QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
PRESUNÇÕES LEGAIS
PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
Sumário

I – À luz do art. 186.º, n.º 1, do CIRE, constituem requisitos da insolvência culposa: a) facto, relativo à conduta, por ação ou omissão do devedor, no período de três anos que antecede o início do processo de insolvência; b) culpa, na versão de dolo ou culpa grave; c) nexo de causalidade entre a conduta, na vertente de ação ou omissão, e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
II – A dificuldade no apuramento do caráter doloso ou de culpa grave da conduta, levou a que o legislador elencasse factos tidos como graves, atribuindo-lhes uma diferente natureza conforme caiba a situação no n.º 2 ou no n.º 3 do art. 186.º do CIRE, desenhando-se uma presunção juris et jure no primeiro caso, e juris tantum no segundo.
III – A entrega, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, de vários veículos automóveis, com o valor de mercado de 50.000 Euros, pela sociedade devedora a sociedade terceira, com gerente comum, sem qualquer contrapartida para a primeira, integra a previsão das alíneas d) e f) do n.º 2 do cit. art. 186.º.

Texto Integral

PROCESSO N.º 1068/23.7T8OAZ-B.P1

[Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis - Juiz 1]

Relator: Fernando Vilares Ferreira

Adjuntos: Anabela Andrade Miranda

João Diogo Rodrigues

SUMÁRIO:

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EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

RELATÓRIO

1.

Nestes autos de incidente de qualificação da insolvência, por apenso ao processo em que foi declarada a insolvência de A... UNIPESSOAL, LDA., vieram os Credores AA, BB, CC, DD e EE pronunciar-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa, alegando em síntese, que a Devedora nunca pretendeu liquidar qualquer das suas dívidas e que o atraso na apresentação à insolvência foi só um pretexto para a dissipação do património através da celebração de negócios com pessoas especialmente relacionadas.

2.

A Exma. Administradora da Insolvência (AI) também defendeu que a insolvência da Devedora é culposa, decorrente da dissipação de bens e da celebração de negócios ruinosos com pessoas especialmente relacionadas, para além da verificação de irregularidades na contabilidade.

3.

O Ministério Público acompanhou o entendimento dos ditos Credores e AI acerca da qualificação da insolvência.

4.

Em 11.09.2023 foi proferido o seguinte despacho:

[Regularmente notificada a devedora e citada a requerida gerente, não foi apresentada qualquer oposição aos pedidos de qualificação de insolvência como culposa.

Nos termos do disposto no artigo 188.º, n.º 8, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas é aplicável às oposições e às respostas, bem como à tramitação ulterior do incidente da qualificação da insolvência, o disposto nos artigos 132.º a 139.º, com as devidas adaptações.

De harmonia com o estatuído no artigo 134.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas às impugnações e às respostas é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 25.º.

De igual modo, nos termos do artigo 136.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o juiz declara verificados com valor de sentença os créditos incluídos na respectiva lista e não impugnados. Ou seja, inexistindo impugnação os créditos são reconhecidos – salvo erro manifesto – como constantes da lista de créditos reconhecidos apresentada, o que configura um efeito cominatório da revelia equivalente a considerar-se os factos como provados, em caso de falta de impugnação.

E se é certo que a Lei não confere uma resposta clara em caso de não existir apresentação de oposição em sede de incidente de qualificação de insolvência, temos que por aplicação do mencionado artigo 136.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplicável ex vi do art. 188.º, n.º 8 do mesmo código, caso inexista oposição ao incidente de qualificação de insolvência, dever-se-á proferir decisão, o que equivale a dizer que se consideram confessados os factos alegados.

Por seu turno, nos termos do disposto no artigo 293.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a falta de oposição no prazo legal determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere. Ora, a causa em que o incidente se insere é o processo de insolvência.

No âmbito do processo de insolvência, temos que o artigo 30.º, n.º 5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas refere expressamente que “Se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo 12.º e o devedor não deduzir oposição, consideram-se confessados os factos alegados na petição inicial”.

Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed, pág. 242, defendem que “ainda assim, o único sentido possível da parte final do nº 5 do artigo 30º é o de que a falta de oposição não tem um efeito cominatório pleno, cabendo ainda ao juiz proceder a uma reapreciação dos factos que constituem a causa de pedir e se consideram confessados (a solução geral dada pela lei processual civil comum para o tratamento da revelia – cfr. artigo 567º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Deste modo, impõe-se concluir que nos termos dos mencionados preceitos legais, em caso de falta de oposição por parte do(a/s) requerido(a/s), se consideram como provados os factos alegados no requerimento de abertura do incidente de qualificação de insolvência, bem como alegados pelo Sr. Administrador de Insolvência e pelo Ministério Público, caso não sejam os requerentes do incidente.

Poderia questionar-se se as consequências gravosas da qualificação da insolvência como culposa deveriam, antes, levar a que considerássemos a revelia inoperante (entendimento que temos vindo a defender até ao momento).

Porém, num novo estudo deste instituto, de outras normas do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e das normas do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do disposto no artigo 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, cremos não existir razões para tal até porque a condenação nesta sede não tem efeito probatório pleno em sede de processo criminal.

Veja-se, neste sentido, o Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 12.03.2015 (Proc. n.º 227/12.2TBSSB-D.E1) em que se decidiu que não choca que, quando não existe oposição por parte do devedor no incidente de qualificação da insolvência, se tenham por confessados os factos contra si alegados pois que a confissão dos factos não representa, só por si, a condenação no pedido, já que é sempre necessário que o juiz integre tais factos no direito, ou seja, que deles retire as devidas consequências jurídicas.

Nestes casos o juiz terá em conta não apenas os factos e argumentos constantes do incidente de qualificação de insolvência, mas todos os factos, documentos e circunstâncias que constem do processo de insolvência e que se mostrem relevantes para o adequado juízo referente à qualificação da insolvência (artigo 11º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

Em face do exposto, considerando os preceitos legais aplicáveis e supra descritos, impõe-se concluir, agora, que no âmbito do incidente de qualificação de insolvência, em caso de falta de oposição dos requeridos, se consideram confessados os factos.


*

Assim, em face da falta de oposição dos requeridos, declaro confessados os factos constantes nos pareceres dos credores requerente, da Exma. AI e do Ministério Público.

Notifique, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 567.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.]

5.

Cumprido o disposto no artigo 567.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPCivil), ex vi artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), vieram os Credores AA, BB e CC apresentar alegações, mantendo o teor dos pareceres de qualificação.

6.

Em 3.11.2023 foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

            [Nestes termos, decide-se:

a) Qualificar a insolvência da “A... Unipessoal, Lda.” como culposa;

b) Declarar afectada por tal qualificação a requerida FF;

c) Decretar a inibição da requerido para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 4 (quatro) anos;

d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo requerido e a sua condenação a restituir os bens ou direitos que haja recebido em pagamento desses créditos.

e) Condenar o requerida a indemnizar os credores da devedora no montante dos créditos não satisfeitos, até à força do seu património.


*

Custas pela MI.

Valor para efeito de custas: 30.000,01€.

Notifique.


*

Após trânsito, dê-se cumprimento ao disposto no artigo 189º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.]

7.

Inconformada com a sentença, a Insolvente A... UNIPESSOAL, LDA. veio interpor o presente recurso de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, assente nas seguintes CONCLUSÕES:

I) O Tribunal limita a sua fundamentação de direito, e concretamente sobre o caso, às seguintes afirmações“ da matéria dada como provada resulta que a devedora, na pessoa da sua gerente, para além de não se ter apresentado à insolvência, como era a sua obrigação, dada a antiguidade dos créditos reconhecidos, celebrou, nos dois anos anteriores ao do início do processo de insolvência, contratos verdadeiramente ruinosos e que prejudicaram os credores desta insolvência. Referimo-nos à transmissão do bem imóvel e dos veículos supra referenciados, o primeiro pelo valor irrisório de 3.000,00€ a favor de pessoa com a mesma morada que a devedora e os veículos a favor de pessoa especialmente relacionada com a devedora. Pelo que é inequívoca culpa da devedora, na pessoa da sua gerente e pois que foi consequência directa dos negócios por si celebrados a situação criada para os credores desta insolvência”

II) Não se compreende, porém, o itinerário cognoscível do Tribunal para concluir como concluiu, já que, dos factos provados não consta:

e) Qualquer alusão à antiguidade dos créditos para se concluir que a empresa já se deveria ter apresentado à insolvência;

f) Qualquer facto concreto de onde se retire que a insolvente celebrou negócios ruinosos; nomeadamente qualquer facto de onde se possa extrair que a venda do imóvel por €3000,00 só por ter um VPT de €81.000,00 tenha sido um negócio ruinoso, sem existir qualquer facto provado acerca do estado do mesmo;

g) Qualquer facto referente à pessoa com quem foi celebrado o negócio do imóvel e muito menos referente à residência da mesma.

h) Nem qualquer facto referente à transmissão dos veículos a favor de pessoa especialmente relacionada com a devedora.

