DIREITO DE RETENÇÃO
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO
Sumário

I - O direito de retenção conferido ao promitente-comprador, não visa mantê-lo na fruição de qualquer direito de gozo, mas antes garantir o pagamento do seu crédito no pressuposto de que existe incumprimento definitivo imputável ao promitente-vendedor, concedente da traditio, que recebeu sinal.
II - O direito de retenção desempenha uma dupla função: de garantia e coercitiva.
III - O seu beneficiário goza da garantia conferida pelo direito de retenção, mas os respetivos efeitos resumem-se à prioridade, nos termos da competente decisão de graduação dos créditos, na satisfação do seu crédito, não lhe conferindo o direito de recusar a entrega do imóvel á massa insolvente, em incidente de liquidação.

Texto Integral

Proc. n.º 635/10.3TYVNG-AD.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 2

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízes Desembargadores Adjuntos:

Márcia Portela

João Proença

SUMÁRIO:

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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:

Por sentença proferida a 06/06/2011, e já transitada em julgado, foi a sociedade A..., S.A., declarada insolvente.

Nos autos de INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO, que correm por apenso à quele processo de insolvência, no requerimento inicial, datado de 12.4.2022, o sr. Administrador Judicial, para além do mais, informou que, tendo transitado em julgado a sentença de verificação e graduação de créditos em 31/05/2021, indicando como imóveis já liquidados os seguintes:

“(…) 2º anúncio de venda – por proposta em carta fechada (publicado em Outubro 2013 no B...) – para os ativos da Quinta ..., ..., ... e Outras Localizações (exceto quanto às verbas 380 e 383 supra), com o seguinte resultado:

• Lote ... – Quinta ...: 54 prédios (42 frações e 11 lotes de moradias – verbas 1 a 20 + 25 a 28 + 34 + 36 e 37 + 39 a 44 + 47 a 49 + 52 a 58 + 60 + 63 a 69 + 71 + 75 e 76) vendidos à única proposta global apresentada pelo credor hipotecário Banco 1... no valor de 7.027.750,00 Euros – mas com dispensa parcial de depósito do preço, tendo o Banco 1... pago 5% do preço (351.387,50 Euros) e prestado garantia bancária on first demand do remanescente do preço (6.676.362,50 Euros) à MI (cfr. título de compra e venda na Conservatória do Registo Predial de Anadia em 13/12/2013).”

Quanto a estes imóveis, dá ainda nota da seguinte situação:

“4 promitentes reconhecidos da Quinta ... que não quiseram transigir com a MI e que têm os seguintes créditos verificados e graduados com a natureza de garantidos (com um direito real de garantia - direito de retenção) pelo produto da venda dos respetivos imóveis que prometeram adquirir à insolvente:

• Verba 30 – Fração AH – promitentes AA e BB – crédito de 270.000,00 Euros

• Verba 35 – Fração AP – promitentes CC e DD – crédito de 94.475,04 Euros

• Verba 51 – Fração BK – promitentes EE e FF – crédito de 447.795,00 Euros

• Verba 61 – Lote ... – promitentes GG e HH – crédito de 175.000,00 Euros.

Requereu o seguinte:

O AI ficou então de, assim que tal for considerado oportuno e/ou sem prejuízo das naturais condicionantes (inclusivamente legais) decorrentes do momento pandémico que recentemente se atravessou, proceder a uma primeira interpelação destes ocupantes para solicitar a entrega à MI dos respetivos imóveis para poder ser desencadeado o seu procedimento de venda”.

E mais tarde, veio informar que:

“(…) 3. Quinta ...

a. (2) imóveis ainda ocupados por reclamantes cujos créditos foram definitivamente não verificados na sentença de verificação e graduação de créditos já transitada em julgado:

• Verba 22 - Fração Z - II + JJ

• Verba 31 - Fração AJ - KK

b. (2) imóveis ainda ocupados por promitentes-compradores com créditos definitivamente verificados, mas que não quiseram transigir e que ainda não entregaram os imóveis à MI para efeitos da sua venda:

• Verba 35 - Fração AP - CC e DD

• Verba 51 - Fração BK - EE e FF

c. (1) imóvel que estava anteriormente selado (anterior diligência da MI) e cuja diligência de (re)abertura foi, entretanto, possível concretizar:

• Verba 79 - Lote ... - LL / C... Unipessoal, Lda

d. (1) imóvel cujas fundações (clube) foram soterradas pela Câmara Municipal ... e cujo procedimento de possível regularização cadastral para se aferir da possibilidade da sua venda e/ou da sua eventual alteração de destino já decorre com a intervenção da Sra. Dra. MM (antiga Conservadora):

• Verba 80 - Lote ... (clube) - transacionável (?) como (?)

e. (5) imóveis que foram objeto do último procedimento de venda realizado, mas que não tiveram propostas ou estas não foram superiores aos respetivos valores mínimos de venda:

• Verba 21 - Fração X

• Verba 23 - Fração AA

• Verba 50 - Fração BJ

• Verba 61 - Lote ... (cujos promitentes GG e HH já não habitam no imóvel e entregaram-no já anteriormente para se proceder à sua venda)

• Verba 73 - Lote ....”

Na sequência desta informação, com data de 7.3.2023, foi proferido o seguinte despacho:

“Considerando a antiguidade destes autos e uma vez que os ocupantes de frações apreendidas para a massa a seguir identificados não dispõem de qualquer título para a ocupação dos mesmos e há muito que sabem que estão obrigados a entregar esses imóveis à massa insolvente para que proceda à venda dos mesmos determina-se que:

- sejam notificados os reclamantes II e JJ –pessoalmente e na pessoa do seu Il. Mandatário – para que, em 10 dias, comprovem que procederem à entrega ao Sr. administrador da insolvência da Verba 22 - Fração Z, comprovando nos autos essa entrega, com a advertência que não o fazendo será determinada a sua entrega coerciva através de arrombamento e com recurso à utilização de força pública da autoridade policial competente.

- seja notificado o reclamante KK – pessoalmente e na pessoa do seu Il.Mandatário – para que, em 10 dias, comprovem que procedeu à entrega ao Sr. administrador da insolvência da Verba 31 - Fração AJ, comprovando nos autos essa entrega, com a advertência que não o fazendo será determinada a sua entrega coerciva através de arrombamento e com recurso à utilização de força pública da autoridade policial competente.

