RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
DUPLA CONFORME
REJEIÇÃO PARCIAL
PENA ÚNICA
CÚMULO JURÍDICO
MEDIDA DA PENA
ABUSO DE CONFIANÇA
DOENÇA MENTAL
ANOMALIA PSÍQUICA POSTERIOR
INTERNAMENTO DE IMPUTÁVEIS PORTADORES DE ANOMALIA PSÍQUICA
TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE PENAS
COMPETÊNCIA
REENVIO PREJUDICIAL
Sumário


I - Em caso de reclamação de despacho que não tenha admitido recursos (in casu, do relator na Relação e que inicialmente não os admitiu para o STJ), a decisão do vice-presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar (mesmo parcialmente) o despacho de indeferimento. Porém, dada a sua eficácia provisória, não vincula o tribunal de recurso quanto à admissibilidade, efeito e regime de subida, o qual pode decidir não admitir ou então atribuir também um efeito e regime de subida diferentes. Por outras palavras, deve entender-se do sentido e alcance normativo que a não vinculação do tribunal superior se refere à admissibilidade (parcial ou total) e não ao despacho do Vice-Presidente do STJ na parte em que não admitiu os recursos e limitou a apreciação à matéria da pena única.
II - O tribunal superior (in casu o STJ) pode concordar ou não com a admissibilidade nesta parte mas já não pode discutir se o que não foi admitido o deveria ter sido, sendo que qualquer discordância da defesa na parte não admitida pelo despacho que incidiu sobre a reclamação, mesmo no plano da constitucionalidade, teria de o ser sobre o referido despacho directamente. Todo o segmento indeferido pelo despacho do Vice-Presidente do tribunal superior ficará sempre fora do objecto de análise do presente recurso, o qual incidirá apenas sobre a discussão atinente à pena unitária. Essa decisão é, pois, definitiva, quanto ao segmento em que confirma, rejeitando a reclamação, o despacho de indeferimento (total ou parcialmente) sem prejuízo de eventual recurso de constitucionalidade. Pelo contrário, quando revoga o despacho reclamado (mesmo parcialmente) e ordena a admissão do recurso ou a sua subida imediata, essa decisão vincula apenas o juiz do tribunal recorrido mas já não o tribunal de recurso.
III - Tendo sido o arguido condenado em 1.ª instância pela prática de 3 crimes de abuso de confiança qualificado p. e p., no art. 205.º, n.º l e n.º 4, al. b), do CP, nas penas parcelares de 4 anos de prisão cada um e, em cúmulo jurídico, na pena unitária de 6 anos de prisão, penas essa parcelares confirmadas em recurso interposto pelo MP para o Tribunal da Relação (pedindo o agravamento das penas parcelares e da pena unitária) mas que agravou a pena unitária de 6 para 8 anos de prisão, é admissível o recurso interposto para o STJ, [admissibilidade essa desde logo confirmada previamente em despacho proferido pelo Sr Vice-Presidente do STJ incidente sobre reclamação de despacho do relator no Tribunal da Relação que não admitiu o recurso com fundamento no disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP] recurso esse para o STJ limitado por tal despacho de admissibilidade, apenas à apreciação apenas da pena única quanto ao agravamento sofrido, ficando de fora todas as questões atinentes à matéria de facto, imputabilidade, qualificação jurídica dos crimes e penas parcelares (de 4 anos de prisão), condições socio económicas, familiares, pessoais e clínicas do arguido, direito de defesa e determinação de meios de prova que estejam abrangidas na dupla conforme, já analisadas em dois graus de recurso.
IV - O elemento central da norma contida no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, que define a não recorribilidade e os critérios da dupla conformidade decisória é a confirmação, integral ou in mellius, da decisão recorrida. No caso, tendo a Relação agravado a medida da pena única, a confirmação é apenas parcial. Porque não houve dupla conforme, integral ou in mellius, não resulta verificada a inadmissibilidade de recurso em mais um grau, estabelecida nas disposições conjugadas dos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. f), do CPP. No respeitante à pena única, ocorreu agravamento, havendo assim, nesse segmento, divergência entre as duas decisões, em prejuízo do condenado. Por outro lado, se não se considerasse que não houve dupla conforme no respeitante à pena única em que o arguido foi condenado, então haveria que aplicar o disposto na al. e) do n.º 1 do mesmo preceito, onde se estabelece serem irrecorríveis os “acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos ...”, pelo que, no respeitante à pena única aplicada pela Relação no acórdão recorrido, por ser superior a 5 anos sempre seria admissível recurso ao abrigo da referida al. e) do n.º 1 do art. 400.º, para a qual remete o disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP.
V - O art. 432.º, n.º 1, do CPP dispõe que se pode recorrer para o STJ das decisões proferidas em recurso que não sejam irrecorríveis nos termos do art. 400.º, o que será o caso das decisões das Relações, entre outras (como o caso da confirmação condenatória) mas que confirmem pena superior a 8 anos de prisão- art. 400.º, n.º 1, al. f), a contrario e quando em recurso agravem decisão condenatória da 1.ª instância em pena de prisão (parcelar ou única) superior a 5 anos. Nestes casos, e porquanto a Lei 94/2021, de 21-12 não aditou expressamente (podendo tê-lo feito, se fosse essa a intenção do legislador) à parte final da al. b) o n.º 1 do art. 432.º a referência aos “fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º do CPP”, diferentemente do que sucedeu expressamente com as als. a) e c) do mesmo preceito, não pode o recurso, nos seus fundamentos, convocar no todo ou em parte, os vícios ali aludidos nesse art. 410.º, n.os 2 e 3, do CPP - cfr neste sentido os Ac do STJ de 15-02-2023, proc. 7528/13.0TDLSB.L3.S1 e de 01-03-2023, processo 589/150JABRG.G2.S1.
VI - Ainda assim, o seu conhecimento (apenas ou ainda que) oficioso, e não por ter havido invocação de vícios ou nulidades como fundamento de recurso, não ficará arredado quando se tratar de situações em que seja evidente, patente e notória a sua verificação. Sendo as penas parcelares inferiores a 5 anos de prisão e apenas a pena única superior a esse limite ainda que igual ou inferior a 8, fica arredada a arguição de recurso com fundamento em vícios atinentes às penas parcelares e à pena única ( no âmbito pelo menos até ao segmento de anos de prisão confirmado) pois dentro daquela dupla conformidade o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1.ª instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), não podendo ser novamente objeto de recurso para o STJ a matéria relacionada com a determinação da medida das penas individuais pelas quais o recorrente foi condenado.
VII - Assim, tem de se concluir que é irrecorrível a decisão firmada pelo Tribunal da Relação na parte em que, de facto e de direito, confirmou a decisão da primeira instância e fixou as penas parcelares e a pena única (esta pelo menos nos 6 anos, excepto no que a agravou), e no tocante todas as questões procedimentais ou substantivas que as pudessem afectar nesses limites, entre os quais a própria fundamentação da não suspensão da execução da pena ao abrigo do art. 106.º do CP, a qual nem sequer foi afectada ou diferenciada na solução apesar daquele agravamento).
VIII - A limitação de cognoscibilidade decorre ainda da circunstância de a Relação se ter baseado na apreciação da matéria de facto fixada também quanto à condição clínica do arguido, sem prejuízo de posição do STJ sobre a matéria ainda relevante quanto às alegadas condições de agravamento da doença no decurso da pendência do recurso (no intervalo entre a decisão de 1.ª instância e a decisão do recurso interposto para a Relação e, depois, para o STJ.)
IX - Na operação de aferição sobre o processo de apreciação da escolha e da determinação da medida da pena, em sede de recurso, a aferição de proporcionalidade terá de verificar em que medida foram ou não igualmente respeitados os procedimentos hermenêuticos mas é consensual que a intervenção do tribunal ad quem tem no essencial uma função de “remédio jurídico”, a ele cabendo identificar incorreções, omissões ou erros evidentes atinentes ao raciocínio hermenêutico incidente nas normas constitucionais, convencionais e legais aplicadas ou mobilizáveis, por parte da instância recorrida.
X - Apenas nesse patamar é legítimo ao tribunal de recurso proceder à alteração do quantum da pena, não podendo interpretar e decidir como se fosse inexistente decisão anteriormente proferida. O escrutínio da adequação ou correção da medida da pena em sede de recurso será incontornável sobretudo em caso de manifesta desproporcionalidade (injustiça) ou de violação da racionalidade e das regras da experiência (arbítrio) na configuração e estruturação das operações tidas como necessárias à sua determinação nos parâmetros da lei. Nessas e em função dessas circunstâncias é que se justificará uma intervenção modificadora pelo tribunal ad quem na escolha e a determinação da medida da pena.
XI - Mostra-se adequada e proporcional a agravação da pena única de 6 para 8 anos de prisão, nos termos determinados pelo Tribunal da Relação tendo em conta, apesar da brandura das 3 penas parcelares de 4 anos de prisão cada, fixadas por cada crime de abuso de confiança qualificado envolvendo um total superior a 11 milhões de euros, o elevadíssimo nível do grau de culpa e de dolo, exigindo-se do arguido, face à sua elevada conotação pública e importância nos domínios bancário e financeiro, uma postura moral, ética e jurídica muito acima da maioria das pessoas, que “o tribunal a quo, ao atribuir à pluralidade de crimes algum efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”, não espelhou na pena única esse efeito agravante, pena que se situou em 1/4 da moldura penal aplicável, significativamente abaixo do que considerou quanto às penas parcelares e, também, que o arguido revelou postura de total ausência de autocrítica relativamente à ilicitude e danosidade das suas condutas ilícitas, que desvalorizou com indiferença perante as consequências nefastas dos seus próprios actos, que não procurou colmatar, bem como a importância das expectativas da comunidade no sentido da defesa do ordenamento jurídico, (…) elevadas, o facto de a actuação do arguido parecer um paradoxo de contornos muito pouco claros perante a sua suposta integridade e do seu muito elevado bem estar económico familiar e social, ao longo da sua vida, se comparado com o baixo nível de vida da maioria dos seus concidadãos, cuja possível explicabilidade não deixa de evidenciar aquilo que nas instâncias foi já caracterizado como ganância, ausência de autocrítica e indiferença pelos danos causados, em si alheias à doença de Alzheimer (cujo estado e nível de agravamento ainda não se conhecem bem desde as condenações), a sua imputabilidade determinada definitivamente pelas instâncias em matéria de facto, bem como o elevado grau de prevenção geral, quer positiva quer negativa, desse modo sufragando as elevadas expectativas comunitárias numa punição assertiva, que sirva como sinal de saudável funcionamento do sistema de justiça e por ela se contribua para se evitarem outros casos como o do arguido.
XII - É consabido que a doença de Alzheimer, face aos conhecimentos científicos, e mesmo perante as regras da experiência ou do que dela se apreende em inúmeros casos clínicos, se trata de uma doença de evolução lenta, mas que acaba por ser incapacitante e geradora de sinais equivalentes a demência progressiva.
XIII - É intempestiva e inapropriada a junção a 3 dias da audiência de recurso, no STJ, de documentos supervenientes reportados a relatórios periciais médicos elaborados já na fase posterior aos Acórdãos recorridos no âmbito de outros dois processos judiciais pendentes, visando responder a questões muito concretas (como a capacidade de comparência e de prestação de declarações em julgamento), exames esses baseados quase na totalidade em documentação clínica muito anterior à prolação daquele acórdão, alguns até anteriores ao acórdão da 1.ª instância. A junção de tais relatórios médicos periciais requerida naquele timing processual, podendo tê-lo sido quase 2 meses antes, viola uma razão de proporcionalidade na escolha do “timing”, sabendo a defesa que o processo já tinha ido a vistos , sendo ainda de sublinhar que tal junção visaria poder aferir-se da existência de factualidade demonstrativa de agravamento superveniente da situação clínica do arguido com vista à possibilidade de aplicação do art. 106.º do CP, isto é, em caso de aplicação de uma pena de prisão, esta ser suspensa na sua execução nas condições ali indicadas.
XIV - Sendo matéria de facto atinente à prova de um agravamento da doença degenerativa, e independentemente do alcance que, de tais relatórios, por muita seriedade e alcance que os enforme, se pudesse retirar , essa prova não pode ser produzida em recurso, no qual se conhece matéria apenas de direito, seria irrelevante, reportada que seria à aferição de matéria de facto que não é da competência do Supremo Tribunal e, derradeiramente, nem sequer tenderia a cabalmente habilitar que se respondesse de forma clara e acertada à matéria subjacente à problemática da aplicação do art. 106.º do CP, ligada ao problema de saber se, em caso de o arguido sofrer de uma anomalia psíquica superveniente ao crime, ela estará já em nível de agravação tal que o coloque na impossibilidade de compreender o sentido de uma pena de prisão.
XV - A aferição do estado clínico do arguido pode e deve ser efectuada mesmo antes da execução da pena pelo tribunal da condenação e não apenas pelo TEP, no caso de haver sinais ou evidências clínicas inequívocas até à data da execução de que a doença do arguido lhe provoca já uma anomalia psíquica que, mesmo não o tornando perigoso, seja de tal modo grave que o torne incapaz de compreender o sentido e execução da pena.
XVI - O art. 106.º do CP não viola preceitos de ordem jurídica da União Europeia, quer convencional quer dos Tratados quer ainda de direito derivado. A sua aplicação para eventual suspensão supõe e suporia dados clínicos de facto demonstrativos do real agravamento cabível numa para eventual aplicação dessa norma, afinal não demonstrados ainda no caso concreto e, caso o estivessem, dela não resultaria nenhuma dúvida interpretativa ou confronto com qualquer disposição de direito comunitário europeu que salvaguarde e/ou garanta direitos fundamentais.
XVII - Um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE para apreciação da problemática de aplicação norma seria injustificado, tão pouco incidiria sobre a apreciação de validade dos actos institucionais ou consubstanciaria reenvio de interpretação de “actos institucionais, tratados e actos equivalentes – nomeadamente acordos internacionais” em que a União é parte, princípios gerais de direito e os actos jurisdicionais anteriores, questão essa não conflituante no caso dos autos.
XVIII - Suscitar assim uma questão prejudicial ao TJUE não assentaria sobre uma decisão nem existem dúvidas sobre uma questão necessária ao julgamento da causa que se caracterize como prejudicial.
XIX - O facto de alguém sofrer de doença de Alzheimer, sem mais, não justifica aplicação do mecanismo de suspensão previsto no art. 106.º do CP e esta norma, quando comprovada a doença num estado tal que importe uma anomalia psíquica de tal modo incapacitante da compreensão do sentido e finalidade da execução da pena, não importa dúvidas algumas (v.g. interpretativas) em como possa ou deva ser aplicada, estando claramente em consonância com os elevados padrões de respeito, vg, das normas internacionais e europeias em sede de salvaguarda de direitos humanos fundamentais contidos nos Tratados e Convenções Internacionais.

Texto Integral









Acordam em Audiência na 5ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça


I-RELATÓRIO


1.1.


A) Por acórdão proferido no procº comum colectivo n.º 9153/21.3 T8LSB do Juízo Central Criminal de ... - Juiz ..., de 7 de Março de 2022, foi decidido:

[“«A – Condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p., no artigo 205.º n.º l e n.º 4 alínea b) do Código Penal (relativamente à transferência de € 4.000.000,00, com origem em conta da "Espírito Santo..., S.A." na Federação ... para conta da "C... S...", titulada pela sociedade em offshore "S..., C...", controlada pelo arguido, em 21 de Outubro de 2011) na pena parcelar de 4 (quatro) anos de prisão.

B – Condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p., no artigo 205.º n.º l e n.º 4 alínea b) do Código Penal (relativamente à transferência de € 2.750.000,00 – quantia proveniente de transferências da conta da "Espírito Santo..., S.A." na Federação ..., para conta titulada pela sociedade "G..., Ltd." na Federação ..., controlada por BB – da conta da "G..., Ltd." para conta da "C... S..., titulada pela sociedade em offshore "S..., C...", controlada pelo arguido, em Novembro de 2010, na pena parcelar de 4 (quatro) anos de prisão.

C – Condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p., no artigo 205.º n.º l e n.º 4 alínea b) do Código Penal (relativamente a transferência CHF 4.900.000,00 (€ 3.967.611,00) - quantia proveniente de transferências da conta da "Espírito Santo..., S.A." na Federação ..., para a conta da "P..., S.A." titulada por CC - da conta da "P..., S.A." e com destino a conta da "L..." titulada pela sociedade em offshore "B..., S.A.", controlada pelo arguido, em 22 de Novembro de 2011, na pena parcelar de 4 anos de prisão.

D - Condenar o arguido AA em cúmulo jurídico de penas, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, na pena única de 6 (seis) anos de prisão.

(…)”

B) Os factos nele provados e não provados são os seguintes: (por transcrição do texto original)

Factos Provados e não provados no Acórdão ( na versão pdf) de 1ª instância (páginas 2 a 55 Provados; e 56 a 66-Não provados)

“(…)

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA

De relevante para a discussão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:

Da pronúncia

1. Formalmente, entre outros, o arguido AA
assumiu os seguintes cargos nos órgãos sociais das sociedades que compunham o "Grupo Espírito Santo":

1. Presidente da Comissão Executiva da "Banco Espírito Santo, S.A.";

2. Vice-Presidente do Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A.";

1. Presidente da Comissão Executiva do "Banco Espírito Santo Investimento, S.A." (BESI);

2. Presidente do Conselho de Administração da "Espírito Santo I... – Sociedade Gestora de Participações Sociais";

3. Presidente do Conselho de Administração da "Espírito Santo F..., S.A.";

4. Administrador da "Espírito Santo C..., S.A.";

5. Administrador da "Espírito Santo R..., Limited.";

6. Administrador da "Espírito Santo S..., S. A.";

- Presidente do Conselho de Administração da "BANCO Espírito Santo A... – Sociedade Gestora de Participações Sociais";

- Presidente do Conselho de Administração da Espírito Santo A... (ES...);

7. Administrador da "B... Espírito Santo, S.A.";

8. Presidente do Conselho de Administração da "Espírito Santo B... (...)".

2. As sociedades do "Grupo Espírito Santo", "Espírito Santo S..., Limited", sediada em ..., na Suíça e a "E....... ..... ..........", sediada no Luxemburgo e com sucursal em ..., na Suíça, responsáveis pela gestão financeira e contabilística do grupo, eram, igualmente, controladas pelo arguido AA.

3. Paralelamente, e entre outras, gravitava na esfera do "Grupo Espírito Santo" a sociedade "E..., Limited" (anteriormente denominada "Espírito Santo Financial (...), S.A." e "Espírito Santo..., S.A."), também controlada pelo arguido AA e utilizada pelo mesmo para movimentar fundos e realizar pagamentos sem que a sua origem, destino e justificação fosse revelada,

4. Além destas sociedades, o arguido AA dispunha de sociedades constituídas em off-shore controladas por si e que utilizava na concretização de operações financeiras no seu interesse pessoal, ou para efectuar pagamentos, sem que a sua origem, fundamento e destino fosse detectada e também com o objectivo de obstar ao seu manifesto fiscal.

5. Nomeadamente, na concretização desses fins utilizava as sociedades "S..., C..." e "B..., S.A.", ambas domiciliadas no ....

Movimentos financeiros efectuados para a esfera do arguido AA a partir da conta aberta em nome da "G..., Ltd." (artigos 5276.º a 5285.º)

6. No dia 8 de Novembro de 2010, na conta com o número .....24, aberta junto da "C... S..., em nome da entidade "G..., Ltd.", foi creditada a quantia de € 7.500.000,00 – Aba 20-P, fls. 41486.

7. Logo que recebida a referida quantia, BB tratou de realizar a favor do arguido AA uma primeira transferência, no montante de € 1.500.000,00, para a conta aberta em nome da entidade "S..., C...", tal como o arguido AA lhe havia indicado.

8. Assim, BB elaborou e assinou um documento, com data aposta de 8 de Novembro de 2010, no qual se solicita que, a partir da conta bancária aberta, junto da "C... S..., em nome da entidade "G..., Ltd.", seja efectuada uma transferência, no valor de € 1.500.000,00, a favor da conta com o número ..........33, aberta, junto da "C... S..., em nome da entidade "S..., C..." – Aba 20 - P, fls. 41362.

9. A entidade "S..., C...", constituída no dia 18 de Novembro de 2009, com sede no ..., tem como beneficiário final o arguido AA – Aba 131-B, fls. 67037-68048.

10. Em Dezembro de 2009, em nome da entidade "S..., C...", o arguido AA fez abrir, junto da "C... S..., a conta com o número ..........33, que tem como beneficiários finais e pessoas com poderes de movimentação o próprio arguido AA e a sua mulher EE – Aba 131-B, fls. 67001-67004.

11. No dia 9 de Novembro de 2010, em conformidade com o documento acima referido, feito chegar por BB ao seu gestor de conta, foi realizada uma transferência, a partir da conta bancária aberta, junto da "C... S..., em nome da entidade "G..., Ltd.", no montante de € 1.500.000,00, a favor da conta com o número ..........33, aberta, junto da "C... S..., em nome da entidade "S..., C..." – Aba 20-P, fls. 41486; Aba 131-B, fls. 67121; Aba 131-B, fls. 67176-67177.

12. No dia 18 de Novembro de 2010, o arguido AA fez transferir para a conta com o número .....24, aberta junto da "C... S..., em nome da entidade "G..., Ltd.", nova quantia de € 7.500.000,00 – Aba 20-P, fls. 41486.

13. Da mesma forma que anteriormente, também BB, uma vez recebida esta nova quantia, fez transferir, no dia 19 de Novembro de 2010, a partir da mesma conta bancária em nome da "G..., Ltd.", uma segunda quantia, no montante de € 1.250.000,00, a favor da conta com o número ..........33, aberta, junto da "C... S..., em nome da entidade "S..., C...", onde foi creditado nesse mesmo dia – Aba 20-P, fls. 41486; Aba 131-B, fls. 67121; Aba 131-B, fls. 67178-67179.

14. Assim, nos dias 9 e 19 de Novembro de 2010, com origem nos fundos creditados na conta aberta em nome da entidade "G..., Ltd.", a partir de movimentos realizados a partir de conta aberta em nome da entidade "E..., S.A.", foram realizados movimentos a favor da conta aberta em nome da entidade "S..., C...", detida e controlada pelo arguido AA, no valor global de € 2.750.000,00.

      DATA
      ORIGEM
      VALOR
      DESTINO
      APENSO
      8-11-2010
      E. ..........
      € 7.500.000,00
      G.... .......
      Aba 121, fls. 68-70 Aba 20-P,
      9-11-2010
      G.... .......
      € 1.500.000,00
      S.......
      Aba 20-P, fls. 41.486 Aba 131-
      18-11-2010
      E. ..........
      € 7.500.000,00
      G.... .......
      Aba 121, fls. 77-79 Aba 20-P,
      19-11-2010
      G.... .......
      €1.250.000,00
      S.......
      Aba 20-P, fls. 41.486 Aba 131-
15. As quantias em causa, no valor global de € 2.750.000,00 foram aplicadas em títulos, tendo permanecido na esfera do arguido AA, que delas se apropriou – Aba 131-B, fls. 67121.

Movimentos financeiros para a esfera do arguido AA (artigos 5396.º a 5423.º)

16. Em meados de Outubro de 2011, o arguido AA pretendia retirar fundos da conta da então "E..., S.A." em seu próprio proveito, tendo em vista utilizar os fundos em negócios pessoais.

17. Tal como tinha feito anteriormente, designadamente em relação à "Espírito Santo Financial (...), S.A." e à "Espírito Santo..., S.A.", desde pelo menos o ano de 2002, o arguido AA determinava a realização dessas transferências de fundos da "E..., S.A." para a sua esfera, tendo como destino contas por si controladas, fazendo constar que se tratavam de empréstimos – fls. 137, do Aba 150.

18. Em Outubro de 2011, o arguido AA resolveu determinar nova operação de transferência de fundos para a sua esfera, a partir da conta da "E..., S.A.", sob a capa de um empréstimo, mas, para evitar que o seu nome ficasse associado a mais do que uma operação a débito da conta daquela entidade, resolveu também utilizar um terceiro, no caso CC, para figurar como destinatário de fundos de que o arguido AA seria afinal o beneficiário.


19.Assim, o arguido AA começou por, no dia 20 de Outubro de 2011, determinar a transferência, a partir da conta número .....43, aberta, junto da "B... Espírito Santo, S.A.", em nome da "E..., S.A.", de um montante de € 4.000.000,00, acrescido do montante de € 40,00 a título de despesas bancárias, a favor da conta com o IBAN ...................01, aberta, junto da "C... S...", em nome da entidade "S..., C...", onde foi creditado no dia 21 de Outubro de 2011 – fls. 176 do apenso busca 150, anexo 4 e Aba 121, fls. 142-145; Aba 131-B, fls. 67129.

      DATA
      ORIGEM
      VALOR
      DESTINO
      APENSO
      20-10-2011
      E. ..........
      € 4.000.000,00
      S..., C...
      Aba 121, fls. 142-145 Aba 131-B, fls. 67.129
20. O arguido AA fez constar, para efeito de registos na "E..., S.A.", que tal transferência representava a concessão de um empréstimo que a "E..., S.A." fazia à sua própria pessoa.

21. O arguido AA fez também constar que pretendia utilizar esse montante para realizar uma participação no aumento de capital da "Espírito Santo F...", sociedade que integrava o conjunto de entidades holding do "Grupo Espírito Santo", na área financeira.

22. No entanto, uma vez creditada, na conta com o

IBAN ...................01, aberta, junto da "C... S..., em nome da entidade "S..., C...", a mencionada quantia de € 4.000.000,00, o arguido AA fez transferir a mesma quantia, no dia 27 de Outubro de 2011, a favor da conta número ...79, aberta, em nome desta mesma entidade, junto da "C... S...", em ... – Aba 131-B, fls. 67129; Aba 131-B, fls. 67201-67204.

23. A referida transferência de fundos a favor da "S..., C..." obrigou a que, no dia 24 de Outubro de 2011, a partir da subconta ....43.01.100/EUR e a favor da subconta ....43.01.101/EUR/PF, abertas, junto da "B... Espírito Santo, S.A.", em nome da "E..., S.A.", fosse movimentada a quantia de € 4.200.000,00, no sentido de provisionar esta última conta que, após a realização da mencionada transferência, a favor da "S..., C..." tinha ficado com saldo negativo – Aba 121, fls. 146-151.

24. Como o arguido AA pretendia fazer retirar da "E..., S.A.", no mesmo mês de Outubro de 2011, uma outra quantia de € 4.000.000,00, decidiu, como supra-referido, fazer contabilizar a mesma, junto da referida "E..., S.A.", como sendo um pagamento a uma outra pessoa, solicitando para tal a colaboração de CC.

25. Para tal, o arguido AA, ainda em Outubro de 2011, aproveitando a circunstância de ter feito pagar para a esfera de CC, nesse mesmo mês, a quantia de cerca de € 8.000.000,00, propôs ao mesmo que fizesse uma transferência de fundos para a sua esfera pessoal, num montante de € 4.000.000,00, prometendo-lhe que, posteriormente, lhe faria pagar uma nova quantia de igual montante, como, efectivamente, veio a fazer em 11 de Janeiro de 2012, com a transferência de 4.852.000 francos suíços da aludida conta da "E..., S.A." para a referida conta de CC na "P..., S.A.".

26. Atenta a amizade que mantinha com o arguido AA e face aos pagamentos anteriormente recebidos, CC aceitou proceder tal como lhe tinha sido proposto pelo arguido AA.

27. Tendo em vista evitar operações de compensação cambial com bancos correspondentes, o arguido AA e CC combinaram realizar a operação em francos suíços.

28. Em execução do acordado com o arguido AA, CC fez elaborar e assinou um documento, com data de 2 de Novembro de 2011, em que se solicita que, a partir da conta com o IBAN ... ................00, aberta, junto da "P..., S.A.", em seu nome, seja realizada uma transferência, no valor de CHF 4.900.000,00, a favor da conta com o IBAN ...................00, aberta, junto da "L...", em nome da entidade "B..., S.A.", tal como lhe havia sido indicado pelo arguido AA – Aba 126-X, fls. 65539.

29. Neste mesmo documento, foi manuscrita informação da qual resulta que após visita de "FF" este informou que tal montante se referia a aquisição futura de um bem imóvel, em Portugal – Aba 126-X, fls. 65539.

30. A menção a "FF" refere-se a GG, que havia sido nomeado, por CC, procurador da conta ....13, aberta em nome deste, junto da "P..., S.A.".

31. CC fez assim passar a informação, mesmo perante o referido GG, de que a transferência do referido montante teria sido solicitada, alegadamente, para aquisição de um imóvel.

32. No dia 22 de Novembro de 2011, a partir da conta com o número ....13, aberta, junto do "P..., S.A.", em nome de CC foi então realizada a transferência da quantia de CHF 4.900.000,00, equivalente a cerca de € 4.000.000,00, a favor da conta com o número .....94, aberta, junto da "L...", em nome da entidade "B..., S.A.", onde foi creditada nesse mesmo dia – Aba 126-X, fls. 65538; Aba 123, fls. 66085-66087:

      DATA
      ORIGEM
      VALOR
      DESTINO
      APENSO
      12-10-2011
      E. ..........
      € 7.986.419,85
      CC
      Aba 121, fls. 139-141 Aba 126-X, fls. 65.545
      22-11-2011
      CC
      € 3.967.611,00
      B.......
      Aba 126-X, fls. 65538 Aba 123, fls. 66085
      11-02-2011
      E. ..........
      4.852.000
      CC
      Aba 150, volume 1.º
      Francos Suíços
      CC (Banco ...)
      fls. 174 e 174 verso
33. A entidade "B..., S.A." foi constituída no dia 10 de Fevereiro de 2011, com sede no ..., e tem como beneficiário final o arguido AA – Aba 123, fls. 66053-66059.

34. Em nome desta entidade, no dia 8 de Abril de 2011, foi aberta, junto do "L...", a conta com o número .....94, tendo sido indicada como beneficiária EE, casada com o arguido AA – Aba 123, fls. 66012.

35. À data foram indicados como mandatários desta mesma conta bancária, EE, o arguido AA e HH, filha de ambos – Aba 123, fls. 66013-66024.

36. Assim, a mencionada quantia de CHF 4.900.000,00, equivalente a cerca de € 4.000.000,00, creditada na conta com o número .....94, aberta, junto da "L...", em nome da entidade "B..., S.A.", entrou na esfera do arguido AA, no dia 22 de Novembro de 2011 – Aba 123, fls. 66085-66086.

37. O arguido AA logrou assim, com a colaboração de CC, apropriar-se da quantia de € 4.000.000,00, a partir de fundos do "Grupo Espírito Santo" que se encontravam depositados sob contas tituladas pela "E..., S.A.".

38. Já em Outubro de 2012, após a realização de diligências de busca, na data de 3 de Outubro desse ano, nas instalações das sociedades de II, realizadas no âmbito do processo 207/11.5..., veio o arguido AA a tomar conhecimento de o seu nome ser também visado naquele processo, designadamente por ser cliente da "A.... ..... ..........", entidade ali investigada.

39. Nessa ocasião, o arguido AA, sabendo que a conta bancária da "S..., C...", acima referida, se encontrava sob gestão da referida "A.... ..... ..........", resolveu fazer um pagamento a favor da mesma "E..., S.A.", alegando ser realizada por conta dos pretensos empréstimos que anteriormente havia beneficiado.

40. Assim, no dia 31 de Outubro de 2012, o arguido AA determinou, a partir de conta aberta em seu nome, junto da "C... S..., com o número ..........27, a realização de uma transferência, no valor de € 2.000.000,00, a favor da conta número 103.443, aberta, junto da "B... Espírito Santo, S.A.", em nome da "E..., S.A.".

41. Esta operação não foi, porém, imputada ao pagamento específico de qualquer um dos alegados empréstimos efectuados em nome da "E..., S.A." a favor do arguido AA, tanto mais que o pagamento de € 4.000.000,00 havia sido contabilizado na E..., S.A." integrado no projecto C... .... e não como empréstimo ao mesmo arguido – cfr. fls. 594, do apenso busca 150, anexo 4.

42. Com efeito, pese embora tenha sido recebida na conta de "E..., S.A." a quantia de € 2.000.000,00, com origem no arguido AA, tal pagamento veio a ser contabilizado na mesma entidade como constituindo uma dívida da mesma para com o arguido AA, tendo mesmo tal montante sido pago para uma sociedade controlada pelo arguido AA, designada "S.. ....", com registo em ..., já no ano de 2014.

Movimentos financeiros ocorridos na conta da "B..., S.A." (artigos 5424.º a 5448.º e 5460.º)

43. Para além do recebimento da referida quantia de cerca de € 4.000.000,00, correspondente a ... .......00, acima narrada, o arguido AA determinou a realização de outros movimentos, ao longo do ano de 2012, na conta titulada em nome da entidade "B..., S.A.".

44. Assim, no dia 7 de Março de 2012, a partir da conta número ...........80, aberta, junto da "C... S..., em ..., em nome da entidade "S..... ...... ....", foi realizada transferência do valor de USD 1.500.000,00 a favor da referida conta número .....94, aberta em nome da entidade "S..., C..." – Aba 123, fls. 66087-66089.

45. O arguido AA fez constar que este movimento tinha subjacente um retorno de fundos, relacionado com investimento imobiliário em Angola – Aba 123, fls. 66085-66076; Aba 123, fls. 66078.

46. A entidade "S..... ...... ...." está relacionada com a esfera familiar de II.

47. Com data de 24 de Maio de 2012, foi elaborado documento manuscrito, assinado por EE e HH, no qual é solicitado que, a partir da conta em euros aberta em nome da entidade "B..., S.A.", seja realizada uma transferência em valor correspondente a € 590,000,00, para a conta com o IBAN PT.....................27, aberta, junto da então "Banco Espírito Santo, S.A.", em nome do arguido AA – Aba 123, fls. 66095.

48. Assim, no dia 24 de Maio de 2012, a quantia de € 590.000,00 foi transferida a partir da conta aberta em nome da "B..., S.A.", para a conta com o IBAN PT.....................27, aberta, junto da então "Espírito Santo..., S.A.", em nome do arguido AA – Aba 123, fls. 66093-66094.

49. Tal movimento foi realizado sob a alegacão de representar o repatriamento de parte de activos, para Portugal, a fim de beneficiar de amnistia fiscal – Aba 123, fls. 66072.

50. À data, decorria, em Portugal, o prazo para entrega da declaração de adesão ao RERT III.

51. Também com data de 24 de Maio de 2012, foi elaborado um outro documento manuscrito, igualmente assinado por EE e HH, no qual é solicitado que, a partir da conta em euros aberta em nome da entidade "B..., S.A.", seja realizada uma transferência no valor de € 610,000,00, para a conta com o IBAN PT.....................27, aberta, junto da então "Espírito Santo..., S.A.", em nome do arguido AA – Aba 123, fls. 66095.

52. Assim, no dia 25 de Maio de 2012, a quantia de € 610.000,00, acrescida do montante de € 20,00 a título de despesas bancárias, foi transferida a partir da conta aberta em nome da "B..., S.A.", para a conta com o IBAN PT.....................27, aberta, junto da então "Banco Espírito Santo, S.A.", em nome do arguido AA – Aba 123, fls. 66096-66097.

53. O arguido AA fez também constar que tal movimento integrava o repatriamento de parte de activos, para Portugal, a fim de beneficiar de amnistia fiscal – Aba 123, fls. 66074.