III) Porque a insolvência culposa, afeta diretamente pessoas singulares, enquanto administradores de pessoas coletivas, e acarreta consequências gravosas, previstas nos n. 2 e 3 do art.189º do CIRE, traduzidas em inibições várias, deve a matéria de facto provada em cada caso concreto fornecer uma inequívoca demonstração do preenchimento dos requisitos exigidos pelo art.186º do CIRE.

IV) Contudo, no caso presente, entende-se que a parca factualidade provada não permite concluir que se encontre cabalmente preenchida nenhuma das hipóteses de insolvência culposa.

V) Sem prescindir, sempre se dirá que, no caso dos autos, apesar de entender o Tribunal pela qualificação como culposa, não fez subsumir os factos a nenhum artigo em concreto do 186º do CIRE, nem em nenhuma alínea concreta ou em mais que uma, o que não é despiciendo na medida em que dificulta a defesa da devedora, tendo esta que ser vaga tal qual a fundamentação de direito o foi. -Tal omissão deve conceber-se como geradora do vicio de nulidade da sentença.

8.

Não foram apresentadas contra-alegações.

II.

OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil).

Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, o que importa decidir no presente recurso é:
a) Se a decisão recorrida enferma de nulidade por falta de fundamentação de direito; e
b) Se os factos julgados provados não consentem o juízo jurídico no sentido da qualificação da insolvência como culposa.

III.

FUNDAMENTAÇÃO

1.

Da invocada nulidade da sentença por falta de fundamentação de direito

A Apelante defende que a decisão recorrida, tendo concluído pela qualificação da insolvência como culposa, não fez, contudo, subsumir os factos provados a nenhuma alínea em concreto do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), o que torna a decisão nula por “falta de fundamentação”.

Embora a Apelante não indique expressamente a norma processual que considera violada em termos de justificar a invocada nulidade, terá com certeza em mente o art. 615.º, n.º 1, do CPCivil, mais precisamente a al. b) – “É nula a sentença quando …não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão” –, ou então a segunda parte da al. c) – quando “ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

Estamos perante “previsões que a jurisprudência tem vido a interpretar de forma uniforme, de modo a incluir apenas a absoluta falta de fundamentação  e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo  desacerto da decisão (STJ 2-6-16, 781/11)[1].

Ora, no caso dos autos, embora se conceda que não estamos propriamente perante uma fundamentação exemplar em termos de completude e clareza, julgamos não se verificar absoluta falta de fundamentação, ou mesmo ininteligibilidade da fundamentação.

Veja-se que a sentença recorrida, depois de dar nota, em termos gerais, do regime da qualificação da insolvência como culposa, mediante citação dos artigos 185.º e 186.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CIRE, alcançou a solução do caso, mediante a leitura que fez da factualidade julgada provada, nos termos que passamos a transcrever: [Ora, da matéria dada como provada resulta que a devedora, na pessoa da sua gerente, para além de não se ter apresentado à insolvência, como era a sua obrigação, dada a antiguidade dos créditos reconhecidos, celebrou, nos dois anos anteriores ao do início do processo de insolvência, contratos verdadeiramente ruinosos e que prejudicaram os credores desta insolvência. Referimo-nos à transmissão do bem imóvel e dos veículos supra referenciados, o primeiro pelo valor irrisório de 3.000,00€ a favor de pessoa com a mesma morada que a devedora e os veículos a favor de pessoa especialmente relacionada com a devedora. É pois, inequívoca a culpa da devedora, na pessoa da sua gerente, pois que foi consequência directa dos negócios por si celebrados a situação criada para os credores desta insolvência].

Pese embora a decisão recorrida, no segmento que deixámos transcrito, não indique expressamente nenhuma das alíneas do art. 186.º que tipificam as diversas situações presumíveis de insolvência culposa, a verdade é que a elas se poderá chegar com alguma facilidade por via dos juízos conclusivos formulados.