- sejam notificados os reclamantes CC e DD – pessoalmente e na pessoa do seu Il. Mandatário – para que, em 10 dias, comprovem que procederem à entrega ao Sr. administrador da insolvência da Verba 35 - Fração AP, comprovando nos autos essa entrega, com a advertência que não o fazendo será determinada a sua entrega coerciva através de arrombamento e com recurso à utilização de força pública da autoridade policial competente.

- sejam notificados os reclamantes EE e FF – pessoalmente e na pessoa do seu Il. Mandatário – para que, em 10 dias, comprovem que procederem à entrega ao Sr. administrador da insolvência da Verba 51 - Fração BK, comprovando nos autos essa entrega, com a advertência que não o fazendo será determinada a sua entrega coerciva através de arrombamento e com recurso à utilização de força pública da autoridade policial competente.

Notifique o Sr. administrador da insolvência do presente despacho.”

Inconformados, os Reclamantes EE e FF, vieram interpor recurso, com as seguintes conclusões:

“1.ª Os Recorrentes interpõem recurso do despacho proferido pelo Tribunal a quo, datado de 09/03/2023, sob a ref.ª 446234172, na parte em que determinou a comprovação da desocupação e entrega do imóvel, no prazo de 10 dias, por entenderem ter sido feita uma incorreta interpretação do direito no caso em apreço, nomeadamente por violação do artigo 580.º do Código de Processo Civil e artigos 410.º, 754.º, 762.º e 875º, todos do Código Civil, inexistindo, pois, qualquer obrigação de entrega.

2.ª Desde logo, verifica-se a existência da exceção do caso julgado, porquanto o Tribunal apreciou e pronunciou-se sobre uma questão que havia sido já apreciada e decidida, por sentença transitada em julgado.

3.ª Veja-se, por sentença proferida a 06/06/2011, e já transitada em julgado, no processo n.º635/10.3TYVNG, que correu os seus termos junto do 2º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, foi a sociedade A..., S.A. declarada insolvente.

4.ª Face à declaração de insolvência da referida empresa, aliada ao facto de não ter a mesma cumprido com a sua obrigação para com os Recorrentes, de realização do contrato prometido através da competente escritura pública de compra e venda definitiva, estes últimos, na qualidade de credores, reclamaram os respetivos créditos, a 25/07/2011, junto do Administrador de Insolvência.

5.ª A 27/02/2020, por sentença transitada em julgado, no âmbito do apenso B (de reclamação de créditos) do processo n.º 635/10.3TYVNG, foi reconhecido aos Recorrentes, um crédito de valor de € 447.795,00, com natureza de garantido (direito de retenção).

6.ª A força de caso julgado está intrinsecamente ligada com o dever imposto ao juiz de respeitar as legítimas expetativas das partes, pelo que, e salvo o devido respeito, não poderia agora o douto Tribunal ordenar a comprovação da desocupação e entrega do imóvel – casa de morada de família dos Recorrentes – porquanto está a violar o direito de retenção que foi reconhecido aos Recorrentes por sentença já transitada em julgado,

7.ª Violando ainda as legitimas expectativas dos Recorrentes, já que estes tinham, e têm, a expectativa de manutenção e detenção do imóvel que lhes foi prometido vender até que seja outorgada escritura definitiva ou, em alternativa, até que recebam o sinal em dobro.

8.ª Ora, a 04/06/2007, os Recorrentes, na qualidade de promitentes compradores, celebraram com A..., S.A., na qualidade de promitente vendedor, um contrato promessa de compra e venda, referente à fração autónoma designada pelas letras “BK”, habitação ..., correspondente a uma habitação, do tipo T4, no piso dois, com entrada pelo nº ..., compreendendo uma garagem individual no piso menos um, assinalada com as respetivas letras.

9.ª Entre as partes, e como preço global, foi fixado o montante de € 375 000,00, dos quais € 75 000,00 seriam pagos a título de sinal e princípio de pagamento, com a assinatura do contrato promessa; € 150 000,00 seriam pagos a título de reforço de sinal, até 02/11/2007; e € 150 000,00 seriam pagos no ato da outorga da escritura pública de compra e venda.

10.ª A escritura pública de compra e venda referente ao imóvel em discussão ficou de ser celebrada só após a venda do apartamento sito na Rua ..., nº ..., 3º Dto., ..., em dia e hora a serem agendados pela A... e comunicado aos aqui Recorrentes com quinze dias de antecedência, em relação à data prevista, por meio de carta registada com aviso de receção.

11.ª Isto dito, os Recorrentes procederam ao pagamento à A... das quantias de € 75.000,00 (a título de sinal) e de € 150.000,00 (reforço de sinal) – tudo conforme havia ficado estipulado – num total de € 225.000,00.

12.ª Posteriormente, a A... concluiu a construção do projeto imobiliário habitacional, em regime de condomínio fechado, denominado “Quinta ...”, tendo no ano de 2007 procedido à constituição da Propriedade Horizontal.

13.ª Tenho a A... concluído a construção da fração autónoma prometida vender (designada pelas letras “BK” e composta pelo Bloco ..., Habitação ... (T4), no piso 2, com garagem no piso menos um), o referido apartamento sito na Rua ..., nº ..., 3º Dto., ..., foi entregue pelos Recorrentes à A..., em Maio de 2010, para ser vendido.

14.ª E assim, em Maio de 2010, com a entrega da chave do apartamento prometido pela A..., os Recorrentes mudaram-se para a referida fração, passando a dela usar, usufruir e administrar, habitando-a e depositando bens materiais, tendo celebrado vários contratos de fornecimento de serviços (como seja de água, luz, internet, etc), passando a referida fração a constituir a casa de morada de família dos Recorrentes.

15.ª Sucede que, até hoje o contrato definitivo ainda não foi outorgado entre as partes, com o agravante de ter sido a A... declarada insolvente, a 06/06/2011, no âmbito do processo n.º 635/10.3TYVNG, pelo 2º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia.