54. No dia 21 de Setembro de 2002, a partir da conta número ...........56, aberta, junto da "C... S..., em ..., em nome da entidade "A..... ......... ....", foi realizada transferência do valor de € 1.500.000,00 a favor da conta número .....94, aberta em nome da "B..., S.A." – Aba 123, fls. 66104-66105.

55. Para este movimento foi feito constar ser um envio de fundos, com origem em HH, filha do arguido AA, para uma aquisição de diamantes – Aba 123, fls. 66080.

56. A entidade "A..... ......... ...." está relacionada com HH, filha do arguido AA.

57. No dia 11 de Outubro de 2012, na conta .....94, aberta em nome da entidade "B..., S.A." foi realizada a troca do montante de CHF 2.173.227,52 pelo de USD 2.320.000,00.

58. Somando o montante de USD 2.320.000,00, ao valor de USD 1.500.000,00, creditado na conta aberta em nome da entidade "B..., S.A.", por transferência realizada a partir da conta aberta em nome da entidade "S..... ...... ....", obtém-se a quantia de USD 3.820.000,00, utilizada para a operação que a seguir se narra.

59. No dia 12 de Outubro de 2012, a partir da conta número .....94, aberta em nome da entidade "B..., S.A.", foi realizada uma transferência, no valor de USD 3.820.000,00, a favor da conta com o IBAN ...................36, aberta, junto do "H... ....... .... (...), S.A., em nome da sociedade "G.. ........... ....... ...." – Aba 123, fls. 66106-66107.

60. Tal movimento destinou-se ao pagamento da aquisição de 3 (três) diamantes, no valor global de USD 3.820.000,00 – Aba 123, fls. 66082 e 66108.

61. Após realização deste movimento, a conta em dólares norte-americanos, aberta em nome da entidade "B..., S.A.", foi saldada.

62. No dia 10 de Dezembro de 2012, após a quantia de CHF 1.215.506,16 ter sido trocada pela quantia de € 1.006.041,32, foi igualmente saldada a conta em francos suíços, aberta em nome da entidade "B..., S.A.".

63. A conta euros, aberta em nome da entidade "B..., S.A.", ficou, a partir de 10 de Dezembro de 2012, com um saldo de cerca de € 2.500.000,00, que passou a ser utilizado para a realização de aplicações fiduciárias.

64. No dia 31 de Julho de 2013, a partir da conta número .....94, aberta em nome da entidade "B..., S.A." foi realizada uma transferência, no valor de € 2.000.000,00, para a conta com o IBAN ...................02, aberta, junto do JJ, em ..., em nome de HH - Aba 123, fls. 66109 a 66110.

65. No dia 8 de Agosto de 2013, a totalidade do saldo ainda existente na conta aberta em nome da entidade "B..., S.A.", no montante de € 478.390,70, foi transferida a favor da conta com o IBAN ...................02, aberta, junto do JJ, em ..., em nome de HH – Aba 123, fls. 66111 a 66112.

66. Assim, no período compreendido entre 22 de Novembro de 2011 e 8 de

Agosto de 2013, na conta aberta em nome da entidade "B..., S.A.", controlada pelo arguido AA, realizaram-se os movimentos supra descritos, e constantes do quadro que se segue:

      DATA
      ORIGEM
      VALOR
      DESTINO
      APENSO
      22.11.2011
      CC
      € 4.000.000,00
      B..., S.A.
      Aba 126-X, fls. 65538; Aba 123, fls. 66085-66087
      7.03.2012
      S..... ..... ..
      USD 1.500.000,00
      B..., S.A.
      Aba 123, fls. 66087-66089
      24.05.2012
      B..., S.A.
      € 590.000,00
      AA
      Aba 123, fls.66093-66094
      24.05.2012
      B..., S.A.
      € 610.000,00
      AA
      Aba 123, fls. 66096-66097
      21.09.2012
      A.....
      € 1.500.000,00
      B..., S.A.
      Aba 123, fls. 66104-66105
      12.10.2012
      B..., S.A.
      USD 3.820.000,00
      G.. ..........
      Aba 123, fls. 66106-66107
      31.07.2013
      B..., S.A.
      € 2.000.000,00
      HH
      Aba 123, fls. 66109-66110
      8.08.2013
      B..., S.A.
      € 478.390,70
      HH
      Aba 123, fls. 66109-66110
67.A favor do arguido AA, no ano de 2011, foram realizados movimentos no valor total de € 4.000.000,00. (artigo 13675.º)

68.O arguido AA agiu livre e voluntariamente bem sabendo que sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Actuação relativa a apropriação de quantias (artigos 13814.º a 13831.º)

69. O arguido AA ao determinar a transferência de € 4.000.000,00 com origem em conta da "Espírito Santo..., S.A." na Suíça, para conta da "C... S..., titulada pela sociedade em offshore "S..., C..." controlada por si, em 21 de Outubro de 2011, sabia que tais fundos pertenciam ao "Grupo Espírito Santo".

70. Mais sabia que tais montantes pecuniários não lhe eram devidos e que não tinha direito a fazê-los seus.

71. Tinha, igualmente, plena consciência de que agia em oposição aos deveres profissionais conferidos pelos cargos que exercia no "Grupo Espírito Santo", nos termos dos quais tinha obrigação de zelar pelos interesses e integridade patrimonial desse grupo societário.

72. Mesmo assim, decidiu utilizar tais poderes que, à data, lhe davam acesso à movimentação das contas bancarias da "Espírito Santo..., S.A." e das restantes sociedades que integravam o "Grupo Espírito Santo", para os integrar no seu património e concretizou os seus intentos.

73. Sabia, igualmente, que, com a actuação referida, causava ao "Grupo Espírito Santo" uma perda patrimonial no valor de € 4.000.000,00.

74. Até à data, tal valor não foi restituído pelo arguido AA.

75. O arguido AA ao determinar a transferência € 2.750.000,00 com origem em conta da "Espírito Santo..., S.A." na Suíça para conta titulada pela sociedade "G..., Ltd." na Suíça e desta última para conta da "C... S..., titulada pela sociedade em offshore "S..., C...", sabia que tais fundos pertenciam ao "Grupo Espírito Santo".

76. Mais sabia que tais montantes pecuniários não lhe eram devidos e que não tinha direito a fazê-los seus.

77. Tinha, igualmente, plena consciência que agia em oposição aos deveres profissionais conferidos pelos cargos que exercia no "Grupo Espírito Santo", nos termos dos quais tinha obrigação de zelar pelos interesses e integridade patrimonial desse grupo societário.

78. Mesmo assim, decidiu, recorrendo ao uso de tais poderes que à data lhe conferiam acesso à movimentação das contas bancarias da "Espírito Santo..., S.A." edas restantes sociedades que integravam o "Grupo Espírito Santo", integrá-los no seu património e concretizar os seus intentos.

79. Sabia, igualmente, que, com a actuação referida, causava ao "Grupo Espírito Santo" uma perda patrimonial no valor de € 2.750.000,00.

80. Até à data, tal valor não foi restituído pelo arguido AA.

81. O arguido AA ao determinar a transferência de € 3.967.611,00 de conta da "Espírito Santo..., S.A." para conta sediada no Banco "P..., S.A.", titulada por CC, e a sua subsequente transferência para a esfera patrimonial do arguido AA através do crédito desses fundos em conta bancária da sociedade em offshore, "B..., S.A.", controlada pelo arguido, sabia que tais fundos pertenciam ao "Grupo Espírito Santo".

82. Mais sabia que tais montantes pecuniários não lhe eram devidos e que não tinha direito a fazê-los seus.

83. Tinha, igualmente, plena consciência que agia em oposição aos deveres profissionais conferidos pelos cargos que exercia no "Grupo Espírito Santo", nos termos dos quais tinha obrigação de zelar pelos interesses e integridade patrimonial desse grupo societário.

84. Mesmo assim, decidiu, recorrendo ao uso de tais poderes que, à data, lhe
conferiam acesso à movimentação das contas bancárias da "Espírito Santo..., S.A." e das restantes sociedades que integravam o "Grupo Espírito Santo", integrá-los no seu património e concretizar os seus intentos.

85. Sabia, igualmente, que, com a actuação referida, causava ao "Grupo Espírito Santo" uma perda patrimonial no valor de € 3.967.611,00.

86. Até à data, tal valor não foi restituído pelo arguido AA.

Da contestação

87. O "Grupo Espírito Santo" era um conglomerado misto composto por
sociedades do ramo financeiro e sociedades do ramo não financeiro, estando as funções executivas do ora Arguido enquadradas na actividade do ramo financeiro, em particular da "Banco Espírito Santo, S.A." onde era CEO, sendo Administrador não executivo/Chairman na "Espírito Santo F..." (ESF...), que era a holding do sector financeiro.

88. O "Grupo Espírito Santo" tinha mais de 350 sociedades, entre holdings, subsidiárias e participadas (documento 1 do requerimento do arguido AA de 28 de Abril de 2021), que estavam geograficamente dispersas por Europa, África, América do Sul, América do Norte e Ásia.

89. Enquanto sócios de parte do capital social da holding de topo do "Grupo Espírito Santo", a "Espírito Santo C..." (que, por sua vez, detinha mais de 50% do capital social da Espírito Santo I..., S.A., S.A." (ES...), que – através da "Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." (ESI ...) – detinha a "E..., Limited"), os ramos da KK(e LL) celebraram entre si um acordo para se reunir num designado órgão familiar e parassocial designado "Conselho Superior do GES", no qual o arguido AA nem sequer integrava o ramo familiar da KK que detinha maior percentagem da ""Espírito Santo C..." e todos os membros tinham uma paridade de voto nesse órgão familiar (cfr., documento 2 junto com o requerimento do arguido AA de 28 de Abril de 2021).

90. Além do arguido AA, havia outros membros da Família Espírito e outras pessoas que davam instruções para a movimentação de fundos da "E..., Limited".

91. O valor de € 2.000.000,00 em 31 de Outubro de 2012 foi creditado na conta ...........00 da "E..., Limited", por transferência em débito na conta bancária n.º ..........27 do arguido AA junto da "C... S..." (cfr. fls. 308 do 1.º Volume do ABA 121 quanto ao crédito da "E..., Limited" e documento 4 junto com a contestação).

92. A "Espírito Santo..., S.A." fez três transferências para o arguido AA em 2002 e 2003 (CHF 450.000,00 + USD 45.000,00 + USD 2.170.000,00), tendo sido registado na "Espírito Santo..., S.A." em 21 de Maio de 2007 os valores de USD 2.460.711,84 e CHF 481.899,04 (cfr., documentos 5 a 9 juntos com a contestação).

93. O mesmo se diga da sociedade Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." (sócia única da "E..., Limited") também transferências de valores para membros do Conselho Superior do "Grupo Espírito Santo" e MM (cfr., documentos 10 a 13 da contestação).

94. A "S.. ...." fez transferências para a sociedade "R..., Ltd." (12 milhões de euros), que é controlada por NN e OO (cfr., documentos 14 a 14-B da contestação e documento 2 junto com o requerimento do arguido AA de 28 de Abril de 2021).

95. Em 15 de Janeiro de 2014, o arguido AA fez chegar à esfera da Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A."/"E..., Limited" fundos no valor de 5 milhões de euros, através de transferência para a "Espírito Santo C...", com vista à sua transferência para a "E..., Ltd.", que é detida a 100% pela Espírito Santo I..., S.A., S.A." (que, por sua vez, detém a Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A.", que detém a "Espírito Santo..., S.A.").

96. A "M..., S.A." é proprietária da Herdade do ... e tem como actividade a exploração agrícola, silvícola e pecuária (cfr., documentos 17 e 18 juntos com a contestação e, ainda, património societário e outros documentos constantes dos demais Volumes 1 a 5 do Apenso Temático BM-1).

97. A "M..., S.A." dotou a Herdade do ... de cerca de 300 hectares de sistema de rega com comando por telemetria e sistemas de cobertura permanente, um parque de máquinas (tractores, grades, refinadoras de solos, pulverizadores, etc.), tendo sido já aí produzido milho, trigo, papoila dormideira para extracção de morfina, girassol, colza sustentável (para biodiesel), bem como explora um património vitivinícola próprio de 100 hectares e 57 hectares em regime de arrendamento em ..., escoando a sua produção vitivinícola para a empresa "G..., S.A.", que produz vinhos conhecidos no mercado português e estrangeiro como o "P.........", "V.... .. .... ....." e "T..... .. .....".

98. Na presente data, a "E..., Limited" é titular de 30% do capital social da "M..., S.A.".

99. O arguido AA viu o seu património
afectado com o colapso da "Banco Espírito Santo, S.A." e "Grupo Espírito Santo" e ainda as suas contas arrestadas e bloqueadas.

Gestão Centralizada do "Grupo Espírito Santo".

100. Do ponto de vista dos factos concretos de gestão, o "Grupo Espírito Santo" não é uma realidade/entidade, porque os actos de gestão são praticados em cada uma das concretas sociedades que compunham o "Grupo Espírito Santo", em particular, nos respectivos conselhos de administração.

101. O "Grupo Espírito Santo" foi uma expressão utilizada por facilidade para se referir a um grupo conglomerado misto, que incluía sociedades comerciais dos ramos financeiro e não financeiro.

102. As funções e actividades executivas do arguido AA estavam enquadradas e integradas no ramo financeiro do "Grupo Espírito Santo".

103. Em 2010/2011, a estrutura societária do "Grupo Espírito Santo" da "parte superior" ou holdings deste grupo era composta pelas seguintes sociedades e participações, encabeçada pela "Espírito Santo C..." (E..) que, por sua vez, detinha então 53,1% da Espírito Santo I..., S.A." (ES...) (cfr. documento 30).

104. Em 2010/2011, o ramo financeiro do "Grupo Espírito Santo" corresponde à sub-holding "Espírito Santo F..." (ESF...).

105. Em 2010, a "Espírito Santo F..." detinha 43,2% dos direitos de voto na "Banco Espírito Santo, S.A." e 30,1% dos direitos económicos da "Banco Espírito Santo, S.A." e, em 2011, detinha 37,8% dos direitos de voto na "Banco Espírito Santo, S.A." e 26,4% dos direitos económicos da "Banco Espírito Santo, S.A." (detido através de uma parceria com a "C..... ........" na "B.....", na qual a "C..... ........" detinha 32,6%).

106. O ramo não financeiro incluía a "Espírito Santo C...", a Espírito Santo I..., S.A.", a "Espírito Santo R..." e a "R.......".

107. Em Junho de 2005, a Assembleia Geral da "Espírito Santo C..." reconduziu os seguintes administradores nestas funções como membros da Conselho de Administração da "Espírito Santo C..." pelo período de seis anos, até 2011: Comandante PP (Presidente ou Chairman), QQ, o ora Arguido, NN, RR, SS, TT, UU, VV, WW, XX, YY e ZZ (cfr., documento 32 junto com a contestação do arguido AA).

108. Em Junho de 2011, foram reconduzidos como membros do Conselho de Administração da "Espírito Santo C..." até 2017, as seguintes pessoas: Comandante PP (Presidente ou Chairman), QQ, o ora Arguido, NN, SS, RR, TT, UU, VV, WW, XX, YY e ZZ (documento 32 junto com a contestação do arguido AA).

109. O arguido AA era administrador não executivo da "Espírito Santo C...".

110. MM foi nomeado e reconduzido como "commissaire aux comptes" da "Espírito Santo C...".

111. Em 2010, o Conselho de Administração da "Espírito Santo International" (que detinha 100% da "Espírito Santo F... (...), S.A." que, por sua vez, detinha 100% da "E..., Limited") tinha a seguinte composição (cfr. documento 34 junto com a contestação do arguido AA):

a. Comandante PP (Presidente ou Chairman);

b. QQ (Vice-Presidente);

c. o arguido AA;

d. AAA;

e. SS;

f. BBB;

(g) CCC;

(h) DDD;

(i) EEE;

(j) FFF;

(k) WW;

(l) YY;

(m) GGG;

n) HHH;

(0)III; e
(p) ZZ.

112. Em 2011, o Conselho de Administração da Espírito Santo I..., S.A."
(que detinha 100% da "Espírito Santo F... (...), S.A." que, por sua vez, detinha 100% da "E..., Limited") tinha a seguinte composição (cfr. documento 35 junto com a contestação do arguido AA):

a. Comandante PP (Presidente ou Chairman);

b. QQ (Vice-Presidente);

c. o arguido AA;

d. AAA;

e. SS;

f. JJJ;

g. WW;

h. (h) KKK;

(i) BBB;

(j) CCC;

(k) DDD;

(1) EEE;

(m) FFF;

(n) GGG;

(o) HHH;

(p) ZZ; e

(q) LLL.

113. O arguido AA era administrador não
executivo da Espírito Santo I..., S.A.".

114. MM era commissaire aux da Espírito Santo I..., S.A.", cargo que manteve.

115. As contas da Espírito Santo I..., S.A." eram assinadas pelos respectivos administradores Comandante PP (enquanto Presidente ou Chairman) e SS (por este ser administrador responsável pela área não financeira).

116. Os Conselho de Administração da Espírito Santo I..., S.A." e da "Espírito Santo C..." deliberavam e decidiam por maioria de votos dos seus membros intervenientes nas deliberações, não podendo reunir em número inferior a metade dos administradores (cfr. documentos 41 e 41-A da contestação do arguido AA.

117. Em 2012, o Conselho de Administração da "R......." tinha a seguinte composição (cfr. documento 42 da contestação): SS (Presidente), MMM, NNN, OOO, PPP, MM (administrador e membro da comissão de auditoria), QQQ (CEO), RRR (CFO) e SSS.

118. MM reportava a SS.

119. A Espírito Santo I..., S.A." organizava uma reunião anual de principais accionistas e investidores da Espírito Santo I..., S.A." e do "Grupo Espírito Santo", em ..., na Suíça (habitualmente, em Junho).

120. Nesta apresentação, o Comandante PP (Presidente da "Espírito Santo International") descrevia o cenário macro-económico e, ainda, abordava as contas e resultados da Espírito Santo I..., S.A." (cfr. documento 44 da contestação junta em pen drive, e documento 44 da contestação).

121. Após a intervenção do Comandante PP, o arguido AA fazia uma apresentação, única e exclusivamente, sobre a área financeira do Grupo que estava sob a sub-holding "Espírito Santo F..." (cfr. documento 43 da contestação).

122. E, por fim, SS fazia uma apresentação sobre a área não financeira do "Grupo Espírito Santo" (cfr. documento 43 da contestação).

123. De resto, cabia, uma vez mais, ao Comandante PP encerrar a reunião anual, enquanto Presidente da "Espírito Santo I..., S.A." (cfr. documento 43 da contestação).

124. O arguido AA era administrador não executivo da "Espírito Santo R...", juntamente com PP, SS, NN, OO, entre outros (cfr. documento 45 da contestação e, ainda, páginas 27 a 29 do relatório do Governo da "Banco Espírito Santo, S.A." de 2011 do documento 46 da contestação).

125. Antes da constituição da "R......." em finais de 2009/inícios de 2010, o responsável pela área não financeira do "Grupo Espírito Santo" era SS e o CEO ou administrador delegado era MMM.

126. Com efeito, ainda em Novembro de 2005, MMM foi nomeado como CEO e administrador-delegado da "Espírito Santo R...", tendo sido convidado para este cargo por SS, que era o responsável pela área não financeira do "Grupo Espírito Santo".

127. Aquando da constituição da "R......." em finais de 2009/inícios de 2010 (passando esta a ser a principal sub-holding da área não financeira do "Grupo Espírito Santo"), MMM foi nomeado Vice-Presidente da "R......." e QQQ passou a ser o CEO (ex-Vice-Presidente da "A. .......") (cfr. documento 48 da contestação).

128. O Comandante PP e SS assinavam e celebravam contratos, cartas e outros documentos em nome da Espírito Santo I..., S.A." (cfr., por exemplo, documentos 49 a 55 da contestação).

129. O "Grupo Espírito Santo" era composto por mais de 350 sociedades comerciais, com dispersão geográfica em todos os continentes, tendo tido presença em Portugal, Suíça, Luxemburgo, Espanha, França, Reino Unido, Brasil, Estados Unidos, Angola, Moçambique, Brasil, ..., entre outros.

130. Na década de 90 do século XX, os ramos da Família TTT (accionistas da "Espírito Santo C...") formaram um órgão familiar/suprasocietário, que ficou conhecido na prática como "Conselho Superior do GES".

131. Em 23 de Maio de 2011, PP, QQ, o arguido AA (enquanto beneficiário da "Q..., S.A." e "R...... .............. ...."), NN (enquanto beneficiário da "R..., Ltd.") e UUU (que pertence ao ramo familiar, que integra SS, e enquanto beneficiária da "V...... ......... ....") celebraram um novo acordo designado "Contrato que Regulamenta o Conselho Superior do Grupo Espírito Santo e Acordo entre os Accionistas de Referência da Espírito Santo C..., S.A." (cfr. documento 2 do requerimento do arguido AA, de 28 de Abril de 2021).

132. Este acordo foi preparado e redigido por VVV, Advogado e administrador executivo da "Banco Espírito Santo, S.A." responsável pelos pelouros jurídico e de auditoria interna.

133. Em 23 de Maio de 2011 (data da celebração do aludido acordo do Conselho Superior), os respectivos contraentes eram então titulares, no seu conjunto, de cerca 78% a 79,4% do capital social da "Espírito Santo C..." (cfr. considerando II) e cláusula 1.ª do documento 2 do requerimento do arguido AA, de 28 de Abril de 2021).

134. Em 2011 e 2013, o capital social da "Espírito Santo C..." ascendia ao valor total de EUR 130.000.000 e era representado por 16.250.000 acções, cada uma com um valor nominal de EUR 8,00 (cfr. lista de presenças da Assembleia Geral da "Espírito Santo C..." de 6 e 24 de Junho de 2013, na qual consta o número total de acções e o número de acções detidos por cada ramo da Família TTT, e certidão comercial da "Espírito Santo C..." de 26 de Março de 2014, de onde consta o total do capital social, e acta do Conselho de Administração da "Espírito Santo C...", de 26 de Maio de 2014 constantes dos documentos 56 a 58 da contestação).

135. Em 2011 e 2013, os membros do "Conselho Superior do GES" eram titulares de acções representativas de 79,49% do capital social da "Espírito Santo C...", repartidos da seguinte forma:

(a) a "V...... ......... ...." tinha uma participação de 17,579% do capital social da "Espírito Santo C...", sendo detida por membros do ramo familiar WWW, que incluía UUU e SS;

b. a "R..., S.A." tinha uma participação de 16,741% do capital social da "Espírito Santo C..." e o seu capital social era detido pelo ramo familiar XXX, que incluía NN;

c. a "A..., S.A.", que tinha uma participação de 16,046% do capital social da "Espírito Santo C...", era detida pelo ramo familiar de PP;

d. a "P..., Ltd", que tinha uma participação de 13,778% do capital social da "Espírito Santo C...", era dominada pelo ramo LL;

e. a "Q..., S.A.", que tinha uma participação de 13,139% do capital social da "Espírito Santo C...", sendo que o arguido era beneficiário da "Q..., S.A.,"; e

f. a "R...... .............. ....", que tinha uma participação de 2,21% do capital
social da "Espírito Santo C...", sendo que o arguido era beneficiário da "R...... .............. ....
"; (cfr., documento 56 da contestação, lista de presenças da Assembleia Geral da "Espírito Santo C..." de 6 e 24 de Junho de 2013).

136. O "Conselho Superior do GES" previa uma paridade ou "estatuto hierárquico rigorosamente idêntico" entre todos os seus ramos familiares nas reuniões deste órgão familiar ou suprasocietário, podendo cada ramo familiar designar dois membros para participar nas reuniões do Conselho Superior, tendo cada ramo familiar o exercício de um voto (cfr. cláusulas 5.1., 5.2 e 9.8 do acordo do documento 2 do requerimento do arguido AA de 28 de Abril de 2021).

137. Em particular, as cláusulas 5.1., 5.2, e 9.6 a 9.8 do acordo previam o seguinte:

"Cláusula 5.ª

(Composição e estatuto dos seus membros)

1. O Conselho Superior é composto por até dez pessoas singulares (ou por número inferior, caso alguma das Contraentes deixe de ser parte no presente Acordo), directa ou indirectamente accionistas da ES Control, cabendo a cada Contraente a designação de até dois representantes, que poderão vir a ser substituídos a todo o tempo por indicação do Contraente que o designou, observando-se para o efeito da indicação do substituto, com as necessárias adaptações, as regras estipuladas na cláusula 7.ª infra, sob pena de a substituição não produzir qualquer efeito.

2. Os membros do Conselho Superior beneficiam entre si de um estatuto hierárquico rigorosamente idêntico, enquanto membro do Conselho Superior, neste incluindo o acesso irrestrito e em idênticas condições a informação sobre o desenvolvimento da actividade das várias sociedades que integram o GES.

(…)

Cláusula 9.ª

(Funcionamento)

(…)

6. Para o Conselho Superior deliberar validamente, é necessário que estejam presentes ou representadas, pelo menos, 3/5 das Partes aqui contraentes.

7. O Conselho Superior deliberará por maioria dos membros que o constituem salvo as deliberações para as quais o presente Contrato exija uma maioria qualificada.

8. O membro ou membros designados por cada Contraente terão sempre um voto; caso um Contraente tenha indicado dois membros, o voto é exercido conjuntamente e, no caso de desacordo entre ambos prevalecerá o voto do membro com maior antiguidade nas funções".

138. O Comandante PP era Presidente do Conselho Superior.

139. No Conselho Superior do GES, tomavam parte as seguintes pessoas:

(a) Comandante PP e o seu filho JJJ (A..., S.A.
);

b. NN e OO (R..., S.A.);

2. o ora Arguido, que não indicou um segundo membro, porque considerou que o seu Filho mais velho, YYY, era então muito novo para o efeito (Q...... e R......);

3. UUU e SS (V...... ........); e

c. QQ e KKK (P..., Ltd)".

140.O arguido AA pretendeu que JJJ
fosse destituído das suas funções de CEO da "B...", com efeitos imediatos, tendo
sido convocada uma reunião do Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A." para 11 de Novembro de 2013, para tomar as "medidas consideradas adequadas" (cfr. documento 63 da contestação).

141. O arguido AA pretendia que fosse deliberada a destituição de JJJ como CEO da "BESI" nesta reunião do Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A." e, posteriormente, fosse promovida a destituição de JJJ como administrador da "Banco Espírito Santo, S.A.".

142. O arguido AA transmitiu ao Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A." que as divergências com JJJ haviam sido sanadas (cfr. acta do Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A.", de 11 de Novembro de 2013 constante do documento 64 da contestação).

143. Em Junho de 2014, os ramos familiares de SS, Comandante PP (e JJJ) e ZZZ fizeram um protocolo para afastar o arguido do cargo de CEO da "Banco Espírito Santo, S.A.", salientando para o efeito que os seus ramos familiares representavam a maioria do "Conselho Superior do GES", por três quintos (cfr. documento 65 da contestação).

144. O arguido AA era administrador não executivo da B... Espírito Santo", sendo AAAA CEO ou Presidente da Comissão Executiva, NN Presidente do Conselho de Administração ou Chairman e BBBB o respectivo Vice-Presidente (cfr. página 2 do relatório e contas da B... Espírito Santo" do documento 67 da contestação).

145. No total, o Conselho de Administração da "B... Espírito Santo" tinha 12 membros (cfr. página 2 do relatório e contas da B... Espírito Santo" do documento 67 da contestação).

146. A Comissão Executiva da "B... Espírito Santo" tinha a seguinte composição: AAAA (CEO), CCCC e DDDD (cfr. página 2 do relatório e contas da "B... Espírito Santo" do documento 67 da contestação).

147. O arguido AA era administrador não executivo da "Espírito Santo B... (...)", sendo que este banco tinha uma estrutura funcional e quadros operacionais próprios no ..., que reportavam à respectiva Comissão Executiva à qual o arguido não pertencia (cfr. relatórios de controlo interno do "Espírito Santo B... (...)" de 2012 e 2013 dos documentos 68 e 69 da contestação).

148. O Conselho de Administração da "Espírito Santo B... (...)" também era composto por EEEE (Vice-Presidente) e FFFF (membro executivo e responsible officer) (cfr. relatório de Governo da o "Banco Espírito Santo, S.A." de 2011 do documento 46 da contestação).

149. O arguido AA era administrador não executivo da "Espírito Santo S..., tal como NN (cfr. relatório de Governo da "Banco Espírito Santo, S.A." do documento 46 da contestação).

150. O arguido AA não contactava com os quadros e directores da "Espírito Santo S..., nomeadamente com GGGG, HHHH e IIII, sendo que IIII contactava e reportava a MM, sendo que este último é que dava instruções à "Espírito Santo S... (cfr., por exemplo, documentos 70 a 71-B da contestação).

151. Em 12 de Março de 2014, já com MM de saída das sociedades comerciais do "Grupo Espírito Santo" em que desempenhou funções, IIII enviou a MM e a JJJJ a seguinte mensagem de correio electrónico (cfr. documento 72 da contestação):

"MM e JJJJ

Je fais suite à notre séance interne du 6ct, laquelle a été initiée par moi-même, ainsi qu’à mes échanges depuis lors avec MM et vous remercie de votre écoute.

A la suite de cette séance, il me paraît utile de rappeler les éléments suivants:

• J’ai fait l’objet d’humiliations qui ont jeté le discrédit sur mon autorité devant les collaborateurs d’E.., ceci par les différentes demandes de démissions proférées par MM envers moi, lors des séances de travail, et aussi la disqualification du travail que j’ai fourni ou de mon attitude au travail. Tout cela sans motifs valables. J’ai été agréablement surpris que MM reconnaisse les faits et je m’étonne qu’il ne s’explique pas sur ce comportement.

Les attaques de MM sont infondées et elles m’ont personnellement blessé et je ne peux plus les supporter. Ceci est une des raisons pour lesquelles j’ai sollicité la présence du Directeur des RH de la B... lors de notre entretien. Sa présence comme médiateur devait

nous permettre de répondre aux questions liées au droit du travail suisse. Il est regrettable que MM n’ait pas voulu la présence du Directeur RH de la B....

Durant ces deux jours passés, je constate que JJJJ ne m'a adressé ni reproche, ni remarque négative, bien que MM m'avait dit à plusieurs reprises que JJJJ voulait me parler.

Je note que MM n’a jamais manifesté ou exprimé d’excuses pendant notre séance. Or, il est important de rétablir mon image auprès des collaborateurs d’E.., car ce sont mes subordonnés et les attaques dont j’ai été victime ont passablement entamé l’autorité que j’avais sur eux.

• Vacances : Je vous signale que l’année dernière j’ai pris 25 jours de vacances sur undroit annuel de 30 jours. Au 31.12.2013, il reste un solde de 22 jours hors va cances 2014.

Ceci montre bien que je ne prends pas « trop » de vacances et les accusations de MM à ce titre sont infondées. Je précise que pour les dernières vacances que j’ai prises, compte tenu de la situation au sein de l’entreprise, tous mes collaborateurs étaient prévenus qu’en cas de besoin je pouvais revenir au bureau.

J’espère que cette situation ne se reproduira pas. En effet, il est inutile, voire contreproductif, d’ajouter des tensions interpersonnelles aux tensions naturelles d’ordre professionnel que nous vivons en ce moment, en particulier au titre de « l’erreur » qui ne me concerne pas dès lors que dans cette affaire je n’ai été qu’un simple exécutant des instructions reçues de MM, et ce malgré moi.

J’espère très sincèrement que je n’aurai plus à subir des remarques désobligeantes et infondées à l’avenir.

J’espère très sincèrement que je n’aurai plus à subir des remarques désobligeantes et infondées à l’avenir”.

Tradução Livre:

Escrevo-vos na sequência da nossa reunião interna de 6 de Outubro, que foi iniciada por mim, assim como das impressões que troquei com o MM desde então, e agradeço-vos por me ouvirem.

Na sequência dessa reunião, parece-me útil relembrar os elementos seguintes:

• Eu fui alvo de humilhações que contribuíram para desacreditar a minha autoridade
perante os colaboradores da E.. devido às diversas ordens de demissão que me foram dirigidos pelo MM, durante reuniões de trabalho, e à desqualificação do trabalho por mim desenvolvido e da minha atitude no trabalho. Tudo isso sem motivos válidos. Fiquei agradavelmente surpreendido por o MM reconhecer os factos e espanta-me que ele não se explique sobre esse comportamento.

Os ataques do MM são infundados e magoaram-me pessoalmente e já não os consigo suportar. Esta é uma das razões pelas quais solicitei a presença do Director de RH da B... na nossa reunião. A sua presença como mediador devia permitir-nos responder às questões ligadas ao direito do trabalho suíço. É lamentável que o MM não tenha querido a presença do Director RH da B....

Durante os últimos dois dias, constato que o JJJJ não me dirigiu qualquer censura/crítica ou comentário negativo apesar de o MM me ter dito várias vezes que o JJJJ queria falar comigo.

Noto que o MM nunca manifestou ou exprimiu quaisquer desculpas durante a nossa reunião. No entanto é importante restaurar/restabelecer a minha imagem junto dos colaboradores da E.. uma vez que estes são meus subordinados e os ataques dos quais fui vítima minaram bastante a autoridade que eu tinha sobre eles.

• Férias: Assinalo-vos que o ano passado eu tirei 25 dias de férias num direito anual de 30 dias. A 31.12.2013, resta-me um saldo de 22 dias sem contar com as férias de 2014. Isto mostra bem que eu não tiro “demasiadas” férias e que as acusações do MM a este título são infundadas. Esclareço que nas últimas férias que tirei, tendo em conta a situação dentro da empresa, todos os meus colaboradores estavam prevenidos de que em caso de necessidade eu poderia regressar ao escritório.

Espero que esta situação não se repita. Com efeito, é inútil, leia-se contraprodutivo, adicionar tensões interpessoais às tensões naturais de ordem profissional que vivemos neste momento, particularmente a título do “erro” que não me diz respeito uma vez que neste assunto eu não era senão um mero executante das ordens do MM, para meu pesar.

Espero sinceramente não ter de voltar a ser sujeito a mais observações infundadas e depreciativas no futuro".

152. Para além de administrador da "R.......", sendo MM "commissaire aux comptes" da "Espírito Santo C..." e da Espírito Santo I..., S.A." – sociedade de que a "Espírito Santo S... elaborava a contabilidade –, MM interagiu e articulou-se (directamente e sem intervenção do arguido AA) com administradores e quadros do ramo financeiro (B...) e não financeiro do "Grupo Espírito Santo" (p. ex., RRR e KKKK), com a própria "K..." para efeitos de elaboração do rating da Espírito Santo I..., S.A." mesmo em Outubro/Novembro de 2013 (cfr. documentos 73 a 75-A da contestação) e, ainda, com a empresa "S. ...... ....", que prestava assessoria ao "Grupo Espírito Santo" no Luxemburgo (cfr. documento 75-B da contestação).

153. Em 2011, o Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A."

tinha a seguinte composição (cfr. página 13 do relatório de Governo da "Banco Espírito Santo, S.A." de 2011 do documento 46 da contestação):

a. LLLL (Presidente);

b. o arguido AA;

c. MMMM;

d. AAA;

e. NNNN;

f. OOOO;

(g) FFF;

(h) SS;

(i) PPPP;

(j) QQQQ;

(k) RRRR;

(l) SSSS;

(m) WW;

(n) TTTT;

(o) UUUU;

(p) VVVV;

(q) WWWW;

(r) KKK;

(s) XXXX

(t) YYYY;

(u) ZZZZ

(v) AAAAA;

(w) BBBBB;

(x) CCCCC; e

(y) DDDDD

154. Neste Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A." em funções em 2011, o "C..... ........" era representado pelas seguintes pessoas: MMMM, BBBBB, CCCCC e DDDDD (cfr. página 13 do relatório de Governo da "Banco Espírito Santo, S.A." do documento 46 da contestação).

