TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
EXIGÊNCIAS DE PREVENÇÃO GERAL E ESPECIAL
Sumário

(da responsabilidade da relatora)
Não será a decisão de suspender a execução da pena de prisão de 2 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido - que no caso concreto reúne condições para se poder elaborar um positivo juízo de prognose -, que fará duvidar a comunidade do valor da norma, conquanto se fixe um período de tempo alargado de 4 (quatro) anos (artigo 50º, n.º 5 do CP), com regime de prova e fixação de regras de conduta, exigindo-se assim do arguido um esforço acrescido para corresponder às expectativas comunitárias de não voltar a delinquir.

Texto Integral

Acordam em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
Nos presentes autos com o n.º 79/22.4S9LSB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa, Juiz 21, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, em que é arguido AA, por Acórdão de 25.10.2023, foi decidido, entre o mais, condenar o arguido pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p.p.pelo artigo 25º, al. a) do Dec. Lei n.º 15/93, de 22.01, por referência às tabelas I-A, I-B e I-C anexas, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva.
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Não se conformando com o Acórdão condenatório, do mesmo o arguido interpôs Recurso. Extraiu da motivação as seguintes Conclusões (transcrição):
“1º - O douto tribunal a quo condenou o arguido AA pela autoria material de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25º, alínea a) do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro com referência às tabelas I-A e I-C, na pena de 2 (dois) anos e 6 (meses) efectiva.
2º - O Arguido nasceu em 07/12/1996, foi criado apenas pela mãe e iniciou-se muito cedo no consumo de substâncias estupefacientes. Sempre acompanhou com jovens que igualmente se dedicavam ao consumo.
3º - É portador de uma deficiência … que lhe prejudicou o percurso escolar.
4º - Em Agosto do presente ano, o arguido celebrou contrato de trabalho a termo incerto, auferindo um salário de 850€. Este emprego estável é o início de um percurso que o sistema judicial deve apoiar e não interromper.
5º - Lamentavelmente, o arguido mantém o consumo de canabinoides.
6º - Contudo, no quadro da pena de prisão suspensa na sua execução em curso, o arguido tem comparecido às entrevistas e encetado esforços para se reinserir profissionalmente e cessar os consumos aditivos, sendo a avaliação periódica da medida considerada positiva pela DGRSP.
7º - O Arguido confessou o facto pelo qual vinha acusado e acrescentou que se dedicava à venda de estupefacientes há cerca de dez meses, na frequência de uma vez por semana, assim se sujeitando a uma consequência que poderia facilmente evitar.
8º - O Arguido mostra preocupação em adquirir competências que lhe permitam garantir o seu sustento (demonstrado pela frequência de diversos cursos profissionais) e, com a confissão prestada, revela que tem consciência do erro que fez.
9º - Pergunta-se então se a suspensão da execução da pena de prisão terá a virtude de, garantindo o mínimo de prevenção geral, cumprir a almejada finalidade de ressocialização do Recorrente.
10º - O arguido aparenta ser um indivíduo oscilante entre o direito e a delinquência; entre o trabalho e a indolência.
11º - O facto do arguido se encontrar empregado, com perspectivas de continuidade, que são reveladas pelo contrato de trabalho sem termo e o de ter apoio familiar devem ter um peso maior na decisão de suspender ou não suspender a execução da pena de prisão.
12º - A confissão que prestou e que agravou os factos pelos quais vinha acusado revela uma autocensura e arrependimento que são a base da correcção e recuperação do indivíduo.
13º - O Arguido mostra vontade de corrigir o seu modo de vida, para o que se vai esforçando e conseguindo.
14º- A suspensão da pena de prisão pode, e neste caso deve ser sujeita a regras e deveres ou com regime de prova, assentando este num plano de reinserção social, como por exemplo a obrigação de frequentar um programa de prevenção e combate ao consumo; o que até seria benéfico para o arguido.
15º - Assim, afastando o arguido da proximidade do narcotráfico se alcançariam as exigências de prevenção especial e também as de prevenção geral, na medida em que esse afastamento seria visto como efeito da condenação.