16.ª A 25/07/2011, os Recorrentes reclamaram os seus créditos junto do Administrador de Insolvência, e por sentença proferida a 27/02/2020, sob a ref.ª 412762984, no âmbito do apenso B do processo n.º 635/10.3TYVNG, decidiu o Tribunal darem-se por definitivamente verificados os créditos dos aqui Recorrentes, no valor de € 447.795,00, com a natureza de garantido (direito de retenção).

17.ª Ora, o promitente-comprador (neste caso os Recorrentes) que obtém a traditio da coisa, goza do direito de retenção, no caso de incumprimento imputável à outra parte (A...), tal como decorre dos artigos 442.º e 755º, alínea f) do C.

18.ª Como se sabe, este direito real de garantia confere ao seu titular, aos Recorrentes, a faculdade de recusar a entrega da coisa enquanto o devedor não cumprir, assim como a de se pagar pelo valor dela, com preferência sobre os demais credores.

19.ª A alteração legislativa que se traduziu no aditamento da alínea f) do art. 755.º do CC, teve como intuito a defesa do consumidor, e a que o legislador entendeu dar prevalência ao conferir primazia ao direito de retenção sobre a hipoteca.

20.ª Todos os pressupostos necessários para se aferir da existência de direito de retenção, mostram-se preenchidos no caso em discussão (a saber: a traditio da coisa; o incumprimento definitivo do contrato promessa pelo promitente vendedor; e a titularidade pelo promitente comprador, por virtude desse incumprimento, de um direito de crédito), acrescendo o facto de os Recorrentes integrarem o conceito de consumidor (cfr. artigo 2°, nº 1, da Lei 24/96, de 31.07 adotado pelo AUJ 4/2014 de 20/03, publicado no DR. a 19/05).

21.ª Portanto, verificou-se ter existido a tradição da coisa, traduzindo-se a ocupação da coisa por motivo da sua tradição numa antecipação dos efeitos do contrato prometido, aliás, tanto assim é que os Recorrentes há já 13 anos que vivem na sua casa morada de família, de boa fé e com uma posse titulada por contrato promessa de compra e venda.

22.ª Motivo pelo qual não compreendem como pode agora o douto Tribunal decidir pela comprovação da desocupação e entrega do imóvel, em 10 dias – comportamento que integra o conceito de abuso de direito (art. 334.º do Código Civil).

23.ª Este instituo de abuso de direito visa impedir que as normas jurídicas, formuladas em termos gerais, determinem, quando aplicadas a casos específicos, notórias injustiças, o que é bastante notório ter ocorrido in casu, já que, tendo sido a coisa entregue aos aqui Recorrentes, ainda antes da celebração do contrato definitivo, foi-lhes criada uma forte expectativa na concretização do negócio, pelo que se justifica, postulado pela boa fé, que lhe corresponda uma segurança acrescida.

24.ª Terá este douto Tribunal de ter em consideração que o legislador não procedeu à revogação ou à alteração do regime processual excecional e transitório aprovado pela Lei nº1-A/2020 de 19 de Março, alterado pela Lei nº 13-B/ 2021 de 5 de Abril, cujo art.6º-E, nº 7, al. b), que suspendeu os atos a realizar em sede de processo executivo relacionados, com a concretização de diligências de entrega da casa morada de família.

25.ª Dessa forma, face à não revogação do dito decreto-lei, deverá considerar-se que o legislador mantém em vigor o regime referido, tanto para mais que a jurisprudência também tem confirmado esse entendimento – veja-se o Ac. Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 12992/13.5T2SNT-G.L1-8, de 29/11/2022.

26.ª Isto posto, deverão os Recorrentes manter-se na sua casa morada de família, como aliás o têm vindo a fazer desde o ano de 2010.”

Contra-alegou a MASSA INSOLVENTE DE A..., S.A., pugnando pela improcedência do recurso, concluindo da seguinte forma:

“1. O douto despacho de fls. proferido nos presentes autos em 07/03/2023 com a refª 445955224 não merece qualquer reparo ou censura no que tange ao cumprimento das regras processuais vigentes e à interpretação e à aplicação das disposições legais aplicáveis ao caso concreto.

2. Entendendo em suma (e bem) que, caso dúvidas existissem (que, aliás, não existem), quaisquer ocupantes de imóveis apreendidos no presente processo de insolvência têm necessariamente que os entregar ao Sr. AI para que este possa promover a respetiva venda.

3. O recurso apresentado pelos recorrentes está assim votado ao insucesso, desde logo porque padece de irreparáveis incorreções e ainda porque carece de qualquer fundamento de facto e/ou de direito.

4. Os recorrentes assentam o seu recurso no argumento de inexistir sobre si obrigação de entrega da coisa por via do direito de retenção que lhes foi reconhecido sobre a fração autónoma que ocupam, escudando-se para tal na suposta violação do caso julgado e num alegado abuso de direito, defendendo ainda a final a aplicabilidade do regime excecional e transitório de suspensão de diligências de entrega da casa de morada de família.

5. Os recorrentes bem sabem (e não podem ignorar) que não lhes assiste razão, concretamente que terão necessariamente que entregar o imóvel à massa insolvente para que o Sr. AI proceda à sua venda, para posteriormente e em sede de rateio poder efetuar o pagamento, com o respetivo produto, dos créditos verificados e graduados neste processo atendendo à ordem estatuída na sentença de graduação, incluindo o dos aqui recorrentes.

6. No caso destes autos, os recorrentes reclamaram os créditos de que consideravam ser titulares sobre a insolvente, e estes foram-lhes reconhecidos, estando pacificamente consolidado tal reconhecimento por sentença já transitada em julgado (proferida no apenso B - reclamação de créditos).

7. Sem prejuízo, a verdade é que, nos processos de insolvência, qualquer direito de crédito e/ou qualquer direito real de garantia - seja ele hipotecário, pignoratício ou resultante de direito de retenção - apenas releva para efeitos de rateio do produto da venda dos bens, sendo até os registos dessas garantias cancelados porque caducam por força da venda realizada em processo de insolvência [a título exemplificativo quanto à caducidade do direito de retenção, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18/12/2007 do Relator Pires Robalo proferido no processo 2306/07-3, in www.dgsi.pt].

