CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONSUMAÇÃO DO CRIME
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
ARTIGO 7.º N.ºS 3 E 4 DA LEI N.º 1-A/2020 DE 19 DE MARÇO
Sumário

(da responsabilidade da relatora)
I - No crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº1, do RGIT, estando em causa a não entrega de valores relativos a IVA, apurados e recebidos pelo sujeito passivo e não superiores a €50.000, não dependendo de qualquer liquidação, é inaplicável o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 21º do RGIT, pelo que o procedimento criminal se extingue, por efeito de prescrição, decorridos que sejam cinco anos, nos termos do nº 1 do referido preceito legal.
II - “…independentemente da verificação da condição objectiva de punibilidade prevista na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, (…) a consumação do crime dá-se quando, com absoluta independência da ocorrência ou não do aludido elemento condicionante, o agente preenche, com a sua conduta omissiva e contrária à lei, os elementos do respectivo tipo legal. Momento a partir do qual, verificando-se o fim da realização ilícita, típica e culposa, se inicia a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal.”
III - A causa de suspensão do prazo de prescrição prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
I Relatório
1
No processo nº 265/10.1IDSTB, Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular:
Em 28.2.2023 foi proferido despacho que julgou não prescrito o procedimento criminal – Ref 423480638.
Em 23.3.2023, foi proferida sentença cujo dispositivo se transcreve Ref. 424571824:

VI – DO DISPOSITIVO
Pelo exposto, decide o Tribunal julgar a acusação totalmente procedente e, nesta conformidade:
a) condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, na forma consumada e continuada, de 1 (um) crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105, n.ºs 1, 2, 4 e 7, do RGIT e em conjugação com os artigos 30.º, n.º 2 e 79.º do Cód. Penal, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de €6,00;
b) condenar o arguido no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, acrescida do montante dos encargos a que a atividade de ambos deu lugar.
Notifique. (…)”
Inconformado, o arguido veio recorrer do despacho mencionado.
Da motivação extraiu as seguintes CONCLUSÕES – Ref. 45202588
I. O arguido, ora recorrente, considera que o douto despacho judicial recorrido não reflete os preceitos legais aplicáveis e a doutrina e jurisprudências maioritárias:
II. Em primeiro lugar, quanto ao início do prazo de prescrição do procedimento criminal, o arguido, ora recorrente, no requerimento, considerou que o prazo de prescrição do procedimento criminal se iniciou no dia seguinte ao termo do prazo legal para entrega das prestações contributivas devidas – ou seja, em 16/11/2015 (15/11/2015 + 1 dia).
III. A Senhora Juiz de Direito, no douto despacho judicial, considerou que o prazo de prescrição se inicia no dia seguinte ao termo do prazo de 90 dias estabelecido pelo artigo 105.º, n.º 4, alínea a) do Regime Geral das Infrações Tributárias – ou seja, em 08/02/2016 (10/11/2015 + 1 dia + 90 dias).
IV. A questão do início do prazo de prescrição do procedimento criminal no crime de abuso de confiança foi amplamente discutida na doutrina e na jurisprudência.
O Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido de considerar que o prazo de prescrição do procedimento criminal se inicia no dia seguinte ao termo do prazo legal para entrega das prestações contributivas devidas (cf. Acórdão de Uniformização n.º 2/2015, de 19/02, Processo nº 398/09.5TALGS.E1-A.S1). No mesmo sentido, vide os arestos do Tribunal da Relação de Évora, de 16/04/2013 (Processo n.º 538/11.4TABJA.E1) e da Relação de Coimbra, de 17/12/2014 (Processo n.º 225/12.6TAACN.C1). E, na mesma linha, e por mais recentes, os arestos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/03/2018 (Processo n.º 1374/12.6TAMTJ.L2-5), de 21/01/2020 (Processo n.º 55/17.9T9SCR.L1-5) e de 23/02/2021 (Processo n.º 2882/16.5TDLSB.L2-5).
V. O arguido, ora recorrente, não concorda com a posição adotada pela Senhora Juiz de Direito pois a mesma, ao contrário da sua, faz tábua rasa das jurisprudências maioritária e fixada – sem fundamentar as divergências em relação à mesma, como impõe oartigo 445.º, n.º 3 do Código do Processo Penal.
VI. Em segundo lugar, quanto à verificação, in casu, de causas de suspensão e/ou de interrupção da prescrição previstas nos artigos 120.º e 121.º do Código Penal, o arguido, ora recorrente, no requerimento, e ao contrário da Senhora Juiz de Direito, no despacho judicial, considerou que as referidas causas não ocorreram, pois quando a declaração de contumácia, bem como a constituição de arguido e a notificação da acusação ocorreram, em 14/01/2021 e em 25/12/2022, respetivamente, já a prescrição tinha ocorrido em 16/11/2020 (16/11/2015 + 5 anos).
VII. Nem procede a invocação da causa autónoma de suspensão ao abrigo do art.120.º, n.º 1, a) do CP, por existir uma falta de autorização legal para a prática de actos judiciais e pelo Ministério Público, pois, como vimos, tal nunca se aplicou durante o tempo da suspensão derivada das leis “COVID”, nem, por maioria de razão, se aplicaria a um processo com natureza urgente.
VIII. O arguido, ora recorrente, não pode concordar com a posição adotada pela Senhora Juiz de Direito, desde logo, porque a prescrição ocorreu antes de verificada qualquer uma das causas de suspensão e/ou de interrupção da prescrição.
IX. Por fim, a aplicação das causas de suspensão de prescrição do procedimento criminal no âmbito da chamada legislação COVID - Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, e na Lei n.º 4-B/2021, de 01/02 -tem sido amplamente discutida na doutrina e jurisprudência. A jurisprudência maioritária tem entendido que as referidas causas apenas se aplicam aos prazos iniciados durante a sua vigência (cf. Nesse sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 07/12/2021, Processo n.º 200/09.8TASRE.C3).
X. A posição contrária, sufragada no despacho recorrido, viola o princípio da não retroatividade da lei menos favorável ao acusado, assim como a proteção da confiança e previsibilidade e segurança jurídicas.
XI. Sem prescindir, a ser aplicável, o que não se concede, aplicar-se-ia, in casu, apenas o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 – na redação originária e na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06/04.
XII. O arguido, ora recorrente, considera que, como o processo é urgente (cf. Artigo 103.º, n.º 2, alíneas b) e f) do Código de Processo Penal), o que não foi considerado pela Senhora Juiz de Direito, o prazo seria suspenso, no máximo, por 28 dias (cf. artigo 7.º na sua redação originária, n.ºs 5, 8 e 9), isto é, desde 09/03/2020 até 06/04/2020 (as datas correspondem, respetivamente, à data da produção de efeitos retroativos do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, na redação introduzida pela Lei n.º 4-A/2020, de 06/04, e ao dia anterior à data da entrada em vigor da Lei n.º 4-A/2020, de 06/04) (cf. artigo 6.º, n.º 2 e artigo 7.º da Lei n.º4-A/2020,de 06/04) (cf.artigo 6.º,n.º2 e artigo 7.º da Lei n.º4-A/2020, de 06/04). Veja-se, nesse sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 07/10/2020 (Processo n.º 143/17.1JGLSB-A.L1-3).
XIII. O arguido, ora recorrente, considera que, nesse caso, mesmo assim, também não ocorreria nenhuma das causas de suspensão e/ou de interrupção da prescrição, pois quando a declaração de contumácia, bem como a constituição de arguido e a notificação da acusação ocorreram, em 14/01/2021 e em 25/12/2022, respetivamente, já a prescrição tinha ocorrido em 14/12/2020 (16/11/2020 + 28 dias).
XIV. Face ao supra, o procedimento criminal extinguiu-se, por efeito da prescrição, no dia 16/11/2020.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO RECURSO, E, EM CONSEQUÊNCIA, DECLARAR EXTINTO, POR PRESCRIÇÃO, O PRESENTE PROCEDIMENTO CRIMINAL.”
Mais recorreu o arguido da sentença proferida – Ref 45349116.
Declarou manter interesse na apreciação do recurso interlocutório.
Da motivação, extraiu as seguintes Conclusões:

I. O início do prazo de prescrição (de 5 anos - art.º 21.º, n.º 1 do RGIT) ocorre a partir da consumação do crime;
II. A consumação do crime de abuso de confiança fiscal ocorre no termo do prazo para a entrega da prestação tributária – art.º 5.º, n.º 2 do RGIT;
III. Pelo que o prazo de prescrição do procedimento criminal se inicia no dia seguinte ao termo do prazo legal para entrega das prestações contributivas devidas;
IV. Assim entendeu o STJ no Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2015 e demais jurisprudência referida;
V. Pelo que o primeiro dia de prescrição será o dia seguinte àquele termo, ou seja, em 16/11/2015 (15/11/2015 + 1 dia).
VI. E não dia seguinte ao termo do prazo de 90 dias estabelecido pelo artigo 105.º, n.º 4, alínea a) do RGIT, mera condição objectiva de punibilidade;
VII. Pelo que, quando sobrevieram as causas de suspensão e/ou de interrupção da prescrição previstas nos artigos 120.º e 121.º do Código Penal, ou seja, a declaração de contumácia, a constituição de arguido e a notificação da acusação (que ocorreram em 14/01/2021 e em 25/12/2022, respetivamente), já a prescrição tinha ocorrido em 16/11/2020 (16/11/2015 + 5 anos).
VIII. Nem procede a invocação da causa autónoma de suspensão ao abrigo do art.120.º, n.º 1, a) do CP, por existir uma falta de autorização legal para a prática de actos judiciais e pelo Ministério Público, pois, como vimos, tal nunca se aplicou durante o tempo da suspensão derivada das leis “COVID”, nem, por maioria de razão, se aplicaria a um processo com natureza urgente.
IX. A suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal no âmbito da chamada legislação COVID - Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, e na Lei n.º 4-B/2021, de 01/02 apenas se aplica aos prazos iniciados durante a sua vigência;
X. A posição contrária viola o princípio da não retroatividade da lei menos favorável ao acusado, assim como a proteção da confiança e previsibilidade e segurança jurídicas, princípios gerais do ordenamento jurídico penal e constitucional.
XI. Sem prescindir, a ser aplicável, aplicar-se-ia, in casu, apenas o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 – na redação originária e na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06/04.
XII. Pois como ao processo foi atribuído carácter urgente (cf. artigo 103.º, n.º 2, alíneas b) e f) do Código de Processo Penal), o prazo de prescrição seria suspenso, no máximo, por 28 dias, isto é, desde 09/03/2020 até 06/04/2020.
XIII. Ainda que assim fosse, também não ocorreria nenhuma das causas de suspensão e/ou de interrupção da prescrição, pois quando a declaração de contumácia, bem como a constituição de arguido e a notificação da acusação ocorreram, em 14/01/2021 e em 25/12/2022, respetivamente, já a prescrição tinha ocorrido em 14/12/2020 (16/11/2020 + 28 dias).
XIV. Violou assim a sentença recorrida os artigos 2.º, n.º 4, 119.º, n.º 1 e n.º 2, b), e 120.º, n.º 1, a) do Código Penal, e o art.º 5.º, n.º 2 do RGIT, bem como a referida legislação COVID, designadamente o art.º 7.º da Lei n.º 1-A/2020 de 19/03, e ainda os artigos 29.º, n.º 4 da CRP (princípio da não-retroactividade da lei penal menos favorável) e ainda o princípio geral do estado de Direito da previsibilidade e segurança jurídicas, pois, se os tivesse reconhecido e aplicado, teria declarado prescrito o procedimento criminal e mandado arquivar os autos.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO RECURSO, DECLARANDO-SE EXTINTO, POR PRESCRIÇÃO, O PRESENTE PROCEDIMENTO CRIMINAL. E, EM CONSEQUÊNCIA REVOGANDO-SE A DECISÃO CONDENATÓRIA.
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA.
Os recursos foram admitidos por despacho proferido em 21.4.2023 – Ref 42510421- a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Em 14.6.2023, respondeu o MP junto da 1.ª instância a ambos os recursos, pugnando pelo não provimento dos mesmos (Ref 93299).
Transcreve-se a resposta apresentada:

VENERANDOS JUÍZES DESEMBARGADORES,
O MINISTÉRIO PÚBLICO apresenta a sua resposta aos recursos nos termos e com os fundamentos que se seguem.
A. A presente resposta respeita aos recursos interpostos pelo arguido AA, do Douto despacho proferido nos presentes autos a 28/02/2023 que considerou que o prazo de prescrição do procedimento criminal não se completou, indeferindo o requerido, e ainda da Douta sentença.
Tendo em conta as conclusões de recurso, que delimitam o objeto do mesmo, o arguido alega:
No Recurso interposto no dia 03/04/2023, quanto ao douto despacho de 28/02/2023:
I. “O arguido, ora recorrente, considera que o douto despacho judicial recorrido não reflete os preceitos legais aplicáveis e a doutrina e jurisprudências maioritárias:
II. Em primeiro lugar, quanto ao início do prazo de prescrição do procedimento criminal, o
arguido, ora recorrente, no requerimento, considerou que o prazo de prescrição do
procedimento criminal se iniciou no dia seguinte ao termo do prazo legal para entrega das prestações contributivas devidas – ou seja, em 16/11/2015 (15/11/2015 + 1 dia).
III. A Senhora Juiz de Direito, no douto despacho judicial, considerou que o prazo de prescrição
se inicia no dia seguinte ao termo do prazo de 90 dias estabelecido pelo artigo 105.º, n.º 4, alínea a) do Regime Geral das Infrações Tributárias – ou seja, em 08/02/2016 (10/11/2015 + 1 dia + 90 dias).
IV. A questão do início do prazo de prescrição do procedimento criminal no crime de abuso de confiança foi amplamente discutida na doutrina e na jurisprudência. O Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido de considerar que o prazo de prescrição do procedimento criminal se inicia no dia seguinte ao termo do prazo legal para entrega das prestações contributivas devidas (cf. Acórdão de Uniformização n.º 2/2015, de 19/02, Processo nº 398/09.5TALGS.E1-A.S1). No mesmo sentido, vide os arestos do Tribunal da Relação de Évora, de 16/04/2013 (Processo n.º 538/11.4TABJA.E1) e da Relação de Coimbra, de 17/12/2014 (Processo n.º 225/12.6TAACN.C1). E, na mesma linha, e por mais recentes, os arestos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/03/2018 (Processo n.º 1374/12.6TAMTJ.L2-5), de 21/01/2020 (Processo n.º 55/17.9T9SCR.L1-5) e de 23/02/2021 (Processo n.º 2882/16.5TDLSB.L2-5).
V. O arguido, ora recorrente, não concorda com a posição adotada pela Senhora Juiz de Direito pois a mesma, ao contrário da sua, faz tábua rasa das jurisprudências maioritária e fixada – sem fundamentar as divergências em relação à mesma, como impõe o artigo 445.º, n.º 3 do Código do Processo Penal.
VI. Em segundo lugar, quanto à verificação, in casu, de causas de suspensão e/ou de interrupção da prescrição previstas nos artigos 120.º e 121.º do Código Penal, o arguido, ora recorrente, no requerimento, e ao contrário da Senhora Juiz de Direito, no despacho judicial, considerou que as referidas causas não ocorreram, pois quando a declaração de contumácia, bem como a constituição de arguido e a notificação da acusação ocorreram, em 14/01/2021 e em 25/12/2022, respetivamente, já a prescrição tinha ocorrido em 16/11/2020 (16/11/2015 + 5 anos).
VII. Nem procede a invocação da causa autónoma de suspensão ao abrigo do art.º 120.º, n.º 1, a) do CP, por existir uma falta de autorização legal para a prática de actos judiciais e pelo Ministério Público, pois, como vimos, tal nunca se aplicou durante o tempo da suspensão derivada das leis “COVID”, nem, por maioria de razão, se aplicaria a um processo com natureza urgente.
VIII. O arguido, ora recorrente, não pode concordar com a posição adotada pela Senhora Juiz de Direito, desde logo, porque a prescrição ocorreu antes de verificada qualquer uma das causas de suspensão e/ou de interrupção da prescrição.