155. Em 2011, a "C..... ........" detinha uma participação 10,34% no capital social da "Banco Espírito Santo, S.A.", dos quais 8,63% eram detidos directamente e 1,71% através da "BES Vida".

156. Para além disso, a "C..... ........" detinha uma participação de cerca de 27% na "B....." que, por sua vez, detinha 35% do capital social da "Banco Espírito Santo, S.A." em 2011 (página 301 do prospecto de aumento de capital da "Banco Espírito Santo, S.A." de 2014 do documento 77 da contestação e, ainda, página 38 relatório de governo da "Banco Espírito Santo, S.A." de 2011 do documento 46 da contestação).

157. Em 2011, a Comissão Executiva da "Banco Espírito Santo, S.A." tinha a seguinte composição (cfr. página 13 do relatório de Governo da "Banco Espírito Santo, S.A." de 2011 do documento 46 da contestação):

a. o arguido AA;

b. AAA;

c. NNNN;

d. OOOO;

(e) PPPP;

f. QQQQ;

g. RRRR; (h) UUUU; e (i) WWWW.

158. Quer o Conselho de Administração, quer a Comissão Executiva deliberavam
por maioria de votos dos administradores intervenientes nas reuniões.

159. Em 13 de Julho de 2014, na última reunião do Conselho de Administração
da "Banco Espírito Santo, S.A.", em que o arguido AA participou, este fez constar em acta a seguinte declaração (cfr. página 4 da respectiva acta do Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A." do documento 78 da contestação):

"(…) Um exemplo sintomático da coesão invulgar da equipa que teve a honra de dirigir ao longo do tempo foi a de não haver memória da necessidade de em reuniões da Comissão Executiva se proceder a uma votação formal sobre quaisquer deliberações, tendo sido sempre possível estabelecer os necessários consensos entre todos os seus membros".

160. Nessa reunião do Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A.", de 13 de Julho de 2014, ninguém suscitou nenhuma objecção a esta declaração do arguido AA e houve manifestações de agradecimento pelo desempenho das suas funções, como consta da respectiva acta (cfr., documento 78 da contestação).

161. As seguintes pessoas constavam da lista de assinaturas autorizadas e estavam, formalmente, autorizadas a realizar movimentos na conta número .....43 da "E..., Limited" na B... Espírito Santo": EEEEE, JJJJ, MM e YY (cfr. documento 79 da contestação).

162. O arguido AA solicitou a EEEEE a realização de transferências bancárias a débito a partir da conta n.º .....43 da "E..., Limited" junto da B... Espírito Santo".

163. As seguintes pessoas deram instruções a EEEEE para realizar transferências a débito na conta da "E..., Limited" na B... Espírito Santo" ou na conta da "A.... .........." que a veio a substituir em 2014: NN, JJJJ, OO, SS e QQ ( conforme registos elaborados por EEEEE sobre instruções de transferências que foram apreendidos na Suíça documentos 80 e 81 da contestação).

164. A título de mero exemplo, nestes documentos EEEEE indicou por iniciais as pessoas que lhe deram cada instrução de transferência, como NN

Espírito Santo ("J...."), QQ ("QQ") e JJJJ ("JJJJ") (cfr. documentos 80 e 81 da contestação).

165. Em Janeiro/Fevereiro de 2009, NN e OO ordenaram uma transferência bancária a débito na conta n.º ............00 da "Espírito Santo..., S.A." na B... Espírito Santo" (a terminação "01.200" designa uma sub-conta da conta n.º .....43 da "Espírito Santo..., S.A."), no valor de USD 589.944,78, a favor da sociedade do ramo familiar daqueles, a já aludida "R..., Ltd." (cfr. documento 82 da contestação, documento 14-B da contestação e documento 2 do requerimento do arguido AA de 28 de Abril de 2021).

166. Em 6 de Agosto de 2007, OO ordenou uma transferência a débito na conta n.º ............01 da "Espírito Santo..., S.A." na B... Espírito Santo" (a terminação "....01" designa uma sub-conta da conta n.º .....43), no valor de EUR 13.289,83, a seu favor (cfr. documento 83 da contestação).

167. Em 15 de Janeiro de 2008, OO ordenou uma transferência bancária a débito na conta n.º ............01 da "Espírito Santo..., S.A." na B... Espírito Santo", no valor de EUR 12.582,42, a seu favor (cfr., documento 84 da contestação).

168. Em Agosto de 2008, OO ordenou uma transferência bancária a débito na conta n.º ............01 da "Espírito Santo..., S.A." na B... Espírito Santo", no valor de EUR 19.051,14, a seu favor (cfr., documento 85 da contestação).

169. Em 1 de Setembro de 2009, OO ordenou uma transferência bancária a débito na conta n.º ............01 da "Espírito Santo..., S.A." na B... Espírito Santo", no valor de EUR 16.077,93, a seu favor (cfr. documento 86 da contestação).

170. Em 30 de Janeiro de 2008, NN instruiu AAAA (Presidente da Comissão Executiva do B... Espírito Santo"), que, por sua vez, instruiu IIII ("Espírito Santo S...") para realizar uma transferência de EUR 65.000, a favor da offshore "P......", a qual teve origem a débito na conta n.º ............01 da "Espírito Santo..., S.A." na B... Espírito Santo" (ref. "internal transfer (same client)" sob a referência .....14) (cfr. documentos 87 e 88 da contestação).

171. Em Março/Abril de 2011, NN recebeu de FFFFF (funcionário da B... Espírito Santo") EUR 50.000, tendo FFFFF a indicação daquele para instruir JJJJ, que, por sua vez, instruiu EEEEE para proceder a uma transferência bancária a débito na conta n.º ............01 da "E..., Limited" na B... Espírito Santo", no valor de EUR 50.000,00, a favor da offshore "S........ ........ ...." para compensação daquele valor entregue a NN (cfr. documentos 89 e 90 da contestação).

172. Em Junho de 2011, NN ordenou uma transferência bancária a débito na conta n.º ............01 da "E..., Limited" na B... Espírito Santo", no valor de EUR 25.560,00, a favor da offshore "E....... ........ ....", cujo beneficiário era GGGGG (administrador da "Banco Espírito Santo, S.A.") (cfr., documentos 90-A e 90-B da contestação).

173. Em 20 ou 21 de Dezembro de 2010, SS ordenou uma transferência bancária a débito na conta n.º ............01 da "E..., Limited" na B... Espírito Santo", no valor de EUR 25.000,00, a favor da "Fundação ..." do qual aquele é beneficiário (cfr. documentos 91 e 92 da contestação).

174. Em 16 de Agosto de 2012, JJJJ instruiu EEEEE para realizar transferências da conta da "E..., Limited" para contas 3 sediadas na "B... Espírito Santo, S.A." no montante de € 33.000,00, para cada uma (cfr. documento 93 da contestação).

175. Em Julho e Setembro de 2013, o administrador executivo da "Banco Espírito Santo, S.A.", VVV, também contactou, directamente, EEEEE para transmitir indicações para transferências bancárias a partir da "E..., Limited" a favor ou benefício do filho daquele primeiro (cfr. documentos de 94 e 95 da contestação).

176. AAAAtambém contactava e contactou EEEEE relativamente a transferências e movimentações na conta da "E..., Limited" na B... Espírito Santo", pelo menos até Fevereiro de 2014 (cfr. documentos 96 a 98 da contestação).

177. JJJJ e MM eram administradores da "E..., Limited", tendo IIIII renunciado em 2004 (cfr. documento 99 da contestação).

178. No período de 2010 a 2014, o arguido AA não foi administrador da "E..., Limited".

179. Com referência a 29 de Julho de 2014, NN tinha em dívida para com a "Espírito Santo F... (...), S.A." (accionista única da "E..., Limited") o montante de EUR 1.271.290,12 (cfr. documento 100 da contestação).

180. A conta n.º .....43 da "E..., Limited" na B... Espírito Santo" estava sujeita aos procedimentos standard de compliance (incluindo procedimentos de know your client) e prevenção de branqueamento de capitais em vigor na B... Espírito Santo", incluindo em 2010 e 2011, e a existência desta conta era do conhecimento do CEO da B... Espírito Santo", HHHHH, que tinha acesso aos respectivos extractos e movimentações (cfr. documento 101 da contestação).

181. Pelo menos, desde 2010 até ao início de 2014, a B... Espírito Santo" não reportou qualquer ilegalidade nas movimentações da conta da "E..., Limited".

182. A "Espírito Santo..., S.A." foi constituída em 18 de Novembro de 1993, sob a designação "Espírito Santo F... (...), S.A." (cfr. documento 102, acta da primeira reunião do Conselho de Administração da "Espírito Santo..., S.A.", de 18 de Novembro de 1993).

183. Em 27 de Junho de 2002, a designação da "Espírito Santo..., S.A." foi alterada de "Espírito Santo F... (...), S.A." para "Espírito Santo..., S.A." (cfr. documento 103 da contestação).

184. A designação "Espírito Santo..., S.A." foi mantida até 4 de Novembro de 2010, data em que a sua designação foi alterada para "E..., S.A." (cfr. documento 104 da contestação).

185. Em regra, o arguido tinha cerca de 515 reuniões por ano, ocupando 198 dias úteis, que não abrangiam a gestão de todo o "Grupo Espírito Santo" (cfr. documento 105 da contestação).

Transferências E.......... . ..... ....... . ........

186.Desde logo, os considerandos do acordo entre "Espírito Santo E..."
(aí designada como "Principal") e BB (aí designado como "Agent") estabelecem o seguinte (fls. 22.538 do Volume 57):

"A. The Principal wishes to invest in the areas of oil, ore and real estate, in several regions of the Republic of the Congo (Congo-...) and the Republic of Angola;

B. The Agent has a deep knowledge and experience in the African market in general,and in the referred to market areas and countries in particular;

C. The Principal intends to retain the services of the Agent for implementing anddeveloping the first stages of the referred investments;

D. The Parties wish to set forth the basis and principles which will govern their business relationship".

Tradução livre:

"A. A Principal pretende investir nas áreas do petróleo, minério e imobiliário, em várias regiões da República do Congo (Congo-...) e da República de Angola;

B. O Agente tem um profundo conhecimento e experiência no mercado africano em geral, e, em particular, nas referidas áreas de mercado e países;

C. A Principal pretende manter os serviços do Agente para implementar e desenvolver as primeiras fases dos referidos investimentos;

D. As Partes pretendem estabelecer as bases e os princípios que irão reger as suas relações comerciais".

187. A cláusula 1. do aludido acordo entre a "Espírito Santo E..." e BB prevê as obrigações deste, nos seguintes termos:

"Clause One (Duties of the Agent)The Agent is entrusted with generally assisting the Principal on the acquisition of rights of exploration (specifically, through concession) of on-shore and/or off-shore petroleum blocks that become available for bid, in particular within the area of ..., at the Republic of Angola.

1. The Agent is entrusted with generally assisting the Principal on the acquisition of rights of exploration (specifically, through concession) of any type of ore within the territory of the Republic of Congo.

2. The Agent is also entrusted with searching, identifying and negotiating any relevant real estate investment at the Republic of the Congo, including to design, execute and manage any construction projects.

3. The Agent is further entrusted with generally assisting the Principal with enlarging the scope of its financial sector in Africa, namely by searching and identifying partners or opportunities in the banking area in the Republic of the Congo.

4. In the execution of his duties, as described in the previous paragraphs, the Agent undertakes to use his experience, knowledge and contacts before the competent authorities and/or third parties, to promote the good reputation of the Principal and act as intermediary between authorities and/or third parties.

(…)".

Tradução livre: "Cláusula Primeira (Obrigações do Agente)

1. O Agente está obrigado a prestar assistência no geral à Principal na aquisição de direitos de exploração (nomeadamente, através de concessão) de blocos petrolíferos onshore e/ou offshore que venham a ficar disponíveis para licitação, em particular na área do ..., na República de Angola.

2. O Agente está obrigado a prestar assistência no geral à Principal na aquisição de direitos de exploração (nomeadamente, através de concessão) de qualquer tipo de minério no território da República do Congo.

3. O Agente está igualmente obrigado a identificar e negociar qualquer investimento imobiliário relevante na República do Congo, incluindo a elaboração, execução e gestão de quaisquer projectos de construção.

4. O Agente está ainda obrigado a prestar assistência no geral à Principal no que respeita ao alargamento do âmbito do seu sector financeiro em África, nomeadamente através da procura e identificação de parceiros ou oportunidades no sector bancário na República do Congo.

5. No exercício das suas funções, tal como descritas nos parágrafos anteriores, o Agente compromete-se a utilizar a sua experiência, conhecimentos e contactos perante as autoridades competentes e/ou terceiros, de forma a promover a boa reputação da Principal, bem como a actuar como intermediário perante essas autoridades e/ou terceiros".

188. No que diz respeito à remuneração, a cláusula 2. do acordo entre a "Espírito Santo E...

" e BB estabeleceu o seguinte: "Clause Two (Remuneration and consideration)

1. For the execution of the duties and services described in Clause One, the Principal will pay the Agent the following amounts:

a. EUR 7,500,000.00 (seven million, five hundred thousand euros);

1. An Amount due as a success fee, between a minimum of EUR 2,500,000.00 (two million, five hundred thousand euros) and a maximum of EUR 10,000,000 (ten million euros).

2. Both amounts referred to above shall be payed within the 30 days following the term of this Agreement.

3. The exact amount due as a success fee shall be agreed upon by the Parties,
considering the performance of the Agent, the rate of fulfilment of his duties, and the benefit the Principal gains or is expected to gain with the investments carried out with his assistance or intervention".

Tradução livre: "Cláusula Segunda

(Remuneração e contraprestação)

1. Para a prestação das obrigações e serviços descritos na Cláusula Primeira, a Principal pagará ao Agente os seguintes montantes:

a) EUR 7.500.000,00 (sete milhões e meio de euros);

b) Um montante devido a título de success fee entre um mínimo de EUR 2.500.000 (dois milhões e quinhentos mil euros) e um máximo de EUR 10.000.000 (dez milhões).

2. Ambos os montantes referidos acima devem ser pagos em 30 dias após o termo deste Acordo.

3. O montante exacto devido a título de success fee deve ser acordado pelas Partes, considerando o desempenho do Agente, a taxa de cumprimento das suas obrigações e o benefício que Principal tenha ou é expectável que venha a ter com os investimentos realizados com a assistência ou intervenção daquele".

189. Em 28 de Dezembro de 2010, foi celebrado um "contrato de compra e venda de acções e de presentações suplementares ("s.... .......")", nos termos do qual a "Espírito Santo R..." declarou vender à "N....... .............. ...." as acções representativas de 66,66% do capital social da "E.... Investments, B.V." (com sede na Holanda) e respectivos créditos accionistas, pelo montante do contravalor em Euros de USD 483 milhões, dos quais o contravalor em Euros de USD 97 milhões seria pago no início de 2011 e o remanescente aquando da outorga da escritura perante Notário na Holanda até 31 de Março de 2011, que seria necessário para concluir e formalizar o fecho da venda (cfr. documentos 111 e 112 da contestação).

190. Embora, o sinal no contravalor de EUR 52.220.000 tenha sido pago, mais tarde, a venda não chegou a ser concluída, porque a escritura não chegou a ser celebrada (cfr. documento 113 da contestação).

191. Em Dezembro de 2011, BB vendeu as acções de que era titular até então no B... (representativas de 2,5254% do capital social) a JJJJJ e deixou de ser accionista do B... (cfr. documento 114, páginas 132 e 133 do relatório e contas de 2011 do B...).

Transferências E.......... . ........

192. O arguido AA solicitou que EEEEE procedesse à transferência do valor de EUR 4.000.000 para a "S..., C...", cujo beneficiário era, o arguido AA.

193. Neste instrumento ficou a constar o seguinte:

"Ainsi que nous vous l’avons indique au cours de nos recents entretiens, nous sommes disposés à mettre à votre disposition un montant maximum de € 4'000'000.- (quatre millions d’euros), ceci aux conditions suivantes:

9. remboursement: €2'000'000. - le 31 octobre 2012 €2'000'000, - le 31 octobre 2015

10. intérêts : 2.15 % p.a. payable aux échéances

11. mise à disposition des fonds : sur votre demande, au plus tard le 31 octobre 2011". Tradução livre:

"Tal como nós indicámos nas nossas recentes conversas, estamos disponíveis para colocar à vossa disposição um montante máximo de € 4.000.000.- (quatro milhões de euros), nos termos seguintes:

12. reembolso: €2.000.000. - 31 de Outubro 2012 €2.000.000, - 31 de Outubro de 2015

13. juros: 2.15 % p.a. devidos aquando do vencimento

- colocação à disposição dos fundos: mediante solicitação, o mais tardar em 31 de
Outubro de 2011".

194. Este valor de EUR 4.000.000, foi registado por EEEEE.

195. A transferência bancária da "E..., Limited" para a "S..., C...", no valor de EUR 4.000.000, foi operacionalizada por EEEEE, na Suíça.

196. Em 31 de Outubro de 2012, o arguido AA procedeu a uma transferência bancária, através da sua conta pessoal n.º ..........27 na "C... S...", a favor da "E..., Limited", no valor de EUR 2.000.000.

197. Os sócios da sociedade "S.. ...." (com um capital de MOP $ 100.000 patacas) eram e são KKKKK, titular de uma quota com o valor nominal de MOP $ 99.000 patacas, e LLLLL, titular de uma quota com o valor nominal de MOP $ 1.000 patacas (cfr. documento 122, certidão comercial e estatutos).

198. Os administradores da "S.. ...." eram e são KKKKK e LLLLL (cfr., documento 122 da contestação).

199. Ainda em 2015, era KKKKK que controlava e dava instruções quanto à movimentação das contas bancárias da "S.. ...." (cfr. documento 123 da contestação).

200. Em resposta a uma carta do liquidatário da Espírito Santo I..., S.A., S.A." (MMMMM) para a "S.. ...." data de 22 de Dezembro de 2015, a "S.. ...." enviou uma carta para o liquidatário da Espírito Santo I..., S.A., S.A." com data de 20 de Janeiro de 2016, em que a "S.. ...." – representada pelo seu sócio e administrador, NNNNN – atesta o seguinte:

"We acknowledge receipt of your letter dated December 22nd 2015. We have taken good note of its content and would like to comment that:

• The questions for most of the information you are looking forward should be
addressed to the officers and managers of ES... Luxembourg who shall provide you with the
requested information or who should be able to direct you to the right person within their
group;

1. On our side we would like to inform that this contract has been set up in order to formalize some verbal relation prevailing at the time to clarify as much as possible our intervention;

2. We confirm that S....... is an independent company acting as referring agent in virtue of the contract signed.

1. The scope being mainly Latin America and Africa;

3. S....... has been acting in the introduction of business, mainly trade finance, which were then directed by the Group’s managers and officers to their respective operative companies of the E....... ..... .....; and

4. We confirm that S....... shareholders and directors are not members of the E....... ..... ......" (cfr. documento 124 da contestação).

Tradução livre:

"Acusamos a recepção da vossa carta datada de 22 de Dezembro de 2015.

Tomamos nota do respectivo teor e gostaríamos de informar o seguinte:

• As questões sobre a maior parte da informação pretendida deverão ser dirigidas para os directores e gestores da E.. .......... que lhe deverão disponibilizar a informação pretendida ou poderão redireccionar para a pessoa correcta dentro do referido grupo;

• Do nosso lado, gostaríamos de informar que este contrato foi celebrado para
formalizar uma relação verbal que estava a ser levada a cabo na altura, por forma a clarificar
a nossa intervenção o melhor possível;

5. Nós confirmamos que a S....... é uma sociedade independente que actua como "referring agente" em virtude do contrato assinado.

2. O âmbito refere-se sobretudo à ...;

1. A S....... tem actuado na referenciação de negócios, sobretudo trade finance, geridos pelos gestores e directores do Grupo quanto às respectivas sociedades operacionais do Grupo Espírito Santo; e

2. Nós confirmamos que os accionistas e administradores da S....... não são membros da KK".

201. Em 2015, a "S.. ...." remeteu uma carta para os Liquidatários da "B... Espírito Santo, S.A.", na Suíça, com vista a informar que o aludido empréstimo de EUR 10 milhões concedido pela "S.. ...." à "R..., Ltd." estaria garantido por um penhor de instrumentos financeiros da "R..., Ltd." depositados na "B... Espírito Santo, S.A." que, aquando da maturidade, deveriam ser usados para pagar o reembolso deste empréstimo (cfr. documento 125 da contestação).

202. Em 15 de Janeiro de 2014, o arguido AA transferiu fundos no valor de EUR 5 milhões para a "Espírito Santo C...", com vista à sua transferência para a "E.. ......... .......", que é detida a 100% pela Espírito Santo I..., S.A., S.A." (que, por sua vez, detém Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A.", que detém a "Espírito Santo..., S.A.") (cfr. documentos 15 e 16 da contestação).

203. No final de 2013, no âmbito da reestruturação perspectivada para o "Grupo Espírito Santo", estava inicialmente previsto a realização de um aumento de capital na "Espírito Santo C..." (o arguido AA transferiu EUR 5 milhões para a conta da "Espírito Santo C...", com vista a que fossem transferidos para a "E.. ......... .......").

204. Em 15 de Janeiro de 2014, o arguido AA realizou uma transferência bancária, no valor de EUR 5.000.000,00, a favor da "Espírito Santo C...", a título de avanço de um futuro aumento de capital, para que a "Espírito Santo C..." transferisse este montante para a "E.. ......... .......", o que ocorreu logo no dia 16 de Janeiro de 2014 (cfr. documentos 15 e 16 da contestação).

205. Após a realização da transferência, o arguido AA
chegou a manifestar e declarar a vontade de subscrever o aumento de capital da
"Espírito Santo C...", a operação de aumento de capital não chegou a ser concluída porque não foi realizado o instrumento notarial público necessário para o efeito (cfr. nota em asterisco em tabela anexa à mensagem de correio electrónico de OOOOO para PPPPP e QQQQQ, com cópia inter alia para MMMMM e IIII, em 15 de Setembro de 2014, em que é feita a seguinte referência: "constat notarié d’augmentation de capital d’Espírito Santo C..., S.A.. à réaliser prochainement" (documento 126 da contestação).

Transferências E.......... – CC – B.......

206. Nos termos da cláusula 4. do "contrato de compra e venda de acções da sociedade M..., S.A.", CC e a E.......... estabeleceram o preço de EUR 14.131.212 para a venda das acções representativas de 30% do capital social da sociedade M....., podendo a Enterprises proceder à liquidação do preço em euros ou em francos suíços, de acordo com a taxa de câmbio de EUR 0,82346 = CHF 1" (cfr. documento 17 da contestação, cláusula 4).

207. A cláusula 4. do denominado "contrato de compra e venda de acções da sociedade M..., S.A." estabelece o seguinte:

"Cláusula Quarta (Preço)

1. O PREÇO é EUR 14.131.212,00 (catorze milhões centro e trinta e um mil duzentos e doze Euros).

2. O VENDEDOR aceita expressamente que a COMPRADORA poderá proceder à liquidação do PREÇO em Euros ou Francos Suíços, ao câmbio da presente data, em que EUR 0,82346 = CHF 1".

208. Nos termos da versão informatizada do "contrato de compra e venda de
acções da sociedade M..., S.A." que foi inicialmente assinado pelas partes, na cláusula 5. ficou a constar o seguinte (com um lapso na identificação dos algarismos das alíneas a) e b) da cláusula 5.1 face ao preço global na cláusula 4.1. e à taxa de câmbio acordada na cláusula 4.2., o que veio a dar origem a uma rectificação manuscrita posterior):

"Cláusula Quinta

(Pagamento do PREÇO)

1. O pagamento do PREÇO é realizado pela COMPRADORA como segue:

a. EUR 8.138.784,00 (oito milhões centro e trinta e cinco mil setecentos e oitenta e quatro Euros) [CHF 9.880.000,00 (nove milhões oitocentos e oitenta mil Francos Suíços)], já entregue em 13 de Outubro de 2011, como reserva do negócio, que o VENDEDOR aceita imputar agora ao pagamento do PREÇO;

b. EUR 4.852.399,00 (quatro milhões oitocentos e cinquenta e dois mil trezentos e noventa e nove Euros) [CHF 4.852.000 (quatro milhões oitocentos e cinquenta e dois mil Francos Suíços)], devido na presente data e cuja quitação será dada quando creditado na conta do VENDEDOR; e

c. O remanescente, EUR 2.000.000,00 (dois milhões de Euros) [CHF 2.428.776 (dois milhões quatrocentos e vinte e oito setecentos e setenta e seis Francos Suíços)], até ao dia 23 de Novembro de 2012.

2. O pagamento do montante remanescente deverá ser realizado mediante
transferência bancária para a conta n.º ..........01 aberta em nome do VENDEDOR, junto
do B..... ....... ....... .....".

209. Em 7 de Outubro de 2011, foi dada instrução de transferência do valor de CHF 9.880.000 pela "E..., Limited" a CC, a partir da conta da "E..., Limited" .....43 na "B... Espírito Santo, S.A." (sub-conta ............00/CHF) para a conta ...................00 de CC na "P..., S.A." (cfr. documento 131 da contestação).

210. Esta transferência foi operacionalizada por EEEEE.

211. Esta transferência bancária não foi bem-sucedida, tendo os fundos retornado à conta da "E..., Limited", por ter sido indicado um número de conta incorrecto de CC (cfr. documento 131-A da contestação).

212. Em 12 de Outubro de 2011, foi dada nova instrução e realizada a transferência do valor de CHF 9.880.000, com data valor de 13 de Outubro de 2011, a partir da conta da "E..., Limited" .....43 na "B... Espírito Santo, S.A." (sub-conta ............00/CHF) para a conta ...................00 de CC na "P..., S.A." (cfr. documentos 132 e 132-A da contestação).

213. Esta transferência foi operacionalizada por EEEEE.

214. Em 10 de Janeiro de 2012, foi dada instrução e realizada a transferência do valor de CHF 4.852.000, com data valor de 11 de Janeiro de 2012, a partir da conta da "E..., Limited" .....43 na "B... Espírito Santo, S.A." (sub-conta ............00/CHF) para a conta ...................00 de CC na "P..., S.A." (cfr. documento 133 da contestação e documento 132-A da contestação).

215. Esta transferência foi operacionalizada por EEEEE.

216. Em 23 de Novembro de 2012, foi dada instrução e realizada a transferência do valor de EUR 2.000.000, com a mesma data valor, por débito na conta bancária da "E..., Limited" .....43 na "B... Espírito Santo, S.A." (sub-conta ............00/EUR) para a conta bancária ...................00 de CC na "P..., S.A." (cfr. documentos 134 e 134-A da contestação).

217. Esta transferência foi operacionalizada por EEEEE.

218. A "M..., S.A.” é dona e legítima proprietária do prédio denominado Herdade do ..., sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., com a área de 822,325 hectares, composto por parte rústica por cultura arvense, sobreiros, azinhal, solo subjacente de cultura arvense, curso de água, olival, azinho e sobro, e parte urbana composta por moinho de água, imóvel para habitação, cocheira e cavalariça, estando descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 821, da freguesia de ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 11 e matriz predial urbana sob os artigos 146, 153, 154, 155 e 156 (cfr., considerandos b) e c) do "contrato de compra e venda de acções da sociedade M..., S.A." documento 17 da contestação e respectivos Anexos 1 e 2 e, ainda, certidão predial documento 136 da contestação).

219. A "M..., S.A." é uma sociedade comercial que tem como objecto social a administração e exploração agro-pecuária de prédios rústicos, próprios ou alheios, podendo também participar no capital social de outras sociedades, bem como fazer parte de consórcios ou outras associações (cfr. documento 137 da contestação – certidão comercial).

220. A "M..., S.A." foi constituída em 1997 (cfr. documento 137 da contestação).

221. Como actividade principal, a "M..., S.A." desenvolve a produção de uva para vinho, a pecuária em regime de extensivo e a produção cerealífera e de oleaginosas em regime de regadio intensivo.

222. A parte principal da actividade da "M..., S.A." é desenvolvida na designada "Herdade do ...".

223. Neste prédio a "M..., S.A." dedica-se à exploração agrícola, silvícola e pecuária, utilizando para o efeito os bens e equipamento de que é dona e titular, a título de mero, exemplo, sistemas de rega, vinhas, tractores e outros veículos motorizados, equipamento agrícola, equipamento informático, etc. (cfr. documento 17 da contestação e, ainda, respectivo Anexo 3).

224. A "Herdade do ..." beneficia da instalação de três hidratantes de alta capacidade em sistema gravítico.

225. A "M..., S.A." fez investimentos na "Herdade do ...".

226. A "M..., S.A." dotou a "Herdade do ..." de cerca de 300 hectares de sistema de rega com comando por telemetria e sistemas de cobertura permanente, um parque de máquinas (tractores, grades, refinadoras de solos, pulverizadores, etc.).

227. Na "Herdade do ...", a "M..., S.A." já produziu milho, trigo, papoila dormideira para extracção de morfina, girassol, colza sustentável (para biodiesel).

228. A "M..., S.A." explorou (e explora) um património vitivinícola próprio de 100 hectares e 57 hectares em regime de arrendamento em ....

229. A "M..., S.A." escoa a sua produção vitivinícola para a empresa "G..., S.A.", que produz vinhos conhecidos no mercado português e estrangeiro como o "P.........", "V... .. .... ....." e "T..... .. ....." (cfr. documento 139 da contestação).

230. O condomínio "T...", embora sob dois lotes distintos (20 e 21), está em causa uma casa que formava uma propriedade única do ponto de vista funcional.

231. Para efeitos de avaliar as casas n.º 20 e n.º 21 do condomínio "T...", aproximadamente em Setembro ou Outubro de 2011, o arguido AA solicitou a um seu conhecido no Brasil, o advogado RRRRR, que contactasse avaliadores com vista a emitirem uma avaliação destes imóveis.

232. Entre Setembro e Novembro de 2011, RRRRR contactou SSSSS e TTTTT, com o propósito de que estes elaborassem uma avaliação das casas n.º 20 e n.º 21 do condomínio "T...".

233. Em 31 de Outubro de 2011, SSSSS emitiu uma primeira avaliação das casas n.º 20 e n.º 21 do condomínio "T...", pelo valor de R$ 10.500.000 (dez milhões e quinhentos mil reais) (cfr. documento 143 da contestação).

234. Em 31 de Outubro de 2011, EUR 1,00 equivalia a R$ 2,3599 reais para compra e a R$ 2,3610 para venda (cfr. documento 144 da contestação).

235. Em 7 de Novembro de 2011, TTTTT emitiu um relatório de avaliação mais detalhado das casas n.º 20 e n.º 21 do condomínio "T...", pelo valor de R$ 9.500.000 (nove milhões e quinhentos mil reais), que indicou ser "equivalentes a USD 5.500.000 dólares com base na cotação do dólar comercial de 07.11.11 (R$ 1,75 = 01 US Dólar" (cfr. documento 145 da contestação).

236. Neste relatório de avaliação realizado por TTTTT, é referido o seguinte:

"Consideramos neste item o valor agregado dos lotes (20/21) e a residência aí edificada.

Levamos em consideração a exclusividade do local, a localização destes dois lotes, o projeto de arquitetura assinado pelo Arq. UUUUU, a qualidade dos materiais usados na construção da responsabilidade da R.. ........... e ainda os custos inerentes a construção fora do perímetro urbano (que oneram qualquer obra de difícil acesso).

O padrão de construção e materiais usados implica em valores que oscilam entre R$ 5.000,00 a R$ 7.000,00 o m2 de área construída.

Por outro lado o mobiliário, eletrodomésticos e decoração representam um valor expressivo já que na região não se encontram tais equipamentos, obrigando a compra em Cidade de grande porte (... ou ...) com o necessário custo de transporte. Há ainda que se levar em conta a crescente procura de imóveis no Brasil, a estabilidade económica que o País desfruta e a proximidade de grandes eventos como a Copa do Mundo e Olimpíadas que deverão elevar o valor deste tipo de ativos".

237. TTTTT estava à data (e ainda está) inscrito como corrector n.º ....79 do C....... ........ ........ .. .......... .. ....... . ... ...... . ..... (cfr. documento 146 da contestação).

238. O índice diário do dólar comercial oficial, em 7 de Novembro de 2011, USD $ 1,00 dólar equivalia a R$ 1,7496 reais para compra e a R$ 1,7503 para venda (cfr. documento 147 da contestação).

239. Em 7 de Novembro de 2011, EUR 1,00 equivalia a R$ 2,4157 reais para compra e a R$ 2,4168 para venda (cfr. documento 144 da contestação).

240. SSSSS e TTTTT enviaram a RRRRR as avaliações, que, por sua vez, as fez chegar ao arguido AA.

241. Uma indicação manuscrita que "FF" terá informado a "P..., S.A." que o cliente fez a transferência de CHF 4.900.000 visaria a aquisição de um bem imóvel ("le client va a acheter un bien immobilier").

242. Em 5 Agosto de 2014, o arguido AA prestou caução no valor de EUR 3.000.000 no processo n.º 207/11.5..., após medida de coacção que lhe foi decretada em 24 de Julho de 2014, que, posteriormente, foi transferida em metade para prestação de caução no processo n.º 324/14.0... (cfr. documentos 21 e 22 da contestação e documentos 148 a 150 da contestação).

243. Posteriormente, o arguido AA viu a sua
pensão e o saldo bancário das suas contas bancárias na Suíça arrestadas, no processo n.º
324/14.0... (cfr. documentos 25 e 151 da contestação).

Condições pessoais, personalidade, carácter e integração social do arguido AA.

244. O arguido AA nasceu em ... de ... de 1944, tendo 76 anos e estando prestes a completar 77 anos em 25 de Junho de 2021.

245. Ao longo de toda a sua vida, o arguido AA sempre foi uma pessoa honrada, séria e trabalhadora.

246. O arguido AA é casado com EE, desde ... de ... de 1968 (cfr. documento 29 da contestação).

247. O arguido AA tem 3 filhos maiores e oito netos.

248. O arguido AA está reformado desde Julho de 2014.

249. Em 13 de Julho de 2014, o arguido AA cessou as funções de CEO da "Grupo Espírito Santo" que exerceu desde Setembro de 1991 e, desde o colapso do "Grupo Espírito Santo" em Agosto de 2014, não exerce qualquer actividade profissional.

250. Desde então (meados de 2014), os dias do arguido AA são passados a trabalhar na sua defesa e no livro das suas memórias.

251. Na sequência da revolução do 25 de Abril de 1974 e, em especial das nacionalizações promovidas no âmbito do denominado PREC (incluindo do "Grupo Espírito Santo" e da "Banco Espírito Santo & Comercial de ..., S.A."), o arguido AA foi residir para ... e deslocou-se também a ... na Suíça em 1975 para aí colaborar na refundação da área financeira do "Grupo Espírito Santo".

252. Entretanto, ainda em 1975, o arguido AA chegou a ser reempossado como sub-director do então "Banco Espírito Santo & Comercial de ..., S.A.", em 17 de Março de 1975.

253. Desde 1976 até 1982, o arguido AA residiu no ..., aí desenvolvendo o trabalho de refundação do ramo financeiro do "Grupo Espírito Santo".