8. Consequentemente, ainda que os recorrentes sejam credores da sociedade insolvente com um crédito garantido por direito de retenção, a ocupação do imóvel por aqueles não poderia nem poderá nunca manter-se, pois ela é impeditiva da obtenção de produto para se proceder (em rateio) ao pagamento dos créditos verificados e graduados, incluindo o dos próprios recorrentes (!)

9. Ou seja, mesmo que o seu crédito tenha a natureza de garantido por direito de retenção - o que não se questiona no despacho recorrido, nenhuma violação existindo do caso julgado - não assiste a estes credores recorrentes o direito a não entregar o imóvel para ser vendido no processo de insolvência - o que seria ad eternum impeditivo do pagamento de um qualquer crédito com o respetivo produto.

10. Concluindo, a ocupação do imóvel não tinha nem tem qualquer razão de existir - tendo sido, por isso, (bem) ordenada a sua desocupação e entrega ao Sr. AI, não restando quaisquer dúvidas que essa obrigação de entrega deverá manter-se e ser cumprida, tal como foi aliás judicialmente ordenado.

11. «Em primeiro lugar e tendo em conta que ora a posição de promitente comprador, antes a devedora, foi ocupada pela massa insolvente, é óbvio, e numa perspetiva eminentemente prática, que o efeito persuasor do direito de retenção entendido como a faculdade de não fazer a entrega do bem prometido vender enquanto não for recebido o crédito, perdeu qualquer eficácia. Já não temos uma sociedade devedora como contra-parte, antes um património autónomo que se destina à satisfação de todos os credores da sociedade – cfr. art. 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

12. Por outro lado, (…) a vertente de garantia real do direito de retenção, garante-lhes, em abstrato, uma causa de preferência no pagamento do seu crédito pelo produto do bem sobre que incide o direito de retenção e apenas sobre este. Ou seja, no tocante aos demais bens apreendidos para a massa insolvente, vendidos e a vender, o crédito em causa é comum e não goza de qualquer causa de preferência. É, pois, de todo o interesse dos próprios promitentes-compradores AA., a venda do bem em causa e o ingresso do respetivo produto na massa insolvente porque é este que confere garantia de pagamento ao seu crédito.

13. É que em liquidação em processo de insolvência os bens que integram a massa insolvente têm que, nos termos legais, ser todos vendidos, para, precisamente, satisfazer os credores da insolvente. Não se trata ora de pressionar o comprador a cumprir ou a satisfazer qualquer indemnização. Trata-se de vender e verificar e graduar os créditos nos termos legais.

14. O direito de retenção (…) apresenta uma dupla natureza – a faculdade de recusar a entrega da coisa situa-se no domínio do cumprimento das obrigações; a sua faceta de privilégio creditório situa-se no domínio das obrigações. É esta segunda faceta que fica a valer na sua plenitude num caso como o presente. O direito de retenção é uma garantia real e não um direito de gozo, que não confere o direito à restituição da posse – apenas a faculdade de recusar a entrega da coisa (cfr. art. 759º do Código Civil) e essa ordenada à execução judicial. Ora, em caso de declaração de insolvência, precisamente, já não é possível o recurso à execução judicial singular (cfr. art. 88º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), uma vez que a insolvência é, precisamente, uma execução universal. Também por esta via se justifica a cedência da faceta obrigacional do direito de retenção.» in O Processo de Insolvência – Prontuário de decisões judiciais e peças processuais do Ministério Público – Volume II, Centro de Estudos Judiciários, Caderno Especial, Julho de 2016, disponível em https://cej.justica.gov.pt.

15. Neste mesmo sentido, vejam-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/12/2020 da Relatora Ana Paula Amorim proferido no processo 98/12.9TYVNG-F.P1, disponível em www.dgsi.pt, de cujo sumário resulta desde logo que «II - O direito de retenção constitui um direito de garantia que confere preferência no pagamento, mas não confere qualquer direito de gozo sobre o bem, que fica como os demais bens do devedor sujeito à apreensão para a massa insolvente, não constituindo fundamento para separação dos bens da massa insolvente.»

16. E ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21/05/2020 do Relator Mário Silva proferido no processo 654/16.8T8OLH-R.E1, também disponível em www.dgsi.pt, e que conclui utilizando o entendimento constante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/04/2019 do Relator José Rainho proferido no processo 2164/11.9TBSTR.E1.S2, igualmente disponível em www.dgsi.pt, e que trata da mesma concreta e exata questão em causa neste recurso, não deixando sobre esta matéria qualquer margem para dúvidas:

17. «O direito de retenção é uma garantia (legal, especial e real) da obrigação. Em virtude dela o credor adquire o direito de se fazer pagar, com a preferência estabelecida na lei, pelo valor ou pelos rendimentos de certos bens do próprio devedor (ou até de terceiro).

18. O direito de retenção aqui em causa incide sobre bens que pertenciam à sociedade insolvente, e que agora são integrantes da massa insolvente.

19. Tal direito de retenção não impede a apreensão (tal como não impediria a penhora em execução singular) para a massa insolvente dos bens a que respeita e a sua entrega ao administrador da insolvência, como, de resto, resulta dos art.s 36.º, alínea g), 46.º, n.º 1, 149.º, n.º 1 e 151.º, n.º 1 do CIRE. E compreende-se que assim seja: só com tal apreensão e com tal entrega se cumprem as finalidades próprias do processo de insolvência, e que são (a menos que haja aprovação de um plano de insolvência) a liquidação do património do insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1.º do CIRE).

20. Daqui que, (…) no caso vertente não opera em toda a sua extensão o direito de retenção previsto no art. 755.º, n.º 1, alínea f) do CCivil, de molde a impedir a entrega das frações (…). (…) a posição jurídica da contraparte no contrato-promessa não revestido de eficácia real celebrado com entidade entretanto declarada insolvente cede perante os interesses da massa insolvente e dos credores, não se admitindo, à luz de tais interesses, a possibilidade dos [promitentes] poderem manter-se na detenção dos bens pertença da massa insolvente, em prejuízo desta, opondo-se à respetiva apreensão e venda para satisfação dos credores da insolvência.

