriquecimento sem causa (que, como exceção perentória de direito material, neutralizaria o exercício do direito que, por essa via, se pretendia fazer valer)”, o que significa que o empobrecido só não pode lançar mão do instituto do enriquecimento sem causa enquanto tiver ao seu dispor outro meio de ser restituído suportado juridicamente noutra fonte de obrigações.
O direito à restituição por via da utilização do instituto do enriquecimento sem causa só é atendível a partir do momento em que o empobrecido esgotou os fundamentos ou meios judiciais ao seu dispor que justifiquem a restituição, “viu judicialmente frustradas as suas tentativas de ser patrimonialmente reintegrado ao abrigo de outro meio legal”[8], (….) “posto que só então se esgotou a possibilidade de obter a restituição com fundamento numa causa concreta que não a via do enriquecimento indevido.”[9]
Ora, o Apelante em momento algum alegou que a Apelada tenha ainda à sua disposição algum outro meio ou fundamento através do qual possa obter a pretendida restituição da sua parte no dinheiro comum, nem se vislumbra de que outro meio poderá neste momento a Apelada ainda lançar mão para obter a restituição pretendida, não estando demonstrado fundamento válido para o Apelante invocar a referida excepção da subsidiariedade.
O Apelante limitou-se a sustentar que a Apelada já não tem esse direito à restituição por via do enriquecimento sem causa por força da preclusão, alegando caso julgado porque o direito a metade do dinheiro com que o Apelante se locupletou foi –lhe negado no inventário por sentença transitada em julgado, no entanto sem razão, porquanto não há qualquer decisão judicial que tenha negado o direito à restituição aqui exercido pela Apelada, apenas e só lhe foi negado o direito a relacionar a totalidade desse dinheiro nos bens a partilhar no inventário, porque naquele processo era inadequada aquela pretensão.
A esse propósito, fazemos nossas as palavras assertivas do Ac STJ de 30.03.2023, “no que tange à inadequação da acção anterior para a recuperação do crédito, há que referir que não se trata de um argumento decisivo, já que (…) é precisamente dessa frustração que, dada a natureza subsidiária do enriquecimento sem causa, nasce a possibilidade de, com esta causa de pedir, se procurar obter a restituição de um montante que, falhados outros meios, se tem por subsistente.”
Afigura-se-nos que foi inclusivamente aquele desfecho da acção anterior de que a Apelada lançou mão, embora sem êxito, que permitiu que a mesma pudesse desencadear o recurso ao enriquecimento sem causa para pedir a restituição a que se provou ter direito, sem que lhe possa ser oponível a natureza da subsidiariedade daquele instituto.
Face ao exposto, nenhuma censura nos merece a sentença recorrida, mostrando-se preenchidos todos os pressupostos legais que permitem à Apelada obter do Apelante, com base no instituto do enriquecimento sem causa, a restituição da sobredita quantia de € 23.645,52 de que ficou privada, e de que, sem causa legitima, aquele beneficiou (artº 479 do CC).
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V. DECISÃO:
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Apelante/Réu, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do Apelante, que ficou vencido.
Notifique.

Porto, 20 de Fevereiro de 2024
Maria da Luz Seabra
Anabela Dias da Silva
Rui Moreira

(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 147 e A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] Cadernos Temáticos De Jurisprudência Cível Da Relação, Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consultável no site do Tribunal da Relação do Porto, Jurisprudência
[3] A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil ,Novo Regime , 2ª edição, 2008, pág. 297-298, Ac RP de 13.06.2023, Proc. Nº 1169/21.6T8PVZ.P1; AC STJ de 29.09.2020, AC STJ de 17.05.2017, www.dgsi.pt
[4] Das Obrigações em geral, I vol., Almedina, 6ª edição, 1989, pág. 447
[5] Código Civil Anotado, I vol., Coimbra Editora, 4ª edição, 1987, pág. 466
[6] I. Galvão Telles, ob. cit., pág. 189-190 e, Almeida Costa, ob. cit., pág. 511-514
[7] Proc. Nº 1867/08.0TBVIS.C1, www.dgsi.pt
[8] Ac RG de 22.05.2014, Proc. Nº 169/13.4TCGMR-A.G1, www.dgsi.pt
[9] Proc. Nº 4415/19.2T8MAI.P1-A, www.dgsi.pt