253. Desde 1982 até 1991, o arguido AA residiu na ..., aí trabalhando no ramo financeiro do "Grupo Espírito Santo", em particular, na "B... Espírito Santo, S.A.".

254. Em 1991, o arguido AA regressou definitivamente a Portugal, para exercer as funções de CEO da "Banco Espírito Santo, S.A.", até 13 de Julho de 2014.

Condições psicológicas e físicas do arguido AA

256. O arguido AA tem vindo a sentir dificuldades e lapsos de memória e, ainda, desgaste emocional, físico e psicológico.

257. O arguido AA tem dificuldades de audição.

Factualidade relativa à inserção familiar, socioprofissional e antecedentes criminais do arguido.

258. O arguido AA nasceu numa família com elevado estatuto socioeconómico, bisneto do fundador da "Banco Espírito Santo, S.A.", o arguido fez o seu processo de desenvolvimento num ambiente privilegiado, no plano material e cultural, considerando ter igualmente beneficiado de um modelo educativo atento à transmissão de valores morais, simultaneamente protector e contentor, mas capaz de o sensibilizar para a realidade social da época, tendo estudado em escolas públicas e convivido com crianças de todos os estratos sociais.

259. Bom aluno, um modelo para os irmãos e tido como o mais responsável deles, o arguido tinha a expectativa de se formar em engenharia naval, dado o seu gosto pelo mar e pela prática de vela, tendo participado em diversas competições europeias da modalidade.

260. Contudo, por pressão familiar, sobretudo da avó materna, que pretendia que ele seguisse a carreira de … do marido, o arguido, veio a licenciar-se em …, em 1969, no então Instituto Superior de ........ .......... . ........... (actual I...), sendo um dos melhores alunos do seu curso.

261. Durante a licenciatura trabalhou como estagiário no Banco Espírito Santo e Comercial de ... (B....), vindo a integrar os quadros do mesmo em 1971, após a conclusão da licenciatura e o cumprimento do serviço militar na ..., onde fez o Curso de Formação de Oficiais da ..., não tendo sido mobilizado para a guerra colonial.

262. Em 1968, aos 24 anos, durante o último ano da licenciatura, o arguido casou com o actual cônjuge, pessoa do seu círculo de amizades.

263. No início, o casal viveu essencialmente com recurso a bens pessoais do arguido, que tinha já recebido a sua parte da herança deixada pelo avô, conforme o seu testamento, que determinava que os netos herdassem uma determinada quota dos seus bens à medida que completassem a maioridade.

264. Na "Banco Espírito Santo e Comercial de ..., S.A.", onde trabalhavam alguns primos, o arguido integrou a área de estudos económicos, ocupando já um lugar de subdirector aquando do 25 de Abril de 1974.

265. Nessa altura o banco foi nacionalizado, o arguido foi demitido, mas pouco tempo depois convidado pela nova administração e reempossado nas suas funções.

266. Contudo, vários dos seus familiares foram presos.

267. Os familiares vieram a ser libertados mais tarde e, nessa altura, o arguido, a mulher e os dois filhos, entretanto nascidos, bem assim aqueles familiares, saíram de Portugal.

268. O arguido ficou algum tempo em ..., juntando-se depois à mulher e filhos que tinham ido para o ..., país onde se mantiveram entre 1975 e 1982.

269. A família viveu inicialmente das suas economias e da venda de peças das suas colecções de antiguidades, nomeadamente porcelanas e quadros.

270. Outros familiares dividiram-se entre ... e ..., essencialmente, reorganizando o Grupo Espírito Santo (GES), refazendo os seus interesses financeiros no exterior.

271. O sucesso progressivo deste grupo surge associado ao nome da família de … Espírito Santo, uma marca então com prestígio nalguns países estrangeiros e, junto de figuras relevantes na política e na banca internacional que apoiaram a retoma da sua actividade.

271. Em 1982 o arguido deslocou-se para a … com a família constituída, tendo sido neste país que nasceu o terceiro filho do casal.

272. Quando regressou a Portugal, em 1991, o arguido voltou ao Banco Espírito Santo e Comercial de ....

273. Nessa altura a actividade do GES já tinha regressado a Portugal, nomeadamente com a constituição do Banco ... (B..), em 1986, em parceria com a C..... ......... .. ...... ........ (C...).

274. Em 1991 iniciou-se a reprivatização do Banco Espírito Santo e Comercial de ... e o GES recuperou o banco em parceria com a C..... ......... .. ...... .........

275. Desde então, liderado pelo arguido, registou-se o crescimento e a abrangência das actividades desenvolvidas e bem assim o incremento da sua expansão no plano internacional, em África, Europa e América.

276. Até 2014 o arguido assumiu o cargo de Presidente Executivo do Banco Espírito Santo, para além de diversos outros cargos de administração e presidência de empresas do GES.

277. Naquele ano a actividade profissional do arguido terminou com o seu afastamento pelo Banco de Portugal dos cargos ocupados.

278. Do percurso de vida do arguido regista-se o seu elevado investimento na actividade profissional, tendo sido alvo de distinções institucionais tais como Economista do Ano pela A......... .......... .. ........... (1992), Personalidade do Ano pela C..... .......... .. ........ .. ...... (2001), doutoramento H...... ..... pela U........... ....... .. ...... (2003), distinção pela D....... (2012), entre outras.

279. O arguido é um trabalhador incansável, com elevado sentido de responsabilidade.

280. O próprio detém uma auto-imagem de profissional empenhado, competente, determinado e de líder incontestado, mas democrático, como seria exigência de outros importantes accionistas do banco como era o caso da C..... ......... .. ...... .........

282. Muito dedicado ao trabalho, foi o cônjuge, que não exercia actividade profissional, quem assumiu a educação quotidiana dos filhos, para os quais o arguido tinha pouco tempo, gozando poucas vezes férias e por curtos períodos.

283. Apesar disso, existe um vínculo afectivo forte entre pai e filhos, mostrando-se estes solidários com os pais na fase actual da sua vida.

284. Os três filhos são formados em economia, têm a sua vida familiar organizada, sendo que dois deles vivem no estrangeiro, mas mantêm contacto regular com os progenitores.

285. O casal mantém uma relação sólida, de grande cumplicidade e admiração mútua.

286. No presente o arguido mantém um estilo de vida recatado, raramente saindo de casa, ocupando-se essencialmente com a leitura dos jornais, a preparação da sua defesa no presente processo judicial e a escrever as suas memórias.

287. No contacto com o arguido, agora com 76 anos, sobressai alguma fragilidade física e psicológica, desde 2014 o arguido tem vindo a perder a força e a determinação que lhe eram características, mostra-se abatido e evidencia uma lentificação generalizada, falhas de memória.

288. No plano económico, o arguido manteve ao longo do tempo um elevado nível de vida, tendo sido na fase em que saiu do país e em que perdeu parte do seu património com a nacionalização do Banco Espírito Santo e Comercial de ..., que terá tido alguma diminuição do padrão de vida, que foi recuperado com o sucesso da actividade profissional no estrangeiro e reorganização empresarial do GES.

289. No presente, o arguido viu os seus bens arrestados, incluindo a vivenda que habita em zona nobre de ..., embora continue a usufruir dela, e a sua pensão de reforma, aproximadamente de €0, da qual recebe apenas €0.

290. O casal vive com o apoio da filha mais velha, que se manteve a viver na Suíça e que casou com o indivíduo abastado, dono e gestor da S...... ............ .. ........... .. ........ ............ (S....), empresa especializada na protecção/segurança de produtos diversos, como marcas, notas e documentos.

291. Neste quadro, não é sentida uma perda de qualidade de vida, embora a vida social do casal ficou muito reduzida com os acontecimentos de 2014, com a consequente exposição mediática do arguido e com o afastamento de algumas pessoas do seu leque de relações, o que também tem proporcionado uma contenção de gastos.

292. Ao arguido foi diagnosticada a doença de Alzheimer, conforme declaração médica do Senhor Doutor VVVVV de 12/10/2021 (cfr., documento junto a 14/10/2021, referência 30535752).

293. O arguido não tem qualquer registo criminal.

3.1.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

De relevante para a discussão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, designadamente:

Da pronúncia.

1. Pelo menos desde 1991 a até Julho de 2014, a gestão do "Grupo Espírito Santo" esteve sempre centralizada no arguido AA.

2. Não obstante a tomada de decisões pelo grupo estar formalmente atribuída aos seus órgãos sociais e a outros administradores e quadros do grupo, era o arguido AA quem materialmente dirigia os destinos do "Grupo Espírito Santo", dispondo de total autonomia e exclusividade na gestão do mesmo e seus activos.

3. Também por via do exercício destes cargos, o arguido AA dispunha de todos os poderes necessários para decidir e fazer implementar a sua vontade no "Grupo Espírito Santo".

Movimentos financeiros para a esfera do arguido AA (artigos 5396.º a 5423.º)

4. A partir desse montante creditado em conta aberta em nome da entidade "S..., C...", junto da "C... S..., em ..., o arguido AA fez realizar investimentos pessoais, pela aquisição de acções da "E..", pouco dias antes da última fase de reprivatização desta sociedade.

Da contestação

5. A transferência do total de EUR 15.000.000 (2 x EUR 7.500.000) da "E..., Limited" para a "G..., Ltd." foi realizada ao abrigo de um acordo ("agreement") entre BB e a "E..., Limited".

6. Ao abrigo do referido acordo entre a "Espírito Santo..., S.A." e BB, de 31 de Outubro de 2005, este prestou serviços relativos:

1. à obtenção de direitos de exploração de petróleo que viessem a ser objecto de concessão, nomeadamente na região do ... em Angola;

2. exploração de quaisquer direitos atribuídos através de concessões na República do Congo, bem como na identificação e negociações de negócios imobiliário; e,

14. expansão do sector financeiro do "Grupo Espírito Santo" em África.

7. Ao abrigo do acordo, para além do pagamento do montante fixo de € 7.500.000,00 previsto na cláusula 2.1 alínea a) do acordo, foi feito o pagamento de um success fee de igual valor, atentos os resultados obtidos e as notícias tidas pelo "Grupo Espírito Santo" à data do termo do acordo (o desenvolvimento do B... que apresentava resultados e contas positivas, a informação de que estaria assegurada a concessão de uma exploração petrolífera em Angola, a celebração do acordo de venda da E...., etc.), cujos pagamentos eram devidos 30 dias após a data do termo do acordo.

8. As transferências do valor de € 2.750.000,00 (€ 1.500.000,00 + € 1.250.000,00) da "G..., Ltd." para a "S..., C..." em Novembro de 2011 dizem respeito ao reembolso de um empréstimo que o arguido AA havia concedido a BB.

9. A transferência do montante de € 4.000.000,00 em causa foi feita pela "E..., Limited" para a "S..., C...", ao abrigo de acordo de empréstimo entre a "E..., Limited" e o arguido AA em 5 Outubro de 2011, reembolsável através de duas prestações de igual valor a vencer em 31 de Outubro de 2012 e 31 de Outubro de 2015 (acrescido de juros de 2,15%), o que, aliás, foi registado na contabilidade da própria "E..., Limited".

10. Acresce que esta transferência de CHF 4.900.000, conjuntamente com outras duas transferências feitas pela "E..., Limited" para CC de CHF 4.852.000 e EUR 2.000.000, que correspondem a um valor total em euros de EUR 14.131.212, constituíram o preço pago pela "E..., Limited" pela aquisição a CC de acções representativas de 30% da sociedade portuguesa "M..., S.A.".

11. A transferência do valor de CHF 4.900.000 de CC para a "B..., S.A.", em Novembro de 2011, correspondeu a um sinal ou avanço da quase totalidade do preço que CC fez para a "B..., S.A." (titular de uma conta bancária em que o arguido AA era procurador/pessoa autorizada e a sua esposa era U..) para compra de dois imóveis que, então, o arguido AA, conjuntamente com a sua esposa EE, era proprietário no condomínio "T...", em ..., mas cujo contrato definitivo o arguido AA e CC foram adiando, atenta a relação de confiança e amizade entre os dois.

12. Posteriormente, com o aparecimento de processos judiciais em meados de 2014, os Advogados do arguido AA aconselharam este e a sua esposa a não celebrar o contrato definitivo com CC, por prudência.

13. O arguido AA não devolveu CHF 4.900.000 a CC por ter as contas arrestadas e bloqueadas.

Gestão Centralizada do "Grupo Espírito Santo".

14. Em Outubro de 2013, JJJ (filho do Presidente do Conselho Superior do GES, Comandante PP) empreendeu e promoveu uma iniciativa junto dos demais membros do "Conselho Superior do GES" com vista a remover o arguido AA do cargo de Presidente da "Banco Espírito Santo, S.A." e Presidente da "Espírito Santo F...", estando JJJ interessado em ocupar o cargo de CEO da "Banco Espírito Santo, S.A.".

15. JJJ promoveu a votação de uma moção de censura ao arguido AA em reunião do "Conselho Superior do GES" ocorrida em Novembro de 2013.

16. O "Conselho Superior do GES" não aprovou a moção de censura proposta por JJJ (o Comandante PP votou, enquanto membro mais sénior, contra a proposta daquele, exercendo neste sentido o voto único do ramo WWWWW) e, por isso, é que o arguido AA continuou no exercício das suas funções.

17. No dia 11 de Novembro de 2013 e antes do início da reunião do Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A.", o Comandante PP e NN transmitiram ao arguido AA a sua posição de que JJJ não deveria ser destituído como administrador da "Banco Espírito Santo, S.A." e "BESI", o que levou o arguido AA a desistir da sua pretensão.

18. Ao longo dos 23 anos em que foi administrador da "Banco Espírito Santo, S.A.", desde Setembro de 1991 até 13 de Julho de 2014, as reuniões da Comissão Executiva da "Banco Espírito Santo, S.A." não tiveram uma votação dividida, porque todos os seus membros sempre aprovaram as decisões de comum acordo.

Transferências E.......... – G.... ....... . .........

19. As duas transferências no total de EUR 15.000.000 (2 x EUR 7.500.000) da "E..., Limited" para a "G..., Ltd." foram realizadas ao abrigo de um acordo ("agreement") celebrado entre BB e a "Espírito Santo..., S.A.", em 31 de Outubro de 2005.

20. Este acordo foi assinado, por um lado, pelo próprio BB e, por outro lado, por EEEEE, em nome e representação da "Espírito Santo..., S.A.".

21. Estas transferências da "Espírito Santo..., S.A." para a "G..., Ltd.", no valor total de EUR 15.000.000, foram operacionalizadas por EEEEE, ao abrigo do referido acordo ("agreement") celebrado entre BB e a "Espírito Santo..., S.A.", em 31 de Outubro de 2005.

21. Ao abrigo do referido acordo entre a "Espírito Santo..., S.A." e BB, de 31 de Outubro de 2005, este prestou serviços relativos:

(i) à obtenção de direitos de exploração de petróleo que viessem a ser objecto de concessão, nomeadamente na região do ... em Angola;

(ii) exploração de quaisquer direitos atribuídos através de concessões na República do Congo, bem como na identificação e negociações de negócios imobiliários; e (iii) expansão do sector financeiro do GES em África.

23. Desde 2005 até 2011, BB prestou serviços ao "Grupo Espírito Santo" ao abrigo deste acordo celebrado com a "Espírito Santo..., S.A.", tendo nomeadamente assessorado e promovido contactos em Angola e República do Congo e realizado diligências, com vista à concretização de investimentos e obtenção de concessões de petróleo para o "Grupo Espírito Santo" em Angola e exploração de minério e sector imobiliário no Congo.

24. A parceria societária entre BB e o "Grupo Espírito Santo" iniciou-se em 1993, com a constituição da "E...." nessa altura.

25. BB era administrador executivo e sócio do "Grupo Espírito Santo" (através da "Espírito Santo R...") com uma participação minoritária de 33,3% na "E...." (a sociedade "Espírito Santo R..." detinha os restantes 66,6%), que tinha actividade na área de exploração de minério (diamantes) e imobiliário.

26. Antes deste acordo, BB interveio, participou e desempenhou um papel relevante na obtenção da licença bancária para o B.. ...... (B...), com sucesso, que foi atribuída em 2001, o que reforçou credibilidade de BB perante os membros do "Grupo Espírito Santo", mesmo antes da assinatura do referido acordo entre BB em 2005.

27. Na área de exploração de diamantes, a "E...." associou-se à "B.. ........." (maiores grupos de exploração de diamantes), tendo obtido 14 concessões para exploração de diamantes.

28. Acresce que o arguido AA chegou a deslocar-se a Angola e, neste país, foi ao ..., onde existia a exploração de concessão de exploração de minério (diamantes), ao abrigo da parceria entre o "Grupo Espírito Santo" e BB.

28. Em Angola, BB realizou diligências com vista a que viesse a ser atribuída a uma sociedade do "Grupo Espírito Santo" a concessão de poços de petróleo e, a determinada altura, BB informou o arguido AA que estaria "assegurada" a atribuição de uma concessão de petróleo em Angola, o que teve impacto no sucess fee devido a BB, ao abrigo do aludido acordo.

29. O arguido AA tinha a informação de que, em virtude da actuação de BB, havia sido possível ao "Grupo Espírito Santo" desenvolver, em parceria, projecto imobiliários em ... e no Congo.

30. Neste contexto, e face ao que tinha visto no ... e aos resultados positivos que o B... apresentava em 2009 e 2010, a informação que chegava ao arguido AA e a sua percepção era a de que BB teria sido bem-sucedido na sua actuação e nos seus serviços.

31. De resto, no último trimestre de 2010, perspectivou-se a venda pelo "Grupo Espírito Santo" – em particular, pela "Espírito Santo R..." – das suas acções representativas de 66,66% do capital social da "E...." a uma entidade que o arguido AA tinha então a informação de que seria controlada por capital angolano.

32. Foi neste contexto que, em Outubro/Novembro de 2010, se perspectivou o termo da parceria de BB e o "Grupo Espírito Santo", o que significou o termo do aludido acordo entre "E..., Limited" e BB.

33. Em Novembro de 2010, a "E..., Limited" realizou a favor da "G..., Ltd.", cujo beneficiário efectivo é BB, uma transferência de EUR 7.500.000, a título de remuneração fixa, e outra transferência de EUR 7.500.000, a título de success fee.

35. Foram XXXXX e YYYYY, sobrinho de ZZZZZ, que apresentaram BB a ZZZZZ como uma pessoa que tinha relações próximas com a maioria dos dirigentes angolanos e governos de África, o que ZZZZZ referiu ao arguido AA que verificou no início dos anos 90.

36. As transferências da "G..., Ltd." para a "S..., C..." visaram reembolsar o capital mutuado de EUR 2.300.000 e liquidar EUR 450.000, a título de juros, por um período de empréstimo de 11 anos (1999-2011).

37. Mediante este reembolso do capital e liquidação de juros, o arguido AA emitiu a declaração de quitação.

Transferências E.......... . .........

38. A transferência foi realizada ao abrigo de um empréstimo formalizado num instrumento assinado pela "E..., Limited" e o arguido, em Outubro de 2011.

39. Em Setembro de 2011, o arguido AA solicitou a EEEEE o empréstimo de uma quantia entre EUR 5.000.000 a EUR 6.000.000 pela "E..., Limited".

40. Mediante a verificação da disponibilidade de liquidez da "E..., Limited" por EEEEE, este informou o arguido AA que a "E..., Limited" teria disponibilidade para proceder ao empréstimo do capital de EUR 4.000.000.

41. Assim, em 5 de Outubro de 2011, EEEEE remeteu ao arguido AA uma carta ou instrumento escrito, contendo os termos e condições do empréstimo da "E..., Limited" ao arguido AA, no capital de EUR 4.000.000.

42. Este instrumento relativo ao empréstimo da "E..., Limited" para o arguido AA (por intermédio da "S..., C...") foi assinado, em nome e representação da "E..., Limited", por EEEEE e JJJJ.

43. Aquando da recepção deste instrumento, em 11 de Outubro de 2010, o arguido AA assinou este documento que formalizou o empréstimo da "E..., Limited" ao arguido AA.

43. A "Espírito Santo..., S.A." fez ao arguido AA três empréstimos em 2002 e 2003 (CHF 450.000 + USD 45.000 + USD 2.170.000), que este reembolsou à "Espírito Santo..., S.A." em 21 de Maio de 2007, incluindo juros, porquanto, em Maio de 2007, o arguido AA pagou a esta os valores de USD 2.460.711,84 e CHF 481.899,04.

44. Com efeito, em 31 de Dezembro de 2002, a "Espírito Santo..., S.A." emprestou ao a arguido AA o montante de CHF 450.000, quantia do qual este se confessou devedor através de carta datada de 1 de Julho de 2003.

45. Em 31 de Dezembro de 2002, a "Espírito Santo..., S.A." emprestou ao arguido AA o montante de USD 2.170.000, quantia do qual este se confessou devedor através de carta datada de 1 de Julho de 2003.

46. Em 10 de Fevereiro de 2003, a "Espírito Santo..., S.A." emprestou ao arguido AA o montante de USD 45.000, quantia do qual este se confessou devedor através de carta datada de 1 de Julho de 2003.

47. Em 2007, o arguido AA reembolsou à "Espírito Santo..., S.A." estes três empréstimos e pagou os respectivos juros.

48. Com efeito, em 21 de Maio de 2007, o arguido AA pagou à "Espírito Santo..., S.A." o valor de CHF 481.899,04, para reembolso do capital de CHF 450.000 e, ainda, CHF 31.899,04, a título de juros, conforme carta de quitação da "Espírito Santo..., S.A.", datada de 28 de Junho de 2007, assinada por JJJJ e EEEEE.

49. Igualmente em 21 de Maio de 2007, o arguido AA pagou à "Espírito Santo..., S.A." o valor de USD 2.460.711,84, para reembolso do capital de USD 2.170.000 e de USD 45.000 e, ainda, USD 245.711,84, a título de juros, conforme carta de quitação da "Espírito Santo..., S.A.", datada de 28 de Junho de 2007, assinada por JJJJ e EEEEE.

51. Além da "E..., Limited", a sócia única desta sociedade, a Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." também fez empréstimos a outros membros da Família Espírito e membros do "Conselho Superior do GES" e ainda a MM.

52. Com efeito, em 17 de Outubro de 2008, a Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." e NN celebraram um contrato de empréstimo ("contrat de pret"), nos termos do qual a Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." emprestou a NN o valor de EUR 1.617.159,05, pelo período de 3 anos, até 26 de Setembro de 2011.

53. Em 17 de Outubro de 2008, a Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." e SS celebraram um contrato de empréstimo ("contrat de pret"), nos termos do qual a Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." emprestou a SS o valor de EUR 1.445.961,88, pelo período de 3 anos, até 17 de Outubro de 2011.

54. Com referência a 31 de Julho de 2014, NN tinha
uma dívida de EUR 1.271.290,12 para com a Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A.".

55. Em 14 de Novembro de 2008, a Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." e
QQ celebraram um contrato de empréstimo ("contrat de pret"), nos
termos do qual a Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." emprestou a AAAAAA
Amaral o valor de EUR 1.898.804,70, pelo período de 3 anos, até 14 de Novembro de 2011.

56. De resto, em 1 de Setembro de 2011, a Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." e MM celebraram um contrato de empréstimo ("l... ..........), nos termos do qual a Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." emprestou a MM o montante de CHF 172.000 (francos suíços), até 31 de Dezembro de 2013.

57. A "E..., Limited" fez transferências para outras sociedades controladas ou detidas por membros da KK, inclusivamente membros do "Conselho Superior do GES".

58. A "S.. ...." realizou empréstimos à sociedade "R..., Ltd.", que é controlada por NN e OO.

59. Com efeito, em 21 de Maio de 2013, a "S.. ...." e a "R..., Ltd." celebraram um contrato de mútuo ("l... ..........), no qual a "S.. ...." concedeu à "R..., Ltd." um empréstimo de EUR 10.000.000, por 6 anos, até 30 de Abril de 2019.

60. Em 25 de Fevereiro de 2014, a "S.. ...." e a "R..., Ltd." celebraram um outro contrato de mútuo ("l... ..........), no qual a "S.. ...." concedeu à "R..., Ltd." um empréstimo de EUR 2.000.000, pelo período de 5 anos, renovável tacitamente por sucessivos períodos de 1 ano, excepto declaração em contrário.

61. Não houve entrega de novas acções da "Espírito Santo C..." ao arguido AA, mas os EUR 5.000.000 não lhe foram devolvidos e ficaram na esfera da Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A."/"E.. ......... .......".

Transferências Enterprises – BBBBBB

62. Em 10 de Janeiro de 2012, CC e a "E..., Limited" celebraram um "contrato de compra e venda de acções da sociedade M..., S.A.", nos termos do qual CC vendeu à "E..., Limited", e esta comprou, 1.500 acções (então ao portador), com os números 2.701 a 4.200, com o valor nominal de EUR 15.000,00, representativas de 30% do capital social da sociedade "M..., S.A.", titular do NIPC ... ... .45.

63. Estas acções foram vendidas livres de ónus e encargos.

64. A cláusula 5.1 – alíneas a) e b) do "contrato de compra e venda de acções da sociedade M..., S.A." contém um lapso na referência às primeiras duas prestações, porquanto refere que a primeira prestação em euros seria de "EUR 8.138.784,00" e a segunda prestação de "EUR 4.852.399", quando, na verdade, se pretendia referir na cláusula 5.1 – alíneas a) e b) as prestações nos valores de EUR 8.135.784 e EUR 3.995.428, estando os valores em francos suíços correctos.

65. Esta circunstância levou a que CC emendasse em manuscrito os valores das duas primeiras prestações na cláusula 5.1 – alíneas a) e b) do "contrato de compra e venda de acções da sociedade M..., S.A.".

66. 66. A primeira prestação foi paga, a título de "reserva de negócio", antes da
assinatura deste contrato (cláusula 5.1 - alínea a) do "contrato de compra e venda de acções da sociedade M..., S.A.").

67. A cláusula 5.1 – alíneas a) e b) do "contrato de compra e venda de acções da
sociedade M..., S.A." contém um lapso na referência às primeiras duas prestações, porquanto refere que a primeira prestação em euros seria de "EUR 8.138.784,00" e a segunda prestação de "EUR 4.852.399", quando, na verdade, se pretendia referir na cláusula 5.1 - alíneas a) e b) as prestações nos valores de EUR 8.135.784 e EUR 3.995.428, estando os valores em francos suíços correctos.

68. Esta circunstância levou a que CC emendasse em manuscrito os valores das duas primeiras prestações na cláusula 5.1 – alíneas a) e b) do "contrato de compra e venda de acções da sociedade M..., S.A.".

69. A primeira prestação foi paga, a título de "reserva de negócio", antes da assinatura do "contrato de compra e venda de acções da sociedade M..., S.A.").

70. O liquidatário da E... ...., MMMMM, sabe que a "E..., Limited" é titular das acções representativas de 30% do capital social da sociedade "M..., S.A.".

71. A transferência do valor de CHF 4.900.000 de CC para a "B..., S.A.", em Novembro de 2011, correspondeu a um sinal ou avanço da quase totalidade do preço que CC fez para a B..., S.A.".

72. CC e o arguido AA (este com a sua esposa, EE) acordaram que aquele compraria ao arguido AA e a EE a casa destes no condomínio "T..." por CHF 5.000.000, porquanto CC havia ficado com disponibilidade de liquidez em francos suíços.

73. O arguido AA e a sua esposa, EE, haviam decidido vender a aludida casa no Brasil, por não terem tempo disponível para aproveitar deste imóvel e, à data, os seus filhos se desinteressarem por ir à referida casa. À data, CC – que tinha estado algumas vezes na aludida casa no "T..." – referiu ao arguido AA que perspectivava a compra da casa no "T...", já que estaria em causa um investimento num dos melhores condomínios do Brasil e a perspectiva de valorização face ao Mundial de 2014 e Jogos Olímpicos de 2014, que em 2011 se sabia que ocorreriam no Brasil.

74. Atenta a relação de confiança e amizade entre o arguido AA e CC, estes não chegaram a formalizar a escritura pública aquando do referido pagamento em Novembro de 2011, ficando ambos cientes deste compromisso assumido.

75. Atenta esta relação de confiança e amizade, esta situação arrastou-se até 2014, porque o arguido AA e CC acabaram por não celebrar a escritura definitiva, por estarem sempre atarefados e com exigentes compromissos profissionais, nas suas vidas.

76. Entretanto, chegados a 2014, após o colapso da "Banco Espírito Santo, S.A." e do "Grupo Espírito Santo" e com os processos judiciais em perspectiva, o arguido AA foi aconselhado pelos seus Advogados a não celebrar a escritura pública de compra e venda da casa do "T..." com CC, por prudência.

77. O arguido AA viu o seu património afectado com o colapso do "Banco Espírito Santo, S.A." e do "Grupo Espírito Santo" e ainda as suas contas arrestadas e bloqueadas, o que o impediu de devolver o sinal de CHF 4.900.000 a CC.

(…)” ]

C) A motivação de facto foi a seguinte: (por transcrição do texto original)


[ MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO no Ac. de 1ª instância, de 7 Março 2022.

**//**

“(…)

3.1.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO ( páginas 66 a 87 do Acórdão 1ª instância em PDF)

A decisão de facto teve por base quer quanto à questão da culpabilidade quer quanto à questão da determinação da sanção os elementos de prova produzidos no processo, designadamente, os depoimentos das testemunhas que a seguir se indicam e a prova documental junta, designadamente:

- Despachos escutas (extraídas do processo 207/11.5...) – fls. 35830, 35831, 35841 a 35843, 36026 a 36039.

3. Apenso Bancário 20-P, fls. 41362 e 41486;

4. Apenso Bancário 121, fls. 142-145;

- Apenso Bancário 123, fls.66085 a 66087, 66012 a 66024, 66076, 66078, 66085 a 66089,
66093 a 66097, 66072 a 66074, 66104 a 66105;

5. Apenso Bancário 126-X, fls. 65538 e 65539;

6. Apenso Bancário 131-B, fls. 67001 a 67004, 67037 a 68048, 67121, 67129, 67176 a 67179, 67201 a 67204;

7. Apenso de Busca 150, fls. 137, 176, e 594, anexo 4;

8. Apenso Temático CG – 1.º volume.

- A documentação junta pelo arguido com a contestação e indicada ao longo da descrição
factual;

9. A documentação junta no requerimento do arguido de 28 de Abril de 2021;

10. A declaração médica constante do documento junto a 14/10/2021, referência 30535752);

11. o relatório social e o CRC.

Testemunhas:

A testemunha CCCCCC, inspector tributário que participou na equipa mista que investigou o processo de que este foi extraído.

Esclareceu as relações entre a "Espírito Santo..., S.A.", a Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." e a "E..., Limited".

Sendo que esta empresa "Espírito Santo..., S.A." mais tarde "E..., Limited" não aparecia nas contas consolidadas do "Grupo Espírito Santo" que eram apresentadas ao "Banco de Portugal" – pois apresentava resultados neutros.

Em 2004, na "Espírito Santo..., S.A." surgem como administradores JJJJ e DDDDDD.

A "Espírito Santo..., S.A." era uma sociedade "off-shore", tinha conta na "C........ ........ ........ .....".

EEEEEE era funcionário do "Grupo Espírito Santo" no Luxemburgo.

Nesta sociedade havia um registo contabilístico de todas as operações, com a peculiaridade de não haver preocupação dos registos cumprirem a distinção entre activo e passivo.

Esta sociedade só tinha relações com as sociedades do "Grupo Espírito Santo".

Na conta bancária da sociedade as entradas eram contabilizadas como empréstimos da empresa ao "Grupo Espírito Santo", as saídas são registadas na mesma conta do registo do empréstimo.

As demonstrações financeiras eram feitas por FFFFFF e paralelamente tinha demonstração de todas as contas.

A designação "RESS" que surgem nos ficheiros excel refere-se ao arguido.

Desde 2006 em diante, a sociedade evidenciava por contas "PF" (personne fisique") registos de saídas de dinheiro destinadas a membros do "Grupo Espírito Santo".

Em 2007-2008, aparecem rubricas novas com dimensão monetária elevada.

A "C... ...." refere-se a pagamentos feitos no presente processo.

A "S..., C..." é uma sociedade registada no ..., com conta aberta no "C... S..., tendo como beneficiários o arguido e a sua mulher e era gerida pela "A....", a qual era integrada por C....., GGGGGG e HHHHHH, funcionários da "U..".

JJJJJ, BB e IIIIII era sócios da "A....".

Trabalhava com o "C... S... na Suíça e em ....

A "S..., C..." tinha conta aberta na Suíça e em ....

JJJJJJ era o gestor da conta na "C... S....

Esclareceu o curso do dinheiro que passou pela "G..., Ltd.".

A "Espírito Santo..., S.A." não tinha quaisquer negócios.

HHHHHH esteve a 08/10/2011, na sede da "Banco Espírito Santo, S.A." para tratar da operação de compra das acções da "E..".

A "B..., S.A." é uma sociedade registada no ..., com conta aberta na "L...", com beneficiária a mulher do arguido e como procuradora HH, filha do arguido. Este surge com poderes para movimentar a conta.

GG "GG" era gestor externo da "P..., S.A.", o qual acompanhava as contas de CC.

KKKKKK teve visita de GG que justificou a transferência de 4 milhões de euros com a compra de imóvel em Portugal – transferência para a "B..., S.A." teve como justificação do beneficiário o recebimento de reembolso de empréstimo.

A "X. ...." é uma sociedade sediada em ..., a qual recebeu 2 milhões de euros da "Espírito Santo..., S.A.", retirados da conta onde entrou a transferência de CC.

Não foi apurado o beneficiário da "S.. ....".

A testemunha CC conhece o arguido desde 1975, é primo directo de NN, o qual foi seu colega de curso, considerando-o como irmão de adopção.

Conheceu o arguido na cadeia de M....... em ... de ... de 1975, na altura era Director Geral da Administração Interna e, nessa qualidade, fez uma visita à cadeia.

Na altura o arguido era Director Financeiro da "Banco Espírito Santo & Comercial de ..., S.A.",

No Brasil tornaram-se amigos.

Ocupou cargos na "P.", começou na "L........ ....." e foi CEO da "L........" e começou a participar na "P. ..........", passou para administrador não executivo na "P.. ...." e, em 2005, passou a administrador executivo. Em 2006, foi eleito em Assembleia Geral Presidente do Conselho de Administração e Presidente do Conselho Executivo.

Renunciou ao cargo em 2008, tendo sido subsriruído por LLLLLL até 2013, nessa altura voltou a desempenhar funções de CEO, sem parte operacional.

Teve contactos com a "Espírito Santo..., S.A.", fez negócio de venda de 30% das acções da sociedade agrícola "M....." ao "Grupo Espírito Santo".

Com o capital proveniente da venda desta participação societária pretendia construir um campo de golfe e a reconstrução da casa da Condessa de ..., a fim de o converter num pequeno hotel.

Uma das condições de entrada do "Grupo Espírito Santo" era a entrada em funcionamento do plano de aproveitamento de água da Barragem do ....

Este contrato foi apalavrado em 2011 e feito em 2012.

Em 12/10/2011, recebeu a primeira prestação de 8 milhões de euros, foi sinal e princípio de pagamento do contrato (com obrigação de instalação de sistema de rega).

Em 10/01/2012, recebeu 4 milhões de euros (data de celebração do contrato).

Em Novembro de 2012, recebeu 2 milhões de euros, esta entrega estava relacionada com opção de redução do preço.

Costumava passar féria na casa do arguido no ..., onde falaram e montaram a venda da participação social na "M.....".

