RESPONSABILIDADES PARENTAIS
RESIDÊNCIA DO MENOR
SUPERIOR INTERESSE DO MENOR
Sumário

I - O direito da criança a ser ouvida e ter a sua opinião considerada pelas autoridades na aferição do seu superior interesse não significa qualquer vinculação a ela (opinião/vontade), sequer que se trate do factor único a considerar pelas autoridades.
II - Sendo a vontade declarada pela criança um facto relevante para influenciar activamente a decisão, que o tribunal deve sempre ponderar, seguro é que não é uma (nem muito menos é a) decisão.
III - A vontade manifestada pela criança, contrária a pretensão formulada por progenitor a propósito da fixação da sua residência (residência com um dos progenitores ou residência alternada), não implica a necessária ou inelutável improcedência da pretensão, muito menos a sua improcedência manifesta, isto é, que determine um liminar arquivamento do processo, obstativo ao apuramento dos demais factores e circunstâncias que relevam para o apuramento do seu superior interesse.

Texto Integral

Apelação nº 712/20.2T8VNG-A.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Fernando Vilares Ferreira
                Anabela Dias da Silva


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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO


Apelante: AA.
Apelada: BB.

Juízo de família e menores de Vila Nova de Gaia (lugar de provimento de Juiz 1) - T. J. da Comarca do Porto.


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Nos presentes autos de alteração da regulação das responsabilidades parentais relativos a CC, nascida em ../../2011, em que o progenitor AA pretende que o regime de residência da filha passe a ser alternada (alternância semanal), deixando a residência de ser fixada junto da progenitora BB, deduzida oposição pela requerida foi realizada conferência na qual foram ouvidos o requerente, a requerida e a jovem CC, tendo esta manifestado a sua vontade a propósito da questão, pronunciando-se pela manutenção do regime em vigor (afirmando não querer passar a residir de forma alternada com cada um dos progenitores e referindo situações que a fazem desconfortável em casa do progenitor).

Ponderando que a jovem CC ‘tem capacidade de compreensão e de expressão para se pronunciar sobre a sua específica condição, naturalmente de forma livre’, conclui o tribunal que o alegado pelo progenitor requerente não justifica a alteração do regime fixado, por ‘essa não ser a vontade da menor’ e, em consequência, decidiu, por se ‘mostrar infundado o pedido e desnecessária a alteração requerida’, dar por ‘finda a instância’ e determinar o ‘arquivamento dos autos, ao abrigo do preceituado no artigo 42º, nº 4 do RGPTC.’

Inconformado, apela[1] o progenitor requerente, pretendendo a revogação da decisão e substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos, nos termos dos art. 35º a 40º do RGPTC, terminando as alegações pela formulação das seguintes conclusões:

1. Tendo requerido a alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente à sua filha CC, no sentido de a mesma passar a residir alternadamente com ambos os pais, interpõe agora o requerente recurso da sentença proferida em 7 de Outubro de 2022, após a realização da Conferência de Pais a que alude o artigo 35.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, e na qual determinou a Mtma. Juiz a quo o arquivamento dos autos, ao abrigo do artigo 42.º, n.º 4, daquele diploma legal, por entender ser desnecessária e infundada a alteração, fundamentando tal decisão, única e exclusivamente, na ausência de mais elementos, nas declarações prestadas pela criança na aludida Conferência de Pais.

2. Tendo em conta tudo o declarado na Conferência de Pais, e não dispondo o Tribunal de mais elementos a não ser as declarações dos progenitores e da filha, não devia, nem podia, ater-se apenas à dita vontade manifestada pela criança, nem muito menos ter como certo e assente que essa vontade manifestada era consistente, firme e irreversível, ao ponto de, com sustento nela, arquivar liminarmente o processo.

3. Por outro lado, a necessidade ou justificação da alteração do regime estabelecido surge sempre que o mesmo não se mostre supervenientemente adequado à protecção e/ou promoção do superior interesse da criança, daí resultando que, sendo o pedido de alteração deduzido, como in casu, com esse fundamento, o mesmo só poderia ser julgado infundado ou desnecessária a alteração quando, através da análise do requerimento inicial, se constatasse ser manifesto – isto é, notório ou evidente - que nele não foram invocadas quaisquer circunstâncias supervenientes ou, então, que as mesmas, apesar de terem sido alegadas, não conduzem, também manifestamente, à necessidade de qualquer alteração, pois, qualquer que venha a ser a prova produzida, mostra-se claro e patente que os factos invocados jamais levarão à conclusão de que a defesa do interesse da concreta criança em presença demanda a alteração do regime estabelecido.