IX. Por fim, a aplicação das causas de suspensão de prescrição do procedimento criminal no âmbito da chamada legislação COVID - Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, e na Lei n.º 4-B/2021, de 01/02 - tem sido amplamente discutida na doutrina e jurisprudência. A jurisprudência maioritária tem entendido que as referidas causas apenas se aplicam aos prazos iniciados durante a sua vigência (cf. nesse sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 07/12/2021, Processo n.º 200/09.8TASRE.C3).
X. A posição contrária, sufragada no despacho recorrido, viola o princípio da não retroatividade da lei menos favorável ao acusado, assim como a proteção da confiança e previsibilidade e segurança jurídicas.
XI. Sem prescindir, a ser aplicável, o que não se concede, aplicar-se-ia, in casu, apenas o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 – na redação originária e na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06/04.
XII. O arguido, ora recorrente, considera que, como o processo é urgente (cf. artigo 103.º, n.º 2, alíneas b) e f) do Código de Processo Penal), o que não foi considerado pela Senhora Juiz de Direito, o prazo seria suspenso, no máximo, por 28 dias (cf. artigo 7.º na sua redação originária, n.ºs5,8 e 9), isto é, desde 09/03/2020até 06/04/2020(as datas correspondem, respetivamente, à data da produção de efeitos retroativos do artigo 7.ºdaLein.º1-A/2020, de 19/03, na redação introduzida pela Lei n.º 4-A/2020, de 06/04, e ao dia anterior à data
da entrada em vigor da Lei n.º 4-A/2020, de 06/04) (cf. artigo 6.º, n.º 2 e artigo 7.º da Lei n.º 4-A/2020, de 06/04) (cf. artigo 6.º, n.º 2 e artigo 7.º da Lei n.º 4-A/2020, de 06/04). Veja-se, nesse sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 07/10/2020 (Processo n.º 143/17.1JGLSB-A.L1-3).
XIII. O arguido, ora recorrente, considera que, nesse caso, mesmo assim, também não ocorreria nenhuma das causas de suspensão e/ou de interrupção da prescrição, pois quando a declaração de contumácia, bem como a constituição de arguido e a notificação da acusação ocorreram, em 14/01/2021 e em 25/12/2022, respetivamente, já a prescrição tinha ocorrido em 14/12/2020 (16/11/2020 + 28 dias).
XIV. Face ao supra, o procedimento criminal extinguiu-se, por efeito da prescrição, no dia 16/11/2020.”
No Recurso interposto no dia 20/04/2023, quanto à douta sentença de 23/03/2023:
I. O início do prazo de prescrição (de 5 anos - art.º 21.º, n.º 1 do RGIT) ocorre a partir da consumação do crime;
II. A consumação do crime de abuso de confiança fiscal ocorre no termo do prazo para a entrega da prestação tributária – art.º 5.º, n.º 2 do RGIT;
III. Pelo que o prazo de prescrição do procedimento criminal se inicia no dia seguinte ao termo do prazo legal para entrega das prestações contributivas devidas;
IV. Assim entendeu o STJ no Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2015 e demais jurisprudência referida;
V. Pelo que o primeiro dia de prescrição será o dia seguinte àquele termo, ou seja, em 16/11/2015 (15/11/2015 + 1 dia).
VI. E não o dia seguinte ao termo do prazo de 90 dias estabelecido pelo artigo 105.º, n.º 4, alínea a) do RGIT, mera condição objectiva de punibilidade;
VII. Pelo que, quando sobrevieram as causas de suspensão e/ou de interrupção da prescrição previstas nos artigos 120.º e 121.º do Código Penal, ou seja, a declaração de contumácia, a constituição de arguido e a notificação da acusação (que ocorreram em 14/01/2021 e em 25/12/2022, respetivamente), já a prescrição tinha ocorrido em 16/11/2020 (16/11/2015 + 5 anos).
VIII. Nem procede a invocação da causa autónoma de suspensão ao abrigo do art.º 120.º, n.º 1, a) do CP, por existir uma falta de autorização legal para a prática de actos judiciais e pelo Ministério Público, pois, como vimos, tal nunca se aplicou durante o tempo da suspensão derivada das leis “COVID”, nem, por maioria de razão, se aplicaria a um processo com natureza urgente.
IX. A suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal no âmbito da chamada legislação COVID - Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, e na Lei n.º 4-B/2021, de 01/02 apenas se aplica aos prazos iniciados durante a sua vigência;
X. A posição contrária viola o princípio da não retroatividade da lei menos favorável ao acusado, assim como a proteção da confiança e previsibilidade e segurança jurídicas, princípios gerais do ordenamento jurídico penal e constitucional.
XI. Sem prescindir, a ser aplicável, aplicar-se-ia, in casu, apenas o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 – na redação originária e na redação dada pela Lei n.º 4- A/2020, de 06/04.
XII. Pois como ao processo foi atribuído carácter urgente (cf. artigo 103.º, n.º 2, alíneas b) e f) do Código de Processo Penal), o prazo de prescrição seria suspenso, no máximo, por 28 dias, isto é, desde 09/03/2020 até 06/04/2020.
XIII. Ainda que assim fosse, também não ocorreria nenhuma das causas de suspensão e/ou de interrupção da prescrição, pois quando a declaração de contumácia, bem como a constituição de arguido e a notificação da acusação ocorreram, em 14/01/2021 e em 25/12/2022, respetivamente, já a prescrição tinha ocorrido em 14/12/2020 (16/11/2020 + 28 dias).
XIV. Violou assim a sentença recorrida os artigos 2.º, n.º 4, 119.º, n.º 1 e n.º 2, b), e 120.º, n.º 1, a) do Código Penal, e o art.º 5.º, n.º 2 do RGIT, bem como a referida legislação COVID, designadamente o art.º 7.º da Lei n.º 1-A/2020 de 19/03, e ainda os artigos 29.º, n.º 4 da CRP (princípio da não-retroactividade da lei penal menos favorável) e ainda o princípio geral do estado de Direito da previsibilidade e segurança jurídicas, pois, se os tivesse reconhecido e aplicado, teria declarado prescrito o procedimento criminal e mandado arquivar os autos.”
B. Entende o Ministério Público que não assiste razão ao arguido, pelos seguintes motivos:
Considero que, tanto o despacho recorrido, como a sentença, se encontram devidamente fundadas e fundamentadas, feita uma exposição suficiente e concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, indicadas e examinadas criticamente as provas com base nas quais o Tribunal formou a sua convicção – art.º 410º nº 1 e 2 al. a) do CPP.
Mais considero que a prova produzida, em sede de audiência de discussão e julgamento, foi apreciada em obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica e não de modo arbitrário nem de acordo com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, não tendo, portanto, sido violado o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do CPP.
Por outro lado, considero que inexiste insuficiência da matéria provada para a decisão, pois os factos dados como provados e não provados permitem a conclusão de que o arguido praticou o(s) crime(s) por que foi condenado, sem margem para dúvidas, sendo tal matéria suficiente para permitir uma decisão de direito, sem necessidade de se completar a mesma, bem como suficientes para decidir pela condenação – art.º 410º nº 1 e 2 al. b) do CPP.
Acresce ainda que o recurso da sentença é não mais do que uma repetição do recurso anteriormente interposto do despacho de 28/02/2023 que considerou que o prazo prescricional ainda não completou nos presentes autos, razão pela qual, evidentemente, a Douta sentença não se pronunciou sobre a prescrição nessa sede uma vez que o Tribunal esgotou o seu poder jurisdicional quando apreciou a questão no mencionado despacho na sequência do requerimento apresentado pelo arguido no dia 14/02/2023.
Consequentemente, considera-se que o Tribunal a quo não violou qualquer das normas ou princípios indicados pelo recorrente arguido, pelo que sustento na íntegra o despacho e sentença recorridos.
Assim, e face ao supra exposto, remeto, pois, para a totalidade do despacho de 28/02/2023 e da Douta sentença proferidos, sua fundamentação de facto e de Direito com a qual concordo e que aqui dou por reproduzida para todos os efeitos legais.
Termos em que, negando provimento ao recurso e confirmando o despacho e sentença recorridos, farão V. Exas., como sempre, a habitual
JUSTIÇA”!
2.
Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 416.º do CPP, emitiu parecer que se transcreve:

Vista do Ministério Público
(artigo 416.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal)
I. O RECURSO
O arguido AA vem recorrer do despacho proferido em 28 de fevereiro de 2023 pelo Juízo Local Criminal do Montijo – Juiz 1 e pelo qual, na parte ora relevante, foi decidido:
(…)
Pelo exposto, o prazo de prescrição do procedimento criminal ainda não se completou, motivo pelo qual, se indefere o requerido.
(…)
e da sentença proferida em 23 de março de 2023 por aquele mesmo Juízo Local Criminal do Montijo – Juiz 1 e pela qual, na parte ora relevante, foi decidido:
(…)
Pelo exposto, decide o Tribunal julgar a acusação totalmente procedente e, nesta conformidade:
a) condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, na forma consumada e continuada, de 1 (um) crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105, n.ºs 1, 2, 4 e 7, do RGIT e em conjugação com os artigos 30.º, n.º 2 e 79.º do Cód. Penal, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de €6,00;
(…)
II. POSIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA 1.ª INSTÂNCIA
A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta aos recursos manifestando-se no sentido de lhes ser negado provimento.
III. POSIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NESTA 2.ª INSTÂNCIA
A – RECURSO DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA: DA PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
O arguido, ora recorrente, suscitou junto do tribunal a quo a apreciação da eventual prescrição do procedimento criminal.
Por despacho proferido em 28 de fevereiro de 2023, o tribunal a quo indeferiu tal requerimento decidindo que o prazo da prescrição do procedimento criminal ainda não se havia completado.
O arguido foi acusado (REF. 390497498) de ter incorrido, como autor material, na forma consumada, nos termos dos artºs 14º, nº 1, 26º e 30º, nº 2, todos do Código Penal, na prática de um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma continuada, p. e p. pelos artigos 105º, nºs 2 e 4, alínea a), e 6º e 7º, nº 3 do R.G.I.T., por referência aos artºs 26º, nº 4, 27º, nº 129º, 36º, 37º, 41º e 114º, nº 2 do CIVA.
Pela prática, na parte essencial e com relevo à questão em apreço, dos seguintes factos:
(…)
6. Contudo, o arguido, enquanto gerente da sociedade e em nome, representação e no interesse desta, em 15 de Agosto de 2015 e em 10 de Novembro de 2015 não entregou as respectivas declarações periódicas de IVA, pese embora tenha recebido e retido as seguintes quantias de IVA:

Período
Total recebido
Base Tributável
IVA devido
2015/06T
49.226,91€
40.021,88€
9.205,03€
2015/09T
80.154,56€
65.166,31€
14.988,25€


7. Por referência aos 3º e 4º trimestres de 2015, o arguido, enquanto gerente da sociedade arguida, não entregou a declaração periódica de IVA, nem entregou à Autoridade Tributária o valor do imposto devido a título de IVA, no valor de 9.205,03€ e de 14.988,25€, respectivamente, pese embora tenha desenvolvido normalmente a sua actividade, concretizando transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e recebido os pagamentos nas contas bancárias e nos terminais TPA supra identificados.
8. Por tal motivo, analisando a facturação dos terminais TPA e os recebimentos efectivos nas contas bancárias da sociedade, da actividade comercial da sociedade relativa aos 3º e 4º trimestres de 2015 apurou-se imposto a favor do Estado, a título de IVA, no montante de 9.205,03€ e de 14.988,25€, respectivamente, valores estes que não foram declarados pelo arguido, nem entregues à Autoridade Tributária, mas que foram recebidos.
(…)
Em suma, nos termos constantes da acusação, imputa-se ao arguido a não entrega à Autoridade Tributária, até 10 de novembro de 2015, da declaração periódica de IVA respeitante ao período 2015/09T (3.º trimestre do ano de 2015) e do respetivo valor do imposto devido a título de IVA.
Ora, nos termos da acusação deduzida, foi neste dia que o arguido não deu cumprimento a tais obrigações e, por conseguinte, se consumou o facto e começou a correr o prazo da prescrição do procedimento criminal.
Salvo o respeito devido por opinião diversa, entendo que as condições de punibilidade são estranhas ao momento da consumação do facto – único momento a que o início do prazo da prescrição do procedimento criminal se reporta.
E se o facto, nos precisos termos que constam da acusação, ocorreu em 10 de novembro de 2015, o primeiro dia do prazo da prescrição do procedimento criminal ocorreu em 11 de novembro de 2015 e completou 5 anos em 11 de novembro de 2020.
Logo, em momento anterior a ter ocorrido qualquer causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal.
Importa ainda aferir se ocorreu qualquer causa de suspensão de tal prescrição, nomeadamente a decorrente da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
Ora, e mais uma vez salvaguardado o respeito que todas as opiniões distintas me merecem, entendo que tal suspensão da prescrição não tem aplicação aos processos criminais pendentes à data da sua publicação.
Em reforço do exposto e neste sentido, refere o acórdão de 27-10-2022 desta Relação de Lisboa ( ):
I- As leis 1-A/2020, de 19 de Março e 4-B/2021, de 01 de Fevereiro, relativas à situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19, estatuíram que “a situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos” e o “disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional”;
II- Para alguns as normas temporárias decorrentes da epidemia COVID 19, devem ter aplicação aos processos pendentes e por consequência os prazos de suspensão da prescrição nelas previstos, devem ser tidos em conta em matéria criminal, a isso não obstando o artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, e para outros, as referidas normas temporárias aplicadas a processos pendentes em matéria de prescrição, violam o princípio da aplicação da legalidade e da retroactividade da lei, mais favorável e o artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.
No entanto entende-se que estas leis temporárias não podem alargar os prazos de prescrição do procedimento criminal ou das penas, sem violar o princípio da legalidade e da retroactividade da lei penal mais favorável, pois as normas relativas à prescrição do procedimento criminal ou das penas revestem natureza material ou mista estando, por isso, abrangidas pelo princípio da aplicação da lei mais favorável;
III- Será por isso a natureza material das normas de prescrição do procedimento criminal ou das penas, que obstam à derrogação do princípio da lei mais favorável por lei temporária, mesmo que esta seja elaborada em situações excepcionais de estado de emergência, sendo que a ressalva constitucional da impossibilidade da afectação do princípio da não retroactividade da lei criminal em situações de estado de sítio, é, só por si, revelador da importância que o legislador constituinte atribui ao mesmo, devendo, por consequência, as referidas normas temporárias aplicar-se para o futuro e aos factos praticados durante a sua vigência.
Esta interpretação não contraria a jurisprudência do Tribunal Constitucional, porquanto a mesma não se reporta a matéria criminal, mas, antes a matéria contraordenacional.
Por conseguinte, sou do entender que a prescrição do procedimento criminal pelos factos imputados ao arguido na acusação deduzida pelo Ministério Público teve lugar a 11 de novembro de 2020, devendo ser julgado procedente o recurso do arguido e declarado extinto o procedimento criminal.
B – RECURSO DA SENTENÇA
Caso se perfilhe entendimento distinto e se entenda não ter ocorrido a prescrição do procedimento criminal:
Nas demais questões suscitadas, em concreto as alheias à prescrição do procedimento criminal, acompanho a resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância.
Por conseguinte, dispensando demais aduções, sou de parecer que quanto aos recursos interpostos por AA:
A. deve ser julgado procedente o recurso interposto da decisão interlocutória de 28 de fevereiro de 2023 que declarou não ter ocorrido a prescrição do procedimento criminal e, em consequência, revogar-se tal despacho e declarar-se extinto o procedimento criminal por prescrição;
B. caso assim não se entenda, deve ser julgado improcedente o recurso interposto da sentença proferida pelo tribunal a quo.
Lisboa, 06 de julho de 2023”
Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 2, do art.º 417.º, do CPP, não tendo o arguido apresentado resposta.
Colhidos os vistos, foi o processo à conferência.
II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (art.º 410.º n.ºs 2 e 3 do CPP).
In casu, a única questão que importa dilucidar é a de saber se ocorreu prescrição do procedimento criminal e, na afirmativa, quando – questão suscitada quer no recurso interlocutório quer no recurso da decisão final.
2. As decisões recorridas (transcrição na parte relevante):
Despacho proferido em 28.2.2023:
“Por requerimento junto aos autos em 13.02.2023, com a referência citius 35061826, veio o arguido AA invocar a prescrição do procedimento criminal, que, no seu entender, ocorreu em 14 de novembro de 2020.