Trata-se de algo muito semelhante ao que sucede com a arguição pela Apelante da nulidade sob apreciação: Não obstante a Recorrente não tenha citado expressamente sequer o artigo 615.º, n.º 1, do CPCivil, tal omissão não nos impediu, em face das considerações vertidas nas alegações/conclusões, de elencar aquele normativo processual como tido por violado.

Saber se a sentença aplicou bem o direito extravasa naturalmente das questões formais em apreço, contendendo já com o mérito da ação, do que nos ocuparemos infra.

Improcede, pois, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, a invocada nulidade da sentença recorrida.

2.

Factos provados

O Tribunal de que vem o recurso julgou relevante e provada a seguinte factualidade:

2.1. A aqui Devedora A... Unipessoal, Lda. apresentou-se, em 11.08.2022, a um PER que correu termos no J2 deste Juízo sob o processo com o n.º 2786/22.2T8AVR, mas o plano de revitalização não foi aprovado.

2.2. Em 20.03.2023 a Devedora apresentou-se à insolvência a qual foi declarada por sentença proferida no dia 23/03/2023.

2.3. Os créditos reconhecidos ascendem a cerca de 400.000,00€.

2.4. No dia 18.04.2022 a Devedora vendeu, pelo valor de 3.000,00€, o prédio urbano sito na Quinta ..., Rua ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia ... e ..., descrito na 2.ª CRP de Coimbra sob a ficha ... da referida freguesia cujo VPT atual é de €81.410,00.

2.5. No dia 19.04.2022 a Devedora entregou à sociedade “B... Unipessoal, Lda.” os veículos com as matrículas ..-DF-.., ..-MQ-.., ..-UH-.., ..-BA-.., ..-EP-..,..-..-UI, ..-GZ-.., ..-..-SS, ..-..-OJ, ..-MM-.., ..-IU-.. e ..-..-IV, com um valor de mercado de cerca de 50.000,00€.

2.6. A referida sociedade tinha como sua gerente a gerente da ora insolvente.

2.7. Nos dois últimos exercícios (2022 e 2023) verifica-se uma diminuição do ativo da Devedora por força da diminuição dos ativos fixos tangíveis, dos seus inventários e dos seus clientes.

2.8. A Devedora manteve na sua contabilidade documentos abertos relativos a montantes a receber dos seus clientes que nada deviam à Insolvente.

2.9. Sem prejuízo da resolução de negócios operada pela Exma. AI, nestes autos somente foram apreendidos, até ao momento, um veiculo automóvel e dois saldos bancários que se estima em cerca de €30.000,00.

3.

Os factos e o direito

3.1.

Nos termos do art. 185.º do Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE), a insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita.

Por inerência, o incidente de qualificação da insolvência tem por objeto a apreciação da conduta do devedor e como finalidade a responsabilização do mesmo, caso se prove a culpa no surgimento da situação de insolvência. Constitui, pois, uma fase do processo de insolvência que se destina a apurar as razões que conduziram à situação de insolvência e, consequentemente, a avaliar se as mesmas foram puramente fortuitas ou traduzem antes uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor.

O art. 186.º, n.º 1, do CIRE atribui a qualificação de culposa à situação de insolvência quando “tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

À luz desta norma, constituem requisitos da insolvência culposa: a) facto, relativo à conduta, por ação ou omissão do devedor, no período de três anos que antece o início do processo de insolvência; b) culpa, na versão de dolo ou culpa grave; c) nexo de causalidade entre a conduta, na vertente de ação ou omissão, e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

Trata-se tipicamente de uma norma de proteção. As normas de proteção, como explica MANUEL CARNEIRO DA FRADA[2],   “levando longe a preocupação de prevenir com eficácia a lesão de um interesse ou bem jurídico, (…) permitem como que “pré protegê-lo” (ou “antecipar” a sua proteção), vedando ou prescrevendo condutas independentemente de se demonstrar que essas condutas apresentam no caso concreto um perigo para tal interesse ou bem jurídico (podem mesmo proibir a prova do contrário)”.

Estamos perante um normativo que consagra uma noção geral de insolvência culposa, limitando a relevância da atuação do devedor ou dos seus administradores nos termos aí descritos, para efeito dessa qualificação (como culposa), a determinado período de tempo, qual seja o triénio anterior ao início do processo de insolvência.