21. Na realidade, a garantia de que beneficiam (…) releva apenas para efeitos de reclamação, graduação e satisfação do seu crédito, não autorizando de forma alguma a manutenção da detenção das frações. (…) No mesmo sentido aponte-se o acórdão da Relação de Coimbra de 15 de janeiro de 2015 (processo n.º 511/10.0TBSEI-E.C1, disponível em www.dgsi.pt), de cujo sumário se pode ler que “Declarada a insolvência do dono da coisa, o retentor terá que a entregar ao administrador, dado que tratando-se de bem do insolvente, e, portanto, integrante da massa, aquele terá que a apreender, mas sem que aquele direito real de extinga (artºs 46º, nº 1, 149º e 150º do CIRE)”.

22. De resto, constituindo o crédito em causa um crédito sobre a insolvência (art. 102.º, n.º 3, alínea c) do CIRE), e não um crédito sobre a massa (v. art. 51.º do CIRE) - (…) - a solução (…) é simplesmente anacrónica: levaria à perpetuação da detenção dos imóveis em causa e à sua não entrega ao Administrador da Insolvência para a respetiva submissão aos fins próprios da insolvência. Cair-se-ia inclusivamente na situação absurda do Administrador da Insolvência nunca poder satisfazer o crédito dos [promitentes]. É que, tratando-se de crédito da insolvência, o crédito só pode ser satisfeito, e de acordo com a sentença de graduação dos créditos, em sede de liquidação do ativo. E isto só é possível mediante a prévia apreensão e liquidação dos bens.»

23. Finalizando (cfr. parte final do Acórdão do TRE supra referido): «a conceder-se a possibilidade das apelantes continuarem a usufruir dos imóveis até ao pagamento, tal impediria a liquidação universal do património do devedor com vista à satisfação dos credores, pois tal só é possível mediante a prévia apreensão e liquidação dos bens. Em suma, as apelantes mesmo gozando da garantia conferida pelo direito de retenção, não têm o direito a recusarem, como têm feito, [a entrega] dos imóveis ao Administrador da Insolvência.»

24. Não se diga, pois, que se verifica qualquer abuso de direito no despacho recorrido, alegação esta dos recorrentes desprovida de qualquer base de sustentação fáctica ou jurídica, como supra se infere.

25. Se algum interveniente processual incorre em abuso de direito serão antes os ora recorrentes – quando, por um lado, manifestaram junto do Sr. AI a sua não pretensão em outorgar a escritura de compra e venda do imóvel e, por outro lado, também não lhe entregam a fração autónoma em causa para ser vendida, continuando a ocupá-la sem pagar o respetivo IMI e/ou as prestações do condomínio, despesas que estão a ser suportadas pela massa insolvente.

26. Sendo certo ainda que, não tendo o contrato promessa outorgado pelos aqui recorrentes e pela sociedade insolvente eficácia real (como não teve nem tem), não será in casu aplicável o disposto no artigo 106º nº 1 do CIRE – como incorretamente vem referidos nas alegações de recurso a que ora se responde.

27. Por fim, alegam ainda os recorrentes que deverão manter-se no imóvel em causa por ser a sua casa de morada de família e porque o legislador não revogou nem alterou o regime excecional e transitório aprovado pela Lei nº 1-A/2020 de 19/03, alterado pela Lei nº 13-B/2021 de 05/04.

28. É agora certo e inequívoco que esta legislação foi toda ela expressa e integralmente revogada pela Lei nº 31/2023 de 04 de Julho.

29. Sendo também certo que, ainda que esta lei revogatória não tivesse sido ainda emanada à data em que o presente recurso foi interposto, a verdade é que também já nessa altura se considerava que aquele regime legislativo excecional já não estava em vigor e/ou tinha cessado por caducidade, tal como defendido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/02/2023 do Relator Rodrigues Pires proferido no processo 2397/12.0TBMAI-A.P1, igualmente disponível em www.dgsi.pt.

30. Assim e também por esta via falece a pretensão dos recorrentes de se manterem no imóvel apreendido, porque baseada numa legislação já caducada à data (das suas alegações) e agora inequívoca e expressamente revogada. Termos em que, bem como nos melhores de direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas.,

Deve o recurso interposto ser julgado improcedente, mantendo-se o despacho proferido, com as legais consequências.”

O Recurso foi admitido como APELAÇÃO, com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo, nos termos dos artigos 14.º, n.º 5, e 17.º do C.I.R.E. e artigo 647.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Civil por dizer respeito a casa de habitação dos recorrentes.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II-OBJETO DO RECURSO:

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a questão a dirimir, delimitada pelas conclusões do recurso, é a da obrigação de restituição da fração objeto do contrato promessa à massa insolvente, relativamente á qual os apelantes gozam de direito de retenção.

III-FUNDAMENTAÇÃO:

 Dão-se aqui por reproduzidos os atos processuais mencionados no Relatório.

IV-APLICAÇÃO DO DIREITO:

4.1.Ofensa ao caso julgado

Alegam os Apelantes que a decisão recorrida ofende o caso julgado de decisão anterior. Isto porque, por sentença transitada em julgado, no âmbito do apenso B (de reclamação de créditos) foi reconhecido aos Recorrentes, um crédito de valor de € 447.795,00, com natureza de garantido por direito de retenção.

Alegam que a força de caso julgado está intrinsecamente ligada com o dever imposto ao juiz de respeitar as legítimas expetativas das partes, pelo que, não poderia agora o Tribunal ordenar a comprovação da desocupação e entrega do imóvel – casa de morada de família dos Recorrentes – porquanto está a violar o direito de retenção que foi reconhecido aos Recorrentes por sentença já transitada em julgado, violando ainda as legitimas expectativas dos Recorrentes, já que estes tinham, e têm, a expectativa de manutenção e detenção do imóvel que lhes foi prometido vender até que seja outorgada escritura definitiva ou, em alternativa, até que recebam o sinal em dobro.

Vejamos.

Nos termos do artº 619º, nº 1 do C.P.C. “Transitada em julgado a sentença, ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a matéria de facto controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites fixados pelos artigos 480 e 581º , sem prejuízo do  disposto nos artigos 696º a 702º.”

Por sua vez, dispõe o artº 621º do mesmo diploma que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).”