A Digna Magistrada do Ministério Público tomou posição, pugnando pelo prosseguimento dos autos, face à não verificação da prescrição do procedimento criminal.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos presentes autos o arguido encontra-se acusado da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma continuada, previsto e punido, pelo artigo 105.º, n.º 1 e 2, n.º 4, alínea a) e n.º 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias, com pena de prisão até 03 (três) anos ou multa até 360 (trezentos e sessenta) dias – cf. fls.466 a 469.
Cumpre considerar que:
(i) Por despacho proferido em 14.01.2021, o arguido foi declarado contumaz (que foi declarada cessada por despacho de 04.01.2023) – cf. fls.511.
(ii) O arguido foi constituído arguido, sujeito a termo de identidade e residência e notificado do despacho de acusação, em 25.12.2022 – cf. fls. 553 a 561.
Nos termos do preceituado no artigo 21.º do Regime Geral das Infracções Tributárias:
“1- O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos.
2- O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a cinco anos.
3- O prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infracção depender daquela liquidação.
4- O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 42.º e no artigo 47.º”.
Por sua vez, nos termos do artigo 120.º do Código Penal: “1- A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) o procedimento criminal na puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal;
b) o procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo;
c) vigorar a declaração de contumácia; ou
d) a sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência; e) a sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado;
f) o delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade.”.
Sendo que, no caso da alínea b) a suspensão não pode ultrapassar 03 (três anos); no caso da alínea c), não pode ultrapassar o prazo normal de prescrição; e, no caso da alínea e) não pode ultrapassar 05 (cinco) anos, elevando-se para 10 (dez) no caso de ter sido declarada a excepcional complexidade do processo (neste último caso, se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional, os prazos são elevados para o dobro) – a prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.
Decorre do artigo 121.º do Código Penal que “A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) com a constituição de arguido;
b) com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo;
c) com a declaração de contumácia;
d) com a notificação do despacho que designa dia para audiência na ausência do arguido.”.
No mais, “depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição” (cf. n.º 2); e “sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade” (cf. n.º 3).
“Como é sabido, o que distingue os efeitos da interrupção da prescrição dos efeitos da suspensão da prescrição é que, no primeiro caso, iniciando-se o prazo com a prática da infracção, ocorrendo uma causa de interrupção, o prazo até aí decorrido fica inutilizado, começando então a correr um novo prazo, enquanto no segundo caso, ocorrendo uma causa de suspensão, o prazo que estava em curso não fica inutilizado, apenas deixa de correr durante o período fixado ou até ao desaparecimento do obstáculo legalmente previsto, voltando a partir daí a correr” (cf. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21.02.2018, Proc. n.º 266/17.7T8CDN.C1, in www.dgsi.pt).
Acresce que, emerge do artigo 5.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, no que por ora releva, que: “1- As infracções tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
2- As infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários”.
E preceitua o artigo 119.º do Código Penal, aplicável subsidiariamente por força do disposto na alínea a) do artigo 3.º do Regime Geral das Infracções Tributárias que, o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado (cf. n.º 1); porém, nos crimes continuados e nos crimes habituais, o prazo de prescrição só corre desde o dia da prática do último acto (cf. n.º 2, alínea b).
De salientar, por necessário, que se acolhe aqui, na íntegra, a jurisprudência que sustenta que a condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 4, alínea a) do Regime Geral das Infracções Tributárias releva para efeitos do início do prazo de prescrição.
Há aqui também que atender à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que introduziu medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, e que veio, no seu artigo 7.º, n.ºs 3 e 4 (versão primitiva), determinar que a situação excepcional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, regime que prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional.
Igualmente a Lei n.º 4-B/2021, de 01 de fevereiro, no seu artigo 6.º-B, n.ºs 3 e 4, veio outrossim determinar que são igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1, regime que prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.
Tais prazos de suspensão da prescrição vigoraram desde 09 de março de 2020 até 02 de junho de 2020 e de 22 de janeiro de 2021 até 05 de abril de 2021 - cf. artigos 6.º-A, 7.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, e artigo 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05 de abril.
A este propósito, entende este Tribunal que as normas temporárias decorrentes da epidemia COVID-19, devem ter aplicação aos processos pendentes e, por consequência, os prazos de suspensão da prescrição nelas previstas, devem ser tidos em conta em matéria criminal, a isso não obstando o artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.
Não obstante, em todo o caso, sempre se dirá que, a verificada suspensão dos actos e prazos nos processos criminais, imposta pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e, posteriormente, Lei n.º 4-B/2021, de 01 de fevereiro, sempre configuraria uma causa suspensiva da prescrição, por falta de autorização legal para o processo continuar, nos termos do artigo 120.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
Porquanto, durante estes (dois) períodos, o procedimento criminal não podia continuar por falta de autorização legal, perante a paralisação imposta por lei para os actos e prazos a correr termos na administração, no Ministério Público e nos Tribunais – nos termos do artigo 120.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, sendo esta uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal expressamente contemplada na lei ao tempo dos factos e, por isso, a coberto do princípio da legalidade e não retroactividade da lei penal.
*
Exposto o quadro normativo a reter, temos então que:
No caso presente, atenta a moldura penal do crime em que o arguido incorreu e o disposto no artigo 21.º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias, o prazo de prescrição do procedimento criminal é de 05 (cinco) anos (cf. ainda artigo 118.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal).
Por isso, nos termos legais, o último acto respeita à entrega da declaração periódica de IVA, por referência ao 3.º trimestre de 2015 (2015/09T), devendo a sua entrega efectuar-se até ao dia 10.11.2015, acrescendo a esta data os 90 (noventa) dias acima aludidos que, contados a partir de 11.11.2015, terminavam a 08.02.2016.
Como o arguido não procedeu em conformidade até à referida data (08.02.2016); começou, então, a correr o prazo (normal) de 05 (cinco) anos de prescrição do procedimento criminal, que terminaria em 09.02.2021, caso não sofresse interrupções e suspensões.
Para além das causas de interrupção, o citado n.º 3 do artigo 121.º do Código Penal, erige o que pode ser designado por «válvula de segurança do sistema», obstando a que, através de sucessivas e ilimitadas situações de interrupção e de suspensão do prazo de prescrição do procedimento, este se perpetue. Assim, nos termos desta disposição legal, a prescrição do procedimento ocorrerá sempre quando, desde o seu início e com ressalva do tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal acrescido de metade.
Pelo que, no ilícito criminal em apreço, a prescrição do procedimento terá sempre lugar decorridos que sejam:
(i) 05 (cinco) anos (prazo normal) – 09.02.2021; acrescidos de
(ii) 02 (dois) anos e 06 (seis) meses (metade do prazo normal) – 09.08.2024; acrescidos de
(iii) 86 (oitenta e seis) dias (prazo de suspensão por via da legislação COVID-19, de 09 de março de 2020 a 02 de junho de 2020 ou nos termos do art.º 120.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, por o procedimento criminal não puder legalmente continuar por falta de autorização legal – cf. artigo 120, n.º 1, alínea a) do Código Penal);
(iv) 01 (um) ano, 11 (onze) meses e 21 (vinte e um) dias (declaração de contumácia, que vigorou desde 14.01.2021 a 04.01.2023 – cf. artigo 120.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal); e
(v) 03 (três) anos (o procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação, o que sucedeu em 25.12.2022 – cf. artigo 120.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal) – ou seja, 13.10.2029 (descontados onze dias, de 25.12.2022 a 04.01.2023, de modo, a obviar a duplicação do mesmo espaço temporal).
Pelo exposto, o prazo de prescrição do procedimento criminal ainda não se completou, motivo pelo qual, se indefere o requerido.
Notifique.
D.N.
(…)”
A sentença proferida nos autos:
“(:::)
II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram os seguintes:
2.1. Factos Provados
1) A sociedade ..., foi constituída em … de … de 2013, e tinha por objeto social “…”, tendo a respetiva matrícula sido cancelada em … de … de 2019.
2) A sociedade encontrava-se registada em sede de IRC pelo exercício da atividade a que correspondia o CAE …, estando enquadrada, para efeitos de I.V.A., no regime normal de periodicidade trimestral.
3) O arguido AA, entre a data da constituição e a data do cancelamento da matrícula da sociedade, exerceu as funções de gerente da sociedade ... e, por esse facto, incumbia-lhe zelar pelo cumprimento das suas obrigações fiscais, sendo o único responsável pelos atos praticados, contratando trabalhadores, assinando a documentação e os cheques da sociedade, contratando com fornecedores, e supervisionando o terminal TPA.
4) No âmbito da sua atividade profissional, e para o exercício exclusivo da mesma, o arguido tinha afetas as contas n.º ... da ... (NIF ...), n.º ... do ... (NIF ...) e n.º ... do ... (NIF ...), com Terminais de Pagamentos Automáticos.
5) O arguido estava obrigado a enviar periodicamente aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, em nome, representação e interesse da sociedade, a declaração de IVA apurado, acompanhada do meio de pagamento sempre que do cálculo resultasse imposto a favor do Estado.
6) Contudo, o arguido, enquanto gerente da sociedade e em nome, representação e no interesse desta, em 15 de agosto de 2015 e em 15 de novembro de 2015 não entregou as respetivas declarações periódicas de IVA, pese embora tenha recebido e retido as seguintes quantias de IVA:

Período
Total recebido
Base Tributável
IVA devido
2015/06T
49.226,91€
40.021,88€
9.205,03€
2015/09T
80.154,56€
65.166,31€
14.988,25€


7) Por referência aos 2º e 3º trimestres de 2015, o arguido, enquanto gerente da sociedade, não entregou a declaração periódica de IVA, nem entregou à Autoridade Tributária o valor do imposto devido a título de IVA, no valor de 9.205,03€ e de 14.988,25€, respetivamente, pese embora tenha desenvolvido normalmente a sua atividade, concretizando transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e recebido os pagamentos nas contas bancárias e nos terminais TPA supra identificados.
8) Por tal motivo, analisando a faturação dos terminais TPA e os recebimentos efetivos nas contas bancárias da sociedade, da atividade comercial da sociedade relativa aos 2º e 3º trimestres de 2015 apurou-se imposto a favor do Estado, a título de IVA, no montante de 9.205,03€ e de 14.988,25€, respetivamente, valores estes que não foram declarados pelo arguido, nem entregues à Autoridade Tributária, mas que foram recebidos.
9) Por tal motivo, a Autoridade Tributária efetuou a liquidação oficiosa de IVA, nos valores supra referenciados.
10) O arguido sabia que os valores que recebeu dos clientes, a título de IVA, não lhe pertencia e que devia ser entregue à Autoridade Tributária e, não obstante, previu e quis aproveitar-se da qualidade de depositário de tais valores, fazendo suas e da sociedade arguida tais quantias, causando uma diminuição de receitas do Estado, o que concretizou.
11) O arguido agiu em nome, representação e no interesse da sociedade, bem sabendo que, dessa forma, estava a incumprir uma obrigação fiscal e que, consequentemente, prejudicava o estado enquanto credor tributário.
12) Ciente de que tinha de entregar os aludidos valores e a respetiva declaração em representação da sociedade arguida, o arguido, agindo em nome, representação e no interesse da sociedade arguida, não o fez, confiando na aparente impunidade resultante da inércia das autoridades competentes na realização da fiscalização, o que facilitou a prossecução da atividade criminosa ao longo do referido período.
13) A Autoridade Tributária não procedeu à notificação do arguido para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento do imposto em falta, acrescido dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, porque os factos que deram origem aos presentes autos não resultaram de comunicação declarativa voluntária à Autoridade Tributária, mas sim de uma ação inspetiva.
14) O arguido atuou em representação e no interesse da sociedade de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Outros factos com relevo para a decisão da causa:
15) O arguido, enquanto gerente da sociedade, entregou a declaração periódica de IVA e entregou à Autoridade Tributária o valor do imposto devido a título de IVA, por referência aos 1.º e 4.º trimestres de 2015.
16) O arguido encontra-se atualmente a residir em ....
17) Por sentença proferida no dia 28.05.2013 e transitada em julgado em 27.06.2013, no âmbito do processo comum n.º 348/09.9IDLSB, Tribunal da Comarca de Lisboa, 6.º Juízo Criminal, o arguido foi condenado pela prática, em 01.01.2018, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 6.º, 105.º, n.º 1, ambos do RGIT, e 30.º, n.º 2, e 79.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de € 8,00. Pena extinta pelo cumprimento.
18) Por sentença proferida no dia 25.11.2015 e transitada em julgado em 07.01.2016, no âmbito do processo comum n.º 369/12.4IDSTB, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal do Montijo, o arguido foi condenado pela prática, em 16.08.2012, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 7.º e 105.º, n.º 1, do RGIT, e 30.º, n.º 2 do Cód. Penal, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 7,00. Pena extinta pelo cumprimento.
19) Por sentença proferida no dia 22.11.2016 e transitada em julgado em 04.01.2017, no âmbito do processo comum n.º 224/15.6IDSTB, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal do Montijo, o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, 12.º, n.º 3, e 105.º, n.º 1, todos do RGIT, na pena de 260 dias de multa, à taxa diária de € 7,00. Pena extinta pelo cumprimento.
*
2.2 Factos Não Provados
Com interesse para a boa decisão da causa, não ficaram por provar quaisquer factos.
***
III – DA MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Em termos genéricos e uma vez que o arguido consentiu na realização da audiência de julgamento na sua ausência, o Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada da prova produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente concatenada com a prova documental constante dos autos, de acordo com as regras da experiência comum e com estrita observância pelo princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do Cód. de Processo Penal.
Os factos provados em 1), 2) e 15) resultaram do documento de fls. 460 a 462 (certidão comercial permanente) e da informação cadastral da sociedade a fls. 83 a 85, em conjugação com o depoimento das testemunhas BB e CC, o primeiro técnico da administração tributária e segunda inspetora tributária à data dos factos, ambos confirmando o enquadramento da sociedade em causa em regime normal trimestral de IVA, como também deriva do histórico a fls. 61 e 61v e do teor do relatório de inspeção tributária, no qual a fls. 56v é feita referência à apresentação por parte daquele sujeito passivo das declarações periódicas de IVA referentes ao 1.º e 4.º trimestre.
O facto provado em 3) resultou da análise conjugada do suporte documental junto aos autos, em concreto da certidão do registo comercial da sociedade de fls. 460 a 462, da ficha de assinatura da conta bancária titulada pelo sujeito passivo junto do ... e respetivo cartão de cidadão associado, a fls. 29 e 41, da ficha de assinatura da conta bancária titulada pelo sujeito passivo junto ... e respetivo cartão de cidadão associado, a fls. 137, 138, 141 e 142, do contrato de adesão ao sistema de aceitação de pagamento com cartões pagamento e respetivo cartão de cidadão associado, a fls. 249 a 264, do extrato de remunerações associado ao arguido a fls. 119 a 129 e, ainda, da visão integrada do contribuinte sociedade a fls. 85 que identifica o arguido como sendo o contabilista da sociedade, elementos que, no seu conjunto, não deixam margem para dúvidas de que era o arguido quem exercia o cargo de gerência da sociedade melhor identificada nos autos.
Além de ter sido o único gerente e, por isso, a única pessoa com poderes para obrigar a sociedade, só o arguido estava autorizado a movimentar as contas bancárias da titularidade da sociedade, de resto sem qualquer restrição ou controlo, como resulta das respetivas fichas de assinatura, liberdade de movimentação apenas condizente com uma posição de domínio e controlo absoluto dos desígnios da sociedade, tanto mais evidente se considerarmos que o arguido exercia o cargo de gerente em regime remunerado, cargo que cumulava com as funções de contabilista da sociedade, o que lhe conferia uma posição de total e efetivo controlo ao nível do cumprimento das obrigações declarativas e fiscais por parte da sociedade que geria.
O facto provado em 4) resultou da valoração das declarações modelo 40 a fls. 71 a 72 e 108 a 115, em conjugação com as fichas de assinatura já mencionadas, os dados de identificação bancária a fls. 263, o contrato de adesão com identificação da conta bancária associada à ... a fls. 250 e os extratos bancários a fls. 30 a 40v (...), a fls. 143 a 199 (...), a fls. 266 a 428 (…) e a comunicação do ... a fls. 245 e 246.