A dificuldade no apuramento do caráter doloso ou de culpa grave da conduta, levou a que o legislador elencasse factos tidos como graves, atribuindo-lhes uma diferente natureza conforme caiba a situação no n.º 2 ou no n.º 3 do art. 186.º do CIRE, desenhando-se uma presunção juris et jure no primeiro caso, e juris tantum no segundo: [“2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas; c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa; f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto; g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência; h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º. 3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial].

Como se deixou bem sintetizado no acórdão desta RP de 1.6.2017[3], “II - As várias alíneas do nº 2 do art.º 186º do CIRE configuram presunção de culpa iuris et de iure ou factos-índice que abrangem o próprio nexo causal entre a criação ou o agravamento do estado de insolvência em consequência da atuação do devedor ou dos seus administradores. III - Para que funcionem, é necessária a sua invocação e prova - a efetuar por aqueles a quem interessam - dos factos concretos que as constituem”.

3.2.

Não podemos de modo algum acolher a leitura feita pela Exma. Juíza de Direito no que tange à apontada violação do “dever de requerer a insolvência”, com expressão imediata na al. a) do n.º 3 do art. 186.º, e com referência à previsão do art. 18.º, n.º 1 – “O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la” –, porquanto, a nosso ver, a factualidade julgada provada não resulta suficientemente esclarecedora, concretizadora, acerca do momento temporal da “verificação da situação de insolvência”, elemento indispensável para se poder concluir pela violação “do dever de apresentação à insolvência”, reconhecendo-se assim razão à Apelante neste particular.

Considerando o conjunto das situações típicas vertidas nos números 2 e 3 do artigo 186.º, o conjunto de factos julgados provados apenas se nos apresenta merecedor de ponderação à luz das alíneas b), d) e f) do n.º 2.

Nos termos daqueles normativos, “considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzindo lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto”.

Essencial, para o preenchimento da previsão da cit. al. b), é que estejamos perante a celebração de negócios “ruinosos” para a devedora, causados pelos seus gerentes/administrador, em proveito destes ou no de “pessoas com eles especialmente relacionadas”.

Na leitura aparentemente feita pela decisão recorrida, a factualidade julgada provada e descrita sob o ponto 2.4) – “No dia 18.04.2022 a Devedora vendeu, pelo valor de 3.000,00€, o prédio urbano sito na Quinta ..., Rua ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia ... e ..., descrito na 2.ª CRP de Coimbra sob a ficha ... da referida freguesia cujo VPT atual é de €81.410,00” – traduzirá um negócio “ruinoso” para a Devedora, porquanto o preço da venda é muito inferior ao valor patrimonial tributável constante da matriz predial.

Ora, sendo por demais sabido que o “VPT” quase nunca corresponde ao valor comercial do imóvel, na falta de outros elementos, julgamos que a conclusão a que chegou a decisão recorrida não encontra suficiente sustentação fática.

Mas, ainda que o negócio pudesse ser merecedor do qualificativo “ruinoso”, a matéria de facto julgada provada nunca permitiria preencher os restantes pressupostos presentes na cit. al. b): que o prejuízo da devedora resultou em proveito da respetiva gerente ou então em proveito de pessoas especialmente relacionadas com esta.

A matéria de facto é absolutamente omissa sobre a compradora do dito imóvel e sobre a relação da mesma com a gerente da devedora.

É, pois, manifesto que a factualidade julgada provada não permite o preenchimento da previsão da cit. al. b).

Atentemos agora nas previsões das alíneas d) e f) do n.º 2 do art. 186.º.

Também estas duas alíneas se inserem na categoria dos atos que prejudicando a situação patrimonial do devedor em simultâneo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros[4].