4. Sendo os factos trazidos aos autos pelo progenitor superveniente e susceptíveis, se demonstrados, de conduzir à alteração do regime em vigor, longe de os autos deverem ser arquivados, impunha-se que o processo prosseguisse regularmente os seus termos, de modo a que o alegado fosse devidamente apurado e discutido, para então, somente após isso, ser decidida a necessidade da alteração peticionada e em que moldes, não se entendendo nem se aceitando, pois, que o Tribunal tenha considerado que “na ausência de outros elementos, deverá ser ponderada e valorizada a opinião da jovem, mantendo-se, pois, o regime já instituído”.

5. A vontade manifestada pela criança, embora deve ser ponderada e considerada, não é o único factor a ter em conta na determinação da solução mais adequada à defesa do seu superior interesse, pois essa dita vontade pode ser conflituante com a promoção daquele interesse e, além dela, outros factores deverão se ponderados e sopesados, como a importância de manter um amplo relacionamento com ambos os pais, a disponibilidade manifestada por cada um deles para que o filho mantenha com o outro esse relacionamento e a capacidade que ambos evidenciam ou não ter em ordem a promover o desenvolvimento integral da criança, físico e emocional.

6. Por conseguinte, a vontade expressa no caso pela CC, não poderia, nem pode, ser erigida pelo Tribunal como único e exclusivo factor a ter em conta na tomada de decisão, pois, além de poder não traduzir uma vontade séria e sustentada, poderá também não corresponder ao seu superior interesse, considerando tudo o alegado pelo progenitor no requerimento inicial e, também, em acrescento, o declarado pela própria menor relativamente ao facto de o seu irmão, já maior de idade, ter passado a residir com o pai (cfr. Acta da Conferência de Pais de 29 de Setembro de 2022), tendo em conta que é de toda a conveniência a não separação de irmãos e a promoção, também, de um relacionamento próximo entre ambos, em condições que permitam e potencializem o estreitamento dos vínculos e convivência entre a fratria.

7. Na ausência de mais elementos para além das declarações da criança, o que se impunha era, não o arquivamento dos autos, como in casu sucedeu com fundamento exclusivos nessas declarações, mas sim que os autos prosseguissem a sua regular tramitação, prevista nos artigos 35.º a 40.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (ex vi artigo 42.º, n.º 5), de modo a que a final, produzida a prova necessária, pudesse o Tribunal dispor de todos os elementos necessários à prolação da decisão e, em específico, em ordem a aquilatar até que ponto a dita vontade manifestada pela criança, caso se mantivesse, corresponde, ou não, a uma vontade séria, consistente, fundamentada e irreversível, bem como se essa vontade expressa vai ou não de encontro à defesa do seu superior interesse.

8. Errou, pois, o Tribunal quando, considerando prematuramente o pedido infundado e desnecessária a alteração, determinou o arquivamento dos autos, violando assim o previsto no artigo 42.º, n.ºs 1 e 4, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.

9. Deve, assim, ser a sentença recorrida revogada, determinando-se o prosseguimento dos autos, nos termos previstos nos artigos 35.º a 40.º do mesmo diploma legal.

Contra-alegaram a progenitora requerida e a Digna Magistrada do Ministério, defendendo a improcedência da apelação e manutenção da decisão apelada (sustentando que, tendo o regime em vigor sido fixado há cerca de um ano nenhum facto superveniente que justifique a alteração vem pelo requerente invocado/alegado).


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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Delimitação do objecto do recurso

Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações do apelante, a questão colocada à apreciação deste tribunal consiste em apreciar se, com exclusivo fundamento na vontade manifestada pela criança, pode julgar-se manifestamente infundado pedido de alteração da regulação das responsabilidades parentais e/ou desnecessária a alteração (art. 42º, nº 4 do RGPTC).