O facto provado em 5) é consequência direta dos factos que resultaram provados em 2) e 3) e sai reforçado pela acumulação dos cargos de gerente (único) e contabilista da sociedade identificada nos autos, para além de resultar do regime legal aplicável em matéria de IVA.
Os factos provados em 6) a 9) resultaram da conjugação do depoimento das testemunhas CC e BB que, de forma objetiva, clara, escorreita e coerente, explicaram que os presentes autos tiveram início com uma ação inspetiva causada por uma divergência entre os valores declarados na Informação Empresarial Simplificada (IES) da sociedade contribuinte e os modelos 40 que são emitidos pelas instituições bancárias, ambos confirmando, de forma isenta e imparcial, que a sociedade contribuinte não entregou as declarações periódicas relativas aos 2.º e 3.º trimestre do ano de 2015, mais confirmando que o último dia para o efeito coincidia com o dia 15 do 2.º mês seguinte àquele a que as operações dizem respeito e que sempre resultaria do regime legal aplicável.
Sobre os valores concretamente em falta, a testemunha CC explicou que a sociedade contribuinte declarou rendimentos em sede de IRC de €362.986,98, mas que a base tributável declarada em sede de IVA apenas ascendia aos €161.780,95, pelo que à diferença de €201.206,03 aplicou uma taxa de IVA de 23%, assim apurando o valor de IVA em falta que dividiu equitativamente pelos dois trimestres, chegando então ao valor trimestral de €23.138,69, declarações que não só encontram respaldo nos documentos juntos a fls. 51 a 85 (o relatório de inspeção tributária) e a fls. 429 a 441 (prints do sistema informático), como também foram corroboradas pela testemunha BB que, reconhecendo a autoria material do parecer de fls. 442 a 449, explicou que foi precisamente pelo facto da sua colega ter procedido àquela divisão equitativa que teve necessidade de pedir os extratos bancários do sujeito passivo para efeitos de instauração de procedimento criminal – cfr. fls. 28 a 41, 135 a 199, 201 a 244, 248 a 399, 401 a 428 – para poder aferir da realidade da vantagem patrimonial que a sociedade obteve nos dois períodos de imposto em falta, uma vez que os modelos 40 só fazem referência aos totais anuais dos fluxos (cfr. fls. 71 a 72), asseverando, ainda, que os valores indicados no libelo acusatório coincidem com os valores constantes daqueles extratos (i.e. €9.205,03 + €14.988,25) e que, de acordo com a mesma testemunha, permanecem por pagar nesta data, razão de ciência que justificou com a consulta ao sistema informático no próprio dia da audiência, não havendo a mínima razão para duvidar da seriedade ou sinceridade das suas declarações.
A testemunha CC soube, ainda, explicar e justificar, de forma perentória e segura, por que razão não considerou no cálculo que conduziu ao resultado por si apurado quaisquer custos incorridos pela sociedade por conta das transações efetuadas com os seus clientes, precisando que não havia forma de considerar tais valores, pois que não conseguiu ter acesso a quaisquer elementos de escrita da sociedade, apesar de todas as diligências encetadas nesse sentido que, inclusive, elencou: notificaram a sociedade, o arguido e o administrador de insolvência para apresentarem a escrita da sociedade, notificaram a sociedade, o arguido e o administrador de insolvência para efeitos de audição prévia e tentaram diversas vezes chegar à fala com o arguido. Contudo, as missivas dirigidas à sociedade e ao arguido vinham sempre devolvidas, o próprio administrador de insolvência respondeu a dizer que não possuía qualquer elemento de escrita, para além do que nenhum deles exerceu o direito de audição e todas as tentativas de contacto com o arguido (que também era o contabilista da sociedade) por email e telefone resultaram frustradas, declarações que, por corroboradas pelos documentos a fls. 62v a 68 (notificações para exibição de escrita e 2.ªs vias), a fls. 68v a 70 (emails enviados pela testemunha), a fls. 73 a 79 (projeto de relatório da inspeção tributária para exercer direito de audição e notificações respetivas), a fls. 118 (que confirma o endereço de email utilizado do arguido), a fls. 434, 437 e 438 (declaração assinada pela testemunha BB a confirmar que os números de telemóveis conhecidos não estão atribuídos e que não logrou localizar o arguido após deslocação à morada do mesmo), mereceram a inteira credibilidade do Tribunal, sendo certo que os valores em discussão nestes autos não são os que resultaram da liquidação oficiosa realizada pela testemunha CC, mas apenas os que resultaram da soma dos movimentos a crédito refletidos nos extratos bancários que serviram de suporte à elaboração do parecer de fls. 442 a 449 por parte da testemunha BB.
Que o arguido atuou de forma livre, voluntária, consciente e bem sabendo do caráter proibido da sua conduta, como descrito em 10) a 12) e 14), são elementos que considerámos assentes por via de presunção judicial, apoiada na factualidade objetiva que demos por assente e nas regras da experiência comum, reforçada pelo facto de ser o arguido o contabilista da sociedade.
De facto, é do conhecimento elementar de qualquer contabilista (e o arguido não é exceção) que o IVA cobrado ao consumidor final não pertence à empresa que lhe vendeu os bens ou prestou serviços (mas ao Estado), que qualquer sujeito passivo enquadrado no regime normal com periodicidade trimestral está obrigado a enviar as declarações periódicas referentes às transações realizadas no período correspondente dentro dos prazos legais e, como aliás não podia deixar de ser, a entregar ao Estado o IVA que cobrou por conta das transações efetuadas com os seus clientes, o que a não acontecer acarretará necessariamente um efetivo prejuízo à receita tributária.
O facto provado em 13) é consequência lógica da não entrega das declarações identificas em 6), 7) e 8), para além de ser suportado pelos documentos a fls. 1 (a missiva dirigida pela Autoridade Tributária aos Serviços do Ministério Público a comunicar a abertura de processo de inquérito), a fls. 47 a 50 (o auto de notícia).
Relativamente ao facto em 16), tomou-se em consideração a informação veiculada pelo próprio arguido para justificar e consentir a realização do julgamento na sua ausência, em conjugação com o TIR prestado pelo arguido a fls. 558.
Quanto aos antecedentes criminais, valorou o Tribunal o certificado de registo criminal junto aos autos, assim como as certidões do teor das sentenças proferidas no âmbito dos processos n.º 224/15.6IDSTB e n.º 224/15.6IDSTB que se encontram juntas aos autos.
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IV – DA MOTIVAÇÃO DE DIREITO
O arguido AA encontra-se acusado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma continuada, p. e p. pelo artigo 105.º, em conjugação com os artigos 6.º e 7.º, n.º 3, todos do RGIT.
De acordo com o n.º 1 do artigo 2.º do RGIT, constitui infração tributária (crimes e contraordenações fiscais), todo o facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei tributária anterior.
Como a infração tributária em discussão nos presentes autos tem por objeto o dever fiscal de entrega de IVA, cumpre começar por referir que o mesmo se caracteriza por ser um imposto geral sobre o consumo que se repercute no consumidor final sempre que adquire um bem ou beneficia de um serviço prestado por outrem.
A sua liquidação estende-se a todas as fases do circuito económico, desde a produção até ao consumidor final, o que faz do IVA um imposto plurifásico, mas sem efeitos cumulativos, uma vez que apenas incide sobre o valor acrescentado gerado em cada uma das fases do circuito.
Significa isto que é sobre o consumidor que recai o ónus do seu pagamento, mas é o prestador de bens e serviços que é o sujeito passivo de IVA (cfr. arts. 1.º e 2.º do CIVA).
O sujeito passivo fica, assim, investido na qualidade de depositário da prestação tributária, apenas colocada temporariamente na sua detenção para depois a entregar à administração tributária.
Daí a obrigação legal que impende sobre todo sujeito passivo de emitir a correspondente fatura por cada transmissão de bens ou prestação de serviços e de adicionar ao valor da mesma a importância do imposto liquidado aos clientes das vendas efetuadas ou dos serviços prestados que depois deverá entregar à administração fiscal (cfr. arts. 29.º, n.º 1, al. b), 36.º e 37.º do CIVA).
Para tanto, o sujeito passivo está obrigado a enviar periodicamente (mensal ou trimestralmente) uma declaração descritiva das operações comerciais realizadas no referido período, com a indicação do imposto devido, do crédito existente e dos elementos que serviram de base ao cálculo respetivo, acompanhada do pagamento do imposto apurado.
O termo do prazo para o envio dessa declaração periódica e para a entrega do imposto exigível ocorre no 2.º mês seguinte àquele a que respeitam as operações, podendo coincidir com o dia 10 ou 15, consoante o volume de negócios do sujeito passivo seja superior ou inferior a €650.000,00, respetivamente (cfr. arts. 27.º e 41.º, na redação vigente à data da prática dos factos).
Isto dito, preceitua o artigo 105.º, n.º 1, do RGIT que comete o crime de abuso de confiança fiscal o agente que “não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7.500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entrega”.
Acrescenta o seu n.º 2 que deve considerar-se incluída na noção de prestação tributária “a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”.
Esclarecendo o n.º 7 do mesmo artigo que os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
Porque é o Estado o sujeito ativo da prestação tributária, o bem jurídico tutelado pela incriminação do abuso de confiança fiscal é o arrecadamento das receitas fiscais do Estado, tendo em vista a prossecução de fins públicos de natureza financeira, económica ou social e a repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
No plano objetivo, a consumação do ilícito basta-se com a não entrega, total ou parcial, da prestação tributária que o sujeito passivo já recebeu dos seus clientes, mas que não entregou ao credor tributário no prazo legalmente fixado para o efeito, haja ou não entrega da declaração tributária.
A apropriação da prestação tributária, enquanto ingresso da respetiva quantia no património pessoal do agente, deixou de ser elemento constitutivo do tipo.
Necessário é, porém, que resulte demonstrado o efetivo recebimento da correspondente quantia pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado, na esteira do que foi decidido pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 8/2015 que, chamado a pronunciar-se sobre a questão, concluiu do seguinte modo: “A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a EUR 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 nº 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efetivamente, recebido”.
Estamos, por isso, perante um crime omissivo puro, cuja consumação ocorre no momento em que o agente não entrega a prestação tributária no termo do prazo legalmente fixado (cfr. art.º 5.º, n.º 2, do RGIT).
Do ponto de vista subjetivo, exige-se um dolo genérico em qualquer uma das suas modalidades, traduzido num querer não entregar a prestação tributária devida, sabendo que há a obrigação legal de a entregar (cfr. arts. 13.º e 14.º do Cód. Penal).
O artigo 6.º do RGIT consagra a responsabilidade daqueles que atuam em nome de outrem, estabelecendo o respetivo n.º 1 que quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa coletiva, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado e que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante atue no interesse do representado.
A responsabilidade do sujeito passivo pela entrega da prestação tributária estende-se aos membros ou representantes dos órgãos dirigentes das pessoas coletivas infratoras, que para o efeito tenham agido voluntariamente e cuja conduta tenha conduzido à correspondente tipificação do tipo legal aí contemplado.
As condições objetivas de punibilidade são as que vêm previstas n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, designadamente terem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e que o devedor, depois de notificado para o efeito e no prazo de 30 dias a contar dessa notificação, não proceda ao pagamento dos valores comunicados à administração tributária, acrescidos dos juros e coima aplicável.
Aqui chegados, da matéria de facto dada como provada resulta que a sociedade identificada em 1) estava enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral, em consequência do que estava obrigada a proceder ao envio trimestral da declaração periódica de IVA até ao 15.º dia do 2.º mês seguinte àquele a que disserem respeito as operações, assim como a proceder à entrega do IVA liquidado e devido por tais operações (cfr. pontos 1) e 2) dos factos provados).
Provado ficou também que a sociedade não procedeu ao envio das declarações periódicas referentes aos 2.º e 3.º trimestre, assim como não pagou o imposto exigível por conta das vendas efetuadas e dos serviços que prestou durante esse período, no prazo legalmente fixado para tal, valor esse que já havia recebido dos seus clientes e cujo montante trimestral é superior a €7.500,00 e inferior a €50.000,00 (cfr. pontos 6), 7) e 8) dos factos provados).
Provou-se, de igual modo, que a gerência da sociedade ..., era exercida unicamente pelo arguido AA, que a representava legalmente e a quem competia o poder de decisão no que dizia respeito à sociedade em causa, incluindo em matéria de cumprimento das suas obrigações fiscais (cfr. pontos 3) e 5) dos factos provados).
Ficou também assente que o arguido, enquanto legal representante e gerente da sociedade arguida, sabia que estava obrigado a apresentar a declaração periódica para efeitos de IVA, assim como a proceder à entrega do imposto recebido pela sociedade que geria e que, não obstante isso, decidiu, de forma, livre e consciente, abster-se de proceder à sua entrega, pelo que, representadas todas as circunstâncias do facto, a conduta do arguido enquadra-se, no plano volitivo, na figura do dolo direto (cfr. pontos 10), 11), 12) e 14) dos factos provados).
Agiu, ainda, com culpa, na medida em que tendo plena capacidade para avaliar a ilicitude do facto e de se determinar de acordo com essa avaliação, não o fez.
Como o arguido, nos termos que melhor acima se explicitaram, agiu sempre voluntariamente como gerente (de facto) da sociedade melhor identificada nos autos e com plena consciência das obrigações tributárias da sociedade que representava, assim como das suas enquanto seu representante legal e respetivas consequências para o erário público.
E que, nessa qualidade e com tal conhecimento e consciência, não entregou as declarações periódicas referentes aos 2.º e 3.º trimestres, nem o imposto devido à administração tributária, com referência aos valores apurados em 6) a 8), factos relativamente aos quais tinha pleno domínio de facto, forçoso é concluir que não entrega do tributo é objetiva e subjetivamente imputável ao arguido.
Pelo que verificados estão os pressupostos da sua responsabilidade pela prática do ilícito.
No que se refere às condições objetivas de punibilidade, resultou ainda provado que o arguido não entregou, na qualidade de gerente do sujeito passivo, as prestações tributárias devidas nos respetivos prazos legais, não tendo, no caso, aplicação o disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º RGIT, por virtude dos valores exigíveis não terem na sua base uma comunicação do sujeito passivo, mas um ato de liquidação oficiosa de IVA (cfr. pontos 9) e 13) dos factos provados).
Apesar da Defesa se ter debatido, ao longo da produção da prova e em sede de alegações orais, pela impugnação dos valores oficiosamente liquidados pela administração tributária, assinalando que nenhuma das operações de liquidação tomou em linha de conta o imposto incidente sobre as suas operações tributárias, a verdade é que a letra da lei não deixa margem para dúvidas sobre as deduções a considerar.
Ninguém coloca em causa que aos sujeitos passivos de IVA é permitido deduzir, ao imposto incidente sobre as suas operações tributáveis, o imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos de IVA (cfr. 19.º, n.º 1, do CIVA).
Contudo, o n.º 2 do artigo 19.º do CIVA é inequívoco ao determinar que só confere o direito à dedução o imposto mencionado, no que aqui importa, em faturas passadas na forma legal, contanto que passadas em nome e se encontrem na posse do sujeito passivo.
Aqui se incluindo as faturas que contenham os elementos previstos nos artigos 36.º ou 40.º, consoante os casos (cfr. art.º 19.º, n.º 6, do CIVA).
Exigência que, para além de compreensível, é facilmente explicável pelo facto de apenas ser concedido ao sujeito passivo o direito de descontar ao imposto que liquidou e cobrou pelas transações realizadas com os seus clientes (ex post) o imposto que incidiu sobre bens ou serviços necessários à realização daquelas transações (ex ante), comprovação apenas casuisticamente possível e que não dispensa os documentos de suporte legalmente exigidos.
Perpassando a factualidade provada, não se extrai a existência de quaisquer faturas passíveis de legitimar semelhantes operações de dedução, a significar que a única hipótese legalmente válida é considerar como exatos os valores que resultaram provados em 6) a 8).
Inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa e verificadas as necessárias condições objetivas de punibilidade, impõe-se, por isso, decidir pela condenação do arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal.
*
Do crime continuado
Considerando a natureza periódica das prestações devidas à administração tributária, coloca-se a questão de saber se existe um único crime, tantos crimes quantas as violações das obrigações de pagamento, ou ainda um crime continuado.
A solução há-de ser encontrada por referência ao artigo 30.º do Cód. Penal, nos termos do qual:
"1 — O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente;
2 — Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente".