[Como refere Carneiro da Frada, a relação entre a violação dos deveres especificados no nº 2 do art.º 186º e a verificação da situação de insolvência não é igualmente próxima em todos os casos. Algumas das condutas têm normalmente como consequência direta ou previsível a insolvência (o autor dá o exemplo das alíneas a) e g)), mas “em diversos casos o que está em jogo é a reprovação de comportamentos que não conduzem por si, necessariamente, à situação de insolvência, requerendo-se a verificação de outros fatores, algumas vezes fortuitos para que ela ocorra” sendo o caso, refere, das alíneas d) e f). Neste tipo de casos, está em causa uma função de pré-proteção ou de antecipação de proteção, devido à preocupação de prevenir com eficácia a lesão de um interesse ou bem jurídico a lei veda e pune condutas independentemente de se demonstrar que essas condutas apresentam no caso concreto um perigo para tal interesse ou bem jurídico. É o caso, refere, da alínea d): pune-se a “mera disposição de bens do devedor em proveito pessoal” podendo mesmo a disposição ter tido uma contrapartida idónea. A infração de uma disposição de proteção pode, assim, corresponder a um delito de perigo abstrato, sendo compreensível o estabelecimento de uma presunção de culpa. O caso da alínea d) é um dos casos em que prescinde da prova de um prejuízo direto e se abstrai da causalidade entre o comportamento e a insolvência. Estamos ante violações do dever de fidelidade em que o administrador não pauta a sua conduta pelos interesses da sociedade, mas pelos seus ou de terceiros. O que justifica, finalmente, que a inadmissibilidade de prova em contrário é o facto de estas condutas, mesmo as enunciadas, serem, segundo a experiência, suscetíveis de causar insolvências, estando com elas intimamente ligadas. A causalidade fundamentante da responsabilidade do nº 2 do art.º 186º não exclui elementos fortuitos, podendo concorrer culpa e acaso porque visam prevenir abstratamente um perigo. (…) Disposição é “a forma de exercício de um direito que tem como consequência a sua perda, total ou parcial, absoluta ou relativa” e ato de disposição “é um ato que implica a alienação de direitos de um património, ou a sua oneração, tendo como efeito a diminuição deste ou a alteração da sua composição, no que respeita aos seus elementos estáveis.” A lei não exige qualquer elemento subjetivo adicional (intenção de prejudicar credores), para o preenchimento do tipo do art.º 186º do CIRE e, independentemente de qualquer intenção, a afetação dos recursos monetários do devedor a outra sociedade prejudica os respetivos credores por diminuir ou a respetiva garantia geral, que é sempre o património do devedor. Como se decidiu no Ac. STJ de 06/09/2022 (José Rainho), “por disposição de bens não se podem entender apenas os atos de alienação de bens da propriedade do devedor mas todo e qualquer ato de disponibilização (afetação) a terceiro de vantagens económicas que, segundo a sua normal ordenação (supondo-se aqui sempre o uso de boa-fé, e não o uso de expedientes mais ou menos encapotados), estavam destinadas a fazer parte unicamente da esfera jurídica do devedor, ou seja, estavam destinadas a servir aos fins do devedor e não de terceiro][5].

No caso que nos ocupa, a proposta afetada pela insolvência, enquanto simultaneamente gerente da Devedora e da sociedade “B... Unipessoal, Lda.”, no dia 19.04.2022, entregou a esta sociedade diversos veículos da Devedora, com um valor de mercado de 50.000,00€ (cf. pontos 2.5) e 2.6) do elenco dos factos julgados provados).

Ora, tal conduta da gerente da Devedora preenche de forma cabal as previsões normativas de que vimos falando, na medida em que dispôs de bens da Devedora, em evidente prejuízo desta (a Devedora nem tão pouco invocou qualquer justificação/contrapartida), e simultaneamente em benefício de terceiro, designadamente para favorecer outra empresa na qual tem interesse direto.

Justifica-se, assim, que concluamos no sentido de que se verifica uma situação de presunção de insolvência culposa, nos termos das disposições conjugadas do artigo 186.º, nºs 1 e 2, als. d) e f), do CIRE, o que implica a improcedência do recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida.

2.2.

As custas do recurso são da responsabilidade da Massa Insolvente (cf. arts. 303.º e 304.º do CIRE).

IV.

DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, julgamos o recurso improcedente e, em consequência, decidimos:
a) Manter a decisão recorrida;
b) Condenar a Massa Insolvente no pagamento das custas do recurso.


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Porto, 20 de fevereiro de 2024
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Vilares Ferreira
Anabela Miranda
João Diogo Rodrigues
_________________
[1] Cf. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES / PAULO PIMENTA / LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, Almedina, 2020, p. 763.
[2] In, A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, 2005, acessível em www.oa.pt.
[3] Relatado por FILIPE CAROÇO no processo 35/16.1T8AMT-A.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. acórdão da RL, de 28.02.2023, relatado por FÁTIMA REIS SILVA no processo 5920/21.6T8LSB-F.L1-1, acessível em www.dgsi.pt.
[5] Idem.