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FUNDAMENTAÇÃO

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Fundamentação de facto

A decisão apelada considerou, com interesse para a decisão, os seguintes factos:

1- O requerente AA e a requerida BB, são pais da jovem CC, nascida em ../../2011.

2. Por decisão homologatória do acordo entre os progenitores, datada de 13.10.2020, foi fixado o seguinte regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais:

Cláusula 1.ª (Fixação da residência e regime do exercício das responsabilidades parentais quanto às questões de particular importância para a vida dos menores)

1.1- Fixa-se a residência dos menores DD e CC no domicílio da progenitora, junto de quem os mesmos se encontram e a quem competirá a decisão relativa aos atos da vida corrente dos filhos.

1.2- As responsabilidades parentais relativas a questões de particular importância para a vida dos menores, serão exercidas em comum por ambos os progenitores.

Cláusula 2.ª (Regime de convívios/visitas entre o progenitor e os menores)

2.1- O pai estará com os menores aos fins-de-semana, de 15 em 15 dias, indo para o efeito buscá-los à sexta-feira, à escola, no final das atividades letivas, entregando-os na segunda-feira, na escola, no início das atividades letivas.

2.2- Um dia, durante a semana, o pai irá buscar os menores a casa da mãe de manhã e levá-los à escola, podendo esse dia ser à quarta ou à quinta-feira, devendo avisar a mãe até ao dia 30/31 de cada mês, em qual desses dias irá levar os menores à escola no mês seguinte.

2.3- Durante a semana, o pai poderá ainda estar com os menores desde o final das atividades letivas até às 20 horas, devendo avisar previamente a mãe por email qual o dia.

Cláusula 3.ª (Período de épocas festivas)

3.1- Os menores passarão a véspera de Natal e o dia de Natal alternadamente com cada progenitor, começando por passar este ano a véspera de Natal com o pai e o Dia de Natal com a mãe. No ano seguinte verificar-se-á o inverso e, assim, sucessivamente.

3.2- Os menores passarão o Ano Novo (véspera e dia) alternadamente com cada progenitor, começando este ano com a mãe e no próximo ano com o pai, e assim, sucessivamente.

3.3- Os menores passarão o Domingo de Páscoa alternadamente com cada progenitor, começando em 2021 com o pai, no ano seguinte com a mãe e assim sucessivamente.

Cláusula 4.ª (Período de Férias Escolares)

4.1- Nas férias escolares de Natal, os menores passarão a primeira semana de férias, até à noite de natal, com o progenitor com quem passam a Véspera de Natal e a segunda semana, desde o Dia de Natal até ao dia de ir para as aulas, com o progenitor com quem passam o Dia de Natal, alternadamente, ano após ano.

4.2- Nas férias escolares da Páscoa, os menores passarão metade das férias com cada progenitor, passando a primeira semana de férias com o progenitor com quem não passam o Domingo de Páscoa e a segunda semana, com o progenitor com quem passam o Domingo de Páscoa, alternadamente, ano após ano.

4.3- Nas férias escolares de Verão, os menores passarão 30 dias com cada progenitor, em períodos de 15 dias seguidos, podendo ser em períodos interpolados mediante acordo entre os progenitores, devendo estes comunicar um ao outro os períodos pretendidos até 30 de março de cada ano.

a) Em caso de desacordo, a escolha dos períodos de férias referidos no ponto 4.3 cabe à mãe nos anos ímpares e cabe ao pai nos anos pares.

Cláusula 5.ª (Outros períodos festivos)

- Sem prejuízo dos horários escolares:

5.1- Os menores, no dia do seu aniversário, farão uma das refeições principais com cada progenitor.

5.2- No dia de aniversário do pai e no Dia do Pai, os menores passarão o dia com o pai e pernoitam com este.

5.3- No dia de aniversário da mãe e no Dia da Mãe, os menores passarão o dia com a mãe e pernoitam com esta.

5.4- Os feriados que não calhem ao fim-de-semana ou que não ocorram em períodos de férias dos pais, serão gozados de forma alternada entre os pais, podendo haver troca desde que por acordo de ambos os pais.

a) O próximo feriado caberá ao pai, que irá buscar os menores às 10:00 horas a casa da mãe, entregando-os no mesmo local às 21:00 horas. (…)’.