No que releva para o caso, há concurso de crimes sempre que a conduta do agente viole várias vezes o mesmo tipo de crime, a menos que a culpa do agente se mostre consideravelmente diminuída mercê de um condicionalismo exterior ao agente que lhe facilite a repetição da atividade criminosa, caso em que a realização plúrima do mesmo tipo de crime constituirá um só crime continuado, com importantes consequências ao nível da punição, seja ao nível da moldura penal aplicável, seja ao nível do conhecimento superveniente de um novo facto que integre a continuação criminosa posteriormente ao trânsito em julgado de uma anterior condenação (cfr. art.º 79.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Penal).
São pressupostos do crime continuado: a realização plúrima do mesmo tipo legal de crime (ou de vários tipos que protejam essencialmente o mesmo bem jurídico); a pluralidade de resoluções criminosas; a homogeneidade da forma de execução; a proximidade temporal das respetivas condutas; a unidade do dolo, no sentido de que as diversas resoluções criminosas devem conservar-se dentro de uma linha psicológica continuada; a persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Pese embora a relevância conferida ao dolo do agente, já EDUARDO CORREIA entendia que essencial à "continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com a norma" .
No mesmo sentido vai o entendimento de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS , para quem a figura do crime continuado se afigura compatível tanto com “a hipótese de à série de comportamentos presidir um dolo conjunto ou um dolo continuado, como de se estar perante uma pluralidade de resoluções”, sendo certo que se tiver havido um só desígnio criminoso, o crime há-de ser necessariamente único.
São várias as situações exteriores que, diminuindo consideravelmente a culpa do agente, poderão estar na base de uma continuação criminosa: ter-se criado, através da primeira atividade criminosa, um certo acordo entre os sujeitos; voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa; perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa; a circunstância de o agente, depois de executar a resolução criminosa, verificar haver possibilidade de alargar o âmbito da sua atividade.
Isto dito, verificamos a obrigação de entrega do imposto devido à administração tributária foi violado por duas vezes consecutivas no mesmo ano.
A factualidade assente não se afigura de molde a sustentar a existência de uma unidade desígnio por banda do arguido, desde logo porque houve meses em que o arguido e a sociedade por ele representada cumpriram com a obrigação legal de entrega em discussão nos autos, o que sempre significaria a rutura de um desígnio criminal inicial.
Todavia, os factos dados como provados em 6), 7) e 12) evidenciam que a decisão de entregar ou não tais quantias à administração tributária, teve como pano de fundo a oportunidade criada pela inércia e dilação da fiscalização das entidades competentes, que o arguido aproveitou e que foi determinante para a tomada de tantas decisões quantas as violações das obrigações de pagamento.
Provado que a situação dos autos ocorreu num contexto de facilitismo decorrente de circunstâncias exteriores favoráveis ao cometimento dos ilícitos criminais em apreciação nestes autos, que ambas as resoluções criminosas foram tomadas no mesmo quadro fáctico, numa relação de proximidade temporal e numa linha psicológica continuada tendo por base a persistência de uma situação exterior que facilitou o seu cometimento e que enforma a unidade do dolo – in casu, a ausência de um controle e fiscalização imediatos –, verificada está a existência de um fator exógeno suscetível de diminuir a sua culpa, em termos de integrar a continuação criminosa.
Neste contexto, estão reunidos todos os pressupostos do artigo 30.º, n.º 2, do Cód. Penal e, assim, devem o arguido ser punido de acordo com o disposto no artigo 79.º do mesmo diploma, ou seja, pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada.
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V – DAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CRIME
Feito o enquadramento jurídico-criminal da conduta do arguido, importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar.
O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação (cfr. art.º 79.º, n.º 1, do Cód. Penal).
A moldura penal abstratamente aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal varia consoante o valor da prestação em falta.
No caso, o valor das prestações em falta, individualmente consideradas ou somadas, fica bastante aquém da fasquia dos € 50.000,00, pelo que ao crime praticado corresponde em abstrato uma pena de prisão até 3 anos ou uma pena de multa até 360 dias (cfr. artigo 105.º, n.ºs 1 e 5, do RGIT).
*
As finalidades da punição são apenas duas: a proteção de bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na sociedade, nunca finalidades retributivas e de expiação da culpa (cfr. art.º 40.º, n.º 1, do Cód. Penal).
Na perspetiva da prevenção geral, visa reforçar-se a confiança da consciência comunitária na validade e manutenção da vigência da norma violada e demover-se a generalidade dos cidadãos da prática de crimes, assim se reafirmando a relevância dos valores e bens jurídicos violados pela conduta do agente e contribuindo para o restabelecimento da paz jurídica. Já ao nível da prevenção especial, a pena funciona como instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que, no futuro, ele volte a delinquir.
As exigências de prevenção geral fornecerão assim os limites ótimo e mínimo de proteção dos bens jurídicos violados, sendo neste intervalo que deverá encontrar-se a medida da pena em cada caso requerida em função das concretas finalidades de prevenção especial, "em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais".
Independentemente, porém, de quaisquer considerações de natureza preventiva, a culpa constituirá sempre pressuposto e o limite inultrapassável da pena concreta a aplicar, em consonância com o que deflui da consagração constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade (cfr. art.º 40.º, n.º 2, do Cód. Penal).
Prevenção e culpa constituem, pois, o binómio que o julgador terá de utilizar na determinação da medida da pena (cfr. art.º 71.º, n.º 1, do Cód. Penal).
*
(i) Da escolha do tipo da pena
Prevendo a lei, simultaneamente, a possibilidade de aplicação de uma pena de prisão ou de pena de multa, a primeira operação a realizar passa por determinar se ao caso se vai aplicar uma pena privativa da liberdade ou uma pena de multa, devendo o tribunal dar preferência a esta última sempre que a mesma realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. 70.º do Cód. Penal).
São, por isso, finalidades de prevenção geral e especial que justificam a prioridade na aplicação de uma pena não privativa da liberdade.
In casu, são significativas as exigências de prevenção geral atenta a frequência com que nos deparamos com este tipo de ilícitos, o sentimento de impunidade com que a comunidade os perspetiva e a manifesta danosidade que representam para a sociedade e para os demais operadores económicos, em termos de igualdade e de proporcionalidade contributivas.
As exigências de prevenção especial afiguram-se medianas, considerando que o arguido não confessou os factos, autorizando, de resto, a realização do julgamento na sua ausência, e que regista já três condenações anteriores pela prática do mesmo ilícito, todavia apenas a primeira tinha transitado em julgado à data dos factos.
Cremos, por isso, que a aplicação de uma pena de multa ainda acautela suficientemente as necessidades de prevenção geral e especial, optando-se assim pela aplicação de pena não privativa da liberdade.
*
(ii) Da medida concreta da pena
Escolhida a pena é agora necessário determinar a sua exata medida, nos termos do n.º 1 e n.º 2 do artigo 47.º do Cód. Penal, primeiro fixando os dias de multa à luz dos critérios previstos no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, depois fixando o seu quantitativo diário.
Condição necessária é que a pena de multa represente "uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada" e jamais uma forma disfarçada de absolvição ou uma dispensa ou isenção de pena que se não tem a coragem de proferir (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2009, pág. 119).
*
Na determinação da medida concreta da pena há que ter em conta, desde logo, a moldura penal abstrata que, no caso, vai de 10 até 360 dias de multa.
Importando ponderar, no caso concreto, nomeadamente:
- as elevadas exigências de prevenção geral que cumpre acautelar face à frequência com que este tipo de crime é praticado e a necessidade de salvaguardar e reforçar o respeito e a confiança da comunidade em geral pelo cumprimento das prestações tributárias;
- a intensidade do dolo que é de qualificar como elevado dado que o arguido agiu com dolo direto;
- o grau de ilicitude do facto a considerar como médio, atendendo a que o arguido não entregou por duas vezes a prestação devida e o montante global envolvido;
- a gravidade das consequências do facto de nível médio em face do valor do prejuízo que resultou para os cofres do Estado;
- a conduta posterior aos factos que reputamos como muito grave em face do não pagamento das contribuições devidas até à presente data, o abandono do território nacional pelo arguido, a evidenciar um certo desprezo pelas consequências nefastas que resultaram da sua conduta para o erário público, a existência de antecedentes criminais pela prática do mesmo tipo de crime e a ausência de evidência de qualquer comportamento concreto e objetivo de arrependimento do arguido donde pudesse resultar que o mesmo interiorizou o desvalor da sua conduta ou da vontade do arguido em querer pautar, de futuro, a sua vida pelo cumprimento do Direito.
Tudo ponderado, afigura-se-nos justo e equilibrado condenar o arguido na pena de 300 dias de multa pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma continuada.
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Cabe agora precisar o quantitativo diário da multa, a fixar, necessariamente, entre €5,00 e €500,00, em função das condições económicas e financeiras do arguido e respetivos encargos (cfr. arts. 42.º, n.º 2, e 47.º, n.º 2, ambos do Cód. Penal e art.º 15.º do RGIT).
Por se desconhecer a concreta situação económico-financeira do arguido, de resto apenas imputável ao próprio, temos por adequada a fixação do montante diário da multa em €6,00, atendendo à atividade profissional exercida pelo arguido.
Assim sendo, vai o arguido condenado na pena de 300 dias de multa à taxa diária de €6,00, perfazendo o montante global de €1.800,00.
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Das Custas Processuais
Em caso de condenação, o arguido responde, ainda, pelo pagamento de taxa de justiça e dos encargos ocorridos (cfr. artigos 513.º e 514.º do Cód. de Processo Penal).
O valor da taxa de justiça é fixado, não havendo lugar a contestação ou oposição, entre 2 a 6 UC, consoante a complexidade da causa (vd. Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais, aplicável ex vi do artigo 8.º, n.º 9, do mesmo diploma legal).
Dada a simplicidade da causa e que o arguido não apresentou contestação, fixa-se a a de justiça em 2 UC’s.”
3. Analisando
Nos termos do preceituado no artigo 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito.
O presente recurso versa apenas sobre questão de direito - a invocada prescrição do procedimento criminal.
Alega o recorrente que se completou o prazo normal de prescrição (cinco anos) sem que tivesse ocorrido qualquer facto com eficácia interruptiva ou suspensiva, mostrando-se prescrito o procedimento criminal desde 16.11.2020 ou, quando muito, desde 14.12.2020.
Assim, impõe-se analisar e decidir quanto:
A- Ao prazo de prescrição aplicável.
B- Ao momento em que se iniciou da contagem do prazo de prescrição.
C- À verificação de causas de suspensão e/ou interrupção da prescrição previstas nos artigos 120º e 121º do CP, e à aplicação, ou não, da causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal prevista na Lei nº 1-A/2020, de 19.3, e na Lei nº 4-B/2021, de 1.2.
Vejamos:
Foi deduzida acusação imputando ao arguido a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma continuada, p. e p. pelos artigos 105º, nºs 2 e 4, al. a), 6º e 7º, nº3, do RGIT, por referência aos artigos 26º, nº4, 27º, nº1, 29º, 36º, 37º, 41º e 114, nº2, do CIVA.
Dispõe o artigo 105º do CP, com a epígrafe Abuso de confiança, que:
“1- Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7.500, deduzida nos termos da lei e quando estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2- Para efeitos do número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3- É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4- Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal para a entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 3 dias após a notificação para o efeito.
5- Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a €50.000, a pena é a de prisão de um ano a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6- Revogado.
7- Para os efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”
E, dispõe o artigo 21º do RGIT, com a epígrafe Prescrição, interrupção e suspensão do procedimento criminal, que:
“1- O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos.
2- O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo de prisão for igual ou superior a cinco anos.
3- O prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infração depender daquela liquidação.
4- O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, os termos previstos no nº2 do artigo 42º e no artigo 47º.”
A)
Estando, in casu, em causa a não entrega de valores relativos a IVA, apurados e recebidos pelo sujeito passivo, não dependendo de qualquer liquidação, não superiores a €50.000, sendo assim inaplicável o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 21º do RGIT, o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, decorridos que sejam cinco anos, nos termos do nº 1 do referido preceito legal.
B)
Dispõe o artigo 119º, nº 1, do C.Penal, aplicável por remissão do artigo 21º, nº4, do RGIT, que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em o facto e tiver consumado (nº 1) mas que no crimes continuados o prazo de prescrição só corre desde o dia da prática do último acto (nº 2, al. b).
E, preceitua o artigo 5º, nº 1, do RGIT que:
”1 As infrações tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no nº3.
2- As infrações tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários. (…)”
A jurisprudência encontrava-se dividida quanto à inclusão, ou não, do momento de verificação das condições objectivas de punibilidade para o início da contagem do prazo de prescrição.
No sentido de que o prazo de prescrição do procedimento criminal se iniciava após o decurso do prazo de 90 dias que acresce ao prazo de cumprimento da prestação tributária vide, entre outros: Ac TRC de 26.2.2014, Proc 64/06.3IDVIS.C1; Ac TRP de 10.12.2014, Proc 1093/03.4TAMAI-A.P1 e Ac TRE de 5.11.2013, Proc 398/09.5TALGS.E1.
No sentido de que o disposto nº artigo105º, nº4, al. a) e/ou b), constituindo condições objectivas de punibilidade, em nada interferia no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal que, nos crimes de abuso de confiança, se iniciava na data em que o crime se consumou, vide, entre outros: Ac TRC de 17.12.2014, Proc. 225/12.6TAACN.C1 e Ac TRE de 16.4.2013, Proc. 538/11.4TABJA.E1 (estes mencionados no recurso) e Ac TRC de 3.5.2012, Proc nº 4/02.9IDMGR.C1:
Em face das mencionadas divergências, o STJ proferiu o Acórdão de Uniformização nº 2/2015, de 19.2, fixou a seguinte jurisprudência:

(…) o crime de abuso de confiança fiscal (em sentido estrito ou contra a Segurança Social), como crime de omissão pura ou própria que é, considera-se praticado, de acordo com o disposto no segundo segmento do artigo 3º do Código Penal, no momento em que o agente deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido, o que quer dizer, no caso em apreciação, com a não entrega pelo agente, no prazo estabelecido, da prestação contributiva deduzida.
III. Decisão
Pelo exposto, acorda-se no pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça em, na procedência do presente recurso extraordinário, revogar o acórdão recorrido e fixar jurisprudência nos seguintes termos:
«No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, número 1, e 105º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5º, número 2, do mesmo diploma».
Em consequência, ordena-se que, oportunamente, o processo seja remetido ao Tribunal da Relação de Évora para que se profira nova decisão em conformidade com a jurisprudência fixada - artigo 445º do Código de Processo Penal.
Não é devida taxa de justiça (artigo 513º do Código de Processo Penal).
Cumpra-se, oportunamente, o disposto no artigo 444º, número 1, do Código de Processo Penal.”
Entendeu-se na decisão recorrida, sem, nos termos do preceituado no nº3 do artigo 445º do CPP, se fundamentar a divergência relativamente à jurisprudência fixada, que, terminando o prazo para a entrega no dia 10.11.2015, o prazo de prescrição só se iniciou 90 dias depois, ou seja, em 8.2.2016, quando se verificou a condição objectiva de punibilidade a que alude artigo 105º, nº4, do RGIT.
E, defende o recorrente que o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas.
E, não diverge este Tribunal da decisão e dos argumentos plasmados no Ac de Fixação de jurisprudência supra referido:
“ (..) independentemente da verificação da condição objectiva de punibilidade prevista na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, a consumação do crime (para a qual a mesma não tem qualquer interferência, já que nada acrescenta à respectiva definição) dá-se quando, com absoluta independência da ocorrência ou não do aludido elemento condicionante, o agente preenche, com a sua conduta omissiva e contrária à lei, os elementos do respectivo tipo legal. Momento a partir do qual, verificando-se o fim da realização ilícita, típica e culposa, se inicia a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal.
De onde que, tendo o agente, com aquela sua concreta conduta ilícita, típica e culposa, percorrido todas as etapas tendentes à realização do delito, não haja que falar em desistência da tentativa de um crime que, afinal, já se tendo perfectibilizado, enfim consumado, só não será punido se, no referenciado prazo de 90 dias, o mesmo proceder à entrega das prestações contributivas deduzidas.
Para além de, como bem anota o Ministério Público neste Tribunal, citando Manuel José Miranda Pedro (39), a desistência da tentativa ser de duvidosa verificação, pelo menos no que concerne a determinados crimes omissivos puros, como sucede com o aqui em apreciação.