16º - Por outro lado, a efectivação da pena de prisão irá, obviamente, afastar o arguido do emprego e da família e aproximá-lo dos delinquentes e do ambiente criminal;
17º - Pelo exposto, temos por reunidas as condições necessárias à aplicação do artigo 50º do C.P., cumprindo-se o comando do artigo 70º e alcançando-se o objectivo do artigo 40º.”
(fim de transcrição)
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Foi proferido despacho que admitiu o recurso interposto, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo apresentou Resposta ao Recurso, pugnando pela sua improcedência, não deixando contudo de sublinhar “ser este um caso de “fronteira”: se for valorizado o número de antecedentes criminais, bem como uma notória errância existencial (expressão tão estranha para quem antes evocou Foucault), impor-se-á o cárcere; valorizando-se o quinquénio de vida sem crimes e o vínculo laboral, antes será de aplicar uma pena substitutiva.”
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Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de não ser concedido provimento ao recurso.
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Dado cumprimento ao estabelecido no artigo 417º, nº 2 do CPP, nada mais foi dito.
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Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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II – Fundamentação
Do âmbito do recurso e das questões a decidir:
De acordo com o preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º, n.º 1, todos do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, nº 2 e 410º, nº 3 ambos do CPP e dos vícios previstos no artigo 410,º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (assim se decidiu no Ac. do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e no AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior.
Olhando então para as conclusões do recorrente, apenas uma questão de direito há a apreciar: deveria o Acórdão recorrido ter decidido pela suspensão da execução da pena de prisão fixada?
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É a seguinte a fundamentação de facto constante do Acordão recorrido com relevo para as questões a conhecer: (transcrição)
“II – Fundamentação de facto
Factos provados
1. No dia 7 de Abril de 2022, pelas 19:25 horas, o arguido encontrava-se no hall de entrada do lote … da ..., em …, a proceder à venda de heroína e canábis (vulgo “haxixe”) a terceiros, consumidores destes produtos, em troca de quantias monetárias.
2. Nessa ocasião o arguido tinha consigo:
- 19 (dezanove) embalagens de heroína com o peso líquido de 18,540 gramas;
- 46 (quarenta e seis) embalagens de heroína com o peso líquido de 20,228 gramas;
- a quantia monetária de 107,30 € (cento e sete euros e trinta cêntimos);
3. Nesse local foram ainda encontradas e apreendidas 21 (vinte e uma) munições de calibre 7.65.
4. A heroína e canábis foram apreendidas ao arguido e destinavam-se a ser vendidas a terceiros.
5. A quantia monetária apreendida constituía provento de anteriores vendas.
6. O arguido conhecia a natureza e características estupefacientes dos produtos que detinha e que destinava à cedência a terceiros, mediante contrapartida monetária.
7. O arguido sabia que a aquisição, detenção e comercialização de produtos estupefacientes é criminalmente perseguida.
8. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Mais se provou que
9. O arguido dedicava-se à venda de estupefacientes naquele local desde há 10 meses, uma vez por semana.
10. O processo de socialização de AA decorreu no agregado monoparental materno, numa dinâmica marcada pela permissividade e limites desajustados às necessidades do jovem, enquadramento que terá propiciado a que, desde cedo, mantivesse um modo de vida globalmente desregrado, sem investimento sério em objectivos pró-sociais.
11. Criado num bairro tradicional da cidade de … (...), o percurso de AA foi pautado pelo parco investimento escolar, para o que contribuiu o facto de apresentar déficits …, cuja origem o próprio desconhece e relativamente aos quais expressa desconforto.
12. No que concerne ao percurso escolar do arguido, concluiu o 5º ano de escolaridade, com registo de várias retenções, vindo a privilegiar desde a adolescência um modo de vida ocioso, junto de pares de idênticas características, com quem iniciou, pelos 16 anos, o consumo de substâncias canabinóides.