Falaram na venda da casa do "T....".

A base dos contratos é a confiança entre as partes.

Comprou a "Herdade do ..." em 1998, com 22 seareiros instalados.

Vendeu 30% da "M....." por 14 milhões de euros.

O pagamento foi feito pela "B..... ......" da Suíça para a "P..., S.A.".

A "E..., Limited" é sócia da "M.....", estas acções estão registadas e arroladas na massa falida do "Grupo Espírito Santo".

Só em 2016, referente ao ano de 2018, foi pela primeira vez declarada na Declaração Fiscal Simplificada a participação da "E..., Limited" na "M.....".

Em 21/10/2011, transferiu 4 milhões de euros para a "B..., S.A." por ter combinado a compra da casa do "T...", como aplicação financeira por esperar valorização imobiliária.

Ainda não foi efectuada a formalização do contrato de compra da casa do "T...".

Desde 2013, na sequência do processo "O....... ......." não teve qualquer contacto com o arguido.

A referência a "FF, "..." era o seu gestor de conta e não o informou que ia comprar imóvel em Portugal.

As acções ao portador foram convertidas em nominativas.

Quando quis fazer aumento de capital da "M.....", o Conservador recusou fazer a escritura de aumento de capital por as acções se encontrarem ao portador. Depois de 2016, as acções foram convertidas em nominativas e dai o aparecimento da "E..., Limited" como titular do capital social da "M.....".

KKKKKK era o seu interface na "P..., S.A.".

Foi lido o depoimento da testemunha JJJJ (entretanto, falecido) prestado em sede de inquérito.

A testemunha MM foi colaboradora do "Grupo Espírito Santo", responsável pela contabilidade "commissaire aux comptes" da Espírito Santo I..., S.A." desde 2004 até 2014.

Foi também administrador da "Espírito Santo..., S.A." até 2014, a qual não exercia qualquer actividade. Esta empresa pertencia à Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." e por sua vez à Espírito Santo I..., S.A.".

O BB era sócio da E.... e conhece-o desde 1993.

Na altura, o BB estava a fazer a incorporação da E.... com a ajuda do "Grupo Espírito Santo".

No ano de 2000-2001, esteve a trabalhar em ..., a pedido do BB na "A... ...." e a viver em ....

Reportava a BB.

Depois de ..., em Agosto de 2001, voltou para a ..., a trabalhar numa empresa do "Grupo Espírito Santo".

Então, deixou de ter contacto com BB.

A E.... tinha objectivos de mineração e imobiliários.

Na E.... havia uma actividade de construção civil (auto-estrada) na República do Congo.

A testemunha MMMMMM conhece o arguido por ter sido cliente de um colega seu quando trabalhava na "A....".

Esta empresa desenvolvia o "asset manager" que contra uma comissão fazia a gestão do património de clientes particulares.

Era um dos 5/6 "partners" (sócios) e presidente do conselho de administração e tinha clientes em relação aos quais fazia a gestão do património.

BB era seu cliente.

O arguido era cliente da "A...." por via da sociedade "S.......", a qual tinha por finalidade a gestão de fundos do arguido.

A "S......." só podia ter entrada e saída de fundos, assim como, investimento desses fundos.

Confrontado com o documento da ABA 20, fls. 41306 referiu que se encontra assinado por dois assistentes da "A....", tem carimbo de JJJJJJ funcionário do "C... S....

A "A...." não podia fazer pagamentos, tinha de utilizar um Banco para efectuar quaisquer pagamentos.

No documento consta que o pagamento já foi efectuado.

Esta ordem foi dada de ..., primeiro por fax e depois por correio ou entregue pessoalmente durante encontra com BB.

Recebido o documento confirmava-se por telefone com o cliente se queria fazer a operação, verificava se havia os fundos necessários e enviava-se a ordem ao Banco para efectuar o pagamento. O Banco pedia a razão do pagamento.

A justificação deve ter sido dada por telefone pois não consta no documento.

No documento consta uma correcção manual referente a verificação feita pela "A....", era fácil fazer essa verificação pois tanto o beneficiário como o ordenante eram clientes da "A....".

HHHHHH era um dos 3 "partners" da "A....". O outro era GGGGGG.

HHHHHH geria a "S.......".

Os 3 "partners" da "S......." trabalhavam com independência uns dos outros.

BB, JJJJJ e IIIIII era sócios da "A....".

GGGGGG, HHHHHH e NNNNNN era sócios e gestores da "A....".

A testemunha UUUU foi administrador da Comissão Executiva da "Banco Espírito Santo, S.A." no período compreendido entre 2004 e 2014.

Só teve funções na "Banco Espírito Santo, S.A.".

O Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A." era composto por 25 elementos, sendo parte indicados pela KK e a outra parte pelo "C..... ........".

A Comissão Executiva da "Banco Espírito Santo, S.A." era composta por dois representantes da "C..... ........" e representantes da KK, sendo o arguido o Presidente.

A "Espírito Santo Financial Group" era o maior accionista da "Banco Espírito Santo, S.A.", supervisionada pelo "Banco de Portugal".

Exercia as funções de administrador da "Banco Espírito Santo, S.A." com autonomia, as questões operacionais eram sempre discutidas na Comissão Executiva.

A testemunha PPPP é primo direito do arguido. Desde finais de 1999/2000, é Presidente Executivo de Banco de Investimento.

Fazia parte do Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A." e administrador de outras empresas do "Grupo Espírito Santo".

Em 2011, ingressou no "Conselho Superior do Grupo Espírito Santo".

Não conhecia a "Espírito Santo..., S.A.", não se falava dessa empresa, nem a mesma era consolidada.

EEEEE era quadro da Suíça da "Espírito Santo Financial Group".

O arguido lidava directamente com EEEEE.

O arguido era tratava da parte financeira do "Grupo Espírito Santo", assessorado por JJJJ, DDDDDD, entre outros.

O arguido tinha reuniões com JJJJ e DDDDDD para tratar do fluxo financeiro do "Grupo Espírito Santo".

O "Conselho Superior do Grupo Espírito Santo" era presidido pelo seu pai, OOOOOO, enquanto o arguido não chegava e a reunião não começava, e na qual tinha posição de vogal.

Ali o arguido dava conta das suas decisões e os outros membros limitavam-se a aceitar.

Nunca havia votações, salvo num pedido de confiança do arguido em Novembro de 2013,

Os membros era espectadores daquilo que o arguido ia dizer nas reuniões do "Conselho Superior do Grupo Espírito Santo".

Não se encontra com o arguido desde 2015.

Trabalhava no "B..." nas ... e depois passou para a A........ ........., a qual deixou em 2017.

Montou o departamento de risco da "Banco Espírito Santo, S.A.", o PPPPPP começou em 2012 a trabalhar no pelouro do risco.

Em 2013, escreveu o "Protocolo" por desacordo com a governança do "Grupo Espírito Santo".

Desde aí começou a ir cada vez menos às reuniões do Conselho Executivo da "Banco Espírito Santo, S.A.".

O arguido trabalhava nas instalações da sede da "Banco Espírito Santo, S.A.".

Em Novembro/Dezembro de 2013, esteve numa reunião no "Conselho Superior do Grupo Espírito Santo" em que interveio JJJJ e DDDDDD, numa altura em que as contas não estavam certas.

Qualquer decisão da área financeira e não financeira tinha de ter o acordo do arguido.

Recebeu dois pagamentos da Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A." referente a metade do prémio do seu pai, na altura em que passou a integrar o "Conselho Superior do Grupo Espírito Santo".

O "Protocolo" foi assinado por 5 doa 9 membros do "Conselho Superior do Grupo Espírito Santo".

Na sequência do conhecimento desse "Protocolo", o arguido propôs um voto de confiança do "Conselho Superior do Grupo Espírito Santo".

Passados alguns meses, 3 ramos da KK quiseram afastar o arguido da "Banco Espírito Santo, S.A.".

A testemunha GG referiu que há 30/40 anos conheceu pessoalmente o arguido.

O arguido era amigo do seu cunhado (SSSS), tendo-o conhecido em casa deste.

Conhece CC há 40 anos.

Tornaram-se amigos de QQQQQQ, primeira mulher de CC.

Este pediu-lhe ajuda para gerir a conta da "P..., S.A." (2004-2005), aquando da separação da mulher QQQQQQ.

Tinha direito de veto às propostas da "P..., S.A.".

KKKKKK era o gestor suíço da "P..., S.A.".

CC mandou-lhe instrução para fazer transferência para o exterior, recebeu telefonema da "P..., S.A." para saber qual era o destino do dinheiro.

CC disse-lhe que era para fazer investimento imobiliário, não se lembra de ter dito a KKKKKK que o investimento era para ser realizado em ....

Adquiriu uma casa no "T..." em 2006, comprou o terreno e construiu a casa (por ela ofereceram-lhe 1 milhão de euros nos últimos 3 anos).

A casa do arguido é melhor que a sua.

Gastou cerca de € 500.000,00 na compra do terreno e construção da casa.

A casa do arguido vale uma vez e meia o da sua.

A testemunha FFFFFF trabalhou para o "Grupo Espírito Santo" desde 1989 a Janeiro de 2015, sendo o responsável pela consolidação das contas da parte financeira do "Grupo Espírito Santo".

Foi Presidente do Conselho de Administração "E...." e manager da "E..., Limited",

A sua função foi fazer o registo de todas as operações contabilísticas, o que aconteceu desde 1990.

A "Espírito Santo..., S.A." transformou em "E..., Limited" e era detida pela "E...." e a Espírito Santo I..., S.A." do Luxemburgo.

A conta da "E..., Limited" estava domiciliada na "B... Espírito Santo", em ....

O arguido dava ordem para movimentação da "B... Espírito Santo".

RRRRRR era o CEO da "B... Espírito Santo", ele tinha conhecimento da conta e como CEO podia ter acesso a todas as contas da "B... Espírito Santo".

O documento 80 da contestação trata de instruções dadas com referência à conta bancária e eram elaborados por si.

Os elementos do documento 81 da contestação não foram por si elaborados.

O documento 1 da contestação a página 6 e seguintes foi por si assinado, em 2005, em representação da "E..., Limited".

Os termos do acordo foram dados pelo arguido.

BB era parceiro de negócios do "Grupo Espírito Santo".

Houve dois pagamentos no âmbito do acordo com BB, por via da sociedade deste.

A fls. 68-70 do Aba 121 refere-se a pagamentos feitos pelo contrato com BB e as assinaturas são da sua autoria.

Reconhece o documento 1 da contestação, tem a sua assinatura e refere-se a um empréstimo da "E..., Limited" ao arguido.

A transferência foi feita para a conta indicada pelo arguido.

A fls. 142-144 do Aba 121 consta a transferência da verba emprestada pela "E..., Limited".

A operação foi feita por si.

O arguido disse-lhe que tinha necessidade de financiar um investimento.

O arguido fez um pagamento de 2 milhões de euros no termo do contrato, tendo ficado a dever mais 2 milhões.

A fls. 155-158 do Aba 121 consta o documento referente ao reembolso dos 2 milhões de euros.

O documento 120 da contestação referem-se a empréstimos da "E..., Limited" anteriormente feitos ao arguido e são eles os que constam da mensagem de correio electrónico enviado por si.

O arguido reembolsou a "E..., Limited" desses empréstimos.

A fls. 8-9 do documento 5 da contestação referem-se à quitação dos empréstimos assinados por si e pelo Senhor SSSSSS.

Não sabe a finalidade da compra da "M.....", apenas lhe foi comunicada pelo arguido.

Assinou o contrato em Janeiro de 2012.

A fls. 131 e 141 do Aba 121 referem-se ao pagamento prévio (12/10/2011), a fls. 152-154 e 159-160 referem-se a transferências bancárias para pagamento do contrato da "M.....".

O "Grupo Espírito Santo" fazia um determinado número de operações e os números referentes a estas operações não chocam, não estão fora do normal.

TTTTTT não tinha relação com a "E..., Limited"; este é responsável do escritório da "E...." no Luxemburgo.

TTTTTT dependia de si.

GGGG era secretária da "Espírito Santo S... e dependia de UUUUUU.

Não se lembra porque o documento de fls. 620-621, do 3.º Volume do apenso de busca 151 lhe foi enviado, pois já lhe tinha sido enviado a 05/10/2011. O documento foi assinado a 05/10/2011 e não em data posterior.

Pois um empréstimo a um membro do Conselho de Administração é uma operação importante para ser feita na data em que nela consta.

O pagamento foi integrado na contabilidade da "E..., Limited" no Porjecto C... .....

Foi registado como valores receber.

O pagamento de 9.988.000 de francos suíços pagos à "M....." não é surpreendente por trabalharem num quadro de confiança.

A "E..., Limited" funcionava como uma off-shore do "Grupo Espírito Santo" da responsabilidade do arguido.

A fonte das receitas da "E..., Limited" eram operações financeiras com outras empresas do "Grupo Espírito Santo".

Os benefícios, lucros da "E..., Limited" eram utilizados para pagar bónus ou investimentos.

Fazia parte da normalidade funcional do "Grupo Espírito Santo" a existência de empréstimos a membros do Conselho de Administração.

A testemunha MMMMM é liquidatária da Espírito Santo I..., S.A." desde 23/10/2014.

No âmbito das suas funções teve conhecimento do contrato celebrado pela "Espírito Santo..., S.A." controlada através da Espírito Santo I..., S.A. (...), S.A.".

Recebeu os documentos da "M....." em 19/12/2014, no Luxemburgo enviado por EEEEE. Este disse-lhe que a "E..., Limited" (anterior "Espírito Santo..., S.A.") controlava 30% da "M.....", sem qualquer outra explicação.

Confirma que recebeu a carta que consta do documento 124 da contestação em data que não tem presente.

A testemunha LLLLL é administrador e sócio da sociedade "S.. ...." (...) desde 2013-2014.

Em 20/01/2016, remeteu o documento 124 da contestação ao liquidatário da Espírito Santo I..., S.A.", confirmando a veracidade da carta.

Os anexos à carta foram-lhe enviados pelo sócio minoritário VVVVVV.

Não sabe se houve pagamentos da "Espírito Santo I..., S.A.", S.A." à "S.. ...." ao abrigo destes contratos.

O documento 125 da contestação é uma carta enviada por si e com referência ao documento 14 da contestação não sabe se existe contrato com a "R.....", O VVVVVV disse-lhe que a S.. ...." devia € 10.000.000,00 à "R.....".

A "S.. ...." dedica-se à consultadoria.

Não tem ideia de relações entre a "S.. ...." e a Espírito Santo I..., S.A.".

A testemunha WWWWWW trabalhou para o "Grupo Espírito Santo" no ..., no período compreendido entre 2003 e 2007.

Em 2004-2005, auxiliou o arguido na aquisição dos terrenos no "T..." (lotes 20 e 21), o seu escritório actuou como procurador.

No terreno foi implantada uma construção, concluída em 2009.

Fez duas avaliações em 2011 (Agosto/Setembro), efectuadas por SSSSS e TTTTT.

Os avaliadores enviaram-lhes os relatórios.

Em 2015, o arguido fez doação da sua parte da casa do "T..." a favor da sua mulher.

A testemunha TTTTT é corretor de imóveis em ....

Faz avaliação de imóveis.

Fez avaliação da casa do "T...", onde se deslocou em Agosto/Setembro de 2015.

A testemunha XXXXXX é contabilista certificado e desde Agosto de 2011 faz a contabilidade da "M....." e da "G.......".

Tomou conhecimento da "E..., Limited" em 2016.

Foi informado pela Administração da "M....." (CC) que a "E..., Limited" passava a constar como accionista de 30% da empresa, com efeitos a partir de 2012.

A testemunha QQQQ trabalhou como advogado do "Grupo Espírito Santo", tendo entrado em 1991, como Director Coordenador do Departamento Jurídico.

No período compreendido entre 2000-2014 foi membro do Conselho de Administração e da Comissão Executiva da "Banco Espírito Santo, S.A.".

Assessorou a preparação e celebração do acordo/regulamento do "Conselho Superior do Grupo Espírito Santo" e tinha conhecimento sobre as suas regras de funcionamento.

A testemunha YYYYYY, economista, trabalhou para a "R.......", entrou em 2004 para o "Grupo Espírito Santo" ("Espírito Santo R...") e entre 2010 a 2014 trabalhou na "R.......", como Director Financeiro.

A "Espírito Santo R..." fazia o planeamento e o controlo das empresas participadas. Era a empresa estrutura da parte não financeira do "Grupo Espírito Santo".

A "R......." geria 3 milhões de euros.

NN era o representante da Espírito Santo I..., S.A." no Conselho de Administração da "R.......".

OOOOO e Caldeira pediu um exercício de imparidade de crédito da "R......." no U....... ........ ......

A testemunha ZZZZZZ trabalhou durante 30 anos com o arguido, sendo secretária do Presidente da Comissão Executiva da "Banco Espírito Santo, S.A.".

Tendo iniciado funções como assistente de direcção terminou a carreira como directora em Agosto de 2014, altura em que o arguido saiu da "Banco Espírito Santo, S.A.".

O local de trabalho do arguido na "Banco Espírito Santo, S.A." era no 15.º piso, na sala do Conselho de Administração.

Os membros do Conselho de Administração da "Banco Espírito Santo, S.A." trabalhavam em open-space e havia no meio da sala uma mesa para reunião dos membros.

O arguido dedicava-se à área financeira da "Banco Espírito Santo, S.A.".

O "Conselho Superior do Grupo Espírito Santo" era composto por representantes da Família TTT.

O Presidente do "Conselho Superior do Grupo Espírito Santo" era o OOOOOO.

Via as actas do "Conselho Superior do Grupo Espírito Santo".

Ainda hoje trabalha com o arguido, geralmente, às terças, quartas e quintas feiras.

A testemunha AAAAAAA é encarregue da exploração agrícola da "M..., S.A." desde 2001.

É encarregado das herdades do ... e da ..., mas a empresa ainda tem a Herdade do ....

A "M....." dedica-se à exploração de vinha e pecuária.

A área de regadio foi retirada da Herdade do ... e, actualmente, está plantada com amendoeiras.

As Herdades do ... e da ... (com certa de 300 hectares) produzem cerca de 500.000 quilos de uva e criam 150 vacas comuns.

A "G......." comercializa vinhos da marca "T..... .. .......", P.........", V... .. .... ....., T..... .. ....... e "T..... .. .......".

A testemunha BBBBBBB conhece o arguido desde 1991 por ter sido Vice-Presidente da Bolsa de Valores de.... E nessa altura a "Espírito Santo F..." estava interessada em ser cotada na Bolsa de....

O arguido foi convidado para integrar o Conselho Consultivo da Bolsa de..., o qual auxiliava a Administração da Bolsa de....

Como era responsável pelo Conselho Consultivo da Bolsa de..., encontrava-se com o arguido nas reuniões e nas férias que fazia em Portugal.

Em 2005, reformou-se da Bolsa de... e o arguido convidou-o para membro do Conselho de Administração da "Espírito Santo F..." (administrador não executivo).

O seu papel era estratégico em razão do conhecimento do ... e Ásia.

Manteve funções no Conselho Administrativo (composto por 20 pessoas) até Setembro de 2014.

O arguido era Presidente do Conselho de Administração, a qual era suportada por um Conselho Executivo com 3 membros.

As decisões tomadas no Conselho de Administração era decisões colegiais e o arguido participava nas votações.

Neste Conselho de Administração só se tratavam de questões financeiras.

O Presidente da "R.......", SS, fazia parte do Conselho de Administração da "Espírito Santo F...".

A testemunha CCCCCCC entrou em 1990 para o "Grupo Espírito Santo".

Foi Administrador da "T............" enquanto representante do "Grupo Espírito Santo".

Em Dezembro de 1974, começou a trabalhar na "Banco Espírito Santo & Comercial de ..., S.A.", de onde saiu em 1977.

De seguida, foi para ... como brocker ligado à "L......" até regressar ao "Grupo Espírito Santo".

Reportava directamente ao "Conselho Superior do Grupo Espírito Santo", mas nunca participou nas reuniões deste órgão.

A testemunha DDDDDDD entrou para a "Banco Espírito Santo, S.A." em 14/03/1988, para o crédito documentário.

Desde 1996 é membro da Comissão de Trabalhadores da "Banco Espírito Santo, S.A." e em 09/08/2008 voltou a trabalhar em agências bancárias e em 2011 regressou à actividade sindical.

Conheceu o arguido em razão das negociações sindicais, as quais se não eram resolvidas de forma pacífica era chamado o arguido.

Tem o arguido como homem sério e disponível.

A testemunha EEEEEEE sacerdote católico celebra Missa na ... da família do arguido e abonou a pessoa deste.

Em face do elenco probatório enunciado, o Tribunal Colectivo não formou o convencimento da existência de uma gestão centralizada do "Grupo Espírito Santo".

Com efeito, esta foi uma questão largamente impugnada na contestação e a factualidade apresentada nesta peça processual e dada como provada, sobretudo, com base no manancial documental apresentado, afasta a tese apresentada na acusação.

Esta questão acaba por não ter relevância directa no objecto do processo, ou seja, a existência ou não de uma gestão centralizada do "Grupo Espírito Santo" em nada condiciona o comportamento delituoso imputado ao arguido.

Esta questão é apresentada em termos conclusivos, despida de elementos de facto concretos cuja demonstração permitiria afirmar que os poderes de gestão do "Grupo Espírito Santo" estavam concentrados na pessoa do arguido.

É certo que o arguido tinha um papel determinante nos destinos no "Grupo Espírito Santo", mas a estrutura de governança deste Grupo contemplava diversas estruturas colegiais – Conselho Geral, Conselhos de Administração e Comissões Executivas – que impediam a concentração das decisões numa só pessoa.

Esta estrutura piramidal estava concebida para a manutenção do poder de decisão, em última instância, no seio da "KK" e LL, em que os vários ramos da Família tinham poderes equivalentes, impedindo que um dos ramos se sobrepusesse aos restantes.

Assim como, a dispersão do Universo Espírito Santo por centenas de empresas financeiras e não financeiras constituía a existência de uma quantidade de informação que dificilmente poderia ser absorvida por uma só pessoa.

Em suma, esta questão não merece mais considerações sobre a motivação dos factos que foram dados como provados e não provados.

O primeiro grupo factual com relevo para o objecto processual refere-se aos movimentos efectuados para a conta do arguido a partir da conta da "G..., Ltd.".

Desde logo, haverá que referir que predominantemente foram os meios de prova documentais que apoiaram a formação da convicção do Tribunal Colectivo.

Com efeito, a documentação pontualmente indicada relativamente a cada ponto de facto faz a demonstração inequívoca das movimentações financeiras, a qual ficou mais clara com o depoimento da testemunha CCCCCC, a qual demonstração grande experiência no conhecimento do funcionamento das sociedades "off-shore" e uma grande capacidade para fazer a interligação entre os movimentos bancários efectuados entre diversas entidades bancárias e não bancárias, a qual ficaria oculta a olhos menos experientes.

Desde logo, a fls. 41.486 do Aba 20-P surge o extracto bancário da "G..., Ltd." referente ao período compreendido entre 04/10/2010 e 19/11/2010; a transferência dos primeiros € 7.500.00,00 da "Espírito Santo..., S.A." para a "G..., Ltd." em 08/11/2010 seguida a 09/11/2010 da transferência de € 1.500.000,00 da "G..., Ltd." para a "S..., C..." estão reflectida a fls. 42.934-42.935 do Aba 20-P; a ordem de BB para a efectivação desta transferência de 09/11/2010 conta a fls. 41.362 do Aba 20-P.

A segunda transferência de 18/11/2010 no montante de € 7.500.000,00 da "Espírito Santo..., S.A." para a "G..., Ltd." está expressa a fls. 42.941-42942 do Aba 520-P; esta transferência é seguida a 19/11/2010 da ordem de transferência do valor de € 1.250.00,00 de BB através da "G..., Ltd." para a "S..., C...".

Para solidificar este conjunto documental – o qual não necessitava de qualquer outro elemento para evidenciar a ligação entre os movimentos bancários –, extrai-se do depoimento da testemunha EEEEE que foi ele que assinou o acordo de 31/10/2005 entre a "Espírito Santo..., S.A." e a "G..., Ltd." de BB constante de fls. 22.538-22.539 do processo "O....... ......." (122/13.8...) referente ao pagamento de € 15.000.000,00 (dividido em duas prestações), nunca teve qualquer contacto com BB e que a troca de documentação foi feita entre ele e o arguido.

Finalmente, estes pagamentos foram efectuados sem que tenha sido demonstrada a prestação de qualquer serviço por parte de BB (é absolutamente destituída de credibilidade pagamentos na ordem de € 15.000.000,00 por serviços que surgem espelhados em notícias de jornais e em informação obtidas pelo arguido (tal como alegado na contestação). Assim como, não existe nenhum fundamento para o retorno de € 2.750.000,00 para a esfera do arguido através do veículo "off shore" "S..., C...", controlado pelo arguido. Sendo, assim convicção do Tribunal Colectivo que, embora sendo desconhecida a razão da transferência de € 15.000.000,00 para BB, certo é que "ab initio" havia o acordo para que parte desse montante (€ 2.750.00,00) deviam ser colocados na esfera pessoal do arguido.

O segundo grupo factual refere-se à transferência do montante de € 4.000.000,00 da "Espírito Santo..., S.A." para a "S..., C...".

Desde logo, a ordem de transferência de € 4.000.00,00 da "Espírito Santo..., S.A." é determinada por ordem do arguido (sigla "RESS" referente ao arguido) conta de fls. 176 do volume 1.º do apenso de busca 130.

A testemunha CCCCCC explicitou claramente que a "Espírito Santo..., S.A." era um veículo "off shore" sem qualquer tipo de actividade, com uma contabilidade irregular e que não surgia nas contas consolidadas do "Grupo Espírito Santo" por ter resultados neutros.

E a testemunha EEEEE não conseguiu explicar com clareza a origem dos fundos que passavam por esta sociedade.

Na contestação o arguido invocou que esta transferência se referia a um empréstimo por si celebrado com a "Espírito Santo..., S.A.". Ora esta fundamentação mostra-se muito pouco credível. Por que razão o Presidente do Conselho de Administração e da Comissão Executiva da "Banco Espírito Santo, S.A.", o maior banco privado português iria contrair um empréstimo junto de uma sociedade do "Grupo Espírito Santo" com nenhuma actividade conhecida e com fundos de proveniência desconhecida? Irrelevante é especular, mas fica sempre a pouca credibilidade da fundamentação.

Resta então que por ordem do arguido foram retirados sem fundamento da órbita do "Grupo Espírito Santo" fundos no montante de € 4.000.000,00 e alocados à esfera pessoal do arguido.

Foi junto um documento datado de 03/10/2011 para justificar a concessão ao arguido de um empréstimo de € 4.000.000,00 pela "Espírito Santo..., S.A.".

No entanto, a fls. 620-621 do volume 3.º do anexo 14 do apenso de busca 150 consta uma mensagem de correio electrónico datada de 08/09/2014, remetida por TTTTTT responsável da E.... no Luxemburgo – o qual reportava a EEEEE (administrador da "Espírito Santo..., S.A.") – para EEEEE contendo o documento que titula o referido empréstimo com a data de 05/10/2011, o qual não continha os espaços relativos às assinaturas, os nomes de quem assinava documento e com erros ortográficos – elementos em falta que surgem no documento junto com a contestação e com correcção dos erros.

A testemunha EEEEE não conseguiu explicar a razão do envio desse documento.

Mais, a análise dos metadados do documento enviado por TTTTTT consta do ficheiro copiado num CD anexo ao último volume do anexo 14 do Aba 150 e dela resulta que o mesmo foi criado em 01/09/2014 por GGGG, colaboradora da "E..., Limited", dependente de UUUUUU.

Em suma, o Tribunal Colectivo formou a convicção que o documento justificativo da celebração do contrato de empréstimo foi forjado em data muito posterior à da realização da transferência, e que o arguido utilizou em proveito próprio o montante em causa.

O último grupo factual refere-se aos movimentos entre a "Espírito Santo..., S.A.", CC (por intermédio da "P..., S.A.") e a "B..., S.A." (dominada pela mulher, em que este dispunha de poderes para movimentar a conta bancária).

A constituição da "B..., S.A.", da abertura de conta na "L..." e poderes de movimentação da mesma estão expressos nos documentos indicados no enunciado dos factos provados.

A fls. 66.001 do Aba 123 decorre que na abertura de conta da "B..., S.A." na "L..." em 08/04/2011, a mulher do arguido era beneficiária fez constar que a razão da abertura de conta era a necessidade de recebimento do reembolso de um empréstimo concedido pelo arguido a um membro do "Grupo Espírito Santo", cujos fundos vinham da "P..., S.A.".

Por outro lado, desde já se adianta que a fls. 65.538-65539 do Aba 126-X a transferência de 22/11/2011 de 4.900.000,00 francos suíços da conta de CC na "P..., S.A." para a conta da "B..., S.A." na "L..." é justificada pela testemunha GG (procurador da conta de CC na "P..., S.A.") como a compra de um imóvel em Portugal.

Desde logo, no confronto destas justificações existe uma manifesta contradição.

A movimentação das verbas da "Espírito Santo..., S.A." para a conta da "P..., S.A." de CC encontram-se documentadas e foram afirmadas pela testemunha CC.

A testemunha justificou a transferência das verbas da "Espírito Santo..., S.A." para a sua conta na "P..., S.A." com a venda de 30% da sociedade "M..., S.A.", por si explorada, destinando-se o capital assim obtido à construção de um campo de golfe e à reabilitação de uma casa senhorial para transformação em hotel de charme.

Esta explicação seria credível se tal tivesse realmente ocorrido. Mas, apenas ocorreu a transferência de verbas da "Espírito Santo..., S.A." para a conta de CC, a aplicação desse capital não foi realizada.

Por outro lado, a primeira transferência de 9.880.000,00 de frâncios suíços para a "P..., S.A." foi efectuada a 07/10/2011 antes da formalização de qualquer acordo (o qual se encontra datado de 10/01/2012.

Ao que acresce que não tendo a "Espírito Santo..., S.A." qualquer actividade, conforme referido pela testemunha CCCCCC é estranho que tenha sido esta empresa a celebrar o acordo, pois se a participação social do "Grupo Espírito Santo" na "M..., S.A." tinha alguma razão de ser, o mais natural seria que o negócio fosse efectuado através de uma sociedade da parte não financeira do "Grupo Espírito Santo".

No contrato celebrado pela "Espírito Santo..., S.A." surge a assinatura de EEEEE, por baixo da do arguido, a pedido deste, conforme afirmado pela testemunha FFFFFF

Schneider. O qual, ainda afirma que não negociou o contrato, apenas o assinou e efectuou as transferências de verbas a pedido do arguido.

Não obstante a data constante do documento, a "M..., S.A." em 15/07/2016 fez constar na Informação Empresarial Simplificada relativa ao ano de 2015 a participação social da "E..., Limited" (anterior, "Espírito Santo..., S.A.".

Esta prova indiciária é suficiente para criar a convicção do Tribunal Colectivo do contrato em causa constituir uma justificação serôdia para as transferências efectuadas da "Espírito Santo..., S.A." para a conta de CC na "P..., S.A." e, consequentemente, da inexistência de fundamento para tais movimentações financeiras.

Resta, ainda, a existência da transferência de 4.900.000 francos suíços da conta de CC da "P..., S.A." para a esfera da "B..., S.A.".

Para a qual, como acima adiantado, existe "ab initio" uma descoordenação de justificações: recebimento de um reembolso de empréstimo dada na conta da "L..." e a compra de imóvel em Portugal na conta da "P..., S.A.".

A testemunha CC afirmou que essa transferência se destinou a pagar o preço da compra da casa do arguido no "T...", implantada num condomínio de luxo na República Federativa do Brasil, com esta aquisição a testemunha pretendia obter uma valorização imobiliária.

É certo que constam do processo duas avaliações do imóvel, cuja realização foi confirmada pela testemunha WWWWWW. As quais foram efectuadas por TTTTT e de SSSSS com relatórios datados de 07/11/2011 e de 31/10/2011.

No entanto, a transferência da conta da "P..., S.A." de CC para a conta da "B..., S.A." ocorreu a 02/11/2011. Ou seja, sem que CC tenha tido conhecimento das avaliações, ou, no mínimo, da segunda avaliação.

Por outro lado, esta transferência foi efectuada sem que tenha existido qualquer contrato promessa, nem tão pouco a escritura de compra e venda e subsequente registo.

Para adensar os contornos nebulosos das transferências, a testemunha WWWWWW (testemunha apresentada pelo arguido), advogado no Brasil, referiu que tratou da negociação e formalização da compra de dois lotes de terreno no "T..." para o arguido, acompanhou a construção da casa, mas que, não lhe foi pedido para formalizar a venda do imóvel a CC, tendo-lhe sido pedido em 2015 pelo arguido para fazer uma escritura de doação da sua parte a favor da mulher do arguido.

Em suma, em face destes elementos indiciários o Tribunal Colectivo formou a convicção que, também, esta justificação não é credível, e que esta transferência da conta da "P..., S.A." para a "B..., S.A." já estava prevista aquando das transferências da "Espírito Santo..., S.A." para a conta de CC na "P..., S.A.". Pelo que, ao dar ordem para estas transferência o arguido já tinha acordado com CC o retorno à sua esfera pessoal da quantia de 4.900.000,00 francos suíços.

Finalmente, uma última referência aos factos provados e não provado da contestação.

A convicção do Tribunal Colectivo assentou na documentação elencada ao logo da descrição factual, conjugada com depoimentos de testemunhas arroladas pelo arguido referente à sociedade "M..., S.A." e a realização das avaliações do imóvel do "T...". No demais, os factos não provados decorreram, por um lado da completa ausência de prova e, por outro lado, por serem incompatíveis com a prova que baseou a convicção que permitiu dar como provados os factos constantes da pronúncia ]

D) Por último, a fundamentação de direito mais relevante (por transcrição do texto original) foi a que se segue:

[ (…) 3.2. ASPECTO JURÍDICO DA CAUSA

3.2.1. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL

Sendo esta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal. Foi imputada ao arguido a prática de três crimes de abuso de confiança agravado, p. e p., nos termos do artigo no artigo 205.º n.º l e n.º 4 alínea b) do Código Penal. Este crime tem como elementos objectivos do tipo:

-apropriação ilegítima de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade;

• de valor 200 unidades de conta. E, como elementos subjectivos

• dolo

• Perante a materialidade fáctica tida por assente pode concluir-se que o comportamento do arguido integrou os elementos objectivos do tipo de crime em causa.

Em primeiro lugar, o arguido deu ordem para se operar a transferência de € 4.000.000,00 efectuada a 21/10/2011, com origem em conta da "Espírito Santo..., S.A." para conta da "C... S...", titulada pela sociedade em offshore "S..., C...", controlada pelo arguido, acabando por se apropriar dessa quantia monetária de forma ilegítima.

Em segundo lugar, o arguido deu ordem para se operar as transferências da verba global de € 15.000.000,00 com origem na conta da "Espírito Santo..., S.A." para a conta da "G..., Ltd.", controlada por BB, tendo acordado com este que daquela quantia a parcela de € 2.750.000,00 deveria ser transferida para conta da "C... S..., titulada pela sociedade em offshore "S..., C...", controlada pelo arguido, o que ocorreu em Novembro de 2010, tendo-se apropriado ilegitimamente desta quantia.