De outro modo - e pese embora a natureza algo excrescente que, para o caso, aporta o argumento que, avançado pelo Ministério Público, se prende com a falta de explicação para, quem defenda que a consumação material do crime só se verifica com o decurso do aludido prazo de 90 dias, não considerar que tal consumação material há-de então ser dilatada para a ocasião em que ocorrer a condição que, adicional aqueloutra, se encontra prevista na alínea b) do mesmo normativo -, também se entende que, para lá da aparente contradição que um tal raciocínio encerra (face à conduta, apesar de tudo mais diligente, do agente que, conquanto não haja procedido à entrega das prestações deduzidas, ainda assim apresentou as correspondentes declarações), o mesmo dispõe, ao menos, da virtualidade de acentuar o demérito da posição que, contrária à defendida no acórdão fundamento, colhe o apoio do acórdão recorrido.
E isto na medida em que, a ser assim, para além de, como já referido, permitir prorrogar, injustificadamente, o prazo de prescrição do procedimento criminal, deixar, de facto, ao critério da Administração Fiscal ou às instituições da Segurança Social decidir quanto ao momento julgado mais indicado para proceder à notificação prevista na citada alínea b) do número 4 do artigo 105º do RGIT e, como assim, dilatar ainda mais a data a atender para efeitos de determinação do momento da consumação (material) do crime e, na decorrência disso, do início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Acresce, ainda, que o prazo adicional, previsto na alínea a) [e bem assim na alínea b)] do número 4 do artigo 105.º do RGIT, ditado por razões de política criminal, tem por justificação, não apenas proporcionar mais uma oportunidade ao contribuinte para cumprir a sua obrigação, mas também, e sobretudo, a necessidade de menorizar os prejuízos advindos para o Estado-Administração, em consequência, por um lado, da sua dificuldade em criar e desenvolver os mecanismos adequados a permitir-lhe, em tempo, arrecadar as receitas, e, por outro lado, os custos, em termos monetários e de morosidade, que haja de suportar para obter a cobrança coerciva das mencionadas prestações.
E se assim é, nada justifica que, sob o pretexto de lhe ser concedido um prazo adicional para solver a sua obrigação, tenha o contribuinte de suportar um alargamento do prazo que a lei, quando concebeu o respectivo tipo legal, considerou suficiente para o Estado exercer o jus puniendi.
Do mesmo passo que não resulta igualmente aceitável que quem entende (como acontece com Isabel Marques da Silva (40), e com certo sector da jurisprudência das Relações) que a exigência prevista na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT configura uma condição objectiva de punibilidade, considere ainda assim que ela possa funcionar como uma causa de suspensão do procedimento criminal.
E isto porque, encontrando-se, por força do princípio da legalidade, as causas de suspensão da prescrição previstas expressamente no Código Penal (artigo 120º), no âmbito de qualquer uma delas [mais exactamente e com relevância para o caso, na alínea a) do número 1 da mesma disposição legal] não é susceptível de enquadrar-se a referida alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT.
Para além de que uma tal construção jurídica, não parecendo ajustar-se às faladas razões de política criminal que estiveram na génese do dito normativo [como visto, mais de índole pedagógica e economicista do que de cariz sancionatório acrescido (em que, na prática, se traduziria a prorrogação do prazo de prescrição do procedimento, por via do diferimento do mesmo prazo para o termo dos referidos 90 dias)], também não se afeiçoaria à letra do preceito da alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT.
Elemento literal de interpretação a que, na falta de outros que levem a aceitar um sentido menos directo e imediato do que aquele que decorre do texto legal, o intérprete deve, como diz João Baptista Machado (41), atender, preferindo o sentido que mais e melhor corresponda ao significado normal das expressões verbais nele utilizadas, designadamente sob o ponto de vista técnico-jurídico, partindo do pressuposto que o legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento.
Ponderando, então, todo o aduzido, entende-se que o momento a considerar, para efeitos de consumação do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 107º, número 1, e 105º, números 1 e 5, do RGIT e, na decorrência disso, do início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, é, nos termos do artigo 5º, número 2 do mesmo diploma, o dia seguinte ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega da prestação contributiva deduzida, pelo empregador, no valor das remunerações dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais.
Ocasião em que, com a conduta omissiva em causa, o empregador incorre em responsabilidade pela prática da infracção que o legislador quis que configurasse o crime de abuso de confiança, e não a contra-ordenação que, prevista no artigo 119º do RGIT, assume, relativamente aqueloutra, que é a predominante, natureza residual, de sorte que a conduta ilícita, que começa por integrar o crime de abuso de confiança e como tal deverá ser sancionada, só deixa de sê-lo se e quando se verificar a condição objectiva de punibilidade da alínea a) do número 4 do artigo 105º do mesmo RGIT.
O que significa que a problemática respeitante à contra-ordenação só se colocará num momento ulterior, mais exactamente quando, ainda que para lá do prazo estabelecido para a comunicação e entrega da prestação contributiva deduzida, o empregador cumpre aquela obrigação.
De onde que, consumando-se com a conduta omissiva do agente o crime de abuso de confiança, este existe a partir de então, e não apenas depois de ter decorrido o prazo a que se refere a mencionada alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, que, por razões de política criminal, a lei concede para, ainda que que para além do prazo estabelecido para o efeito, cumprir a obrigação que deixou de realizar na oportunidade devida.
E se é assim, não há, pois, razão para dizer que, com a previsão do tipo legal em causa, o legislador quis tão-só antecipar a criminalização da conduta do agente que, no prazo legalmente estabelecido para o efeito, não tenha procedido à comunicação e entrega da prestação contributiva deduzida nas remunerações dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais.
Como pela mesma ou semelhante ordem de motivos, não existe fundamento para, subsidiariamente [artigo 3º, alínea a) do RGIT], convocar a norma do número 4 do artigo 119º do Código Penal, com a qual se teve em vista os crimes formais em que a produção de certo resultado releva ainda para a punibilidade do facto, mas não ao nível da verificação do crime.(…)”
Assim, entende-se que o decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal se iniciou em 16.11.2015, completando-se em 16.11.2020 na ausência de qualquer causa de interrupção ou suspensão.
C- Da verificação de causas de suspensão e/ou interrupção da prescrição previstas nos artigos 120º e 121º do CP e da aplicação, ou não, da causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal prevista na Lei nº 1-A/2020, de 19.3, e na Lei nº 4-B/2021, de 1.2..
Preceitua o artigo 120º do CP, com a epígrafe Suspensão da prescrição, que:
“1. A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por devolução de uma questão prejudicial juízo não penal;
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para a audiência em processo sumaríssimo;
c) Vigorar a declaração de contumácia;
d) A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência;
e) A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em jugado;
f) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas de liberdade.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão a suspensão não pode ultrapassar três anos.
3. No caso previsto na alínea c) a suspensão não pode ultrapassar o prazo normal de prescrição.
4. No caso previsto na alínea e) a suspensão não pode ultrapassar 5 anos, elevando-se para dez anos no caso de ter sido declarada a excepcional complexidade do processo.
5. Os prazos a que alude o número anterior são elevados para o dobro se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional.
6. A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa de suspensão.”
E, dispõe o artigo 121º do CP, com a epígrafe Interrupção da prescrição, que:
“1 - A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a.Com a constituição como arguido;
b. Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento que aplicar sanção em processo sumaríssimo;
c. Com a declaração de contumácia;
d. Com a notificação do despacho que designa dia para a audiência na ausência do arguido.
2 - Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
3 - Sem prejuízo do disposto no nº 5 do artigo 118º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde e seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo de prescrição corresponde ao dobro desse prazo.”
A Lei 1-A/2020, de 19-03, dispõe que:
(…)
Artigo 7.º - Prazos e diligências
“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública.
2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.
3 - A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.
5 - Nos processos urgentes os prazos suspendem-se, salvo nas circunstâncias previstas nos n.ºs 8 e 9.
6 - O disposto no presente artigo aplica-se ainda, com as necessárias adaptações, a:
a) Procedimentos que corram termos em cartórios notariais e conservatórias;
b) Procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares, e respetivos atos e diligências que corram termos em serviços da administração direta, indireta, regional e autárquica, e demais entidades administrativas, designadamente entidades administrativas independentes, incluindo o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários;
c) Prazos administrativos e tributários que corram a favor de particulares.
7 - Os prazos tributários a que se refere a alínea c) do número anterior dizem respeito apenas aos atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como aos prazos para a prática de atos no âmbito dos mesmos procedimentos tributários.
8 - Sempre que tecnicamente viável, é admitida a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente por teleconferência ou videochamada.
9 - No âmbito do presente artigo, realizam-se apenas presencialmente os atos e diligências urgentes em que estejam em causa direitos fundamentais, nomeadamente diligências processuais relativas a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente, diligências e julgamentos de arguidos presos, desde que a sua realização não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes.
10 - São suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria.
11 - Após a data da cessação da situação excecional referida no n.º 1, a Assembleia da República procede à adaptação, em diploma próprio, dos períodos de férias judiciais a vigorar em 2020.”
A Lei 4-A/2020, de 06-04, veio alterar a Lei 1-A/2020, de 19-03:
“(…)
Artigo 7.º - Prazos e diligências
“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte.
2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.
3 - A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.
5 - O disposto no n.º 1 não obsta:
a) À tramitação dos processos e à prática de atos presenciais e não presenciais não urgentes quando todas as partes entendam ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
b) A que seja proferida decisão final nos processos em relação aos quais o tribunal e demais entidades entendam não ser necessária a realização de novas diligências.
6 - Ficam também suspensos:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
b) Quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judiciais de imóveis e diligências de penhora e seus atos preparatórios, com exceção daqueles que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 137.º do Código de Processo Civil, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial.
7 - Os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, observando-se quanto a estes o seguinte:
a) Nas diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais realiza-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
b) Quando não for possível a realização das diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, nos termos da alínea anterior, e esteja em causa a vida, a integridade física, a saúde mental, a liberdade ou a subsistência imediata dos intervenientes, pode realizar-se presencialmente a diligência desde que a mesma não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes;
c) Caso não seja possível, nem adequado, assegurar a prática de atos ou a realização de diligências nos termos previstos nas alíneas anteriores, aplica-se também a esses processos o regime de suspensão referido no n.º 1.
8 - Consideram-se também urgentes, para o efeito referido no número anterior:
a) Os processos e procedimentos para defesa dos direitos, liberdades e garantias lesados ou ameaçados de lesão por quaisquer providências inconstitucionais ou ilegais, referidas no artigo 6.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, na sua redação atual;
b) O serviço urgente previsto no n.º 1 do artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de março, na sua redação atual;
c) Os processos, procedimentos, atos e diligências que se revelem necessários a evitar dano irreparável, designadamente os processos relativos a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente e as diligências e julgamentos de arguidos presos.
9 - O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, aos prazos para a prática de atos em:
a) Procedimentos que corram termos em cartórios notariais e conservatórias;
b) Procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares, incluindo os atos de impugnação judicial de decisões finais ou interlocutórias, que corram termos em serviços da administração direta, indireta, regional e autárquica, e demais entidades administrativas, designadamente entidades administrativas independentes, incluindo a Autoridade da Concorrência, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, bem como os que corram termos em associações públicas profissionais;
c) Procedimentos administrativos e tributários no que respeita à prática de atos por particulares.
10 - A suspensão dos prazos em procedimentos tributários, referida na alínea c) do número anterior, abrange apenas os atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como os atos processuais ou procedimentais subsequentes àqueles.
11 - Durante a situação excecional referida no n.º 1, são suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
12 - Não são suspensos os prazos relativos à prática de atos realizados exclusivamente por via eletrónica no âmbito das atribuições do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, I. P.
13 - Após a data da cessação da situação excecional referida no n.º 1, a Assembleia da República procede à adaptação, em diploma próprio, dos períodos de férias judiciais a vigorar em 2020.”
A Lei 4-B/2021, de 01-02, procedeu a aditamento à Lei 1-A/2020:
“(…)
Artigo 6.º-B - Prazos e diligências
“1 - São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - O disposto no número anterior não se aplica aos processos para fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
3 - São igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.
5 - O disposto no n.º 1 não obsta:
a) À tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de atos presenciais;
b) À tramitação de processos não urgentes, nomeadamente pelas secretarias judiciais;
c) À prática de atos e à realização de diligências não urgentes quando todas as partes o aceitem e declarem expressamente ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
d) A que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão.”
,
A Lei 13-B/2021 de 05-04, procedeu a aditamento à Lei nº 1-A/2020, de 19-03:
“(…)
Artigo 6.º-E - Regime processual excecional e transitório
“1 - No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.
2 - As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam-se:
a) Presencialmente, nomeadamente nos termos do n.º 2 do artigo 82.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, na sua redação atual; ou
b) Sem prejuízo do disposto no n.º 5, através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior e a sua realização por essa forma não colocar em causa a apreciação e valoração judiciais da prova a produzir nessas diligências, exceto, em processo penal, a prestação de declarações do arguido, do assistente e das partes civis e o depoimento das testemunhas.
3 - Em qualquer caso, compete ao tribunal assegurar a realização dos atos judiciais com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, de higiene e sanitárias definidas pela DGS.
4 - Nas demais diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer outros atos processuais e procedimentais realiza-se:
a) Preferencialmente através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente; ou
b) Quando tal se revelar necessário, presencialmente.
5 - As partes, os seus mandatários ou outros intervenientes processuais que, comprovadamente, sejam maiores de 70 anos, imunodeprimidos ou portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde, devam ser considerados de risco, não têm obrigatoriedade de se deslocar a um tribunal, devendo, em caso de efetivação do direito de não deslocação, a respetiva inquirição ou acompanhamento da diligência realizar-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, a partir do seu domicílio legal ou profissional.
6 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é garantida ao arguido a presença no debate instrutório e na sessão de julgamento quando tiver lugar a prestação de declarações do arguido ou coarguido e o depoimento de testemunhas.
7 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março;
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
d) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos e procedimentos referidos nas alíneas anteriores;
e) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos cujas diligências não possam ser realizadas nos termos dos n.ºs 2, 4 ou 8.
8 - Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não caprejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.
9 - O disposto nas alíneas d) e e) do n.º 7 prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, que são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão.
10 - Os serviços dos estabelecimentos prisionais devem assegurar, seguindo as orientações da DGS e da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais em matéria de normas de segurança, de higiene e sanitárias, as condições necessárias para que os defensores possam conferenciar presencialmente com os arguidos e condenados.
11 - Os tribunais e demais entidades referidas no n.º 1 devem estar dotados dos meios de proteção e de higienização determinados pelas recomendações da DGS.”
Alega o recorrente que entre 16.11.2015 e 16.11.2020 não ocorreu nenhum facto que tivesse a virtualidade de interromper ou suspender o decurso do prazo de prescrição em curso, pelo que estaria prescrito o procedimento criminal.
Analisemos então os autos com vista a apurar da verificação de causas com eficácia interruptiva e/ou suspensiva da prescrição do procedimento criminal:
- Por força do disposto no artigo do artigo 7º, nº 3, da Lei 1A/2020, de 19.3, considerar-se-iam suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos entre 9.3.2020 e 2.6.2020.
- Em 14.1.2021 foi proferido despacho que declarou a contumácia do arguido - fls 511 ref 401979815.
- Em 25.12.2022 o arguido foi constituído como tal, prestou TIR, e foi notificado da acusação – fls 556 a 558.
- Em 4.1.2023 foi declarada cessada a contumácia – Ref 421868376.
Ora, a linha do tempo, antes de 16.11.2020, apenas se poderá ponderar a entrada em vigor a Lei nº 1-A/2020, de 19.3.
A aplicação da suspensão dos prazos de prescrição estabelecida na referida lei quanto a processos pendentes relativamente a crimes praticados anteriormente à sua entrada em vigor tem gerado controvérsia.
Sustenta-se a jurisprudência que se pronuncia no sentido da não aplicação da suspensão aos processos pendentes e relativamente a crimes e contraordenações praticados anteriormente à sua entrada em vigor no entendimento que tal suspensão implica a violação do princípio da irrectroactividade da lei penal in pejus. 1
Com o devido respeito, perfilha-se diferente entendimento.