3- Ouvida em sede de conferência de progenitores em 29.09.2022, a menor prestou as seguintes declarações ‘ sabe por que razão está aqui, admitindo que está nervosa. Refere que o pai quer que ela passe o mesmo tempo com ele e com a mãe, mas como não tem uma relação muito próxima com o pai, e não se dá muito bem com ele, preferia continuar como está. Refere que o pai agora não é muito bom com ela e quando está muito nervoso bate-lhe. Uma vez apertou-lhe o braço que até lhe fez uma pisadura. Isso já foi há algum tempo, já falaram sobre isso e ficou resolvido.

Refere que na prática vai para casa do pai de 15 em 15 dias, de sexta-feira a segunda-feira, sendo o pai que a leva à escola na segunda-feira. À quarta ou quinta-feira está com o pai desde o final das atividades até às 20:00 horas e para ela está bem assim. Não gostaria de passar uma semana com cada progenitor, nem de aumentar os dias de visitas, estando bem como está, confirmando que já disse isso ao pai.

Tendo a menor declarado nada mais ter a acrescentar, pela técnica da Segurança Social, Dr.ª EE, foi dito que a menor de facto está muito nervosa e quando estiveram a falar a sós, a menor referiu-lhe que não quer a residência alternada, mas também gostaria que fosse alterado o próprio regime de visitas que está em vigor, porque está a partilhar o quarto com o seu irmão de 18 anos, o que a deixa extremamente desconfortável.

Referiu-lhe ainda que o pai não permite que ela feche a porta do quarto quando se está a vestir e que ele próprio anda pela casa sem roupa, o que também a deixa desconfortável, tanto a ela como ao seu irmão. A menor não se sente à vontade para dizer isto ao pai.

A menor referiu-lhe ainda que quando lhe veio a menstruação pela primeira vez estava em casa do pai e ele, ao contrário do que ela estava à espera, não partilhou isso com a mãe.

Nesse dia tinha piscina e não sabia bem como proceder. O pai falou sobre esse assunto com amigas dele, que a menor não conhece, o que a deixou envergonhada, e foram elas que disseram ao pai que ela podia ir à piscina e ela foi.

O irmão da menor zangou-se com a mãe e agora está a viver em casa do pai. Ela dorme no mesmo quarto num beliche. Segundo lhe referiu aceitaria continuar a ir passar os fins-de-semana a casa do pai, mas sem ter de partilhar o quarto com o irmão e havendo respeito pela sua privacidade.

Ouvida a menor, pela mesma foi confirmado tudo o que foi referido pela técnica da Segurança Social, confirmando que não se sente à vontade para falar deste assunto com o pai, mas concordando que lhe seja dado conhecimento das suas declarações e das da técnica da Segurança Social.’


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Fundamentação de direito

O ordenamento jurídico consagra expressamente o princípio da audição e participação da criança – a ‘necessidade imperiosa de incentivar e promover a efetiva participação da criança nos processos que lhe dizem respeito’[2].

Princípio consagrado na nossa lei ordinária (arts. 4º, nº 1, c) e 5º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível – RGPTC –, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8/09) e plasmado nas fontes de direito supranacional (relativos à matéria da audição das crianças em meio administrativo e judicial), v. g.[3], o art. 12º da Convenção sobre os dos Direitos da Criança[4], os artigos 3º a 6º da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança[5], o art. 24º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (aprovada em protocolo anexo ao Tratado sobre  o Funcionamento da União Europeia, resultante do Tratado de Lisboa) e artigos 23º, b), 41º e 42º do Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003 (o Regulamento Bruxelas II bis).

Princípio de audição da criança que se constitui como meio (não único, não exclusivo nem excludente doutros) de concretização do superior interior da criança (este o critério norteador da decisão que lhe diga respeito[6]) – no âmbito judicial, antes de proferir decisão, a autoridade, se a criança ‘tiver discernimento suficiente’, deve ‘assegurar que ela recebeu toda a informação relevante, deve consultar diretamente a criança e deve permitir que ela exprima a sua opinião, levando devidamente em conta a mesma, mesmo que acabe por não a seguir.’[7]

Para lá de ouvir a criança como meio de prova, importa facultar-lhe o exercício do direito de influenciar a decisão (de exprimir a sua opinião) – de garantir que o seu ponto de vista seja considerado na decisão a proferir, de assegurar o seu direito de participação no processo[8].