Em terceiro lugar, o arguido deu ordem para se operar transferências globais de € 14.000.000,00 da conta da "Espírito Santo..., S.A." para a conta da "P..., S.A.", titulada por CC, tendo acordado com este que daquela quantia a parcela de CHF 4.900.000,00 (€ 3.967.611,00) da conta da "P..., S.A." titulada por CC e com destino a conta da "L..." titulada pela sociedade em offshore "B..., S.A.", controlada pelo arguido, o que ocorreu a 22 de Novembro de 2011, tendo-se apropriado ilegitimamente dessa quantia.

Em face da subsunção acima efectuada fica prejudicada a análise pontual de todos os argumentos de direito apresentados na contestação, por os mesmos pressuporem a prova de factualidade que não se logrou demonstrar.

Da mesma forma, a conduta do arguido preenche o elemento subjectivo do tipo legal de crime – sob a forma de dolo directo.

A ilicitude indiciada pelo preenchimento do tipo, não é afastada pela existência de qualquer causa de justificação da ilicitude.

Não existem causa de exclusão da culpa.

Sendo o comportamento do arguido típico, ilícito e culposo é de concluir que ele praticou três crimes de abuso de confiança agravado, p. e p., no artigo 205.º n.º 1 e n.º 4 alínea b) do Código Penal.

***

Resta, ainda, apurar se, tendo a conduta do arguido preenchido por três vezes o tipo de crime previsto no artigo 205.º n.º 1 e n.º 4 alínea b) do Código Penal, praticaram dessa forma vários crimes.

No Código Penal adoptou-se o critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se ao número de tipos de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (cfr., artigo 30.º n.º 1 do Código Penal).

Em síntese pode afirmar-se que a realização plúrima de tipos de crimes pode constituir:

a. um concurso aparente de infracções, se da interpretação da lei penal resultar que só uma norma jurídico-penal tem aplicação;

b. um só crime, se ao longo de toda a realização criminosa tiver persistido o dolo ou resolução inicial;

c. um só crime na forma continuada, se toda a actuação não obedeceu ao mesmo dolo, mas este tiver interligado por factores externos que arrastaram o agente para a reiteração das condutas;

d. um concurso efectivo de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.

No caso em apreço, a conduta do arguido infringiu de forma plural os mesmos preceitos jurídico-penais, com lesão de idênticos bens jurídicos patrimoniais, com multiplicidade de resoluções criminosas, assim como, de elementos subjectivos diferenciados.

Pelo que, é de concluir que o arguido praticou as infracções criminais acima indicadas.

3.2.2. DA MEDIDA CONCRETA DA PENA

Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar. Este procedimento desenvolve-se em três fases: investigação e determinação da moldura da pena abstracta; investigação e determinação, dentro da moldura abstracta, da medida concreta da pena a aplicar; e, finalmente, escolha da espécie de pena que deve efectivamente ser cumprida.

*

O crime de abuso de confiança qualificado previsto no artigo 205.º n.º 1 e n.º 4 alínea b) do Código Penal, é punido com pena de 1 a 8 anos de prisão.

*

Na determinação da pena concreta a aplicar recorre-se ao critério global previsto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, o qual dispõe "a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção". Pelo que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa e da prevenção – especial e geral positiva ou de integração –, concretizadas a partir da eleição dos elementos para elas relevantes.

A culpa e a prevenção "são os dois termos do binómio", através dos quais será construído o "modelo de medida da pena".

Com tal desiderato no horizonte, importa definir as funções e a interrelação que a culpa e a prevenção desempenham em sede da medida da pena.

A culpa estabelece o máximo de pena concreta ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade.

A prevenção geral positiva traduz a necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena.

E prevenção especial consubstancia as necessidades inerentes à ressocialização do delinquente.

Na determinação do substrato da medida da pena, isto é, da totalidade das circunstâncias do complexo integral do facto (factores de medida da pena) que relevam para a culpa e a prevenção (cfr., artigo 71.º n.º 1 do Código Penal), há que atender a "todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele" (artigo 71.º n.º 2 do Código Penal).

Daqui, decorre a construção do seguinte modelo: dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma violada – entre o ponto óptimo – que nunca deve ultrapassar o limite máximo de pena adequado à culpa, mas que não tem obrigatoriamente com ele coincidir – e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar em último termo, a medida da pena.

Exposto o raciocínio e o modelo imanente à determinação da medida da pena, considerando o enquadramento jurídico-penal efectuado, impõe-se a determinação concreta da pena.

Relevam por via da culpa, para efeitos de medida da pena:

- no sentido da agravação da ilicitude contribui o grau de conhecimento e a intensidade da
vontade no dolo: dolo directo, os danos causados com a conduta e o estatuto económico – este estatuto
extremamente agrava o grau de culpa.

Ponderados todos estes factores, deve estabelecer-se o grau de culpa perto do limite máximo da moldura abstracta.

Revelam por via da prevenção especial para efeito de medida da pena:

• a inserção familiar e social;

• a ausência de passado criminal;

• a idade do arguido e o seu estado de saúde;

- o comportamento processual do arguido que manifestamente não assume o desvalor e as
consequências da sua conduta.

Pelo que, a conjugação destes factores enfraquece as necessidades de prevenção especial, devendo o seu grau deve situar-se no num plano abaixo do da prevenção geral positiva.

No que se refere à prevenção geral positiva ou de integração, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade do ordenamento jurídico, fica assegurada com a imposição ao arguido da pena de 4 anos de prisão pela prática de cada um dos crimes de abuso de confiança.

Este é o ponto mínimo ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos colocado em perigo de lesão.

*

Determinadas as penas parcelares do arguido impõe-se dar cumprimento ao desiderato legal inscrito no n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, determinando a pena única a aplicar a estes arguidos.

Assim, haverá que construir a moldura penal do concurso.

Esta tem como limite máximo a "soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes" e como limite mínimo "a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes".

Deste modo, a moldura penal do concurso do arguido tem como limite máximo 12 anos de prisão e como limite mínimo 4 anos de prisão de prisão.

É a partir, da moldura penal assim encontrada, que se determina a pena única concreta aplicável ao arguido, em função das exigências gerais de culpa e de prevenção.

Para tal, a lei fornece ao julgador, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no artigo 71.º n.º 1 do Código Penal, um critério especial: "na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente" (artigo 77.º n.º 1 2.ª parte do Código Penal). A existência deste critério especial obriga a uma especial fundamentação, em função desse critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indispensável conexão entre o disposto nos artigos 77.º n.º 1 e 71.º n.º 3, ambos do Código Penal.

Ponderada a gravidade do ilícito global praticado, fornecida pelo período de tempo que perdurou a conduta delituosa, é de atribuir à pluralidade de crimes algum efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.

Pelo que, se afigura adequada a aplicação ao arguido da pena única de 6 anos de prisão.

(…)”]

1.2. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (da ... Secção), de 24 de Maio de 2023, julgando recursos interlocutórios e da decisão final condenatória, interpostos pelo arguido AA (melhor identificado nos autos), foi decidido:

[ “(…)

2.1- “(…) Julgar improcedentes os recursos interlocutórios interpostos pelo arguido AA, mantendo-se os despachos recorridos;

Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA do acórdão final;

Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que fixou a pena única, condenando-se agora o arguido AA na pena única de 8 (oito) anos de prisão;

No mais, manter o acórdão recorrido (…)”;]

Esta decisão foi assinalada com um voto de vencimento parcial, por parte da Sra Desembargadora FFFFFFF (2ª adjunta) , segundo a qual discordou em dois aspectos :

[1)Um, referente “(…) às considerações tecidas a páginas 631 e 632 do acórdão a propósito do conteúdo de um relatório emitido pelo CNS cuja junção aos autos foi requerida pelo arguido já em fase do presente recurso (…) concordando com a decisão proferida no sentido da inadmissibilidade do documento pretendido juntar por requerimento apresentado em 2 de Maio de 2023, discordo da afirmação de que a regra da inadmissibilidade da junção de documentos em fase de recurso contemple excepções, feita a páginas 627 e pelas razões enunciadas, em conformidade e em consequência, considero que não deveriam ter lugar quaisquer considerandos acerca do teor de tal documento, concretamente os que acabam de ser citados e feitos naquelas páginas 631 e 632.(…)”, e

ii) Outro aspecto “(…) refere-se à solução encontrada em sede de confirmação das penas parcelares aplicadas pelo Tribunal de primeira instância e à fixação da pena única resultante do cúmulo jurídico dessas três penas parcelares, agora, em oito anos. “(…)teria julgado o recurso interposto pelo Mº. Pº. parcialmente procedente, alterando as penas parcelares fixadas para cada um dos três crimes de abuso de confiança qualificado p. e p. pelo artºº 205.º, n.ºs l e 4, alínea b), do Código Penal, para seis anos de prisão e, em cúmulo jurídico destas penas, teria condenado o arguido, na pena única de doze anos de prisão.(…)”]

1.2.1.Para melhor compreensão do histórico processual e temas tratados, salientaremos, brevis, que:


Este acórdão do TRL incidiu sobre 7 recursos interlocutórios interpostos pelo arguido, e sobre os recursos interpostos pelo arguido e MPº da decisão final.


1.2.2- Quanto aos recursos interlocutórios, as questões tratadas foram:


a) 1.º recurso interlocutório


- Da nulidade insanável, ou irregularidade, do despacho que designou data para julgamento


b) 2.º recurso interlocutório


- Da incompetência territorial do Tribunal a quo


c) 3.º recurso interlocutório


- Da nulidade, ou irregularidade, do despacho que indeferiu o pedido de adiamento do julgamento.


d) 4.º recurso interlocutório


- Das nulidades, ou irregularidades, dos despachos que indeferiram o arrolamento de mais do que 20 testemunhas, de expedição de cartas rogatórias e de realização de prova por exame judicial


e) 5.º recurso interlocutório


- Da nulidade, ou irregularidade, do despacho que indeferiu a realização de perícia médica e as nulidades e irregularidades invocadas pelo arguido da aludida decisão de indeferimento da perícia médica.


f) 6.º recurso interlocutório


- Da ilegalidade do despacho que admitiu a junção aos autos dos elementos de prova requeridos pelo Ministério Público, dada a sua irrelevância e intempestividade e ainda por falta de competência do Tribunal a quo.


g) 7.º recurso interlocutório


- Da ilegalidade do despacho que indeferiu o pedido de suspensão do processo ou de arquivamento do mesmo por inutilidade superveniente da lide”


*


1.2.3 – Recurso Da decisão final (da 1ª instância)


O arguido e o MPº recorreram para o Tribunal da Relação daquela decisão da 1ª instância, colocando várias questões, que o Tribunal da Relação conheceu (e que titularemos pela ordem pela qual o mesmo as ordenou):


A) O arguido:


-Vícios de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.


-Erro de julgamento com violação do princípio in dubio pro reo (abrangente da análise das provas atinentes a diversos factos impugnados, à sua qualificação jurídica como abuso de confiança e/ou crime continuado, e à alegada reparação do prejuízo)


-Determinação da medida da pena.


-Da nulidade por falta de fundamentação da medida da pena


-Das penas parcelares e única


-Das nulidades por omissão de pronúncia sobre a anomalia psíquica superveniente e falta de realização de perícia médica.


-Da junção na fase de recurso no TRL do documento - informação clínica de 1.5.23 do Prof. Dr VVVVV.


B) O MP


-Pugnando apenas pelo agravamento das penas, parcelares (cada uma para 6 anos de prisão) e da pena única aplicadas ( propondo a sua fixação em 10 anos de prisão ou, caso se entenda não se agravarem como proposto as penas parcelares, fixar a pena unitária em 6 anos e 8 meses de prisão).


1.3.Notificado do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 24 de Maio de 2023, que o condenou a essa pena única de oito anos de prisão efectiva pela prática dos aludidos três crimes de abuso de confiança qualificados, veio o arguido – ao abrigo do disposto nos artigos 399.º, 432.º, nº 1 - b), e 434.º do Código de Processo Penal (CPP) –, interpor do mesmo o presente recurso (único admitido, de entre outros interpostos para este Supremo Tribunal de Justiça) formulando também várias questões para REENVIO PREJUDICIAL para o Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do artigo 267.ºdo Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e do artigo 19.º do Tratado da União Europeia.


1.4. Tal recurso (entre outros), inicialmente rejeitado no Tribunal da Relação, foi entretanto admitido por despacho do Exmº Sr Vice-Presidente do STJ, de 30 de outubro de 2023, na sequência de reclamação do arguido, admissão essa, porém, limitando-o expressamente ao segmento respeitante à pena única.


Para o efeito, ali foi considerado, ao que aqui importa e releva:


“ (…)


Não se conformando com a decisão proferida recorreram o arguido AA e o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 24 de maio de 2023, no que releva, julgou improcedente o recurso interposto pelo arguido e parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando o acórdão recorrido na parte em que fixou a pena única, condenando o arguido AA na pena única de 8 anos de prisão.


Notificado do acórdão de 24 de maio de 2023 veio o arguido em 6 de junho de 2023 dele reclamar alegando que o mesmo enferma de irregularidades, de nulidade e de inconstitucionalidades.


E em 3 de julho de 2023 interpôs o arguido AA recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do referido acórdão condenatório datado de 24 de maio de 2023.


Por acórdão de 5 de julho de 2023 foi indeferida a reclamação apresentada pelo arguido AA.


O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça não foi admitido por despacho de 14 de setembro de 2023, com o fundameno nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, tendo em conta que, “no caso, o acórdão deste Tribunal, confirmou a decisão da 1ª instância que condenou o arguido e aplicou ao mesmo a pena de 8 anos de prisão. Em concurso tendo confirmado as penas parcelares.


Assim, só seria de admitir recurso ordinário para o STJ se tivesse sido aplicada ao arguido pena superior a 8 anos. ” Em 28 de setembro de 2023 veio o arguido recorrer novamente para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão de 24 de maio e do acórdão de 5 de julho de 2023.


Foi, então, proferido despacho em 29 de setembro de 2023, com o seguinte teor:


“(…)


No caso, o acórdão deste Tribunal, confirmou a decisão da 1ª instância que condenou o arguido e aplicou ao mesmo a pena de 8 anos de prisão. Em concurso tendo confirmado as penas parcelares.


Assim, só seria de admitir recurso ordinário para o STJ se tivesse sido aplicada ao arguido pena superior a 8 anos. Não sendo esse o caso dos autos, resulta não ser recorrível em mais um grau, o acórdão, conforme decorre do disposto nos artigos 432.°, n.° 1, alínea b), e 400.°, n.° 1, alínea f), ambos do CPP.


Termos em que não se admite o recurso interposto. ”


O recorrente apresentou reclamação dos despachos de 14 de setembro de 2023 e de 29 de setembro de 2023 que não admitiram os recursos, nos termos do artigo 405.º do CPP (…)


Cumpre decidir


II- Fundamentação:


Recurso interposto do acórdão condenatório de 24 de maio de 2023, não admitido por despacho de 14 de setembro de 2023.


1. O reclamante limita, expressamente (aliás, em conformidade com o que lhe permite o disposto no artºº 403º, n.ºs 1 e 2, al.ª f), do CPP), o objeto do seu recurso em 2º grau, para o Supremo Tribunal de Justiça, à sindicância da medida da pena única que o acórdão recorrido o Tribunal da Relação, julgando parcialmente procedente o recurso do Ministério Público, agravou de 6 para 8 anos de prisão.


Considera, pois, definitivamente assente a matéria de facto e decididas as questões de direito (máxime: a autoria, a qualificação jurídica dos factos, o concurso de crimes e a medida de cada pena parcelar), com exceção da medida da pena conjunta.


Efetivamente assim é, porque o acórdão da Relação, proferido em recurso, confirmou a condenação do arguido pela prática, em concurso efetivo, de três crimes de abuso de confiança, na pena de 4 anos de prisão por cada, verificando-se dupla conformidade decisória no caso, exceto quanto à medida da pena única, aplicada em cúmulo jurídico das três referidas penas parcelares.


Certamente que o reclamante limitou deste modo o âmbito do seu recurso por conhecer bem a jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal e que o Tribunal Constitucional tem julgado conforme ao direito fundamental ao recurso consagrado no artºº 32.º n.º 1 da Constituição da República.


É que “Tem sido jurisprudência constante deste STJ, que a inadmissibilidade de recurso decorrente da dupla conforme impede este tribunal de conhecer de todas as questões conexas com os respectivos crimes, tais como os vícios da decisão sobre a matéria de facto, a violação dos princípios do in dubio pro reo e da livre apreciação da prova, da qualificação jurídica dos factos, da medida concreta da pena singular aplicada ou a violação do princípio do ne bis in idem ou de quaisquer nulidades, como as do artigo 379.° do CPP” - acórdão de 17.06.2020, proc. n.º 91/18.8JALRA.E1.S1.


Também no acórdão de 20.10.2021, deste Supremo, de que fui relator, decidiu-se que “ I - A dupla conforme é um mecanismo jurídico-adjetivo destinado a obviar à repetição sucessiva de juízos, em recurso, sobre as mesmas questões.


II - Impede um terceiro juízo sobre todas as questões subjacentes à decisão, sejam de constitucionalidade, substantivas ou processuais, referentes à matéria de facto ou à aplicação do direito, confirmadas pelo acórdão da Relação, contanto a pena judicial confirmada não seja superior a 8 anos de prisão.” - proc. 528/19.9GCFAR.E1.S1.


2. quando à medida da pena única: O despacho reclamado fundamenta a não admissão do recurso no disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP.


O elemento central dessa norma, que define a não recorribilidade e os critérios da dupla conformidade decisória, é, como decorre do que vem de citar-se, a confirmação, integral ou in mellius, da decisão recorrida.


No caso, tendo a Relação agravado da medida da pena única, a confirmação é apenas parcial.


Porque não houve dupla conforme, integral ou in mellius, não resulta verificada a inadmissibilidade de recurso em mais um grau, estabelecida nas disposições conjugadas dos artºs. 432.º ,n.º 1, al.ª b) e 400.º, n.º 1. al.ª f) .do CPP.


Com efeito, no respeitante à pena única, ocorreu agravamento, tendo em conta que o Tribunal da Relação a elevou de 6 para 8 anos de prisão.


Há, assim, nesse segmento divergência entre as duas decisões, em prejuízo do condenado.


3. Por outro lado, se não se considerasse que não houve dupla conforme no respeitante à pena única em que o arguido foi condenado, então haveria que aplicar o disposto na alínea e) do n.º 1 do mesmo preceito, onde se estabelece serem irrecorríveis os “acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos ...”.


Assim, no respeitante à pena única aplicada pela Relação no acórdão recorrido, por ser superior a 5 anos sempre seria admissível recurso ao abrigo da referida alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º, para a qual remete o disposto no artºº 432º, n.º 1, al.ª b), ambos do CPP. Recurso interposto do acórdão condenatório de 24 de maio de 2023 e do acórdão de 5 de julho de 2023, não admitido por despacho de 29 de setembro de 2023.


4. O recurso apresentado em 28 de setembro de 2023, visando o acórdão de 24 de maio
nunca poderia ser admitido por manifesta intempestividade.


O prazo para interposição do recurso ordinário é de 30 dias - artºº 41 1º n.º 1 do CPP.


O prazo para recorrer daquele primeiro acórdão da Relação esgotou-se muito antes (em 30 de junho).


Não é por ter sido arguido de nulidade que o prazo se interposição de recurso passa a ser mais dilatado.


5. Quanto ao recurso do acórdão de 5 de julho de 2023 que conheceu da arguição de
nulidades e irregularidades que o arguido imputou ao primeiro acórdão e as indeferiu, também
não pode ser admitido porque não tem autonomia relativamente à decisão que julgou o objeto
do recurso, não mais sendo que um complemento daquela, destinado exclusivamente a
apreciar e se fosse o caso suprir nulidades/irregularidades de que pudesse enfermar, não
podendo, consequentemente, em matéria de recorribilidade ter pressupostos diferentes da
decisão que complementa.


Acrescenta-se que, de todo o modo, não admitiria recurso porque, como vem de dizer-se, não conheceu a final do objeto do processo.


Nos termos dos artºs. 432º n.º 1 al.ª b) e 400º n.º 1 al.ª c) não admite recurso o acórdão da Relação, proferido em recurso, que não conhece a final do objeto do processo.


III - Decisão:


6. Nestes termos, indefere-se a reclamação do arguido AA no segmento em que visa o despacho de 29.09.2023 que não admitiu os recursos que o arguido interpôs dos acórdãos de 24 de maio e de 5 de julho.


De conformidade com o exposto, defere-se parcialmente a reclamação, devendo o despacho reclamado ser substituído por outro que admita o primeiro recurso que o arguido AA interpôs do acórdão da Relação proferido em 24 de maio de 2023, limitando-o ao segmento respeitante à pena única. (sublinhado nosso)


(…)”


1.5. Assim, e como determinado, foi cumprido, tendo sido então o recurso remetido a este STJ onde o MPº, em vista, se limitou a tomar dele conhecimento, ex vi do disposto no artº 416º nº2 do CPP, tendo em conta haver sido requerida audiência.


1.6. Após exame preliminar do relator e vistos legais foram remetidos os autos à audiência.


Apenas a 3 dias desta, o arguido veio requerer a junção de documentos clínicos supervenientes atinentes à prova de agravamento dito superveniente da sua doença de Alzheimer, para o efeito da aferição de aplicabilidade do artº 106º do CP.


1.6.1-Na audiência, em alegações, o MPº tomou posição no sentido da inadmissibilidade da junção documental. Quanto ao recurso propriamente dito, defendeu a manutenção da decisão recorrida e, embora reconhecendo não poder ser modificada in pejus, salientou a brandura da pena única bem como, não obstante aquela inadmissibilidade de junção documental superveniente, nada obstar a uma eventual aferição actualista mais adequada da situação clínica do arguido mesmo na fase pós trânsito da decisão do recurso.


1.6.2 -A defesa, por sua vez, manteve a sua posição definida nas alegações de recurso e reduziu a quatro segmentos nucleares as questões suscitadas, também em grande parte ligadas à temática limitada pela discussão do limite da pena unitária , do respectivo agravamento pelo Tribunal da Relação e à discussão sobre a prova do agravamento clínico do arguido e da aplicabilidade do artº 106º do CP.


A discussão e decisão sobre a admissibilidade ou não da junção dos documentos supervenientes foi relegada para este Acórdão final e será mais adiante retomada no momento próprio.


1.7. Os termos do recurso do arguido para este STJ


1.7.1. O arguido formulou as seguintes (prolixas e extensas) conclusões -[aqui de seguida transcritas, para já, na sua totalidade, mas sem prejuízo do que adiante se dirá em sede de densificação do que está verdadeiramente limitado ao conhecimento do recurso nos termos em que foi admitido pelo despacho do Sr Vice Presidente do STJ e comprimido ao segmento do agravamento da pena unitária: ]

[“1. Em 24 de Maio de 2023, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu Acórdão a julgar o recurso do ora Arguido improcedente e parcialmente procedente o recurso do Ministério Público, tendo agravado a pena única de prisão efectiva para oito anos (face à pena única de 6 anos de prisão que havia sido fixada pela 1.ª Instância) (“Acórdão recorrido”).

2. Em 6 de Junho de 2023, o ora Arguido Recorrente deduziu incidente de irregularidade e nulidade do aludido Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Maio de 2023, o qual continua pendente de apreciação à data da interposição do presente recurso.

3. O presente recurso dirigido ao STJ é interposto do Acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 24 de Maio de 2023, no respectivo segmento decisório relativo à pena única e todas as questões que lhe estão associadas, incluindo nomeadamente os aspectos jurídicos relativos à suspensão desta pena única, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal.

4. Com efeito, considerando que o Acórdão recorrido não confirmou a pena única que havia sido fixada no Acórdão da 1.ª Instância de 7 de Março de 2022, mas antes a agravou de 6 para 8 anos de pena de prisão efectiva em desfavor do ora Arguido (em resultado da apreciação do recurso do Ministério Público), então o segmento decisório do Acórdão recorrido relativo à pena única e às questões que lhe estão associadas afigura-se recorrível.

5. Isto porque, por um lado, o artigo 400.º, n.º 1 - f), do CPP apenas veda o recurso para o STJ quando o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de recurso, confirme, a decisão proferida pela 1.ª Instância, o que não sucedeu neste caso quanto à pena única e às questões que lhe estão associadas.

6. No caso concreto dos presentes autos, é pacífico que o requisito relativo à necessidade da existência de decisão confirmatória da Relação não está preenchido quanto à pena única e questões que lhe estão associadas, já que a pena única foi agravada no Acórdão recorrido.

7. Por outro lado, considerando também que a pena única excede o limite de cinco anos de prisão previsto no artigo 432.º, n.º 1 - c), do CPP, o presente recurso é admissível ao abrigo desta norma.

8. Por conseguinte, o presente recurso do segmento decisório Acórdão recorrido relativo à pena única e questões que lhe estão associadas afigura-se admissível ao abrigo do disposto nos artigos 399.º e 432.º, n.º 1 - c), do CPP.

9. A admissibilidade deste recurso diz respeito à pena única e todas as questões que lhe estão associadas, o que inclui nomeadamente, a título de mero exemplo

a: (i) suspensão da pena de prisão (isto é, da própria pena única), ao abrigo do n.º 1 artigo 106.º do Código Penal; e (ii) a questão relativa à inadmissibilidade da junção de relatório médico, datado de 1 de Maio de 2023, apresentado pelo ora Arguido em 2 de Maio de 2023, quanto à evolução superveniente da Doença de Alzheimer.

10. Isto é assim até porque a suspensão prevista no n.º 1 artigo 106.º do Código Penal apenas se aciona, exclusivamente, relativamente à pena única e não por referência às penas parcelares e, muito menos, por força de questões relativas a cada um dos crimes.

11. Aliás, os artigos 400.º, n.º 1 - f), e 432.º, n.º 1 - c), do CPP e artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, interpretados no sentido de que é insusceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o Acórdão do Tribunal da Relação que rejeita suspender a pena única de 8 anos de prisão que foi agravada pela Relação e aplicada a arguido com Doença de Alzheimer ou demente, viola os artigos 1.º, 20.º, n.º 5 in fine, e artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que consagram o princípio da dignidade humana, direito ao processo equitativo e as garantias do processo criminal, incluindo o direito ao recurso.

12. Acresce que os artigos 400.º, n.º 1 - f), e 432.º, n.º 1 - c), do CPP e artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, interpretados no sentido de que é insusceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o Acórdão do Tribunal da Relação que rejeita suspender a pena única de 8 anos de prisão que foi agravada pela Relação e aplicada a arguido demente, viola os artigos 1.º, 20.º, n.º 5 in fine, e artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que consagram o princípio da dignidade humana, direito ao processo equitativo e as garantias do processo criminal, incluindo o direito ao recurso.

* * *

- Reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça

13. Antes de mais, importa salientar que, atenta a matéria do facto provado 292. do Acórdão recorrido, relativa à Doença de Alzheimer do ora Arguido e o défice cognitivo deste que daí resulta (por referência ao relatório médico visado neste facto, que, por remissão do facto provado 292., integra esta matéria), e ainda o teor do Acórdão recorrido, importa determinar o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça.

14. EM PRIMEIRO LUGAR, nos presentes autos, no facto provado 292. do Acórdão recorrido, foi dada como provada a seguinte matéria: “Ao arguido foi diagnosticada a doença de Alzheimer, conforme declaração médica do Senhor Doutor VVVVV de 12/10/2021 (cfr., documento junto a 14/10/2021, referência 30535752)”.

15. Este facto provado incorpora e remete para o teor da declaração médica de 12 de Outubro de 2021, da qual consta o seguinte: “Após toda a investigação realizada, podemos agora concluir pelo diagnóstico de Doença de Alzheimer. (...) Posso também acrescentar que após o último relatório datado de Julho de 2021, o Dr. AA tem apresentado um agravamento progressivo das limitações cognitivas e motoras descritas. O quadro clínico de defeito cognitivo que apresenta actualmente, nomeadamente o defeito de memória, limita a sua capacidade para prestar declarações em pleno uso das suas faculdades cognitivas. Mais se acrescenta, que num contexto de stress emocional ou ansiedade é expectável um agravamento do defeito cognitivo apresentado.”

16. Do facto provado 244. do Acórdão recorrido resulta, ainda, que, na data de prolação do Acórdão recorrido, o ora Arguido tinha 78 anos e, aquando da interposição do presente recurso, tem 79 anos. Não ficou provada, nem foi alegada, qualquer perigosidade do ora Arguido.

17. EM SEGUNDO LUGAR, importa considerar que o ora Arguido suscitou três questões neste processo.

18. Primeiro: por um lado, ainda na fase de 1.ª Instância e também em sede de recurso, o ora Arguido suscitou que deveria ser realizada uma perícia médica que visaria inter alia avaliar e demonstrar o seu estado e efeitos da Doença de Alzheimer (sem prejuízo de o objecto da perícia médica requerida ser mais detalhado). Esta perícia médica foi indeferida pelo Tribunal.

19. Segundo: por outro lado, independentemente da realização da perícia médica, o ora Arguido sustentou que a sua Doença de Alzheimer, nos citados e exactos termos que ficou provada, determina a suspensão da execução da pena únicade prisão, por anomalia psíquica de arguido sem perigosidade, ao abrigo do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal.

20. Terceiro: após a prolação da decisão de 1.ª Instância e também em fase de recurso, foram juntos ao processo elementos que indicavam que, enquanto doença degenerativa e progressiva, a Doença de Alzheimer de que o ora Arguido padece lhe provocou um agravamento do seu estado clínico […], conforme relatório médico, de 1 de Maio de 2023, junto pelo Arguido em 2 de Maio de 2023. Sucede que o Tribunal da Relação indeferiu a junção deste relatório médico junto aos autos em 2 de Maio de 2023.

21. EM TERCEIRO LUGAR, a ordem jurídica portuguesa contempla normas legais, interpretadas pela jurisprudência portuguesa, relativas à situação de arguidos com anomalia psíquica posterior, estando, por ora, o ora Arguido condenado pela suposta prática de três crimes de abuso de confiança com a aplicação de uma pena única de 8 anos de prisão efectiva aplicada ao abrigo dos artigos 77.º, n.ºs 1 e 2, e 205.º, n.ºs 1 e 4 - b), do Código Penal.

22. Primeiro: na ordem jurídica portuguesa, o n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal (“Anomalia psíquica posterior sem perigosidade”) prevê o seguinte: “Se a anomalia psíquica sobrevinda ao agente depois da prática do crime não o tornar criminalmente perigoso, em termos que, se o agente fosse inimputável, determinariam o seu internamento efectivo, a execução da pena de prisão a que tiver sido condenado suspende-se até cessar o estado que fundamentou a suspensão”.

23. Segundo: o n.º 2 do artigo 106.º do Código Penal remete correspondente para a aplicação dos n.ºs 3 e 4 do artigo 98.º do Código Penal nos casos de suspensão da pena de prisão a arguido com anomalia psíquica posterior sem perigosidade, que, por sua vez, remetem para o artigo 52.º do Código Penal, que prevê a possibilidade de aplicação de regras de conduta ao arguido com anomalia psíquica posterior sem perigosidade.

24. Terceiro: a única diferença dos pressupostos do artigo 106.º do Código Penal face ao artigo 105.º do mesmo diploma é que, naquela primeira norma, está em causa a situação de arguido com anomalia psíquica posterior sem perigosidade, enquanto que, no artigo 105.º, está em causa arguido com anomalia psíquica posterior com perigosidade.

25. Quarto: de acordo com a Jurisprudência portuguesa, em particular com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Maio de 2017, a suspensão da execução da pena de prisão a arguido com anomalia psíquica posterior assenta em que alguém a quem seria ou seja

aplicada uma pena de prisão passaria ou está sob tutela do Estado, sendo que o Estado tem a obrigação de cuidar, primariamente, da saúde mental de uma pessoa que passaria a estar ou está sob a sua tutela (processo n.º 697/10.3TXEVR-C.S1, www.dgsi.pt).

26. De resto, no Acórdão do Juízo Central Criminal de ... - Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de ..., de 8 de Novembro de 2021 (cfr. Acórdão junto com o recurso interposto pelo ora Arguido em 16 de Maio de 2023 da decisão final da 1.ª Instância), foi entendido suspender a execução da pena única de prisão, logo na decisão condenatória proferida no processo-crime, atenta a Doença de Alzheimer do aí arguido (que, nesse caso, apensa tinha um diagnóstico provável de Alzheimer e não definitivo, como ocorre com o ora Arguido).

27. De resto, com relevância para efeitos da primazia da saúde do arguido, é relevante atentar que, no Despacho proferido nos presentes autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 4 de Novembro de 2022, foi sublinhada a prevalência do direito de saúde do arguido, nomeadamente nos seguintes termos: “o direito à protecção na saúde comporta duas perspectivas: uma de natureza negativa, que consiste, no que aqui releva, no direito de exigir o Estado que obter [abstenha] a qualquer acto que prejudique a saúde; outra de natureza positiva que significa o direito às medidas e prestações estudais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas (cf. artº 64.º da Constituição da República Portuguesa)”.

28. Quinto: ao contrário do que sucede com a anomalia psíquica existente á data dos factos ilícitos relevante para efeitos de inimputabilidade (artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal), o Código Penal português não define, expressamente, o conceito de anomalia psíquica superveniente.

29. Sexto: os artigos 151.º, 159.º e 163.º do CPP prevêem que há lugar à prova pericial quando a percepção dos factos exigirem conhecimentos técnicos ou científicos, sendo as perícias médico-legais realizadas pelo Instituto de Medicina Legal ou médicos especialistas indicados por este instituto, sendo que o juízo técnico ou científico se presume subtraído à livre apreciação do julgador. Por sua vez, o artigo 407.º, n.º 2 - j), do CPP prevê que tem subida imediata o recurso interposto do “despacho que indeferir requerimento de submissão de arguido suspeito de anomalia mental à perícia respectiva”.

30. Sétimo: para efeitos de aplicação da pena única a três crimes de abuso de confiança, importa considerar o artigo 205.º, n.ºs 1 e 4 - b), do Código Penal, que prevê a moldura penal aplicável a cada crime de abuso de confiança agravado, sendo que o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal regula que a fixação de pena única ao concurso de crimes, nos seguintes termos: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”.

31. EM QUARTO LUGAR, o Direito Comunitário perspectiva e considera fundamental e essencial a prevalência e promoção da saúde.

32. Primeiro: o artigo 6.º - a) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia estabelece que: “A União dispõe de competência para desenvolver acções destinadas a apoiar, coordenar ou completar a acção dos Estados-Membros. São os seguintes os domínios dessas ações, na sua finalidade europeia: a) Protecção e melhoria da saúde humana”.

33. Segundo: o artigo 168.º, n.º 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia consagra o seguinte: “Na definição e execução de todas as políticas e acções da União será assegurado um elevado nível de proteção da saúde”, relevando também o n.º 5 desta mesma norma que visa a adopção de “medidas de incentivo destinadas a proteger e melhorar a saúde humana (...)”.

34. Terceiro: o artigo 35.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (“Protecção da Saúde”) consagra o seguinte: “Todas as pessoas têm o direito de aceder à prevenção em matéria de saúde e de beneficiar de cuidados médicos, de acordo com as legislações e práticas nacionais. Na definição e execução de todas as políticas e acções da União é assegurado um elevado nível de protecção da saúde humana”.

35. E, por sua vez, o artigo 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê que “É garantido a todo o arguido o respeito dos direitos de defesa”.