13. Apesar de ter frequentado vários cursos profissionalizantes, nomeadamente curso de …, curso de …, curso de … e curso de …, não chegou a concluir nenhuma das actividades formativas, registando sucessivas desistências por alegado desinteresse/falta de motivação, dificuldades de adaptação e/ou não concordância com as regras das instituições, originando atitudes de desrespeito para com as figuras de autoridade e consequentes expulsões dos organismos formadores.
14. Ao nível ocupacional, o arguido frequentou um curso de ... através do ...da área da residência, com início a 27.12.2017 e termo a 27.04.2018.
15. Porém, não ficou elegível para o estágio, nem obteve o respectivo certificado de qualificações.
16. Em termos económicos, as necessidades de subsistência foram sendo asseguradas pela progenitora, com os rendimentos provenientes da sua actividade profissional como ....
17. Pese embora a referência a um enquadramento familiar afectivo e apoiante por parte da progenitora, realça-se o abandono do agregado por parte da ascendente, contava AA cerca de dezasseis anos de idade, vindo aquela a coabitar com um companheiro em residência próxima.
18. Com um modo de vida escolar e profissionalmente desenquadrado, o arguido veio a privilegiar a ociosidade e convivialidade com grupo de risco do meio residencial de origem.
19. No plano relacional, o arguido iniciou uma relação afectiva significativa cerca dos 18 anos de idade, sendo que no quadro dessa relação nasceram dois filhos, actualmente com oito e cinco anos de idade.
20. Em termos económicos, para além do rendimento decorrente das bolsas respeitantes à frequência dos cursos formativos, o agregado subsistia ainda através dos rendimentos auferidos pela companheira do arguido, que sempre contribuiu para o sustento do agregado.
21. Na data dos factos o arguido encontrava-se desempregado, tendo-se separado da companheira e mãe dos seus filhos.
22. O arguido mantém pendente em tribunal a definição das responsabilidades parentais, alegando não chegar a acordo com a ex-companheira ao nível da participação monetária na vida dos descendentes.
23. Em termos laborais, mantém-se activo, na área das limpezas, apresentando comprovativo de celebração de contrato a termo incerto, actividade que iniciou em Agosto de 2023.
24. Ao nível aditivo, assume a manutenção do consumo de canabinóides, ainda que refira ter passado de um consumo intensivo para moderado.
25. Actualmente o arguido reside com a progenitora, subsistindo ambos com o salário do arguido, cerca de 850,00€, e os rendimentos da progenitora, beneficiária de pensão de viuvez e pensão de invalidez no valor aproximado de 500,00€ mensais.
26. A renda da casa, no montante de 150,00€ é suportada pela progenitora, despendendo ainda o arguido o montante de 15,00€ com o pagamento do ginásio que frequenta.
27. No quadro da pena de prisão suspensa na sua execução em curso, o arguido tem comparecido às entrevistas e encetado esforços para se reinserir profissionalmente e cessar os consumos aditivos, sendo a avaliação periódica da medida considerada positiva pela DGRSP.
28. No certificado do registo criminal do arguido, encontram-se averbadas as seguintes condenações:
a. Por sentença transitada em julgado a 04.03.2015, proferida em 02.02.2015, pelo Juízo Local Criminal de Lisboa, J2, no âmbito do processo n.º 1181/13.9PKLSB, foi o arguido condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática em 18.08.2013, de um crime de roubo, pena que já se encontra extinta.
b. Por sentença transitada em julgado a 05.06.2015, proferida em 06.05.2015, pelo Juízo Local Criminal de Lisboa, J13, no âmbito do processo n.º 1394/13.3TDLSB, foi o arguido condenado na pena única de 145 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, substituída por 140 horas de PTFC, pela prática em 07.012.2014 de um crime de injúria agravada e um crime de ameaça agravada, pena que já se encontra extinta.
c. Por sentença transitada em julgado a 26.04.2016, proferida em 15.03.2016, pelo Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa, J4, no âmbito do processo n.º 339/16.3PKLSB, foi o arguido condenado na pena única de 80 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, substituída por 140 horas de PTFC, pela prática em 26.02.2016 de um crime de condução sem habilitação legal, pena que já se encontra extinta.