Direito a ser ouvida e a ter a sua opinião considerada pelas autoridades na aferição do seu superior interesse – o superior interesse da criança é o critério decisório em todas as causas que lhe digam respeito, um conceito indeterminado, dotado de ‘especial expressividade, funcionando como «noção mágica» de força apelativa e tendência humanizante’, que trata de ‘centralizar as decisões judiciais numa nova noção de criança, titular de direitos fundamentais e dotada de capacidade natural de autodeterminação de acordo com a sua maturidade’[9] –, que não significa, todavia, que tal opinião e/ou vontade seja vinculativa ou sequer o factor único a considerar pelas autoridades.

 A única vinculação a que as autoridades judiciárias estão adstritas é ao superior interesse da criança, cuja aferição poderá ou não conduzir a resultado coincidente com a da vontade/opinião por ela manifestada[10].

Vontade manifestada pela criança (mesmo que genuinamente formada, livre de qualquer interessada, indesejável e nociva influência, vontade concebida a salvo de qualquer manipulação ou engano e conforme ao seu interesse, objectivamente apreciado) que é um factor importante, mas não o único a considerar (merecendo especial valorização, não é o único factor a tomar em conta na decisão a proferir[11]) – ‘uma coisa é a audição injuntiva da criança, outra bem diversa é a vinculação necessária ou irrecusável do juiz à vontade ou preferência manifestada pela criança’, uma ‘vinculação mecânica, irreflectida, acrítica ou imotivada, do juiz, à preferência manifestada pela criança acerca de um qualquer ponto ou vertente da regulação das responsabilidades parentais, maxime, sobre a sua residência’, pois sempre importará apreciar e apurar se corresponde, objectivamente, ao seu superior interesse (ao exercício óptimo dos seus direitos)[12]

Vontade/opinião da criança e superior interesse da criança são realidades diversas – aquela não traduz, necessariamente, este; fosse a opinião/vontade da criança vinculativa para o tribunal e a criança seria juiz em causa própria[13]: a obrigatoriedade de considerar a opinião da criança significa que ao juiz se impõe o dever de ponderar os pontos de vista e argumentos da criança, não já que fique vinculado a decidir de acordo com a opinião por ele manifestada[14], pois a consideração da opinião manifestada pela criança na decisão das questões que lhe respeitem não significa que seja a criança a decidir[15].

Não está, pois, o tribunal vinculado à opinião e vontade manifestadas pela criança, competindo-lhe fazer uma ponderação casuística em vista de indagar do superior interesse desta que importa acautelar e alcançar com a decisão a proferir, o que poderá conduzir à prolação de decisão contrária à vontade por ela manifestada[16] (o juiz conserva sempre o poder de apreciar o superior interesse da criança, podendo impor-lhe uma decisão mesmo contra a sua vontade[17]).

Em resumo: sendo a vontade declarada pela criança um facto relevante e uma manifestação do seu inalienável direito à palavra e à influência activa na escolha do seu destino pessoal, em que o tribunal deve sempre reflectir, seguro é que não é uma (nem a) decisão[18].

Resulta do que se expõe que a vontade manifestada pela criança, contrária a pretensão formulada por progenitor a propósito da fixação da residência (residência com um dos progenitores ou residência alternada), não implica a necessária ou inelutável improcedência da pretensão, muito menos a sua improcedência manifesta, isto é, que determine um liminar arquivamento do processo, obstativo ao apuramento dos demais factores e circunstâncias que relevam para o apuramento do seu superior interesse – o arquivamento do processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais, por manifesta falta de fundamento do pedido (ou por manifesta desnecessidade da alteração), nos termos do nº 4 do art. 42º do RGPTC, deve filiar-se num juízo valorativo assente em factos que, objectivamente analisados, permitam concluir que a pretendida alteração se revela, em concreto, infundada ou desnecessária[19], não bastando para tanto ponderar apenas um dos factores a considerar (ainda que relevante), descurando os demais.