Perante uma paralisação inevitável do andamento generalizado dos processos decorrente da situação de pandemia, justificou-se a medida legislativa que determinou a suspensão dos prazos de prescrição, aplicável a todos os processos, mesmo aos já pendentes à data do confinamento e relativos a factos anteriores.
Assim, subscreve-se o seguinte entendimento (referente a processo de contraordenação mas, assim se entende, aplicável in casu).
“I- Os prazos de prescrição visam sancionar lapsos de tempo consideráveis e injustificados sem andamento do processo, não sendo de todo exigível que os visados estejam, por tempo irrazoável, sob procedimento administrativo ou criminal ou à espera do cumprimento de uma contraordenação ou pena. Há um tempo razoável para fazer justiça, consagração de um processo justo e equitativo, previsto no artigo 20º, nº4, da Constituição da República Portuguesa, e no artº 6º, nº1, da Convenção Europeia dos Direitos do Humanos.
II- A especialíssima legislação – Leis nº 1-A/2020, de 19 de Março, e nº 4-B/2021, de 01.02, - foi implementada num período particularmente severo da pandemia, que obrigou as pessoas a permanecer em casa, em confinamento, sendo muito apertadas as excepções em que dela podiam sair. As pessoas estiveram impedidas de se deslocar aos tribunais e aos serviços administrativos, excepto em situações de manifesta urgência.
Nº 16/2020, de 29 de Maio, e 6º da Lei nº 13-B/2021, de 5 de Abril) se aplique a todos os processos pendentes à data do confinamento e relativos a factos anteriores. Se as pessoas não se podem deslocar aos tribunais e serviços, não é possível realizar diligências probatórias, instruir, fazer tramitar processos físicos. Por isso, desde que os processos estejam pendentes, são aplicáveis tais prazos de suspensão da prescrição.”2
Também no mesmo sentido (também aqui no âmbito de processo de contraordenação), vide:
“Há que ter em conta as seguintes circunstâncias:
“1.- O quadro motivador da norma questionada é de excepção constitucional, ou seja, de parentesis na tutela dos direitos, liberdades e garantias;
2.- A vigência do dispositivo é transitória;
3.- O mecanismo excepcional funciona por reforço do poder público;
4.- Tal mecanismo é instrumental fazendo corresponder a uma situação de ruptura e anormalidade uma solução orientada para a consecução da sua cessação;
5.- Tem expressão em diversas normas constitucionais e numa lei aglutinadora de soluções;
6.- A suspensão de direitos não é incondicional e irrestrita devendo, entre outros, respeitar, desde a declaração à execução, o princípio da proporcionalidade e da necessidade estrita, tudo nos termos do estabelecido no n.º 4 do já invocado art.º 19.º da Lei Fundamental;
7.- A baliza instrumental corresponde ao «pronto restabelecimento da normalidade constitucional» – ibidem;
8.- A medida de suspensão dos prazos de prescrição tem relação umbilical com a crise sanitária sendo proporcionada à enormidade e carácter inusitado dos efeitos da pandemia;
9.- O n.º 1 do artigo 27.º-A do RGCO contém, a propósito da suspensão, enunciado não taxativo, ao ressalvar os casos previstos na lei;
10.- A dispersão normativa assim admitida não agride os princípios da legalidade e sua derivada tipicidade que requerem enunciado, verbalização precisa, mas não exigem concentração das fórmulas ou carácter coevo do enunciado podendo, pois, a norma constar de um diploma autónomo e ser posterior;
11.- O Decreto-Lei que aprovou o RGCO (n.º 433/82) não tem, sequer, superior grau hierárquico face à Lei n.º 1-A/2020 e poderia até, numa perspectiva de hierarquia de leis, ser por ele revogado;
12.- Não estamos perante retroactividade directa ou de primeiro grau, no sentido de aplicação de regra nova a contexto passado, mas face a aplicação de preceito a quadro temporal futuro relativo a realidade contemporânea – a pendência processual;
13.- Não há arbitrariedade, surpresa, desproporção ou um gorar de expectactivas, logo não há inconstitucionalidade;
14.- O princípio da confiança não reclama que se materialize a possibilidade de serem conhecidas todas as causas de suspensão do prazo de prescrição no momento da consumação;
15.- Se assim não fosse, estaria retirado ao Estado a possibilidade de reagir em emergência perante situação física portadora de particular gravidade e, obviamente, imprevisível no momento dessa consumação;
16.- O carácter inusitado do facto genésico da medida que impossibilitou temporariamente o exercício da acção punitiva impõe uma reanálise dos quadros teóricos.
Assim é. Particularmente, quanto a este último ponto, é crucial ter presente que tese oposta representaria a total artificialização, manietação e secundarização da acção legislativa e da possibilidade de exercer a actividade política e de governação. Pois se o legislador não pudesse responder de emergência a uma situação de grave risco colectivo que, sem paralelo, ponha em causa toda a sociedade e as suas estruturas básicas de sustentação, então teríamos que concluir que estaríamos a levar a tutela de direitos ao estertor, ao domínio da impossibilidade, por se preferir a extinção da sociedade que tutela o direito à sua suspensão temporal e constitucionalmente enquadrada.
Ficaríamos, por exemplo, sem poder responder à pandemia com potencial de extinção da espécie, ao sismo de dimensões bíblicas ou à imaginada deriva da «jangada de pedra».
Salvo o respeito devido, não parece ter sentido o maximalismo analítico que coloque a recusa da sujeição a uma coima acima da resposta colectiva a uma pandemia, que se aproveite da inoperabilidade ou do desmantelamento do sistema punitivo para evitar a punição do ilícito efectivamente cometido. Não se divisam argumentos que abalem o ora dito e o já consignado anteriormente por este órgão jurisdicional. A inexistência de uma verdadeira retroactividade e o carácter específico da jurisdição de mera ordenação social afastam limitarmente que se possa equacionar uma violação do disposto no n.º 4 do 29.º da CRP. Não há desconformidade, antes coerência, ante o disposto no art.º 18.º da Constituição da República Portuguesa, particularmente no seu n.º 2. Foram tutelados outros interesses juridico-constitucionais. Não se ultrapassou a necessidade estrita por estes gerada. Não há excesso nem desproporção na definição do tempo da suspensão do prazo prescricional (oitenta e seis dias), antes clara colagem aos factos da crise e resposta directa aos mesmos. Encontramo-nos face-a-face com calamidade pública, logo diante do preenchimento da previsão constante do n.º 2 do art.º 19.º da Lei Fundamental.
Há eficácia pontual e focada. Não se afastam princípios, antes se assume uma medida muito concreta e muito orientada para objectivos e para a resposta a específicos condicionantes”3
E, ainda:
“(…)
“A suspensão em causa justifica-se, desde logo, pelo facto de as diligências processuais com vista à execução da pena em que o arguido foi condenado, por força da respectiva infecção epidemiológica, terem deixado de poder ser exercidas com a eficácia e prontidão previstas e exigíveis em circunstâncias normais. É que, por força da referida pandemia, como é facto público e notório, o país e o mundo quase pararam, facto esse que, aqui, levou à implementação das medidas excepcionais fixadas pela Lei n.º 1-A/2020, com reflexos, também, nos procedimentos processuais de natureza penal.”
(…)
Por outro lado, que o entendimento do Ministério Público também não pode merecer acolhimento extrai-se do que aconteceria, v.g., com a “extinção do direito de queixa”, previsto no art.º 115.º do Cód. Penal.
Se a Lei n.º 1-A/2020 se aplicasse só aos factos praticados na sua vigência, estando a decorrer o prazo para o exercício do direito de queixa por factos anteriores à entrada em vigor da citada lei, então, o mesmo prazo não se suspenderia, em claro benefício do arguido, enquanto que o titular do direito de queixa, por sua vez, se via impedido de formular esta, ante o disposto no art.º 7.º, n.º 1, da mesma lei.
Isto é, para além de se atentar contra a unidade do sistema jurídico, haveria “dois pesos e duas medidas”, criando-se uma situação de manifesta e incompreensível injustiça relativa. Se o processo penal assegura ao arguido todas as garantias de defesa, já não o pode fazer, como é óbvio, em prejuízo do ofendido, desde logo, porque todos são iguais perante a lei, como se prevê no art.º 13.º, n.º 1 da C.R.P.
Depois, não se está, aqui, perante uma sucessão de leis penais, mas, antes, perante um “regime temporário de excepção”, o qual, decorrido o tempo, ou deixadas de verificar as circunstâncias que o haviam determinado, cessará todos os seus efeitos, conforme o previsto no n.º 2 do citado art.° 7.°, fazendo com que o anterior “regime” retome a sua vigência e normalidade.
Finalmente, também não se poderá dizer que a suspensão do prazo de prescrição previsto no art.º 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020 se traduz numa decisão mais gravosa para o arguido. É que o prazo de prescrição da pena mantém-se rigorosamente o mesmo, antes e depois da vigência da citada lei. A única diferença é que, esta, por razões de superior interesse público, suspendeu-o temporariamente, para voltar, depois, a correr.”4
E, também o TC, nos Acórdãos 500/2021, de 0.6.2021, e 798/2021, de 29.7.2021, concluiu, relativamente à suspensão da prescrição de contraordenações, não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 7º , nº 3, da Lei nº 1-A/2020, de 19.3, interpretado no sentido de que a suspensão da prescrição aí prevista é aplicável aos processos contraordenacionais que que estejam em causa alegados factos ilícitos imputados ao arguido praticados antes da data da sua entrada em vigor, que nessa data e encontrem pendentes.
Por fim, subscreve-se a seguinte análise:
“ Não desconhecemos a existência, neste último aresto, de uma declaração de voto da Sr.ª Juiz Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros (tendo votado a decisão mas não a fundamentação, ou a seja interpretação do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no sentido “de que a causa de suspensão dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, se encontram já em curso” “por considerar que a referida norma só não é inconstitucional porque se inscreve no âmbito de um processo contraordenacional, está enquadrada por uma situação excecional de emergência e corresponde a uma situação em que a lei nova se aplica a um prazo já em curso, mas ainda não completado”).
No entanto, compreendendo as reservas aí levantadas pela Sr.ª Conselheira, não esquecemos o que consta do ponto 31. do Ac. do TC n.º 500/2021 e com o qual se concorda na íntegra:
“Tudo o que se disse até agora assentou na consideração da causa de suspensão da prescrição estabelecida nos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, independentemente da natureza criminal ou contraordenacional dos procedimentos em curso.
A circunstância de a interpretação sindicada se cingir aos procedimentos contraordenacionais pendentes por factos anteriores ao início da vigência da Lei n.º 1-A/2020 apenas serve para tornar mais evidente a conclusão que acima se alcançou. Com efeito, apesar de o direito das contraordenações, enquanto direito sancionatório público, ser influenciado ou “matizado” pelos princípios constitucionais do direito penal, a autonomia material do ilícito de mera ordenação social em relação ao ilícito penal obsta a que tais princípios possam ser transpostos deste para aquele de forma automática ou imponderada ou que possam aí valer com na mesma exata extensão ou com o mesmo grau de intensidade (cf. Acórdão n.º 76/2016; no mesmo sentido, a propósito da liberdade de conformação do legislador na modelação do instituto da prescrição, v. Acórdão n.º 297/2016). No que diz respeito à proibição constitucional da retroatividade in pejus, isso significa que ela se estenderá ao direito contraordenacional somente enquanto manifestação nuclear da função de garantia do princípio legalidade, exigida pela ideia de Estado de Direito e oponível ao arbítrio ex post facto.
Resta concluir, assim, que, ao proibir que qualquer cidadão seja «sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão» ou sofra pena que não esteja expressamente cominada «em lei anterior» ou mais grave do que a prevista «no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos», o artigo 29.º da Constituição, respetivamente nos seus n.ºs 1, 3 e 4, não se opõe à aplicação de uma causa de suspensão da prescrição com a função e o recorte daquela que foi prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2000, a procedimentos contraordenacionais pendentes por factos praticados antes do início da respetiva vigência.”
Com efeito, a suspensão em causa constituiu uma medida legislativa excecional e aprovada num quadro de elevada excecionalidade. Com efeito, por força da referida pandemia, como é facto público e notório, o país e o mundo quase pararam, facto esse que, aqui, levou à implementação das medidas excecionais fixadas pela Lei n.º 1-A/2020, com reflexos, também, nos procedimentos processuais de natureza penal; pelo que, a suspensão dos prazos, em todos prazos e procedimentos, é justificada, desde logo, pelo facto de as diligências processuais, terem deixado de poder ser exercidas com a eficácia e prontidão previstas e exigíveis em circunstâncias normais.
Entendimento diverso, com o devido respeito por opinião contrária, seria conceder-se um injustificável benefício ao arguido, colhendo este, proveitos de uma interpretação da Lei n.º 1-A/2020 e da Lei 4-B/2021 que atentaria não só contra a sua letra, como, também, contra o seu espírito. Com efeito, o prazo de caducidade do exercício do direito de queixa não se suspenderia e o arguido, também tinha a certeza, por outro lado, de que, por força da mesma lei, diligências processuais não poderiam, entretanto, ser desencadeadas. Ao não se aplicar a norma que estabeleceu a suspensão de prazos de caducidade, como se fez na sentença recorrida, vedou-se aos ofendidos a possibilidade de acederem à justiça para fazerem valer os seus direitos, considerando que, na prática, a não ocorrência de suspensão de um prazo (em curso) implicou a impossibilidade prática ou, pelo menos um forte constrangimento não imputável ao particular de este de aconselhar devidamente, preparar a sua queixa, bem como, por fim de a apresentar junto do MP.
Realce-se, a finalidade do instituto da prescrição reside “também (na) responsabilização do Estado pela inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto”. Ora, relativamente ao regime imposto, a não realização de atos ou diligências processuais, não se deveu, contudo, a uma inércia ou incapacidade do Estado em as desencadear, mas antes, tratou-se uma situação absolutamente excecional que levou a que o Estado, a bem da preservação da saúde pública dos cidadãos, se abstivesse de praticar atos e diligências processuais que pudessem colocar em causa, os esforços no controlo da pandemia.
No cumprimento do seu dever de proteção da vida e da integridade física dos cidadãos (artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da Constituição, respetivamente), o Estado, durante o período pandémico, adotou um conjunto de medidas destinadas a conter o risco de contágio e de disseminação da doença, baseado na implementação de um novo modelo de interação social, caracterizado pelo distanciamento físico e pela diminuição dos contactos presenciais. E por força desta paralisação da atividade judiciária, que se estendeu à justiça penal, os atos processuais interruptivos e suspensivos da prescrição ou da caducidade do direito de queixa deixaram de poder praticar-se no âmbito dos procedimentos em curso, pelo menos nas condições em que antes o podiam ser.
Foi, pois, neste contexto especial e excecional, que se fixou um regime transitório e temporário de suspensão dos prazos de prescrição e caducidade, o qual cessou assim que deixaram de subsistir as circunstâncias que o determinaram. E aqui, ao contrário do defendido na decisão recorrida, somos a concluir que, quer o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, quer o artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei 4-B/2021, são aplicáveis aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência.
Note-se que a decisão recorrida tem subjacente o entendimento que a aplicação da suspensão dos prazos de caducidade determinada pelas chamadas “Leis Covid” aos prazos em curso corresponderia a uma aplicação retroativa de lei penal mais desfavorável ao arguido, sendo, por esse motivo, inaceitável perante a nossa Lei Fundamental, atendendo a que o artigo 19.º/6 da Constituição da República Portuguesa impõe que “A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, a capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião” e, daqui, conclui que a suspensão da caducidade só opera relativamente aos prazos que tiverem início durante tais períodos.
E concordamos com a asserção dos recorrentes que este é um raciocínio demasiado simplista e que desatende diversos factores que não podem nem devem ser ignorados.
Como se referiu já, nos termos da decisão recorrida, o artigo 19.º/6 da CRP estabeleceria um impedimento à aplicação da suspensão dos prazos de caducidade. No entanto há que delinear correctamente o âmbito de aplicação de tal norma constitucional, o que foi efectuado de forma exemplar por parte do Tribunal Constitucional no Acórdão nº 500/2021, já referido:
“Ao estabelecer que a «declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião”, “o artigo 19.º/6 CRP dirige-se exclusivamente aos poderes de emergência que emergem do estado de exceção constitucional:
(i) ao poder de declaração, na medida em que veda ao Presidente da República a possibilidade de decretar a suspensão ou a limitação do exercício dos direitos, liberdades e garantias constantes do elenco; e
(ii) ao poder de execução, na medida em que o Governo, nas providências que lhe compete adotar, apenas pode atingir negativamente os direitos, liberdades e garantias especificados no decreto presidencial.”