d. Por sentença transitada em julgado a 15.03.2017, proferida em 13.02.2017, pelo Juízo Local Criminal de Lisboa, J1, no âmbito do processo n.º 101/13.5PKLSB, foi o arguido condenado na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, pela prática em 22.01.2013, de um crime de roubo. Tal período de suspensão foi prorrogado por um ano, pena que, entretanto, foi extinta.
e. Por Acórdão transitado em julgado a 11.06.2019, proferido em 06.05.2019, pelo Juízo Central Criminal de Lisboa, J22, no âmbito do processo n.º 814/17.2SGLSB, foi o arguido condenado na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, pela prática em 01.01.2017, de quatro crimes de roubo e um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
Factos não provados
(…)
4.2. Da aplicação de uma pena substitutiva
Importa agora averiguar da possibilidade de aplicação de uma pena substitutiva da pena de prisão efectiva em que os arguidos vão condenados.
Tendo em conta as limitações decorrentes da medida das penas aplicadas, impõe-se apenas equacionar a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão.
De acordo com o disposto no artigo 50º, n.º 1 do Código Penal “(…)”.
Como é sabido, as finalidades da punição comportam duas dimensões: uma de prevenção geral positiva, relacionada com a protecção dos bens jurídicos fundamentais, servindo a pena primordialmente para manter e reforçar a confiança e expectativas da comunidade na validade e vigência da norma violada; outra, de prevenção especial, direcionada á reintegração do agente na sociedade.
Impõe-se, pois, sopesar os elementos de personalidade e as circunstâncias de vida do arguido, bem como o seu comportamento anterior e posterior ao cometimento do crime, sendo de aplicar o instituto da suspensão da execução da pena de prisão, apenas nos casos em que o tribunal, face á dimensão do delito e factores apurados quanto ao delinquente, consiga formular um juízo de prognose favorável, no sentido de acreditar que a mera ameaça da prisão se revelará suficiente para que o agente não volte a incorrer na prática de novos crimes.
No caso que nos ocupa, pese embora a aparente inserção familiar, a confissão efectuada pelo arguido e a circunstância de se encontrar a trabalhar desde agosto, entende-se que tais elementos, ainda que positivos, não se revelam suficientemente sustentados. Com efeito, importa ter presente que o arguido sempre beneficiou de enquadramento familiar (o que não se revelou um factor suficientemente contentor, de molde a obviar à prática de crimes), sendo certo que a sua integração laboral ao longo da vida activa se revela bastante incipiente.
Por outro lado, não poderemos deixar de ter presente o percurso criminal do arguido, que conta já com cinco condenações criminais anteriores pela prática de diversos crimes, acrescendo que os factos pelos quais vai condenado foram praticados no decurso do período da suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado no âmbito do processo n.º 814/17.2SGLSB, pela prática de quatro crimes de roubo e um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
Ou seja, o arguido cometeu novo crime de idêntica natureza no decurso da suspensão da execução de uma pena de prisão, afigurando-se claro que esta e as anteriores condenações (algumas por crimes graves, como é o caso dos crimes de roubo) não se revelaram advertência suficiente para que não voltasse a delinquir.
Entende-se, pois, que os factores positivos apurados não são de molde a considerar como razões suficientemente válidas e ponderosas que permitam ao Tribunal formular um juízo de prognose favorável no sentido de concluir que a mera ameaça de prisão fosse suficiente para salvaguardar as finalidades da punição, pelo que se decide o afastamento do instituto da suspensão da execução da pena de prisão, impondo-se o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada em estabelecimento prisional.
(…)”
(fim de transcrição)
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Como fundamento da pretensão de ver a concreta pena de prisão suspensa na sua execução, invoca conclusivamente o recorrente:
- a confissão integral e sem reservas dos factos objecto dos autos;
- o seu contributo para o apuramento de outra factualidade para além da descrita no libelo acusatório, mormente a que foi julgada provada no ponto 9. dos factos provados, o que denota
- o seu arrependimento;
- a sua condição social, económica e cultural;
- a sua inserção familiar e social;
- na presente data encontra-se a trabalhar;
- tem respondido positivamente no âmbito do acompanhamento que lhe é feito nos autos onde foi condenado numa pena única de 5 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período.