As decisões judiciais, em especial as sentenças, conduzem à pacificação das relações jurídicas controvertidas, contribuindo para a indispensável segurança jurídica e social (cf. art.º 619.º, n.º 1 e 621.º, ambos do CP Civil).

Por inerência, razões de verdade, harmonia, certeza e segurança jurídica e sociais impõem que não se possa verificar uma contradição de decisões sobre a mesma questão fáctico-jurídica concreta, quer por via da exceção do caso julgado, quer por via da exceção da autoridade de caso julgado ou efeito positivo externo do caso julgado.

Para o Professor Manuel de Andrade,[1] o instituto do caso julgado assenta em dois fundamentos:

– o prestígio dos tribunais, que ficaria altamente comprometido “se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente”;

 – e, mais importante, uma razão de certeza ou segurança jurídica, já que sem a força do caso julgado se cairia “numa situação de instabilidade jurídica (…) fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas”.

No caso em apreço, na ação de reclamação de créditos, foi reconhecido e foi graduado o crédito dos apelantes, com direito de retenção.

Os apelantes defendem que houve ofensa ao caso julgado da decisão anterior, por entenderem que o direito de retenção que lhes foi reconhecido a garantir o seu crédito se mostra violado, com a notificação que lhes foi feita para procederem á entrega do imóvel.

Ora para se decidir se ocorre ou não ofensa ao caso julgado de decisão anterior proferida nestes autos de insolvência, há que apreciar a questão suscitada no recurso de saber se, no âmbito  do incidente de liquidação, a entrega do imóvel à massa insolvente, pelos promitentes compradores,  consubstancia uma violação do direito de retenção, ou dito de outra forma, se é legítima a recusa dos promitentes compradores, que celebraram um contrato promessa com a insolvente, da entrega do imóvel para venda, por gozarem de direito de retenção sobre o mesmo.

4.2.Direito de retenção

Defendem os Apelantes que é legítima a recusa de entrega do imóvel, por gozarem de direito de retenção sobre o mesmo.

Alegam que o promitente-comprador (neste caso os Recorrentes) que obtém a traditio da coisa, goza do direito de retenção, no caso de incumprimento imputável à outra parte (A...), tal como decorre dos artigos 442.º e 755º, alínea f) do C.

Que este direito real de garantia confere ao seu titular, aos Recorrentes, a faculdade de recusar a entrega da coisa enquanto o devedor não cumprir, assim como a de se pagar pelo valor dela, com preferência sobre os demais credores.

 A alteração legislativa que se traduziu no aditamento da alínea f) do art. 755.º do CC, teve como intuito a defesa do consumidor, e a que o legislador entendeu dar prevalência ao conferir primazia ao direito de retenção sobre a hipoteca.

Vejamos.

Necessário é saber se a entrega ordenada no despacho sob recurso ofende ou não o direito de retenção, que se mostra reconhecido aos apelantes na sentença de graduação de créditos.

Encontramo-nos no domínio de um processo de insolvência, em que a reclamação de créditos constitui um dos incidentes do mesmo processo, no âmbito do qual, todos os credores podem e devem reclamar os seus créditos e impugnar o reconhecimento dos créditos dos outros e o não reconhecimento dos seus por parte do AI., sob pena de os verem postergados ou reconhecidos ou não reconhecidos.

Nem todos os créditos reclamados num processo de insolvência são reconhecidos e graduados, cabendo sempre a palavra final ao juiz. É ele quem, na sequência da atividade jurisdicional destinada à apreciação dos créditos, prevista e regulada nos vários n.ºs do artigo 136.º do CIRE, declara o seu reconhecimento na sentença de verificação e graduação de créditos.

Como se tem entendido, trata-se de uma ação declarativa “completa”, com a observância do princípio do contraditório – a impugnação dos créditos – e do princípio do julgamento.[2]

A ação de insolvência  tem por fim último a liquidação de todo o património do devedor insolvente em benefício da generalidade dos seus credores (artigo 1.º do CIRE),  e tem em consideração a função prioritária da verificação dos créditos, exige que todos os créditos sejam ali reclamados, disponham ou não os credores de título executivo e mesmo que se trate de créditos já reconhecidos por decisão judicial definitiva.

É o chamado princípio da exclusividade, segundo o qual só os credores com créditos verificados e graduados podem concorrer à distribuição do produto da liquidação do ativo.

É, aliás em função dessa finalidade de liquidação global que é conferida legitimidade a cada credor concorrente interessado para impugnar os créditos dos demais concorrentes que sejam suscetíveis de conflituar com o crédito daquele, nos termos do art.º 130.º, n.º 1, do CIRE.

Nesse incidente, o crédito dos Apelantes sobre a insolvente, que beneficia de direito de retenção, mostra-se devidamente reconhecido e graduado.

Vejamos então em que consiste tal direito.

Em causa está o crédito do promitente-comprador correspondente à indemnização devida pela outra parte em razão do seu incumprimento, isto é, o crédito “derivado do incumprimento definitivo, de que o direito de retenção constitui garantia acessória”, sendo que, por isso que o direito de retenção surge apenas para garantia do crédito gerado por um incumprimento definitivo do contrato-promessa.

Nos termos do art.755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza do direito de retenção sobre essa coisa pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º.

O direito de retenção é um dos direitos reais de garantia previstos no nosso ordenamento jurídico. Os direitos reais de garantia são aqueles que conferem o poder de, pelo valor da coisa ou pelo valor dos seus rendimentos, o respetivo beneficiário obter, com preferência sobre todos os outros, o pagamento de uma dívida de que é titular ativo.

O direito de retenção, em particular, consiste no direito conferido ao credor de, tendo em seu poder uma coisa do devedor que lhe devia entregar, se recusar a entregar a coisa ao devedor, apesar de ela lhe pertencer, enquanto o devedor não cumprir e, se necessário, inclusivamente executar a coisa para se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores (759.º do Código Civil).

Desempenha assim uma dupla função: de garantia e coercitiva.

Através dos direitos reais de garantia, o credor garante-se quanto à obtenção da satisfação do seu crédito através do valor do bem objeto da garantia. O seu interesse é puramente acessório ou instrumental, na medida em que a sua finalidade não é a de assegurar um autêntico gozo dos bens mas antes assegurar o cumprimento de outro direito (de crédito).