36. Quarto: o Considerando (23) do Regulamento (UE) n.º 2021/522 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Março de 2021, que cria um programa de acção da União no domínio da saúde («Programa UE pela Saúde») para o período 2021-2027, prevê que “As doenças e perturbações associadas à idade, como a demência e as deficiências relacionadas com a idade, requerem uma atenção especial”.

37. Quinto: nos termos do parágrafo 23. das Conclusões do Conselho da Europa sobre o «Apoio às pessoas que vivem com demência: melhorar as políticas e práticas dos cuidados de saúde» (2015/C 418/04), Conselho da Europa incitou os Estados-Membros a “considerarem a demência uma prioridade nas estratégias, planos de acção ou programas nacionais intersetoriais sobre a demência, para disponibilizar assistência e tratamento adequados às pessoas com demência, às suas famílias e prestadores de cuidados, garantindo simultaneamente a sustentabilidade dos sistemas de saúde e de segurança social” (Jornal Oficial da União Europeia, de 16 de Dezembro de 2015, C 418). 38. Sexto: o artigo 6.º, n.ºs 1 e 3 - b) e c), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem prevê o direito a um processo equitativo e confere o direito à defesa pessoal e, ainda, de que o arguido disponha dos meios necessários para o efeito.

39. EM QUINTO LUGAR, com base no quadro acima descrito, justifica-se suscitar e determinar o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e do artigo 19.º do Tratado da União Europeia, porquanto “O Direito da União Europeia exige uma interpretação e aplicação uniforme nos EM – princípio da interpretação conforme ou compatível com o DUE” (Ac. do Tribunal da Relação de Porto, de 14 de Dezembro de 2017, proc. n.º 2872/15.5T8PNF.P1).

40. EM SEXTO LUGAR, perante o exposto, requer-se que seja suscitado o reenvio prejudicial perante o Tribunal de Justiça, com vista a formular as seguintes questões:

(a) Em caso de ser diagnosticada Doença de Alzheimer (provada) ao arguido sem perigosidade durante o julgamento de processo-crime relativo a três crimes de abuso de confiança, a condenação deste arguido (com 78 anos) à execução de uma pena única de oito anos de prisão efectiva é contrária aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?

(b) Em caso de ser diagnosticada Doença de Alzheimer (provada) ao arguido sem perigosidade durante o julgamento de processo-crime relativo a três crimes de abuso de confiança, a condenação deste arguido (com 78 anos) à execução de uma pena única de oito anos de prisão efectiva, sem que lhe tenha sido feita perícia-médica requerida pela defesa, é contrária aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?

(c) A condenação de arguido com Doença de Alzheimer (provada) sem perigosidade, por três crimes de abuso de confiança, em pena única de prisão efectiva, sem que lhe tenha sido realizada perícia médica, é contrária aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?

(d) O julgamento e condenação de arguido com Doença de Alzheimer (provada) sem perigosidade, por três crimes de abuso de confiança, em pena única de 6 ou 8 anos de prisão efectiva, sem que lhe tenha sido realizada perícia médica requerida pelo próprio Arguido, é contrária aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?

(e) O julgamento e condenação de arguido com Doença de Alzheimer (provada) sem perigosidade, por três crimes de abuso de confiança, em pena única de 6 ou 8 anos de prisão efectiva, sem que lhe tenha sido realizada perícia médica requerida pelo próprio Arguido para avaliar anomalia psíquica sobrevinda, é contrária aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?

(f) A condenação de arguido de 78 anos com Doença de Alzheimer (provada) sem perigosidade, por três crimes de abuso de confiança, em pena única de prisão efectiva e a negação da sua suspensão, por se considerar que não ficou provada anomalia psíquica, mas sem que tenha sido realizada perícia médica requerida pelo arguido, é contrária aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?

(g) É conforme ao Direito Comunitário, nomeadamente aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, julgar e condenar Arguido com Doença de Alzheimer, sem perigosidade, ao cumprimento de pena de prisão efectiva, sem lhe realizar perícia médica requerida pela Defesa e sem que o Arguido tenha prestado declarações em julgamento?

41. Em face do exposto, requer-se, ao abrigo do artigo 267.º do TFUE e do artigo 19.º do Tratado da União Europeia, que seja determinado o reenvio prejudicial, que se afigura obrigatório, para formulação das questões acima indicadas ao Tribunal de Justiça. Assim, a apreciação deste recurso deve ficar suspensa até à decisão definitiva do Tribunal de Justiça.

- Violação do artigo 106.º, n.º 1, do código penal: suspensão da pena única, doença de alzheimer como anomalia psíquica e o manifesto equívoco do acórdão recorrido na referência à falta de “responsabilidade” do tribunal pela doença de alzheimer do arguido.

42. Como antecipado acima, o presente recurso para o STJ relativamente à pena única de 8 anos de prisão efectiva e às questões que estão relacionadas com esta pena única, o que inclui a questão de saber se esta pena única de 8 anos prisão efectiva (ou mesmo inferior) deve, ou não, ser suspensa, ao abrigo do n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal.

43. Primeiro: como já referido, a suspensão da pena única de prisão em causa, ao abrigo do n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal, diz respeito, por mera definição, à própria pena única. Com efeito, a suspensão prevista nesta norma legal suscita-se, única e exclusivamente, quanto à pena única e não quanto às penas parcelares, até porque a pena que é executada em caso de concurso de crimes é, sempre, a pena única.

44. Segundo: em reforço do que se acaba de expor, acresce que, nos termos do próprio Acórdão recorrido, esta decisão analisou o quantum da pena única nas páginas 609 a 612 ea suspensão desta mesma pena única, nas páginas 612 e seguintes do Acórdão Recorrido, estando as questões irrecorríveis relativas às penas parcelares e a cada um dos crimes apreciadas apenas até à página 608 do Acórdão recorrido.

45. Terceiro: tanto assim é que o n.º 2 do artigo 106.º do Código Penal remete inter alia para o artigo 98.º do Código Penal que, por sua vez, remete para o artigo 52.º do mesmo diploma, que prevê a possibilidade de o Tribunal impor ao condenado regras de conduta pelo tempo de duração da suspensão.

46. Quarto: a suspensão, por anomalia psíquica posterior, ao abrigo do artigo 106.º do Código Penal, é uma questão associada à pena única, na medida em que esta questão é ponderada e apreciada na própria decisão condenatória pelo Tribunal que proferiu esta decisão.

47. Tanto assim é que a questão da suspensão ao abrigo desta norma foi apreciada (ainda que incorrectamente) no próprio Acórdão recorrido (páginas 612 e ss.), enquanto decisão final proferida no próprio processo-crime, tal como foi apreciada no citado Acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal de ... - Juiz..., em 8 de Novembro de 2021, no proc. 510/12.7...

48. Até porque o Tribunal de Execução de Penas apenas tem competência a partir do momento em que a execução da pena já se iniciou e não antes (como a própria designação indica), até porque o artigo 137.º, n.º 1, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade pressupõe a existência de um “recluso” para definir a sua competência territorial (e material, ao abrigo do artigo 138.º do mesmo diploma), o que apenas sucede quando o condenado passa a estar num estabelecimento prisional.

49. Sem prejuízo dos demais vícios expostos adiante (incluindo designadamente quanto à violação de normas de direito processual penal associadas à suspensão da pena única), mesmo à luz da matéria de facto constante do Acórdão recorrido e ainda que se entenda aplicar uma pen única de oito anos de prisão, impõe-se, desde já, proceder à suspensão da execução desta pena única, ao abrigo do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal.

50. Em primeiro lugar, embora a lei não contenha uma definição de “anomalia psíquica sobrevinda” (como é designada no corpo do n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal) ou “anomalia psíquica posterior” (conforme é denominada na epígrafe desta norma), afigura-se evidente que a Doutrina e a Jurisprudência consideram que a Doença de Alzheimer do ora Arguido provada no facto 292. do Acórdão recorrido consubstancia anomalia psíquica, para efeitos penais.

51. Face a esta matéria provada, afigura-se evidente que a Doença de Alzheimer do ora Arguido, que ficou provada, consubstancia anomalia psíquica, conforme resulta da ampla Doutrina e Jurisprudência já citada no corpo das alegações do presente recurso, que não cabe reproduzir nestas conclusões, por razões de síntese.

52. Assim, ao não determinar a suspensão da execução da pena de prisão, o Acórdão recorrido incorreu em erro na interpretação e aplicação do Direito, nomeadamente do disposto no artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal.

53. É que, por um lado, a Doença de Alzheimer é considerada, desde logo, como “anomalia psíquica”, o que, por si só, determina a aplicação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal.

54. E, por outro lado, acresce que, para além de o facto 292. da matéria provada ter dado como assente o Diagnóstico da Doença de Alzheimer do ora Arguido, remeteu para o respectivo relatório médico aí referido, tendo, por isso, também ficado provado que, ainda a audiência de julgamento estava a meio, o ora Arguido já apresentava “um agravamento progressivo das limitações cognitivas e motoras descritas”, cujo “quadro clínico de defeito cognitivo que apresenta actualmente, nomeadamente o defeito de memória, limita a sua capacidade para prestar declarações em pleno uso das suas faculdades cognitivas. Mais se acrescenta, que num contexto de stress emocional ou ansiedade é expectável um agravamento do defeito cognitivo apresentado.”.

55. Assim, ao não determinar a suspensão da pena única de 8 anos de prisão (ou outra), o Acórdão recorrido incorreu na violação do disposto no artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal.

56. Em segundo lugar, o erro na interpretação e aplicação do direito pelo Acórdão recorrido fica reforçado pela afirmação que aí é feita no sentido de que “a doença de que o arguido actualmente padece e as limitações daí decorrentes também não são da responsabilidade do Tribunal” (cfr. página 425 do Acórdão recorrido).

57. Não obstante esta afirmação ter sido feita ainda antes das páginas 609 e ss. do Acórdão recorrido, esta posição assumida no Acórdão recorrido manifesta a visão errática e equívoca do impacto e efeitos legais que a Doença de Alzheimer tem.

58. A Doença de Alzheimer do ora Arguido – que ficou provada nos autos – não é responsabilidade de absolutamente ninguém. A Doença de Alzheimer do ora Arguido não é culpa de ninguém, nem do Arguido, nem do Tribunal.

59. Quando, ao referir-se à doença de Alzheimer do ora Arguido, o Acórdão recorrido pretende justificar as posições desfavoráveis à defesa que adoptou com a afirmação de que esta doença não é da responsabilidade do Tribunal, então é porque se torna ainda mais evidente a errada interpretação e aplicação do direito em que incorreu o Acórdão recorrido.

60. O que está subjacente ao artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal é o princípio da dignidade humana e protecção da saúde. Nem a anomalia psíquica posterior ou sobrevinda, nem a suspensão da execução da pena única de prisão prevista no artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, têm a ver com qualquer responsabilidade ou culpa do Arguido ou do Tribunal.

61. Em terceiro lugar, o Acórdão recorrido incorreu, igualmente, em erro de direito na interpretação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, ao considerar que uma Doença de Alzheimer não é “de tal forma grave” (sic; páginas 616 e 617 do Acórdão recorrido).

62. Por um lado, como já referido acima, a Doutrina e Jurisprudência consideram a Doença de Alzheimer uma anomalia psíquica. Por outro lado, afirmar que uma Doença de Alzheimer não é “de tal forma grave” é menosprezar, sem qualquer conhecimento científico ou técnico, esta doença e todos aqueles que, de alguma forma, lidam diariamente com ela.

63. O que é tanto mais grave (e incompreensível) quando o Acórdão recorrido vedou, erradamente, a realização da perícia médica ao ora Arguido. Esta circunstância apenas se compreende pelo receio de que uma perícia médica vincularia o Tribunal, tal como está previsto no artigo 164.º, n.º 1, do CPP.

64. A realização de uma perícia evitaria, desde logo, que o Acórdão recorrido se imiscuísse em conhecimentos técnicos e científicos que não domina e, em qualquer caso, não menosprezasse os Doentes de Alzheimer, para além de incorrer em erro na aplicação e do direito, incluindo do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, em que o Acórdão recorrido incorre.

65. Em quarto lugar, juridicamente, a anomalia psíquica posterior ou sobrevinda de arguido sem perigosidade tem uma razão de ser distinta da inimputabilidade e, ainda, determina consequências jurídicas distintas da inimputabilidade.

66. Primeiro: enquanto no caso do inimputável, há uma exclusão da pena à partida (por anomalia psíquica existente à data da prática do facto ilícito), enquanto que, no caso do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, a pena foi aplicada, mas é suspensa.

67. Segundo: a diferença entre a situação prevista no artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal (e respectivos requisitos) e a inimputabilidade prevista nos artigos 20.º e 91.º do Código Penal é tal que, apesar de o n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal afirmar “em termos que, se o agente fosse inimputável, determinariam o seu internamento efectivo”, no caso previsto nesta norma legal não há aplicação de qualquer internamento.

68. No artigo 106.º do Código Penal, não está, pois, em causa qualquer incapacidade do agente quanto ao domínio e avaliação dos factos ilícitos, porque esta norma pressupõe que, aquando dos factos ilícitos, o agente tinha o domínio dos factos e conseguia avaliar a sua ilicitude.

69. Assim, o paralelismo exagerado e sem preocupação de adaptação que o Acórdão recorrido fez entre as situações de inimputabilidade e de anomalia psíquica posterior (invocando a expressão “em termos que, se o agente fosse inimputável, determinariam o seu internamento efectivo” prevista no artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal) fez com que o Acórdão recorrido incorresse em erro na interpretação e aplicação desta norma.

70. Assim, carece de qualquer fundamento e consubstancia erro de direito que, para efeitos de não suspender a pena única de prisão aplicada ao ora Arguido, a página 640 do Acórdão recorrido tenha referido o seguinte: “E em tal documentação clínica nunca foi posta em causa a imputabilidade do arguido na data da prática dos factos (...)”.

71. Em quinto lugar, a solução da suspensão da execução da pena (única) prevista no artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal é motivada pelo facto de que não se justificar aplicar qualquer pena de prisão, a arguido com Doença de Alzheimer nas condições do ora Arguido (ainda por cima já com 79 anos actualmente), pura e simplesmente, porque perde a razão de ser o cumprimento da pena aplicada, por impossibilidade de, por via da pena, se obter a ressocialização.

72. Face ao facto provado 292. do Acórdão recorrido e também atendendo a que, actualmente, o ora Arguido tem 79 anos (para além de que a Doença de Alzheimer é progressiva), afigura-se evidente que o cumprimento de uma pena única de 8 anos de prisão efectiva não contribuirá, nem potenciará – em nada –, qualquer ressocialização, porque está em causa uma pessoa com 79 anos com Doença de Alzheimer.

73. Em sexto lugar, também neste contexto releva que a dignidade humana e a protecção à saúde do agente não possam ser suplantados por uma qualquer sede de aplicar um “castigo” a um pessoa de 79 anos (sua idade actual), que é Doente de Alzheimer.

74. O exercício do poder punitivo do Estado não pode prevalecer, nem prevalece, sobre a dignidade humana e saúde do arguido ou agente do crime. Aliás, no Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 8 de Fevereiro de 2012, foi salientado que “A saúde ou a segurança do arguido não são valores que se possam substituir ao da sua liberdade. Se o arguido estiver ameaçado a solução terá sempre de ser protegê-lo e não prendê-lo” (proc. 1947/11.4JAPRT-A.P1).

75. Afigura-se evidente que um arguido de 79 anos diagnosticado, em termos definitivos, com a Doença de Alzheimer, não verá assegurado o seu tratamento médico adequado num estabelecimento prisional. A entrada do Arguido num estabelecimento prisional (sem conceder) causará, de forma absolutamente certa, o agravamento do seu estado de saúde.

76. Aliás, o cumprimento da pena única de prisão efectiva que o Acórdão recorrido pretende impor ao ora Arguido causará o seu falecimento, atento o seu estado de saúde relativo ao diagnóstico da Doença de Alzheimer, compaginado com a sua avançada idade.

77. Tudo isto resulta absolutamente claro dos artigos 1.º e 64.º da CRP, que consagram os princípios da dignidade humana e do direito à protecção da saúde respectivamente, e ainda do já citado artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal.

78. Em sétimo lugar, se não houve perícia, o acórdão não podia imiscuir-se em questões médicas, que exigem conhecimentos técnicos e científicos que são estritamente necessários para apreciação destas questões, o que também contribuiu para erro na interpretação e aplicação de direito, em particular do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal.

79. Em oitavo lugar, a interpretação normativa do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, que foi feita no Acórdão recorrido viola os artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP.

80. Aliás, o artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que, ao agente com doença de Alzheimer diagnosticada na fase de julgamento, não deve ser determinada a suspensão da pena de prisão, viola os artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP, que consagram o princípio da dignidade da pessoa humana, segurança e confiança jurídicas ínsitas ao Estado de Direito, e os princípios fundamentais da proporcionalidade, garantias de processo criminal e do direito à saúde.

81. De resto, o artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que, ao agente com anomalia psíquica relativa a doença de Alzheimer diagnosticada na fase de julgamento, não deve ser determinada a suspensão da pena de prisão, viola os artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP, que consagram o princípio da dignidade da pessoa humana, segurança e confiança jurídicas ínsitas ao Estado de Direito, e os princípios fundamentais da proporcionalidade, garantias de processo criminal e do direito à saúde.

82. Mais: o artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que, ao agente com anomalia psíquica relativa a doença de Alzheimer superveniente, não deve ser determinada a suspensão da pena de prisão, viola os artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP, que consagram o princípio da dignidade da pessoa humana, segurança e confiança jurídicas ínsitas ao Estado de Direito, e os princípios fundamentais da proporcionalidade, garantias de processo criminal e do direito à saúde.

83. E, ainda, o artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que, ao agente a quem foi diagnosticada a doença de Alzheimer superveniente considerada provada, não deve ser determinada a suspensão da pena de prisão, viola os artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP, que consagram o princípio da dignidade da pessoa humana, segurança e confiança jurídicas ínsitas ao Estado de Direito, e os princípios fundamentais da proporcionalidade, garantias de processo criminal e do direito à saúde.

84. Acresce que o artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que o agente a quem foi diagnosticada a doença de Alzheimer superveniente não tem anomalia psíquica superveniente e está sujeito a pena de prisão efectiva que não deve ser suspensa viola os artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP, que consagram o princípio da dignidade da pessoa humana, segurança e confiança jurídicas ínsitas ao Estado de Direito, e os princípios fundamentais da proporcionalidade, garantias de processo criminal e do direito à saúde.

85. Em nono lugar, a prevalência do direito a saúde de qualquer cidadão, nomeadamente arguidos / agentes da prática do crime, é ainda patente no já citado Despacho proferido nos presentes autos pelo Tribunal da Relação de ..., em 4 de Novembro de 2022, o qual contempla que o Estado se deve abster a qualquer acto que prejudique a saúde.

86. Em décimo lugar, o artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem tem subjacente, igualmente, o direito do agente e arguido à saúde, porquanto da ratio e da razão de ser deste artigo decorre que os agentes / arguidos que sofram de anomalia psíquica, incluindo os doentes de Alzheimer, não podem ser privados da sua liberdade mediante o cumprimento de uma pena de prisão efectiva se daí resultar a violação e perito do seu direito à saúde. Por conseguinte, o Acórdão recorrido violou o artigo 5.º da CEDH.

87. Em face do exposto, o Acórdão recorrido incorreu em erro na interpretação e aplicação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, tendo violado esta norma e, em consequência, o Acórdão recorrido deve ser revogado e deve ser determinada a suspensão da pena única de prisão aplicada ao ora Arguido, ao abrigo desta norma.

* * *

- Vício de insuficiência da matéria provada do acórdão recorrido (artigo 410.º, n.º 1 - a), do cpp)

88. Acresce que resulta da mera leitura do próprio Acórdão recorrido (sem necessidade de recorrer a qualquer outro elemento adicional) que esta decisão enferma do vício de insuficiência da matéria provada, nos termos e para os efeitos do artigo 410.º, n.º 2 - a), do CPP. Este vício é susceptível de ser invocado no presente recurso perante o STJ.

89. Primeiro: o STJ pode conhecer os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, incluindo o vício de insuficiência da matéria de facto previsto na alínea a) desta norma, o que, mesmo à luz do Acórdão recorrido, se verifica e é relevante para conhecer da matéria de direito relativamente à pena única e respectiva suspensão, ao abrigo do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal (caso se entenda que o exposto acima não determina, por si só, a suspensão da pena única de prisão aplicada ao ora Arguido - sem conceder).

90. Segundo: exclusivamente em função da posição assumida no próprio Acórdão recorrido, o vício de insuficiência da matéria de facto previsto no artigo 410.º, n.º 2 - a), do CPP diz respeito exclusivamente à questão da pena única de 8 anos de prisão, em particular, a suspensão da sua execução, ao abrigo do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal.

91. Aliás, no presente processo, em sede de alegações orais perante o Tribunal da Relação, na audiência prevista no artigo 411.º, n.º 5, do CPP, o próprio Ministério Público junto do Tribunal da Relação reconheceu, expressamente, que o apuramento e indagação da matéria de facto feito se afigurava insuficiente para apreciar e decidir a interpretação e aplicação do n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal, a propósito da suspensão da pena única do ora Arguido. Nessa audiência em fase recursória, o próprio Ministério Público junto do Tribunal da Relação reconheceu que se verifica o vício previsto no artigo 410.º, n.º 2 - a), do CPP, que, agora, contamina o Acórdão recorrido (sem conceder).

92. A mera leitura do Acórdão recorrido permite verificar que, para efeitos de decidir a questão de direito relativamente à interpretação e aplicação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal relativamente à suspensão da pena única de prisão aplicada ao ora Arguido, o Acórdão recorrido entendeu invocar matéria de facto que considerou necessária para apreciar esta questão jurídica, mas esta matéria de facto não foi considerada “provada”, nem “não provada” e nem sequer foi indagada em sede de perícia médica.

93. Por um lado, o Acórdão recorrido refere que não seria possível suspender a pena única de prisão, ao abrigo do n artigo 106.º do Código Penal, porque não se teria provado o nível da gravidade da Doença de Alzheimer do ora Arguido e, apesar desta doença ter sido provada, acrescentou – sem ter conhecimentos técnico para o efeito – que não se teria provado que o ora Arguido estivesse impedido “que o impeça de se auto-determinar e de perceber o alcance dos presentes autos e suas consequências” (página 638 do Acórdão recorrido).

94. Mas, por outro lado, a mera leitura do Acórdão recorrido permite constatar que, nem no elenco da matéria provada (páginas 270 a 310 do Acórdão recorrido), nem no elenco da matéria não provada do Acórdão recorrido (páginas 310 a 318 do Acórdão recorrido), consta que não se teria provado que o ora Arguido estivesse impedido “que o impeça de se auto-determinar e de perceber o alcance dos presentes autos e suas consequências” (página 638 do Acórdão recorrido).

95. Ou seja, a citada afirmação feita na página 638 do Acórdão recorrido, em mera sede valorativa conclusiva, não tem suporte ou correspondência no elenco de factos provados e não provados das páginas 270 a 318 do Acórdão recorrido.

96. Ora, se o próprio Acórdão recorrido fez a citada afirmação constante da página 638 do Acórdão recorrido para excluir a suspensão da pena única de prisão ao abrigo do n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal, então é porque reconhece, necessariamente, que tal afirmação teria de ter respaldo, pelo menos, no elenco dos factos não provados (sem nunca conceder).

97. Mais: nem o Acórdão recorrido permitiu indagar sequer esta matéria, porquanto também indeferiu a realização de perícia médica ao ora Arguido (que, entre outros aspectos, visava avaliar o défice cognitivo do ora Arguido) (cfr. páginas 387 a 400, maxime quanto ao objecto indicado na página 395 do Acórdão recorrido).

98. Ora, se, para efeitos de apreciar e decidir a questão relativa à suspensão da pena única de prisão aplicada ao ora Arguido, o próprio Acórdão recorrido entendeu necessário afirmar que não se teria provado que o ora Arguido estivesse numa situação “que o impeça de se auto-determinar e de perceber o alcance dos presentes autos e suas consequências” (página 638 do Acórdão recorrido), então é porque a própria leitura do Acórdão recorrido permite constatar que a decisão recorrida reconhece que esta matéria de facto é necessária e relevante para apreciar a questão relativa à suspensão da pena única, ao abrigo do artigo 106.º do Código Penal.

99. Mas se o elenco da matéria de facto das páginas 270 a 318 do Acórdão recorrido não permite suportar – nem pela negativa, nem pela positiva – a citada afirmação da página 638, então é porque a leitura do Acórdão recorrido permite, por si só, constatar a insuficiência da matéria de facto para decidir a questão de direito relativa à suspensão da execução da pena única de prisão em causa, ao abrigo do artigo 106.º, n.º 1, do CPP.

100. O cerne é que, do ponto de vista factual, não houve indagação, em sede factual, da citada afirmação da página 638 do Acórdão recorrido (o que, em rigor e do ponto de vista estritamente jurídico, é uma questão autónoma face à realização, ou não, da perícia médica).

101. A citada afirmação que consta da página 638 do Acórdão recorrido com a qual o Tribunal da Relação excluiu, erradamente, a suspensão da execução da pena única de prisão prevista no artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal tem subjacente que, mesmo na perspectiva do Acórdão recorrido, um vício de base relativo à deficiência e omissão no apuramento de aspectos e efeitos relativos à Doença de Alzheimer do ora Arguido, que são necessários para decidir a suspensão da execução pena única de prisão.

102. Mais uma vez: mesmo tendo em conta a mera leitura e a perspectiva do Acórdão recorrido (ainda que errada), o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto acabado de citar contém uma situação análoga ao vício de insuficiência da matéria de facto, porque, em mera sede valorativa-conclusiva, a página 638 do Acórdão recorrido invoca uma situação que não foi apurada, nem no elenco dos factos provados, nem no elenco dos factos não provados, constante das páginas 270 a 318 do Acórdão recorrido.

103. Ainda para mais, acresce que a matéria relevante para a questão da suspensão da pena única ao abrigo do artigo 106.º do Código Penal é de indagação e conhecimento oficiosos.

104. No caso concreto, está, pois, em causa um evidente vício de insuficiência de matéria de facto previsto no artigo 410.º, n.º 1 - a), do CPP. Em consequência, deve ser ordenada a baixa para reparação deste vício com vista a que seja efectivamente indagada, em sede factual, a citada matéria de facto para apreciar a questão relativa à interpretação e aplicação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal.

* * *

- Violação do conhecimento oficioso da matéria relevante para apreciação do artigo 106.º do código penal

105. Sem prejuízo do exposto acima determinar a suspensão da pena única de prisão aplicada pelo Acórdão recorrido ao ora Arguido, caso assim não se entenda (sem conceder), é relevante salientar, de forma autónoma, que o Acórdão recorrido incorreu em erro na interpretação e aplicação do n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal, a qual constitui uma questão de direito.

106. Esta questão de direito diz respeito à pena única de prisão, em particular, a sua suspensão.

107. Enquanto questão de direito, a interpretação e aplicação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal e, bem assim, é de conhecimento oficioso a verificação e indicação da matéria de facto relevante para apreciação desta questão.

108. Aliás, as questões relevantes à suspeita de anomalia psíquica do arguido (seja anomalia existente à data dos factos ilícitos relevante para efeitos de inimputabilidade, seja anomalia psíquica posterior relevante para efeitos do artigo 106.º do Código Penal) revestem particular relevância em termos de conhecimento oficioso, como resulta de diversas normas legais.

109. Em primeiro lugar, enquanto questão material de direito, a anomalia psíquica posterior está prevista no Código Penal (artigo 106.º, sob a epígrafe “anomalia psíquica posterior”).

110. Em segundo lugar, o artigo 407.º, n.º 2 - j), do CPP prevê, especificamente, que sobe imediatamente o recurso interposto do “despacho que indeferir requerimento de submissão de arguido suspeito de anomalia mental à perícia respectiva”. Sendo a regra geral da subida dos recursos interlocutórios a sua subida diferida ou a final, ao prever excepcionalmente a subida imediata do recurso do “despacho que indeferir requerimento de submissão de arguido suspeito de anomalia mental à perícia respectiva”, o legislador reconheceu a especial relevância e importância da apreciação oficiosa da questão relativa à anomalia psíquica.

111. Aliás, como resulta do artigo 407.º, n.º 2 - j), do CPP, o próprio legislador considera que, mediante a suspeita de anomalia mental ou psíquica, a avaliação e apreciação da questão da anomalia psíquica é essencial (seja a anomalia psíquica da inimputabilidade, seja a anomalia psíquica posterior do artigo 106.º do Código Penal).

112. Em terceiro lugar, os artigos 154.º, n.º 1, 156.º, n.º 1, 158.º, n.º 1, e 340.º, n.º 1, do CPP consagram que a perícia – incluindo, naturalmente, as perícias médico-legais e forense previstas no artigo 159.º do CPP – podem / devem ser ordenadas oficiosamente e, ainda, os respectivos quesitos, esclarecimentos, renovação da perícia e nova perícia podem / devem também ser determinados oficiosamente.

113. Ou seja, para além de o Tribunal ter o poder-dever de ordenar, oficiosamente, a realização da própria perícia médica, o Tribunal também tem o poder-dever de, oficiosamente, fixar os próprios quesitos da perícia médica, incluindo para efeitos de avaliar e apreciar a anomalia psíquica posterior, que se afigura juridicamente relevante para efeitos do n.º 1 artigo 106.º do Código Penal.

114. Em quarto lugar, face ao quadro normativo acima exposto, considerando que o Tribunal está obrigado a apreciar oficiosamente a questão da anomalia psíquica posterior e, para este efeito, promover oficiosamente uma perícia médico-legal, o Acórdão recorrido incorreu em erro na interpretação e aplicação do direito, em particular do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal e artigos 154.º, n.º 1, 156.º, n.º 1, 158.º, n.º 1, 159.º e 340.º, n.º 1, do CPP.

115. Em sede de apreciação da questão relativa à suspensão da pena única de prisão em causa, ao abrigo do artigo 106.º do Código Penal, nas páginas 639 e 640 do Acórdão recorrido foi afirmado o seguinte: “Por fim, no que respeita à alegada nulidade por falta de realização da perícia médica, remete-se para o que atrás se escreveu sobre a questão, resultando evidente nos autos que a realização de tal perícia - que foi requerida pelo arguido para que fosse atestado que o mesmo padece de doença de Alzheimer, tendo em vista fundamentar o arquivamento ou suspensão dos presentes autos também por ele requeridos, por não deter a liberdade e capacidade entendidas pela defesa como necessárias para exercer a sua defesa prestando declarações -, não constitui qualquer acto que se impusesse para o apuramento da verdade material, mostrando-se os factos que se pretendia provar com a realização de tal perícia – doença de Alzheimer de que padece o arguido - demonstrados nos autos, com base a documentação clínica apresentada para o efeito pelo mesmo arguido.”.

116. Por força desta remissão feita na página 639 do Acórdão recorrido para fundamentação exposta em momento anterior da decisão, a apreciação feita nas páginas 612 e ss. do Acórdão recorrido quanto à questão da suspensão da execução da pena única prevista no artigo 106.º do Código Penal acolheu in totum os fundamentos das páginas 639 e 640 do Acórdão recorrido, que devem aqui ser discutidos.

117. Recorde-se que, na fase de julgamento em 1.ª Instância, o ora Arguido requereu a realização de uma perícia médica sobre a sua situação clínica relativa à Doença de Alzheimer (juntando então, para o efeito, relatório e exames médicos), tendo sugerido os seguintes quesitos (cfr. páginas 138, 139, 230, 231, 395 e 438 do Acórdão recorrido):

“(…)

nos termos dos artigos 159.º, n.ºs 1 e 4, e 340.º do CPP, impõe-se como estritamente necessária e requer-se a realização de uma perícia médica da especialidade ou do foro neurológico ao ora Recorrente, a realizar por serviço oficial de saúde, com o seguinte objecto:

(a) O ora Arguido tem alguma patologia do foro ou natureza neurológica? Se sim,qual?

(b) O nível ou quantidade de placas de “beta-amilóide” depositadas no Sistema Nervoso Central do cérebro do ora Arguido está acima de níveis considerados aceitáveis ou normais?

c) Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, em que medida e quais os efeitos da deposição de placas de “beta-amilóide” no Sistema Nervoso Central do cérebro do ora Arguido sobre o seu estado de saúde?

(d)A capacidade cognitiva do ora Arguido, incluindo a nível de memória e capacidade de interacção de resposta - pergunta em cenários de stress (como um interrogatório judicial em julgamento, na qualidade de arguido), está afectada? Se sim, em que medida?

(e)Afigura-se provável ou possível que a situação neurológica do ora Arguido se esteja agravar ou é susceptível de se agravar, com perda progressiva (ainda mais acentuada) de capacidade cognitiva e autonomia física e motora? Se sim, em que medida e dentro de que prazo?

(f)Afigura-se possível curar a patologia neurológica do ora Arguido?”.

118. Além de a perícia ter sido indeferida, o que se afigura pertinente nesta sede é que, na página 436 do Acórdão recorrido(que aqui é relevante por força da aludida remissão que consta da página 639 do Acórdão recorrido), consta o seguinte: “Entende o Recorrente que se impunha realizar a perícia médica por si requerida durante o julgamento. Porém, a perícia requerida visava concluir se o arguido padecia de doença de Alzheimer e quais as limitações que daí lhe advinham, por forma a sustentar-se que o arguido não detinha capacidade para prestar declarações em Tribunal, estando limitado no exercício do seu direito de prestar livremente declarações e, por isso, impedido de se defender, o que constituía a violação das suas garantias de defesa constitucionalmente consagradas.”

119. Acresce que, na página 439 do Acórdão recorrido (aplicável por remissão da página 639 dessa decisão), consta, ainda, o seguinte: “Tendo a perícia médica sido requerida com determinado objectivo, traduzido nos quesitos quanto à mesma formulados, pretende agora o Recorrente aproveitar tal pedido para efeito de aplicação do disposto no artºº 106.º do C.P.P., defendendo que apenas através da realização de tal perícia médica é possível concluir se o arguido padece ou não de anomalia psíquica sobrevinda após a prática dos factos. Pensamos que não lhe assiste razão e que, como foi decidido pelo Tribunal a quo, a prova de padecimento de doença, qualquer que seja a sua natureza, não impõe a realização de uma perícia médica, podendo tal prova conseguir-se através de atestado médico”.

120. Sucede que a fundamentação das páginas 627 a 640 do Acórdão recorrido – que inclui a remissão para as páginas 436 a 439 dessa decisão – fez este Acórdão incorrer em erro na interpretação e aplicação do direito, nomeadamente do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal e, ainda, dos artigos 154.º, n.º 1, 156.º, n.º 1, 158.º, n.º 1, 159.º e 340.º, n.º 1, do CPP.

121. Primeiro: ao contrário do que é referido no Acórdão recorrido, os quesitos da perícia médica indicados pelo ora Arguido, maxime nas respectivas alíneas (d) a (f) citadas no artigo 271. acima, permitiam, perfeitamente, obter os elementos relevantes sobre a incapacidade cognitiva do ora Arguido quanto à compressão (ou falta dela) deste processo e uma eventual pena única aplicada ao ora Arguido.

122. Com efeito, os quesitos em causa visam indagar e saber os efeitos da Doença de Alzheimer sobre a capacidade cognitiva do ora Arguido. A avaliação da capacidade cognitiva de uma pessoa implica, naturalmente, a avaliação da sua capacidade de compreensão.