Relembramos que a conduta do recorrente foi juridicamente enquadrada no tipo legal consagrado no artigo 25º, al. a) do Dec. Lei n.º 15/93, de 22.01., tendo sido condenado pelo tribunal de 1ª instância na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Como é sabido, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40º, n.º 1 do Código Penal, doravante CP). Porém, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2 do mesmo artigo). Concordantemente, estabelece o artigo 71º, nº 1 do mesmo diploma legal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Prevenção e culpa são, assim, os factores a ter em conta na aplicação da pena e determinação da sua medida, reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime e à sua dignidade enquanto pessoa, o limite inultrapassável da pena (cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 214 e ss.).
A pena tem como fim principal a protecção de bens jurídicos e, sempre que possível, a ressocialização do agente, constituindo a defesa da ordem jurídica e da paz social – conteúdo mínimo da prevenção geral positiva – o limite às exigências de prevenção especial de socialização, e constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.
Podemos, pois dizer que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84).
Relembrando-se aqui que o recorrente não impugna o quantum concreto da pena fixada, o certo é que as considerações que antecedem são aplicáveis (também) à escolha das penas de substituição, nas quais se integra a suspensão da execução da pena de prisão, pois que, como resulta das disposições conjugadas dos artigos 45º, n.º 1, 50º, n.º 1, 46.º, nº 1 e 58.º, nº 1, todos do CP, o critério geral que através delas se identifica é o de que o tribunal deve dar preferência à pena não privativa da liberdade desde que, verificados os respectivos pressupostos formais de aplicação, ela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição ou seja, desde que assegure a realização das exigências de prevenção em cada caso, requeridas. (cfr. Ac. Rel. Coimbra de 24.04.2019, proc. n.º 12/10.6PACLD.C1, relator Juiz Desembargador Vasques Osório, in www.dgsi.pt) (sublinhados nossos)
A pena de prisão não superior a cinco anos, como estatui o artigo 50º, n.º 1 do CP, deve ser suspensa na respectiva execução se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, for de concluir que a simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de prevenção.
Como nos dizem ainda Leal Henriques e Simas Santos, in “Código Penal Anotado”, 1º Vol., Ed. Rei dos Livros, 1997, pág. 443, esta pena de substituição surge num Código Penal que traça, confessadamente, um sistema punitivo que arranca do pensamento fundamental de que as penas devem ser executadas com um sentido pedagógico e de ressocialização. Daí a consagração de um conjunto de medidas não institucionais, entre as quais a suspensão da execução da pena de prisão, que embora não determine a perda da liberdade física, importa sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução de vida do condenado. Por outro lado, e não obstante a figura prevista no artigo 50º em análise funcione como uma autêntica pena de substituição, não é uma forma de clemência legislativa, mas antes uma autêntica medida de tratamento bem definido, com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta aos concretos problemas que o caso concreto reclama.
E continuam estes autores, ob. cit., pág. 444: “Na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável, ou seja, a esperança de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que a esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa.”
Olhando agora para a jurisprudência nacional, mormente para a do nosso mais Alto Tribunal, é unânime em considerar que para aplicação desta pena de substituição, é necessário, em primeiro lugar, que o julgador se convença, face à personalidade do condenado, suas condições de vida, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos, sendo necessário, em segundo lugar, que a pena de suspensão de execução da prisão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade. (assim, e por todos, o Ac. do STJ de 6.02.2008, proc. n.º 08P101, relator Conselheiro Oliveira Mendes, in www.dgsi.pt).