Por outro lado, segundo o artigo 601.º do Código Civil, todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, respondem pelo cumprimento da obrigação.

Nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 824.º do Código Civil a venda coerciva transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.

Contudo, os bens são transmitidos livres dos direitos reais de garantia que os onerarem, os quais caducam, transferindo-se para o produto da venda dos bens.

No processo de insolvência e na venda coerciva nele realizada os bens são vendidos livres de ónus e encargos e os direitos dos credores transferem-se para o produto da venda, naturalmente com as características e as preferências de pagamento de que dispunham anteriormente

Os direitos reais de garantia, que oneravam o bem vendido extinguem-se, o adquirente adquire o bem sem esse ónus e o credor garantido passa a exercer a sua garantia de pagamento através do produto da venda do bem.

Assim se passa quando o crédito goza de direito de retenção, o que significa que a preferência concedida no pagamento não confere qualquer direito de gozo sobre o bem, que fica como os demais bens do devedor sujeito à execução.

O Supremo Tribunal de Justiça, m acórdão de 30.9.2019[3], pronunciou-se precisamente sobre a questão sobre a qual nos debruçamos, decidindo-a nestes termos, conforme sumário:

“I-O direito de retenção que assiste ao beneficiário de promessa de transmissão de coisa que foi traditada pelo insolvente não impede a apreensão dessa coisa pelo administrador da insolvência nem confere ao beneficiário o direito de a reter ou deter.

II - Tal beneficiário goza da garantia conferida pelo direito de retenção, mas os respetivos efeitos resumem-se à prioridade, nos termos da competente decisão de graduação dos créditos, na satisfação do seu crédito.”

Afirma-se aí de forma clara, o seguinte: “o crédito dos Réus goza da garantia do direito de retenção, mas este direito não autoriza a retenção das frações e a sua ocupação, com a recusa da respetiva entrega ao Administrador da Insolvência.”

Também no Ac. STJ de 06 de março de 2014 [4], afirma-se: “o direito de retenção é um direito real de garantia (especial) das obrigações e não um direito real de gozo.

É conferido ao promitente-comprador para lhe garantir o crédito pela indemnização por incumprimento do contrato-promessa, e não para lhe conceder o gozo da coisa objeto da promessa cuja tradição obteve.

Como resulta do texto do da al. f) transcrita, o direito de retenção visa garantir o crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º, isto é, o crédito que representa o dobro do sinal, o do aumento do valor da coisa ou a indemnização estipulada pelas partes, nos termos previstos no n.º 4 do dito artigo.

(…) Daí que, tal “posse” seja inócua, a não ser para efeitos de invocabilidade do direito de retenção, que não implica a aquisição da posse sobre a coisa prometida vender, mas apenas a sua entrega ao promitente-comprador pelo promitente-vendedor, em termos de lhe facultar uma detenção lícita do bem, como beneficiário da garantia”.

Ainda o STJ, em acórdão de 12 de março de 2009[5] 09A0265 afirma:

“– O direito de retenção conferido ao promitente-comprador, não visa mantê-lo na fruição de qualquer direito de gozo, mas antes garantir o pagamento do seu crédito – dobro do sinal prestado – no pressuposto de que existe incumprimento definitivo imputável ao promitente-vendedor, concedente da traditio, que recebeu sinal.”

Também nos Acórdãos desta Relação de 07 de março de 2013[6], decidiu-se: “(…) O que significa que a ter direito de retenção sobre a coisa que lhe foi prometida vender, a autora podia reclamar o seu crédito relativo à indemnização pelo não cumprimento do contrato pela falida e obter a sua graduação em correspondência com a preferência de pagamento associada a esse direito de retenção. Mas já não podia e não pode impedir que o bem seja apreendido para a massa falida e aí vendido livre de ónus e encargos, pois isso já não corresponde à satisfação da essência material do seu direito – de retenção, ou real de garantia – mas à como que criação de um obstáculo atípico de natureza real à responsabilidade da totalidade do património do falido pela satisfação do seu passivo e à liquidação da totalidade do património para esse objetivo o qual não é consentido pelo n.º 1 do artigo 1306.º do Código Civil”.

E no de acórdão de 9.12.2020[7] do mesmo tribunal
onde se pode ler: “ O direito de retenção constitui um direito de garantia que confere preferência no pagamento, mas não confere qualquer direito de gozo sobre o bem, que fica como os demais bens do devedor sujeito à apreensão para a massa insolvente, não constituindo fundamento para separação dos bens da massa insolvente.”

Conclui-se assim que, os apelantes não têm o direito de se opor à entrega do imóvel para a massa insolvente e à sua venda invocando o direito de retenção, pois tal direito, como direito de garantia que é, apenas atribui uma preferência no pagamento, preferência essa já atendida na sentença de graduação de créditos.

Do exposto decorre que o direito de garantia não é suscetível de fundamentar a eventual recusa de entrega do imóvel, nem consubstanciando, concomitantemente qualquer ofensa ao caso julgado daquela decisão.

Improcedem pois estes fundamentos do recurso.

4.3.Abuso de direito

Alegam os Apelantes que tendo existido a tradição da coisa, traduzindo-se a ocupação da coisa por motivo da sua tradição numa antecipação dos efeitos do contrato prometido, aliás, tanto assim é que os Recorrentes há já 13 anos que vivem na sua casa morada de família, de boa fé e com uma posse titulada por contrato promessa de compra e venda.

Motivo pelo qual não compreendem como pode agora o Tribunal decidir pela comprovação da desocupação e entrega do imóvel, em 10 dias – comportamento que integra o conceito de abuso de direito (art. 334.º do Código Civil).

Que este instituo de abuso de direito visa impedir que as normas jurídicas, formuladas em termos gerais, determinem, quando aplicadas a casos específicos, notórias injustiças, o que é bastante notório ter ocorrido in casu, já que, tendo sido a coisa entregue aos aqui Recorrentes, ainda antes da celebração do contrato definitivo, foi-lhes criada uma forte expectativa na concretização do negócio, pelo que se justifica, postulado pela boa fé, que lhe corresponda uma segurança acrescida.

Vejamos.