Não podendo o tribunal limitar-se a erigir em decisão (em a decisão) a vontade manifesta pela criança (assim fosse, e sempre que fosse manifestada por uma criança a sua preferência ou vontade, qualquer processo findaria, pois haveria, tão só, que ‘homologar’ judicialmente o assim por ela decidido), não pode a vontade por ela manifestada, contrária à pretensão de alteração do regime, significar a necessária improcedência da pretensão, com o consequente arquivamento dos autos (nº 4 do art. 42º do RGPTC).

Em breve nota, importa deixar esclarecido que não cabe a esta Relação (ao contrário do que sugerem, nas contra-alegaçoes, a progenitora apelada e a Digna Magistrada do Ministério Público) apurar se estão ou não alegadas pelo requerente apelante circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração (art. 42º, nº 1 do RGPTC) – a decisão apelada não apreciou essa questão e a situação trazida em apelação não se enquadra na regra da substituição do tribunal recorrido (art. 665º do CPC).
Procede, pois, a apelação, havendo que determinar o prosseguimento do processo (se outras razões a tal não obstarem), podendo assim sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CP):

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogando a decisão recorrida, em determinar (se outras razões a tal não obstarem) o prosseguimento dos autos, nos termos do nº 5 do art. 42º do RGPT.

Custas pela apelada.


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Porto, 20/02/2024
João Ramos Lopes
Fernando Vilares Ferreira
Anabela Dias da Silva

(por exclusiva opção do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Apesar de admitido o recurso por despacho de 1/03/2023, certo é que os autos subiram à Relação apenas em 5/01/2024.
[2] Paulo Guerra in Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado, 2021, Reimpressão (coordenação de Cristina Araújo Dias, João Nuno Barros e Rossana Martingo Cruz), p. 72.
[3] Cfr. a propósito dos instrumentos normativos supranacionais que se referem à matéria, Paulo Guerra in Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado (…), p. 73 e Rossana Martingo Cruz in Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado (…), pp. 101 e ss.
[4] Convenção adoptada pela ONU, assinada em Nova Iorque a 26 de Janeiro de 1990 e ratificada em Portugal pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90, aprovada em 8 de Junho de 1990.
[5] Adotada em Estrasburgo, em 25 de Janeiro de 1996 e aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 7/2014, de 27 de Janeiro.
[6] Como se afirma no acórdão do STJ de 14/12/2016 (Maria os Prazeres Beleza), no sítio www.dgsi.pt, o exercício do direito de audição é meio privilegiado de prossecução do superior interesse da criança.
[7] Paulo Guerra in Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado (…), p. 75.
[8] Sobre estas duas modalidades de ‘encontro’ com a criança, Paulo Guerra in Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado (…), pp. 84 e 85. Sobre a distinção, também o citado acórdão do STJ de 14/12/2016.
[9] Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, 7ª Edição, revista, aumentada e actualizada, p. 57.
[10] Rossana Martingo Cruz in Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado (…), p. 104.
[11] Acórdão da Relação do Porto de 18/04/2023 (Maria da Luz Seabra), no sítio www.dgsi.pt.
[12] Acórdão da Relação de Coimbra de 12/04/2023 (Henrique Antunes), no sítio www.dgsi.pt.
[13] Acórdão da Relação de Lisboa de 14/03/2023 (Luís Filipe Pires de Sousa), no sítio www.dgsi.pt.
[14] Acórdão da Relação de Lisboa de 12/07/2021 (Nelson Borges Carneiro), no sítio www.dgsi.pt.
[15] Acórdão da Relação de Lisboa de 27/02/2022 (Inês Moura), no sítio www.dgsi.pt.
[16] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/09/2019 (Alcides Rodrigues), no sítio www.dgsi.pt.
[17] Acórdão da Relação de Lisboa de 27/10/2011 (Ezagüy Martins), no sítio www.dgsi.pt.
[18] Assim o acórdão da Relação do Porto de 27/09/2018 (Filipe Caroço), no sítio www.dgsi.pt.
[19] Acórdão da Relação do Porto de 7/04/2022 (Judite Pires), no sítio www.dgsi.pt.