Na situação em apreço, temos claramente um acervo factual subsumido ao apontado tipo legal de crime que não constitui na vida do ora recorrente um “acidente de percurso esporádico”. Ao invés, os factos objecto dos autos surgem na senda criminosa que o arguido iniciou quando tinha 16 anos de idade (a completar 17 anos a 7.12.1996), com a prática a 22.01.2013 e a 18.08.2013 de dois crimes de roubo – vide als. a) e d) do ponto 28. dos factos julgados provados -, sendo certo que a condenação sofrida pelo cometimento daquele primeiro só transitou em julgado a 15.03.2017. Seguiram-se condenações por três crimes de pequena criminalidade (injúria agravada, ameaça agravada e condução sem habilitação legal) cometidos a 7.12.2014 e 26.02.2016 (estes punidos com penas de multa, já declaradas extintas). Foi novamente condenado pelo cometimento de quatro crimes de roubo na data 01.01.2017, bem assim de um crime de tráfico de menor gravidade, numa pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, tendo a decisão condenatória transitado em julgado a 11.06.2019. Os factos objecto dos autos datam de 07.04.2022, tendo o arguido confessadamente declarado que já se vinha dedicando a tal actividade ilícita de tráfico de menor gravidade desde Junho de 2021.
Esta resenha evidencia que o arguido não se tem vindo a mostrar permeável às solenes advertências que cada uma das condenações sofridas encerra, parecendo não querer “aproveitar” as oportunidades de reinserção social que lhe têm vindo a ser facultadas com a opção pelos tribunais das várias condenações de penas não privativas da liberdade.
A tal percurso criminoso não será certamente alheio o seu percurso pessoal e familiar – relembre-se que o arguido cresceu sem referência da figura paterna e quando tinha 16 anos de idade ficou a viver sozinho, em virtude da mãe ter ido viver para outra casa com um companheiro -, nem tão pouco as carências económicas que certamente sentiu em virtude da falta de receitas próprias para, ademais, sustentar a sua dependência de substâncias estupefacientes, sendo que à data dos factos objecto dos autos - Abril de 2022 - o arguido encontrava-se desempregado e, mais uma vez, sem suporte familiar estável, atenta a separação da sua companheira e filhas (vide ponto 21. dos factos provados).
A todo este circunstancialismo não pode deixar este Tribunal de recurso de atender, devendo sobre o mesmo debruçar-se com o intuito de melhor perscrutar a personalidade do arguido, importando ainda olhar para as actuais condições de vida do arguido. Com efeito, como afirma Figueiredo Dias, in “As Consequências Jurídicas do Crime”, ob. cit., pág. 343, o prognóstico favorável que importa fazer relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de o afastar do cometimento de novos crimes, reporta-se ao momento da decisão, e não ao momento da prática dos factos.
Do acervo factual coligido, resulta que o arguido vem diminuindo os consumos de canabinóides (cfr. ponto 24.), encontra-se a viver com a progenitora, tendo ingressado na vida activa, tendo celebrado contrato de trabalho, auferindo a título de remuneração mensal a quantia de 850,00€ (ponto 25.), sendo positiva a avaliação periódica feita pela DGRSP no âmbito do acompanhamento ao arguido nos autos onde cumpre pena de prisão suspensa na sua execução desde 12.06.2019 (pontos 27. e 28.e)). Por fim, o arguido conta hoje com 27 anos de idade.
Será então da actividade resultante de ponderação de todos estes factores que sairá a densificação do pressuposto material exigido pelo citado artigo 50º, n.ºs 1 e 2 do CP para a prolação de uma decisão que vá de encontro, ou não, à pugnada pelo recorrente. E tal pressuposto material verifica-se quando o julgador, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime a às circunstâncias deste, conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza no seguinte axioma: a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
De tudo o que se mostra exposto, e porque se reconhece, como bem refere o Ministério Público na sua Resposta, que este poderá ser um “caso de fronteira”, pois se enfatizarmos os antecedentes criminais do arguido, quer pelo seu número, quer pela natureza dos crimes cometidos, o último deles também de tráfico de menor gravidade e a falta de contenção do arguido para o cometimento de novos ilícitos criminais (os presentes foram praticados em pleno período de suspensão de execução de uma pena unitária de 5 anos de prisão), não temos como considerar preenchido o exigido pressuposto material. Do reverso, se valorizarmos a postura do arguido em julgamento, esta não pode deixar de evidenciar uma reflexão que o recorrente fez sobre a conduta praticada (resultante, cremos, da assunção integral da prática dos factos, nos termos descritos na motivação de facto do Acórdão em crise) (1), impondo-se igualmente atender à sua actual inserção laboral e à avaliação positiva feita pelos serviços da DGRSP no âmbito do acompanhamento da pena de prisão suspensa na sua execução que se mostra a cumprir desde 12.06.2019, mais próximos nos encontramos de conceder provimento à pretensão do recorrente.