De acordo com o art. 334º do C.Civil, é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito.

“A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um fim que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que deve ser exercido.”[8]

Dir-se-á, em conformidade, que a noção de abuso de direito assenta no exercício legal de um direito, que, no entanto, é feito em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.

O Professor Menezes Cordeiro,[9] sintetiza em seis tipologias as situações em que tem sido colocada a ocorrência do abuso do direito, sendo que estas tipologias suscetíveis de enquadrar parâmetros de atuação aptos a concretizar os conceitos jurídicos indeterminados em que está ancorado o instituto do abuso do direito.

As referidas tipologias são as seguintes: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

Uma das modalidades que se tem considerado configurar abuso do direito é o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, que se pode definir como o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objetiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício.

No caso em apreço, parece-nos não ocorrer qualquer situação que possa ser considerada abusiva.

Com efeito, na situação em apreço, ocorreu uma situação excecional ou imprevista pelos contratantes, que foi a ocorrência da insolvência do promitente vendedor, quando o contrato ainda não se encontrava totalmente cumprido.

Como vimos, a insolvência visa e tem por fim último a liquidação de todo o património do devedor insolvente em benefício da generalidade dos seus credores (artigo 1.º do CIRE),  e tem em consideração a função prioritária da verificação dos créditos, exige que todos os créditos sejam ali reclamados, disponham ou não os credores de título executivo e mesmo que se trate de créditos já reconhecidos por decisão judicial definitiva.

Ao conceder-se a possibilidade do detentor do direito de retenção recusar a entrega do bem até ao pagamento é, no fundo estar a contrariar o próprio fim da insolvência, ou seja, a impedir a liquidação universal do património do devedor com vista à satisfação dos credores.

Aliás cair-se-ia inclusivamente na situação absurda do Administrador da Insolvência nunca poder satisfazer o crédito dos ora apelantes. É que, tratando-se de crédito da insolvência, o crédito só pode ser satisfeito, e de acordo com a sentença de graduação dos créditos, em sede de liquidação do ativo. E isto só é possível mediante a prévia apreensão e liquidação dos bens.

Daí que manifestamente não ocorra qualquer situação de abuso de direito, na obrigação de entrega do imóvel à massa Insolvente.

4.4. Legislação excecional “covid”.

Por último, os Apelantes apelam à legislação excecional, aprovada no contexto da pandemia COVID, que estabeleceu medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus - COVID 19, para fundamentar a recusa na entrega, alegando tratar-se a sua casa de habitação.

Está em causa a aplicação do n.º 1 e as alíneas b) e c) do n.º 7 do artigo 6.º-E da Lei 1-A/2020, de 19 de março, com as alterações introduzidas pela Lei 13-B/2021, de 5 de abril, que estabelecem que: "1. No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem -se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.

“7. Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:

(…) b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;(…)”

Como é sabido, o legislador pretendeu evitar durante o regime excecional, que as famílias ficassem sem habitação (própria ou arrendada), para evitar a exponenciação de prolemas familiares e sociais e da especial vulnerabilidade de pessoas sem casa quanto aos perigos de contágio e disseminação do vírus. Com esse propósito o legislador criou um regime específico, também ele excecional, tendo em vista proteger a “casa de morada de família”, seja pertencente ao executado ou insolvente, seja de imóvel arrendado.

Determinou-se então que, a entrega de imóvel pertencente ao executado ou insolvente, e que constitua casa de morada de família, que haja sido vendido numa execução ou num processo de insolvência, é um ato que não pode praticar-se, sempre, isto é, seja qual for a situação concreta, enquanto durar o regime excecional de suspensão do ato de entrega da casa de morada de família.

Acontece que, esta norma, como refere o sr. Administrador de Insolvência, nas contra-alegações de recurso foi entretanto revogada pela Lei nº 31/2023 de 04 de Julho.

Considerando que esta lei revogatória ainda não se encontrava em vigor na data da prolação do despacho recorrido, haveria então que considerar a possibilidade da mesma ter caducado.

A caducidade tem por fundamento, o facto público que ocorre da  Organização Mundial da Saúde (OMS) ter declarado oficialmente, (em 5.5.2023) o fim da pandemia da covid 19, classificação estava em vigor desde 11 de março de 2020 e no facto de na Resolução do Conselho de Ministros nº 96/2022 ter sido determinado “não prorrogar a situação de alerta no território nacional continental, no âmbito da Covid-19, bem como a cessação de vigência de diversas leis, decretos-leis e resoluções aprovadas no âmbito da pandemia da Covid-19”, tendo ainda o Decreto-Lei n.º 66-A/2022, de 30/9, procedido já à revogação de  grande parte do corpo normativo estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/3.

Neste sentido, entre outros, haviam já decidido os acórdão desta Relação, de 07/02/2023[10], da Relação de Évora de 02-03-2023 e da Relação de Guimarães de 16.3.2023.[11]

Desta forma, porque o fundamento invocado se baseia em norma entretanto revogada e já anteriormente considerada caducada, haverá que concluir pela improcedência do recurso e pela manutenção do decidido, também com este fundamento.

VI-DECISÃO

Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do porto, em julgar improcedente o recurso e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.


Porto, 20 de fevereiro de 2024
Alexandra Pelayo
Márcia Portela
João Proença
_______________
[1] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pg 305-306.
[2] Ver neste sentido o Acórdão do STJ de 12.12.2013, in www.dgsi.
[3] No P 2164/11.9TBSTR.E1.S2, relatado por José Rainho, disponível in www.dgsi.pt
[4] [4], Proc. 652/03.0TYVNG-Q.P1.S1, sendo relator Alves Velho (disponível em www.dgsi.pt)
[5] Processo 09A0265, sendo relator Fonseca Ramos, disponível no mesmo loc.
[6] Proc. 652/03.0TYVNG-R.P2 (acessível em www.dgsi.pt)
[7] No processo relatado por Ana Paula Amorim (disponível em www.dgsi.pt)
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, C.Civil anotado, I vol pg 297.,
[9] In Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., Coimbra, Livª Almedina, pgs. 249-269.
[10] do Relator Rodrigues Pires proferido no processo 2397/12.0TBMAI-A.P1,
[11] Todos disponíveis in www.dgsi.pt.