“Tais considerações permitem demonstrar a razão pela qual o parâmetro extraído do n.º 6 do artigo 19.º da Constituição, aditado pelo recorrente em alegações, não é útil nem apropriado para contraditar a validade constitucional da solução impugnada. Esta não decorre de normas emitidas pelo Governo em execução da declaração do estado de emergência constante do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 ou de qualquer uma das suas sucessivas renovações; decorre antes de normas constantes de Lei aprovada pela Assembleia da República no exercício da sua normal competência legislativa, o qual não é inibido, nem condicionado pela declaração do estado de emergência. É por isso que o vício de inconstitucionalidade apontado pelo recorrente, a existir, só poderá resultar da confrontação direta com a proibição de aplicação retroativa da lei penal de conteúdo desfavorável, consagrada no artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição, do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, na interpretação segundo a qual a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência”.
Respalda-se ainda a sentença recorrida na alegada violação de “um dos princípios basilares do nosso ordenamento jurídico que é o da não retroactividade das leis, salvo se, uma lei penal se mostrar, concretamente, mais favorável ao arguido – cfr. os art.º 18º, nº 3, e 29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa e o art.º 2º do CP”.
A questão foi largamente analisada e esmiuçada no Acórdão n.º 500/2021 do TC, já amplamente referido, concluindo que “Apesar de o Tribunal vir perfilhando o entendimento de que o instituto da prescrição tem uma natureza, senão material, pelo menos mista, a ideia de que essa classificação é suficiente para determinar sem mais a sujeição de todos os elementos que integram o respetivo regime jurídico a todas as exigências que decorrem do princípio da legalidade, enquanto garantia pessoal de não punição fora do domínio de uma lei escrita, prévia, certa e estrita, não encontra respaldo, pelo menos inequívoco, na jurisprudência constitucional.”
Acrescentando, “As normas relativas à prescrição do procedimento criminal não se encontram incluídas, de modo literal, na proibição da retroatividade in pejus fixada para as normas incriminadoras (neste sentido, quanto à proibição da analogia, v. Acórdão n.º 205/1999). A sua recondução ao âmbito de aplicação do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4.º, da Constituição, só poderá fazer-se, por isso, com apoio em argumentos jurídico-constitucionais, os quais, por sua vez, haverão de extrair-se, não da classificação das normas atinentes ao instituto da prescrição segundo os critérios desenvolvidos no plano infraconstitucional, mas antes da ratio da proibição da retroatividade in pejus e, por conseguinte, dos próprios fundamentos do princípio da legalidade penal”.
Por um lado, as causas de interrupção e de suspensão de prescrição devem estar “fixadas em lei prévia”, o que se justifica por forma a ser possível controlar o “exercício do poder punitivo do Estado através do Direito que previamente criou”. Trata-se de uma norma de “autolimitação” do próprio Estado. E o Acórdão descreve os termos desta autolimitação:
“as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus, na medida em que se destinam a proteger o indivíduo contra possíveis abusos por parte do legislador, opõem-se à possibilidade de o Estado, através da ampliação retroativa do elenco das causas de interrupção ou suspensão da prescrição, mitigar ou até mesmo reverter a débito do arguido os efeitos da «sua inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto” .
Neste sentido, a proibição da aplicação retroativa das normas que estabelecem as causas de interrupção e de suspensão da prescrição do procedimento criminal partilhará dos fundamentos da proibição da aplicação retroativa das normas que estabelecem os pressupostos da responsabilidade: tal como esta, também aquela será imposta em nome da defesa do cidadão contra a discricionariedade e o arbítrio ex post facto.
Por outro lado, importa não perder de vista que a ratio da proibição da retroatividade in pejus se liga igualmente ao princípio da confiança, já que as garantias inerentes àquela proibição assentam numa ideia de previsibilidade (por sua vez enraizada no princípio da confiança) das normas, no sentido em que qualquer cidadão, para além de não poder ser surpreendido pela incriminação de um comportamento anteriormente adotado (n.º 1 do artigo 29.º da Constituição), também não pode ser surpreendido pela aplicação de uma sanção mais grave ou por normas processuais materiais de efeitos mais gravosos do que aqueles com que podia contar à data em que praticou os factos (n.º 4 do artigo 29.º da Constituição).
E, assim, conclui o Tribunal Constitucional ainda no Ac. 500/2021:
“Pois bem.
Mesmo não pondo em causa que, em matéria de prescrição, o conceito de retroatividade é dado tempus deliti e não pelo terminus do prazo – o que, conforme se viu, não corresponde sequer à orientação sufragada no Acórdão n.º 449/2002 – não restam dúvidas de que a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, pela sua singularidade, escapa totalmente a ambas as rationes com base nas quais é possível justificar o alargamento às normas sobre prescrição das garantias inerentes à proibição da retroatividade.” O que tem plena aplicação no âmbito da extinção do direito de queixa por caducidade.
(…)
“A suspensão do decurso do prazo de prescrição – e caducidade, acrescentamos - dos procedimentos sancionatórios pendentes durante o período em que vigoraram as medidas de emergência adotadas na Lei n.º 1-A/2020 não se destinou a permitir que o Estado corrigisse ou reparasse os efeitos da sua inércia pretérita no âmbito do exercício do poder punitivo de que é titular. Destinou-se apenas e tão só a responder aos efeitos de uma superveniente e não evitável paralisação do sistema de administração da justiça penal, imposta pela necessidade de controlar e conter a disseminação de um vírus potencialmente letal. Tratando-se de uma causa de suspensão e não de interrupção do prazo de prescrição, cuja vigência não excedeu o lapso temporal durante o qual se verificou a afetação ou condicionamento da atividade dos tribunais, nem conduziu — reticus, não tinha sequer a virtualidade de conduzir — à reabertura dos prazos prescricionais já integralmente decorridos, a sua aplicação aos procedimentos pendentes não exprime qualquer excesso, arbítrio ou abuso por parte do Estado contra o qual faça sentido invocar as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus: ao determinar a aplicação a procedimentos pendentes da suspensão da prescrição em razão da pandemia então em curso, a solução adotada limita- se, na verdade, a assegurar «a produção do efeito útil da norma de emergência» (idem, p. 313), não ingressando no âmbito da esfera defensiva que é assegurada pelo princípio da legalidade.
E como bem referem os recorrentes, “Não é diferente a conclusão a que se chega se encararmos a proibição da retroatividade in pejus a partir da proteção da confiança, como fez o Tribunal recorrido.
Se tal proibição visa garantir ao destinatário uma previsibilidade razoável das consequências com que se deparará ao violar o preceito penal, é relativamente evidente, quando se trate de estender o respetivo âmbito de incidência para além dos limites traçados pela letra dos n.ºs 1, 3 e 4, do artigo 29.º, que a sua invocação deixará de ter fundamento se o evento em causa se situar no mais elevado grau daquilo que não é por natureza antecipável, como sucede com a paralisação do sistema de administração da justiça penal ditada pelo súbito e inesperado surgimento de uma pandemia à escala global levando à paralisação dos tribunais portugueses e da sustação do rito processual, quase generalizado, durante o período de 9 de março a 3 de junho de 2020, dos processos de grande parte das jurisdições.”
O mesmo Tribunal Constitucional pronunciou-se ainda bastante recentemente neste sentido na Decisão Sumária nº 256/2023, de 24/04/2023, Fernandes Costa (Processo nº 362/2023, 3ª Secção, www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20230256.html), decisão que transitou em julgado em 02/05/2023) da qual consta:
“Pelos fundamentos expostos, decide-se: a) Não julgar inconstitucional a norma extraível do artigo 7º, nºs 2, 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretados no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal aí prevista é aplicável a processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, vigorando até ao termo da situação excecional de infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e doença COVID-19.”
A suspensão dos prazos causa não radicou em nenhum objetivo de política criminal, i.e., não houve uma alteração de ponderação de valores pelo legislador, no âmbito processual penal, que tenha presidido à implementação de uma nova causa de suspensão da prescrição. O legislador não pretendeu com esta norma “prolongar” a sua atividade de prossecutor da ação penal, nem reparar uma situação de “inércia pretérita” do Estado, repondo um período de tempo em seu benefício.
Há que concluir que as finalidades subjacentes ao próprio regime da caducidade do direito de queixa, que ditam a sujeição desta causa de suspensão ao princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, não se verificam, porquanto não presidiu à sua consagração, na altura da pandemia, uma finalidade de política criminal que reclame o freio do princípio da legalidade, como defesa do cidadão perante o ius puniendi do Estado: pelas razões descritas, nem está em causa reverter sobre o arguido as consequências da inércia pretérita do Estado, nem uma violação do princípio da confiança, já que o evento era imprevisível, para além do arguido, para qualquer outro sujeito processual e para o próprio Estado titular da ação penal, não sendo a situação de pandemia, pela sua imprevisibilidade, apta a constituir um quadro de referência sobre o qual se possa falar de “confiança”.
Assim, consideramos que a aplicação imediata desta causa de suspensão a processos em curso não colide com as garantias asseguradas pelo princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, quando, como é o caso, no momento da sua entrada em vigor, o prazo de caducidade já se tinha iniciado e, apesar de se encontrar em curso, não se havia ainda extinto, solução que cremos mais adequada e compreensiva da realidade e das especificidades que determinaram as ditas “Leis Covid”, não se vislumbrando que a mesma colida, por tudo quanto se expôs, com qualquer normativo legal”.
E, assim sendo, porque nada se alterou entretanto e se mantêm pertinentes as considerações tecidas na nossa anterior decisão – tendo presente ainda os demais acórdão proferidos pelo Tribunal Constitucional, invocados pelo MP (660/2021 de 29.7 e 798/2021 de 21.10) - continuamos a entender ser de aplicar, a casos como o dos autos, o apontado regime legal, afastado na decisão recorrida.
Sendo válidos os argumentos aqui esgrimidos, apesar de reportados, em todos os casos a processos de natureza contra-ordenacional, pois que a ponderação ali efectuada se pode estender aos processos de natureza criminal, como o dos autos.”5
Assim, em conformidade com o exposto, conclui-se que o prazo de prescrição do procedimento criminal não se completou em 16.11.2020 dado que esteve suspenso entre 9.3.2020 e 3.6.2020.
Tal prazo retomou o seu curso em 3.6.2020 e em 14.1.2021 foi proferido despacho que declarou a contumácia do arguido, facto interrompeu e suspendeu o decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal
- Em 25.12.2022 o arguido foi constituído como tal, prestou TIR, e foi notificado da acusação – fls 556 a 558.
- Em 4.1.2023 foi declarada cessada a contumácia – Ref 421868376.
- Foi notificado da data designada para realização de julgamento por carta expedida em 23.2.2023.
Do que antecede decorre que na data em que foi proferido o despacho recorrido não tinha decorrido o prazo a que alude o artigo 121º, nº 3, do CPP (como não decorreu até ao presente).
Pelo que, há que julgar não provido o recurso interposto do despacho proferido em 28.2.2023.
*
No que tange ao recurso interposto da sentença proferida em 23.3.2023:
Face ao supra exposto, apenas cumpre analisar o teor da sentença.
E, a mesma mostra-se devidamente fundamentada e não se vislumbra a verificação de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º nº2, do CPP.
Assim, há que julgar não provido o recurso.
III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
A. Julgar não provido o recurso interposto do despacho proferido em 28.2.2023.
B. Julgar não provido o recurso interposto da sentença, mantendo-a na íntegra.
Custas pelo recorrente - artigo 513.º, nº1, do Código de Processo Penal.

Lisboa, 21 de Março de 2024
Processado e revisto pela relatora e primeira signatária, artigo 94º nº 2 do Código de Processo Penal
Cristina Santana
Maria João Lopes
Ana Marisa Arnêdo - Com declaração de voto.
*
Declaração de voto
Votei a decisão, mas não inteiramente a fundamentação.
Com efeito, sem desdouro para a argumentação aduzida, ademais ancorada na citada jurisprudência, é nossa convicção que, a aplicação da causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição por força da situação de emergência sanitária a processos em curso, nos moldes sustentados, colide com o princípio da legalidade criminal - na vertente da proibição de aplicação retroactiva da lei nova desfavorável ao arguido, princípio consagrado do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição da Républica Portuguesa.6  7
Todavia, no caso, estamos em crer, verifica-se uma outra causa suspensiva, decorrente da paralisação legal da generalidade dos actos e prazos processuais e procedimentais, no âmbito criminal, por força dos n.ºs 1 e 6, do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, entre 9 de Março de 2020 e 3 de Junho de 2020.
É que, naquele período, para o que agora releva, perante a situação de paralisação imposta por lei para os actos e prazos a decorrer, o procedimento criminal não podia continuar por falta de autorização legal.
Assim, em alternativa, e ao abrigo do preceituado no art.º 120º, n.º 1, al. a) do C.P., dir-se-á que o prazo de prescrição do procedimento criminal esteve suspenso naquele período em que, legalmente, se encontrava vedado o normal prosseguimento do processo.
Concluindo-se, então, pela existência de uma «(…) causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal expressamente contemplada na lei ao tempo dos factos e, por isso, a coberto do princípio da legalidade e não retroatividade da lei penal8»
Com fundamentação idêntica à ora expressa, mas no espectro contraordenacional, relatámos acórdão, em 28 de Setembro de 2023, no processo n.º 4986/22.6T9SNT.L.
Ana Marisa Arnêdo
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1. Neste sentido, vide, entre outros: Ac TRL de 21.7.2020, Proc. 76/15.6SRLSB.L1-5; Ac TRL de 24.7.2020, Proc. 128/16.5SXLSB.L1-5; Ac TRG de 17.4.2023, Proc. 1183/15.0T9BRG.G1; Ac TRG de 25.1.2021, Proc.179/15.9FAF.G2; Ac TRL de 15.12.2022, Proc 804/03.3PLALM-A.L1-9; Ac TRC de 8.3.2023, Proc. 302/11.0GAMMV.C1; Ac TRE de 18.12.2023, Proc. 279/22.7Y4LSB.E1.
2. C TRL de 5.4.2022, Processo 472/21.0Y5LSB.L1-5
3. A. TRL de 16.03.2021, Processo n.º 309/20.7YUSTR.L1-PICRS.
Também nesse sentido e também no âmbito e processo de contraordenação, vide Ac TRC de 17.3.2022, Proc 806/21.7T9PBL.C1
4. Ac TRL de 11.2.2021, Proc 89/10.4PTAMD-A.L1-9:
5. Ac TRL de 7.3.2024, Proc. 7/24.2YTLSB.L1, em que é relatora a Senhora Desembargadora aqui 1º Adjunta.
6. Neste sentido, na jurisprudência, entre outros, os Acórdãos dos Tribunais da Relação de Coimbra de 7/12/2021 (Maria José Nogueira), de Guimarães de 25/1/2021 (Cândida Martinho), de Lisboa de 24/7/2020 (Jorge Gonçalves), de 21/7/2020 (Ana Sebastião), de 9/3/2021 (Vieira Lamim), de 15/12/2022 (Paula Penha) e de Évora 23/2/2021 (António Condesso), todos in www.dgsi.pt.
7. E, também: José Joaquim Fernandes Oliveira Martins, em “A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março - uma primeira leitura e notas práticas” e em “Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e a terceira vaga da pandemia COVID-19”, in Julgar online, março de 2020 e fevereiro de 2021, respetivamente, página 7 e página 8; Rui Cardoso e Valter Baptista, in «Estado de Emergência — COVID-19 — Implicações na Justiça - Jurisdição Penal e Processual Penal», Centro de Estudos Judiciários, abril de 2020, páginas 533 a 536; Germano Marques da Silva («Ética e estética do processo penal em tempo de crise pandémica», in Revista do Ministério Público, número especial COVID-19: 2020, páginas 109 a 127) e Adriano Squilacce e Raquel Cardoso Nunes, in “A suspensão dos prazos de prescrição em processo penal e contraordenacional por efeito da legislação covid-19” .
8. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1 de Fevereiro de 2023, processo n.º 544/22.4T9AVR.P1, in www.dgsi.pt.