E é no sentido do pugnado que pendemos: o esforço evidenciado pelo arguido para reverter o seu percurso de vida, permite-nos considerar preenchido o juízo de prognose favorável.
Mas, como nos ensina Figueiredo Dias, in “As Consequências Jurídicas do Crime”, ob. cit., págs. 343 e 344, apesar da conclusão por um prognóstico favorável, à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime. “Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.”
Há assim que indagar se, in casu, as exigências de prevenção geral obstam à suspensão da execução da pena de prisão?
Importa ponderar se a natureza da pena a eleger não frustra, não desacredita as expectativas comunitárias na validade norma violada, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade, mas antes reafirma a necessidade da existência da norma punitiva. Numa palavra: a pena concreta e a opção a fazer quanto à natureza da mesma deve ter sempre presente a imperiosa necessidade de desmotivar, junto da comunidade, o tipo de actuação que o arguido protagonizou.
Ora, é consabido que quando estamos perante um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, “as exigências de prevenção geral são fortíssimas, pois tal actividade ilícita típica é das que mais profundamente corrói e currompe a sociedade em que vivemos, potenciando o cometimento de numerosos outros tipos de crimes – roubos, furtos, receptações, prostituição – tornando um verdadeiro flagelo a vida dos consumidores, das suas famílias, gerando instabilidade social, problemas de saúde pública e de desenquadramento laboral e familiar, que acabam por ser suportados por todos os restantes cidadãos” (Ac. Rel. Lisboa de 08.11.2013, proc. n.º 129/22.4SMLSB.L1-3, relatora Juíza Desembargadora Maria Margarida Almeida, in www.dgsi.pt).
Neste mesmo sentido se pode ler no Ac. STJ de 09.05.2012, proc. n.º 202/11.4JELSB.S1, Relator Conselheiro Raul Borges, in www.dgsi.pt: “Na verdade, há que ter em atenção as grandes necessidades de prevenção geral numa sociedade assolada pelo fenómeno do tráfico de droga, que a juzante gera outro tipo de criminalidade, mas inteiramente relacionada com esta, senão mesmo por ela determinada, pois é das leis do mercado que os bens têm um preço de aquisição e quando escasseia o meio para a sua obtenção muitas poderão ser as formas de alcançar o necessário e imprescindível poder aquisitivo, em vista da satisfação das necessidades geradas pela toxicodependências e como é sabido uma dessas formas mais comuns é a prática de roubos e furtos, havendo que dar satisfação ao sentimento de justiça da comunidade.”
E é nestes fundamentos, bem assim na assumida posição de Portugal na estratégia de combate ao tráfico internacional e nacional, a razão de ser da unânime corrente jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de exigir o cumprimento de uma pena de prisão efectiva.
Sem discordarmos desta leitura, antes a adoptando, a apontada unanimidade manifesta-se, sobretudo, perante os casos de tráfico comum e de tráfico agravado de substâncias estupefacientes, p.p. pelos artigos 21º e 24º do Dec. Lei n.º 15/93, respectivamente.
Sucede que o recorrente foi condenado pelo cometimento de um crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo artigo 25º, al. a) do diploma legal vindo de citar, longe assim da gravidade das condutas punidas pelos citados artigos 21º e 24º do citado diploma. Não se pode, contudo, esquecer que sem estes “vendedores de rua” as substâncias estupefacientes não alcançariam determinadas franjas da população. E se é certo que os agentes de tais crimes são os elos mais fracos da normal cadeia que vai desde a produção à distribuição e venda de estupefacientes, os actos por estes praticados não se podem deixar de considerar relevantes no circuito de tais substâncias, não podendo, por tal, ser descurados e sub-desvalorizados, sob pena do Estado perder o combate ao tráfico de substâncias estupefacientes o qual, como sabemos, tem vindo a ser uma preocupação e prioridade desde há décadas.
Seguros do que acabámos de mencionar, a verdade é que estamos em crer que a comunidade compreenderá e aceitará uma derradeira oportunidade que se decida conceder ao arguido no sentido de recuperar, em liberdade, a sua reintegração na sociedade, sujeito a um rígido regime de prova e mediante o cumprimento de determinadas regras de condutas. A comunidade concordará e perfilhará o entendimento de que em liberdade o arguido recorrente terá um maior ensejo em se recuperar para uma vida conforme o direito e que as exigências que lhe serão feitas no âmbito do regime de prova e regras de conduta que infra se imporão serão bastantes para sublinhar quer o valor da norma violada, quer o fulcral valor dos bens jurídicos protegidos por aquela mesma norma.
Por outra banda, estamos convictos que o arguido não deixará “escapar por entre os dedos” a oportunidade que este Tribunal de recurso decide agora dar-lhe, crente de que, em liberdade, arrepiará caminho, afastando-se da senda criminosa que vinha seguindo, priorizando o seu empenho na actividade profissional que iniciou em Agosto de 2023, prosseguindo no iniciado trilho de diminuição de consumo de canabinóides, afastando-se, em suma, dos factores de risco que o levem, uma vez mais, a delinquir.
Em suma: não será a decisão de suspender a execução da pena de prisão ao arguido que, no caso concreto, reúne condições para se poder elaborar um positivo juízo de prognose, que fará duvidar a comunidade do valor da norma. Ao invés, conquanto o julgador fizer pender sobre o agente do crime a espada da pena de prisão de 2 anos e 6 meses durante um período de tempo alargado, que se fixa em 4 (quatro) anos (artigo 50º, n.º 5 do CP), exigindo-se agora do arguido um esforço acrescido para corresponder às expectativas comunitárias de não voltar a delinquir.
Assim, e com o fito de alcançar todos os apontados desideratos, impõe-se ao arguido, no âmbito da agora decidida suspensão da execução da pena de prisão de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, por um período de 4 (quatro) anos, as seguintes regras de conduta, a par do seguinte regime de prova: deverão os serviços da DGRSP elaborar regime de prova de forma a evidenciar junto do arguido a necessidade do mesmo se manter activo e inserido profissionalmente e/ou empenhado na sua efectiva formação profissional e/ou procura activa de emprego, situação que o arguido deverá comprovar junto daquela entidade, devendo ainda o arguido afastar-se de ambientes e indivíduos conotados com o tráfico e consumo de substâncias estupefacientes, investindo na sua valorização pessoal.
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IV - Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso e em consequência decide-se suspender pelo período de 4 (quatro) anos a execução da pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão em que foi o arguido recorrente AA condenado, sujeitando-o a regime de prova nos moldes delineados e às regras de conduta supra elencadas, revogando-se, assim, nesta parte o Acórdão recorrido, mantendo-se o mesmo quanto ao mais.
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Sem custas (artigo 513º, n.º 1 do CPP).
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Tribunal da Relação de Lisboa, 21 de Março de 2024
(texto elaborado pela primeira signatária, revisto e assinado digitalmente por todos os subscritores – artigo 94º, n.º 2 do CPP)
CARLA CARECHO
JOSÉ ANTONIO GONÇALVES DE CASTRO
MARIA JOÃO FERREIRA LOPES
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1. Lê-se, a este propósito, no Acórdão recorrido: “O arguido AA confessou integralmente e sem reservas os factos atinentes ao crime de tráfico de estupefacientes, procedendo ao enquadramento da sua conduta, esclarecendo que desde há 10 meses que, uma vez por semana, vendia estupefacientes naquela “banca” que estava instalada no hall do prédio identificado nos autos:”