123. Segundo: ainda que assim não fosse (sem conceder), como já demonstrado, mesmo se estivesse em causa uma mera suspeita de que o ora Arguido pudesse ter Doença de Alzheimer (sendo certo que, no facto provado 292., ficou demonstrado que o ora Arguido tem esta doença que lhe afecta a capacidade cognitiva) e o Tribunal entendesse que os quesitos descritos no artigo 271. acima não se revelavam suficientes para efeitos do artigo 106.º do Código Penal, então o Tribunal tinha o poder-dever determinar o a perícia e o alargamento dos quesitos, de forma oficiosa.

124. O que não pode suceder é que, na decisão final, o Tribunal fundamente a aplicação do artigo 106.º, n.º 1, do CPP, por entender que o objecto ou os quesitos da perícia médica requerida não visariam a questão subjacente a esta norma (o que, em qualquer caso, não é verdade).

125. Isto sob pena de violação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal e, ainda, dos artigos 154.º, n.º 1, 156.º,n.º 1, 158.º, n.º 1, 159.º e 340.º, n.º 1, do CPP, em que oAcórdão recorrido incorreu.

126. Porquanto a questão relativa ao artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal (e das demais citadas normas que lhe estão associadas) e toda a matéria que lhe está subjacente é de conhecimento oficioso.

127. Está em causa uma verdadeira questão de direito relativa à suspensão da pena única, como resulta da exposição, porque aqui se discute a fundamentação jurídica relativa ao poder-dever do Juiz e dos poderes do Tribunal quanto à matéria do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal.

128. Na verdade, a jurisprudência considera, inclusivamente, que a omissão de perícia médica a arguido, para efeitos de avaliar e apreciar a respectiva anomalia psíquica, constitui um verdadeiro requisito ad substantiam e não uma mera questão formal probatória.

129. Terceiro: em qualquer caso, ainda na fase de primeira instância e mesmo antes da decisão final condenatória proferida pelos Juízos Centrais Criminais de ..., o ora Arguido suscitou a questão relativa a questão da anomalia psíquica posterior do ora Arguido, para efeitos do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, e a realização de perícia para este fim, o que, aliás, é admitido no próprio Acórdão recorrido (cfr. página 399 do Acórdão recorrido) (cfr. requerimento apresentado pela Defesa em 13 de Setembro de 2021).

130. Isto para além de a própria Defesa ter, novamente, suscitado esta questão em sede de alegações finais na fase de 1.ª Instância e, inclusivamente, aí invocado o Acórdão do Juízo Central Criminal de ... - Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de ..., de 8 de Novembro de 2021 acima citado.

131. Por conseguinte, o presente recurso deve ser julgado procedente e o Acórdão recorrido revogado e, em consequência, deve ser determinada a baixa do processo para determinação de perícia médica ao ora Arguido, ao abrigo 154.º, n.º 1, 156.º, n.º 1, 158.º, n.º 1, 159.º e 340.º, n.º 1, do CPP, para efeitos da determinação e avaliação da anomalia psíquica posterior em causa no artigo 106.º no Código Penal.

* * *

- Violação do artigo 106.º, n.º 1, do código penal por não admissão da junção de relatório médico relativo a anomalia psíquica superveniente

132. Em 2 de Maio de 2023, em fase de recurso, o ora Arguido apresentou o seguinte requerimento através do qual juntou o relatório médico superveniente, com data de 1 de Maio de 2023 (por referência à situação do ora Arguido nesta data), relativo à sua situação clínica, em particular, quanto ao estado actual da Doença de Alzheimer […].

133. Em sede de contraditório, através de promoção de 8 de Maio de 2023, o próprio Ministério Público junto do Tribunal da Relação de ... não se opôs à junção do relatório médico superveniente em causa, datado de 1 de Maio de 2023.

134. Nas páginas 640 a 647 do Acórdão recorrido, não foi admitida a junção em fase de recurso do relatório médico relativo ao estado clínico actual do ora Arguido, com data de 1 de Maio de 2023, tendo-se, no entanto, aí ressalvado que “muito embora o mesmo possa vir a ser relevante, nos termos referidos, já na fase de cumprimento da pena de prisão aplicada nos presentes autos” (sic, maxime página 647 do Acórdão recorrido).

135. Isto significa que o Acórdão recorrido reconhece, expressamente, a relevância deste relatório médico, datado de 1 de Maio de 2023, quanto à evolução do estado da Doença de Alzheimer do ora Arguido, com referência a esta data. Isto porque, como já referido no capítulo IV. acima, a Doença de Alzheimer tem natureza degenerativa progressiva e irreversível.

136. Mais uma vez, está em causa uma questão jurídica (a junção de documento superveniente em fase de recurso) relativa à pena única de prisão aplicada pelo Acórdão recorrido, em particular, a sua suspensão, ao abrigo do n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal.

137. Isto para além de que, no segmento decisório em que indeferiu a junção do relatório médico em causa, o Acórdão recorrido não é sequer confirmatório e tem carácter inovador face à decisão proferida pela 1.ª Instância, atento que está em causa a evolução superveniente da Doença de Alzheimer do ora Arguido posterior à própria interposição do recurso da decisão final da 1.ª Instância. A este propósito, saliente-se que as garantias do processo criminal previstas no artigo 32.º, n.º 1, daCRP salvaguardam sempre, pelo menos, a possibilidade de um grau de recurso, o qual ainda não se verificou relativamente a esta questão (desde logo, atenta a natureza superveniente do relatório médico em causa).

138. Salvo melhor opinião, não assiste razão ao Acórdão recorrido.

139. Em primeiro lugar, a matéria superveniente relativa à anomalia psíquica posterior do ora Arguido, ainda que não tivesse sido suscitada em 1.ª Instância, sempre poderia ser suscitada apenas em sede de recurso, nomeadamente por se tratar de questão relevante de conhecimento de oficioso, pelo que, por maioria de razão, nessa mesma fase de recurso pode ser suscitado a agravação do estado clínico de patologia (suscitada na 1.ª Instância) que configura anomalia psíquica (cfr. Ac. do STJ, de 10 de Dezembro de 2009, proc. 119/04.9GCALQ.S1; e Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 21 de Dezembro de 2022, proc 711/18.4GBAGD.P1, www.dgsi.pt).

140. Em segundo lugar, se a matéria relativa a anomalia psíquica do arguido à data dos factos ilícitos pode dar lugar a recurso extraordinário de revisão, então, por maioria ou igualdade de razão, a agravação do estado clínico do arguido, que possa consubstanciar anomalia psíquica posterior, tem de poder ser suscitada, através de documento superveniente, perante o Tribunal de recurso (Ac. do STJ, de 29 de Maio de 2008, proc. 08P1516, www.dgsi.pt).

141. Em terceiro lugar, em linha com o que se acaba de referir e ao contrário do que consta do Acórdão recorrido, a competência para apreciar a questão relativa à suspensão da execução da pena única de prisão, ao abrigo do artigo 106.º do Código Penal, pertence ao Tribunal que tramita o próprio processo-crime e profere a decisão final condenatória.

142. Aliás, mesmo quando a condenação já foi proferida e transitou em julgado, mas a pena única de prisão ainda não começou a ser executada, o Tribunal que proferiu a decisão condenatóri deve apreciar a questão relativa à aplicação do artigo 106.º do Código Penal no próprio-crime, não a relegando para o Tribunal de Execução de Penas (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30 de Janeiro de 2019, proc. 559/12.0JACBR-E.C1, www.dgsi.pt).

143. Em quarto lugar, ao não admitir a junção do relatório médico em causa, de 1 de Maio de 2023, mas ao referir que este relatório médico “possa vir a ser relevante, nos termos referidos, já na fase de cumprimento da pena de prisão aplicada nos presentes autos” (página 647 do Acórdão recorrido), a decisão recorrida incorreu numa verdadeira contradição nos próprios termos e, ainda, na violação do artigo 106.º do Código Penal.

144. A ratio ou razão de ser substancial do artigo 106.º do Código Penal visa que, em caso de anomalia psíquica posterior do arguido, a execução da respectiva pena única seja suspensa. Assim, o legislador foi claro relativamente à solução de que não pretende agentes com anomalia psíquica posterior sem perigosidade a cumprir uma pena de prisão efectiva.

145. Por conseguinte, vai frontalmente contra esta ratio legis colocar o arguido na prisão para, depois, nos dias a seguir, se iniciar um procedimento em que se suscite um elemento, para efeitos do artigo 106.º do Código Penal, que já podia e devia ter sido analisado no processo-crime e, durante este procedimento perante o Tribunal de Execução de Penas, o Arguido com anomalia psíquica posterior estar a cumprir a execução da pena de prisão.

146. Não obstante ser confrontado com um elemento de agravação da doença de Alzheimer que o próprio Acórdão recorrido admite poder ser relevante para suspender a execução da pena única de prisão aplicada ao ora Arguido, mas ao negar apreciar este elemento, então o próprio Acórdão recorrido está a admitir a possibilidade de fazer com que um agente com anomalia psíquica posterior comece a cumprir uma pena de prisão efectiva.

47. Em quinto lugar, a primazia do direito à saúde do agente / arguido e o princípio fundamental da dignidade humana, que também estão subjacentes ao n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal, determinam que o elemento superveniente relativo ao relatório médico, de 1 de Maio de 2023, prevalece sobre o formalismo do artigo 165.º, n.º 1, do CPP.

148. Ajunção do aludido relatório médico superveniente, datado de 1 de Maio de 2023, em fase de recurso perante o Tribunal da Relação, afigura-se admissível à luz: (i) da Jurisprudência acima citada; (ii) dos artigos 1.º, 20.º, n.º 4 - in fine (que consagra um processo equitativo) e 32.º, n.º 1, da CRP; (iii) do artigo 6.º, n.ºs 1 e 3 - b), da CEDH (sob pena da sua violação); e (iv) dos artigos 340.º, 428.º e 430.º do CPP, nomeadamente atento o carácter superveniente do relatório médico em causa. Todas estas normas legais foram violadas pelo Acórdão recorrido, ao não admitir a junção do relatório médico, datado de 1 de Maio de 2023.

149. Aliás, reitere-se que, com relevância para efeitos da primazia da saúde do arguido, é relevante atentar no já citado Despacho proferido nos presentes autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 4 de Novembro de 2022.

150. O artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal e os artigos 165.º, n.º 1, 340.º, 428.º e 430.º do CPP, interpretados no sentido de que não é admissível a junção de relatório médico superveniente relativo à evolução da anomalia psíquica do arguido na fase de recurso, violam os artigos 1.º, 20.º, n.º 4 - in fine, 32.º, n.º 1, e 64.º, n.ºs 1 e 3, da CRP.

151. E, bem assim, o artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal e os artigos 165.º, n.º 1, 340.º, 428.º e 430.º do CPP, interpretados no sentido de que não é admissível a junção de relatório médico superveniente relativo ao agravamento de anomalia psíquica do arguido na fase de recurso, violam os artigos 1.º, 20.º, n.º 4 - in fine, 32.º, n.º 1, e 64.º, n.ºs 1 e 3, da CRP.

152. De resto, o artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal e os artigos 165.º, n.º 1, 340.º, 428.º e 430.º do CPP, interpretados no sentido de que não é admissível a junção de relatório médico superveniente relativo ao agravamento de doença neurológica do arguido na fase de recurso, violam os artigos 1.º, 20.º, n.º 4 - in fine, 32.º, n.º 1, e 64.º, n.ºs 1 e 3, da CRP.

153. E, bem assim, o Acórdão recorrido violou os artigos 5.º e 6.º da CEDH, ao não admitir a junção do relatório médico, datado de 1 de Maio de 2023, para efeitos da apreciação da suspensão da execução da pena única de prisão, em razão do seu estado de saúde, máxime por anomalia psíquica superveniente.

154. Em face do exposto, o presente recurso deve ser julgado procedente, sendo admitida a junção do relatório médico, datado de 1 de Maio de 2023, e o Acórdão recorrido deve ser revogado, sendo determinada a baixa do processo para prolação de nova decisão quanto à suspensão da execução da pena única, ao abrigo do n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal, em função da admissão da junção deste relatório (e, ainda, dentro dos demais efeitos acima pugnados).

* * *

-Violação do direito fundamental de defesa por incapacidade de exercício pessoal do direito de defesa pelo arguido ou, no limite, por impossibilidade de provar a incapacidade do exercício pessoal do direito de defesa pelo arguido

155. Acresce que o facto provado 292. do Acórdão recorrido relativamente à Doença de Alzheimer do ora Arguido suscita, ainda, outra questão processual relativamente à pena única, este facto provado determina a ilegalidade da pena única, por falta de capacidade do ora Arguido para, por si e pessoalmente, exercer a sua defesa, de forma plena e sem limitações.

156. Esta questão reflecte-se, necessariamente, na ilegalidade da pena única, porquanto a aplicação de uma pena única a qualquer arguido pressupõe que o arguido tenha podido exercer, sem limitações e de forma plena, a sua defesa no processo em que lhe é aplicada a pena única.

157. Sucede que, face à matéria do facto 292. do Acórdão recorrido, em particular, tendo em conta o diagnóstico definitivo da Doença de Alzheimer feito ao ora Arguido e o défice cognitivo que daí advém (tal como resulta do teor do relatório médico que integra, por remissão, o conteúdo deste facto provado), este direito fundamental do ora Arguido não se verificou e foi violado pelo Acórdão recorrido.

158. Com efeito, perante o quadro clínico do ora Arguido que consta dos autos e acima foi exposto de forma clinicamente fundada e documentada, afigura-se evidente que o direito fundamental e a faculdade do ora Arguido declarar e exercer, por si, a sua defesa estão comprometidas e afectadas, atenta a anomalia psíquica de que enferma, no quadro da Doença de Alzheimer que lhe foi diagnosticada, o que o impede de plenamente exercer o direito de defesa, nomeadamente através da prestação dedeclarações integralmente esclarecidas e sem limitações psíquicas e mentais.

159. A este respeito, o Acórdão recorrido contém, mais afirmações sobre a suposta capacidade do ora Arguido em prestar declarações, atenta a sua presença em audiência, que não têm qualquer correspondência ou fundamento na matéria provada. Antes pelo contrário, estas afirmações incorrectas vertidas no Acórdão recorrido, a este propósito, vão contra a matéria de facto provada, em particular, contra a matéria do facto 292. do Acórdão recorrido.

160. Em primeiro lugar, face ao quadro clínico da Doença de Alzheimer diagnosticada ao ora arguido, a sua capacidade de defesa está afectada, o que lhe impede de exercer este direito de forma plena, incluindo a afectação irremediável do direito fundamental de prestar declarações no julgamento, já que a memória e estado actual de demência mental do ora Arguido. A Doença de Alzheimer, que foi definitivamente diagnosticada ao ora Arguido, tolhem-lhe a sua memória e capacidades psíquicas que são fundamentais, desde logo, para a prestação de declarações em sede de interrogatório, narração e conexão de diversos e complexos factos históricos, designadamente em contexto de stress profissional e pessoal, e ainda acompanhamento do processo.

161. Em segundo lugar, o patrocínio exercido pelos defensores não substitui, nem é subsidiário, ao direito fundamental de o próprio Arguido se defender por si, seja prestando declarações, seja intervindo, de outra forma no processo, seja dando elementos e informações aos seus defensores.

162. As garantias constitucionais de defesa implicam que os arguidos tenham o direito fundamental de exercer a sua defesa, através da prestação de declarações em julgamento perante o Juiz, devendo este direito de defesa e contraditório ser exercido de forma plena e sem limitações.

163. Assim, o diagnóstico definitivo de Doença de Alzheimer realizado ao ora Arguido tolhe e afecta, de forma inadmissível, a sua capacidade de defesa, nomeadamente por via da prestação de declarações e acompanhamento do processo, o que integra o âmbito das garantias fundamentais de defesa em processo penal.

164. Isto porque quem não tem capacidade plena para, por si só, prestar declarações em processo processo-crime e aí se defender, mediante a prestação dessas declarações e acompanhamento do processo, não pode ser julgado e, muito menos, condenado.

165. A não ser assim, estar-se-ia a julgar e condenar uma pessoa que não se pode defender, o que viola o direito a um processo equitativo e, ainda, os mais elementares direitos e garantias fundamentais de defesa do arguido em processo penal, nos termos e para os efeitos dos artigos 20.º, n.º 4 in fine, e 32.º, n.º 1, da CRP.

166. Aliás, a promoção e prossecução de um processo-crime e condenação em pena de prisão efectiva (ainda para mais, em pena única de 8 anos) do Arguido com Doença de Alzheimer, com a sua capacidade de memória afectada e tolhida, e que não consegue exercer a sua defesa e prestar declarações de forma plena, viola o direito do arguido a um processo equitativo, nos termos do disposto no artigo 6.º, n.ºs 1 e 3 - c), da CEDH.

167. O patrocínio dos Defensores não substitui, em caso algum, o direito mínimo de o Arguido ter o direito fundamental a estar capaz para prestar declarações, intervir e acompanhar o processo, incluindo o julgamento e fases de recurso.

168. A aplicação de uma pena única de 8 anos de prisão pelo Acórdão recorrido ao ora Arguido é ilegal, tendo sido decidida em violação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1 - b), 63.º, n.º 1 in fine, 154.º, n.º 1, 156.º, n.º 1, 158.º, n.º 1, 159.º, 340.º, n.º 1, e 343.º do CPP e, ainda, dos artigos 1.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4 - in fine, 32.º, n.º 1, e 64.º, n.ºs 1 e 3, da CRP e, ainda, artigo 6.º, n.ºs 1 e 3 - c), da CEDH.

169. Em terceiro lugar, mesmo a Jurisprudência de jurisdições estrangeiras reforça o que foi acima exposto, no sentido de que o ora Arguido tem o direito de exercer pessoalmente a sua defesa e de provar a sua incapacidade para o efeito, através de perícia médica, não podendo ser sujeito a uma pena única de 8 anos prisão efectiva, nos termos determinados pelo Acórdão recorrido [cfr. Acórdão do Tribunal Superior da Irlanda, de 8 de Outubro de 2002, no caso JO’C vs. Director of Public Prosecutions, processo n.º 2001/282 JR; cfr., ainda, Solicitor e Queen’s Counsel JOSHUA ROZENBERG e, ainda, decisão do Central Criminal Court do Reino Unido (Judiciary of England and Wales), de 7 de Dezembro de 2015, no caso R. vs. Janner (Lord Greville Janner)].

170. Em quarto lugar, a pena única de 8 anos de prisão fixada no Acórdão recorrido viola o n.º 2 do artigo 18.º da CRP. A condenação de um arguido diagnosticado com Doença de Alzheimer, sem sequer lhe realizar uma perícia médica com impacto na avaliação da sua capacidade para se defender no processo, revela-se desproporcional e viola o artigo 18.º, n.º 2, da CRP.

171. Em face do exposto, o Acórdão recorrido deve ser revogado, por ter fixado uma pena única de 8 anos de prisão efectiva, que se afigura ilegal e violadora da CRP, e das duas uma: (i) ou, desde já, se determina a extinção do presente processo, face à incapacidade do ora Arguido resultante da Doença de Alzheimer demonstrada no facto provado 292. do Acórdão recorrido; ou (ii) se determina a baixa do processo para realização de perícia médica para avaliação da (in)capacidade do ora Arguido para, por si e pessoalmente, exercer o seu direito de defesa e estar no processo.

Sem conceder: violação do artigo 77.º na determinação da medida da pena única

172. O Acórdão recorrido violou o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que regula a regra da punição do concurso, em sede de cúmulo jurídico através da fixação de uma pena única.

173. Em particular, ao fixar a pena única de prisão em causa em 8 anos (ainda por cima em resultado da agravação da pena única de 6 anos de prisão que havia sido fixada pela 1.ª Instância), não foram devidamente considerados, com o impacto que devem ter na determinação da pena única, os factos concretos e a personalidade específica do ora Arguido.

174. A ponderação conjunta concreta dos factos provados do Acórdão recorrido e da personalidade do ora Arguido Recorrente (também reflectida nos factos provados do Acórdão recorrido) implica que a pena única seja determinada pelo mínimo da moldura aplicável ao concurso e não “a meio” da moldura do concurso de crimes, como foi decidido no Acórdão recorrido (que, numa moldura de concurso entre 4 e 12 anos, decidiu aplicar 8 anos de prisão efectiva, o que se afigura claramente desproporcional).

175. Em primeiro lugar, nos termos diagnosticados da doença de Alzheimer diagnosticada ao ora Arguido para efeito do facto provado 292. do Acórdão recorrido, conjugado com a sua idade, afigura-se claro que o ora Arguido nem sequer tem capacidades cognitivas para cometer crimes patrimoniais, em particular de natureza económica num contexto empresarial, já que tais crimes requerem capacidades cognitivas que não estejam afectadas por demência.

176. Em consequência, a personalidade concreta do ora Arguido Recorrente não tem inclinação criminosa, sendo que a doença de doença de Alzheimer que lhe foi diagnosticada implica, por si só, que a pena única seja fixada pelo mínimo da moldura penal aplicável ao concurso.

177. Assim, ao fixar uma pena única de 8 anos de prisão efectiva, o Acórdão recorrido violou o n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal e, ainda, os artigos 1.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4 - in fine, 32.º, n.º 1, e 64.º, n.ºs 1 e 3, da CRP, revelando-se esta pena única desproporcional e violadora do direito à saúde do ora Arguido.

178. Em segundo lugar, com relevo para a consideração da personalidade do ora Arguido Recorrente, nos factos provados 256 e 257. do Acórdão recorrido (página 621), foi demonstrado que o ora Arguido Recorrente tem “sentido dificuldades e lapsos de memória e, ainda, desgaste emocional, físico e psicológico” e “tem dificuldades de audição”. Também neste sentido, no facto provado 287. do Acórdão recorrido (página 624), foi demonstrado o seguinte: “No contacto com o arguido, agora com 76 anos, sobressai alguma fragilidade física e psicológica, desde 2014 o arguido tem vindo a perder a força e a determinação que lhe eram características, mostra-se abatido e evidencia uma lentificação generalizada, falhas de memória”.

179. Em terceiro lugar, no facto provado 293. do Acórdão recorrido (página 625), ficou demonstrado que “O arguido não tem qualquer registo criminal”. Esta circunstância evidencia, desde logo, que o ora Arguido não tinha já, por si só, personalidade com inclinação para a actividade criminosa, o que reforça a conclusão de que a pena única deve ser fixada pelo mínimo da moldura penal aplicável ao concurso de crimes.

180. Assim, mais uma vez, o Acórdão recorrido violou o n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal e, ainda, os artigos 1.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4 - in fine, 32.º, n.º 1, e 64.º, n.ºs 1 e 3, da CRP.

181. Em quarto lugar, esta conclusão quanto à personalidade do ora Arguido Recorrente é reforçada pela circunstância de que, nos factos provados 244., 245., 248. e 249. do Acórdão recorrido (página 620), ficou demonstrado que o ora Arguido Recorrente cumpre 78 anos em 25 de Junho de 2022 e está reformado desde de Julho de 2014, não exercendo qualquer função desde então.

182. Ao contrário da pena única de 8 anos de prisão que foi determinada no Acórdão recorrido, esta circunstância reforça que a pena única deve corresponder ao limite mínimo para o concurso de crimes em causa: ou seja, 4 anos de prisão.

183. Em quinto lugar, independentemente de ter sido dado como provado que o ora Arguido recorrente não teria restituído os montantes objecto dos três crimes de abuso de confiança (sem conceder), a circunstância de que, nos factos provados 91., 196., 202. e 204. Do Acórdão recorrido, foi demonstrado que a conduta posterior do ora Arguido Recorrente foi no sentido de fazer um influxo de fundos na E.. . ........... de EUR 7 milhões, demonstra que a sua personalidade não tem inclinação criminosa.

184. Em sexto lugar, mesmo que o estado clínico de doença de Alzheimer fosse desconsiderado (sem conceder), o curto período de tempo em que se concentram os três abusos de confiança também reforça a conclusão de que a conjugação dos factos com a personalidade do ora Arguido Recorrente não demonstra qualquer inclinação para a actividade criminosa.

185. Em sétimo lugar, a fixação de uma pena única de 8 anos de prisão efectiva, por esta corresponder ao ponto “médio” da moldura do concurso de crime, viola o n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, porquanto o critério previsto nesta norma não tem nada a ver com a “procura” de um ponto de equilíbrio entre os limites mínimo e máximo do concurso.

186. Aliás, se assim não fosse, então a pena única nunca poderia ser fixada pelo limite mínimo aplicável ao concurso de crimes.

187. E não se diga que, mediante a aplicação do limite mínimo do concurso de crimes, o ora Arguido seria injustificadamente beneficiado (sem conceder), porquanto um dos efeitos do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal é consagrar um regime mais favorável para o Arguido.

188. Assim, a pena única de 8 anos de prisão efectiva determinada no Acórdão recorrido viola o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, afigura-se desproporcional e, ainda, viola a dignidade humana do ora Arguido, que actualmente tem 79 anos e sofre de Doença de Alzheimer.

189. Em oitavo lugar, nem a personalidade do ora Arguido marcada de forma absolutamente preponderante pela suas circunstanciais pessoais relativas à Doença de Alzheimer, sua idade actual de 79 anos e reformado, e, bem assim, supostas exigências de ressocialização, consideradas conjuntamente, exigem a fixação de uma pena única de 8 anos de prisão, mas sim, no limite, uma pena de 4 anos correspondente ao limite mínimo da moldura do concurso.

190. O comportamento futuro do agente, desde logo, atendendo à sua idade, ao estado da sua Doença de Alzheimer e condição de reformado com estilo de vida discreta, jamais reclamaria ou requereria a fixação de uma pena única de 8 anos de prisão efectiva, bastando-se, no limite, com uma pena única de 4 anos.

191. Aliás, a pena única de 8 anos de prisão efectiva fixada no Acórdão recorrido afigura-se manifestamente desproporcional face ao caso apreciado pelo Ac. do STJ, de 16 de Junho de 2016, em que, ao contrário do ora Arguido (que não tem antecedentes criminais), estava em causa um arguido que já tinha tido diversos criminais (proc. 119/12.5GDPTM.E1.S1).

192. Assim, considerando que, nos presentes autos, o ora Arguido não tem antecedentes criminais, tem 79 anos e padece da Doença de Alzheimer, bem como que também estão em causa crimes exclusivamente patrimoniais, a pena única deve ser fixada, sempre, abaixo dos 5 anos.

193. Em nono lugar, no facto provado 249. do Acórdão recorrido (página 620), ficou demonstrado o seguinte: «Em 13 de Julho de 2014, o arguido AA cessou as funções de CEO da "Grupo Espírito Santo" que exerceu desde Setembro de 1991 e, desde o colapso do "Grupo Espírito Santo" em Agosto de 2014, não exerce qualquer actividade profissional».

194. No facto provado 287. do Acórdão recorrido (página 624), foi demonstrado o seguinte: “No contacto com o arguido, agora com 76 anos, sobressai alguma fragilidade física e psicológica, desde 2014 o arguido tem vindo a perder a força e a determinação que lhe eram características, mostra-se abatido e evidencia uma lentificação generalizada, falhas de memória”.

195. Nos factos provados 242., 243. e 289 do Acórdão recorrido (páginas 305 e 624), foi dado como assente que o património do ora Arguido Recorrente está arrestado e dado como caução, em outros processos judiciais, sendo o ora Arguido Recorrente e a sua Mulher vivem com o apoio da Filha mais velha.

196. Todas estas circunstâncias relativas às condições pessoais do ora Arguido Recorrente demonstram que as exigências de prevenção especial são nulas ou se situam no limiar mínimo, porquanto se afigura evidente que o ora Arguido Recorrente não carece de ressocialização.

197. Qualquer pena de prisão efectiva terá efeitos adversos e perniciosos quer sobre a saúde física, neurológica e psicológica do ora Arguido Recorrente, quer sobre a sua socialização e integração familiar.

198. Reitera-se: qualquer prisão efectiva – ainda para mais na duração determinada no Acórdão recorrido – causará ou, pelo menos, acelerará o falecimento do ora Arguido.

199. Atenta a doença de Alzheimer do ora Arguido Recorrente, conjugada com a sua avançada idade e situação física, neurológica e psicológica acima indicadas, o ora Arguido Recorrente não tem condições para, por si e sem assistência, prover e tomar a sua correcta medicação diária e demais cuidados que o seu estado de saúde requer.

200. Trata-se, portanto, de salvaguardar a dignidade humana.

201. Em décimo lugar, a pena única de 8 anos de prisão efectiva fixada no Acórdão recorrido é, manifestamente, desproporcional e excessiva face aos critérios estabelecidos pela Jurisprudência dos Tribunais Superiores (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Junho de 2015, processo n.º 617/05.7TAEVR.E2.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Julho de 2010, processo n.º 364/09.0GESLV.E1.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Junho de 2006, processo n.º 06P1560, www.dgsi.pt).

202. Ao fixar uma pena única de 8 anos de prisão efectiva, o Acórdão recorrido incorreu na violação do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal e do artigo 18.º, n.º 2, da CRP.

203. Em décimo primeiro lugar, a interpretação normativa acolhida no Acórdão recorrido quanto ao artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal viola os artigos 1.º, 19.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP.

204. Com efeito, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que o agente com idade de 77 ou 78 anos com doença de Alzheimer diagnosticada no decurso do julgamento pode ser condenado a pena única de prisão efectiva superior a 5 anos, viola os artigos 1.º, 19.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP, que consagram os princípios fundamentais da dignidade humana, proporcionalidade e garantias de processo criminal e, ainda, o direito à saúde.

205. Mais: o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que o agente com idade de 77 ou 78 anos com doença de Alzheimer diagnosticada no decurso do julgamento pode ser condenado – pela prática de crimes de abuso de confiança – a pena única de prisão efectiva superior a 5 anos, viola os artigos 1.º, 19.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP, que consagram os princípios fundamentais da dignidade humana, proporcionalidade e garantias de processo criminal e, ainda, o direito à saúde.

206. Adicionalmente: o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que o agente com idade de 77 ou 78 anos com doença de Alzheimer diagnosticada no decurso do julgamento pode ser condenado a pena única de prisão efectiva, viola os artigos 1.º, 19.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP, que consagram os princípios fundamentais da dignidade humana, proporcionalidade e garantias de processo criminal e, ainda, o direito à saúde.

207. O artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que o agente com idade de 77 anos com doença de Alzheimer diagnosticada no decurso do julgamento pode ser condenado – pela prática de crimes de abuso de confiança – a pena única de prisão efectiva, viola os artigos 1.º, 19.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP, que consagram os princípios fundamentais da dignidade humana, proporcionalidade, e garantias de processo criminal e o direito à saúde.

208. Acresce que o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que o agente com doença de Alzheimer diagnosticada no decurso do julgamento pode ser condenado – pela prática de crimes de abuso de confiança – a pena única de prisão efectiva superior a 5 anos, viola os artigos 1.º, 19.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP, que consagram os princípios fundamentais da dignidade humana, proporcionalidade e garantias de processo criminal.

209. De resto, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que o agente com doença de Alzheimer diagnosticada no decurso do julgamento pode ser condenado a pena única de prisão efectiva, viola os artigos 1.º, 19.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP, que consagram os princípios fundamentais da dignidade humana, proporcionalidade e garantias de processo criminal e, ainda, o direito à saúde.

210. Em face do exposto, é forçoso concluir a pena única de 8 anos de prisão fixada no Acórdão recorrido deve ser reduzida e que, por força do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, esta pena única determinada em sede de cúmulo deve corresponder ao limite mínimo da moldura aplicável ao concurso (4 anos), estando sempre em causa uma pena inferior a cinco anos de prisão, que deve ser suspensa na sua execução, por força do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal (sem prejuízo da suspensão da execução da pena de prisão, ao abrigo do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal).

* **

- Violação do artigo 50.º, n.º 1, do código penal, quanto à suspensão da execução da pena de prisão.

211. Sem prejuízo do que acima se referiu quanto à suspensão da execução da pena única de prisão, ao abrigo do artigo 106.º do Código Penal, acrescente-se que a aplicação de uma pena única inferior a 5 anos de prisão deve determinar a sua suspensão, ao abrigo do artigo 50.º do Código Penal, sendo a aplicação desta norma um poder-dever do Tribunal.

212. A pena única a aplicar não deve ser superior a 5 anos de prisão, mesmo em face das penas parcelares aplicadas peloAcórdão recorrido, sendo que, atenta a ponderação da personalidade do agente, suas condições de vida, e conduta anterior e posterior aos factos ilícitos em causa, permite concluir que a censura inerente à suspensão prevista no artigo 50.º do Código Penal se afigura suficiente.

213. Para efeitos de apreciar a suspensão da pena, o Tribunal deve fazer um juízo de prognose sobre se o agente poderá, ou não, vir a cometer mais crimes no futuro, por referência ao momento em que a decisão condenatória é proferida.

214. Como já demonstrado, afigura-se evidente que a personalidade do ora Arguido Recorrente impõe um juízo de prognose no sentido de que este não cometerá crimes no futuro.

215. Sem prejuízo disto, reitere-se – à saciedade – que o facto de o ora Arguido sofrer da doença de Alzheimer (facto provado 292 do Acórdão recorrido), com as suas capacidades cognitivas e inteligência afectadas, demonstra que este não tem sequer capacidade, engenho, inteligência, nem propensão, para praticar crimes no futuro, designadamente de natureza económica ou patrimonial.

216. A isto soma-se que, recorde-se que resulta do facto provado 244. do Acórdão recorrido que o ora Arguido Recorrente cumpriu 79 anos de idade em 25 de Junho de 2023.

217. Recorde-se que, no facto provado 287. do Acórdão recorrido (página 624), foi demonstrado o seguinte: “No contacto com o arguido, agora com 76 anos, sobressai alguma fragilidade física e psicológica, desde 2014 o arguido tem vindo a perder a força e a determinação que lhe eram características, mostra-se abatido e evidencia uma lentificação generalizada, falhas de memória”.

218. Neste contexto, é evidente o Arguido Recorrente tem o foro neurológico e as suas capacidades cognitivas afectadas.

219. Afirmar o contrário é ignorar chocantemente uma realidade que está provada no próprio Acórdão recorrido de forma clara, com o propósito obstinado de colocar na prisão o ora Arguido, ainda que isso signifique causar ou, pelo menos, acelerar o seu falecimento.

220. Em face de todo o contexto acima traçado, perguntar-se-á: como poderá o ora Arguido sobreviver num estabelecimento penitenciário? A resposta é evidente.

221. Assim, é forçoso concluir que o Acórdão recorrido violou os artigos 50.º, n.ºs 1 e 2, e 77.º, n.º 1, do Código Penal, ao não ter determinado uma pena única não superior a 5 anos de prisão e a sua consequente suspensão, ao abrigo do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.

222. Por conseguinte, o Acórdão recorrido deve ser revogado relativamente ao seu segmento decisório em que fixou e aplicou uma pena única de 8 anos de prisão efectiva e, em consequência, ser determinada uma pena única não superior a cinco anos de prisão, cuja execução deve ser suspensa, por força do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.

223. Em face do exposto, requer-se, ao abrigo do artigo 267.º do tratado sobre o funcionamento da união europeia e do artigo 19.º do tratado da união europeia, que seja determinado o reenvio prejudicial, que se afigura obrigatório, para formulação das questões acima indicadas ao Tribunal de Justiça (cfr. artigo 93. Do capítulo III. do corpo das presentes alegações de recurso respectivo artigo 40. das conclusões).

224-Acresce que o presente recurso deve ser julgado integralmente procedente e, em consequência, o Acórdão recorrido ser revogado e deve ser, desde já, determinada a suspensão da execução da pena única de prisão aplicada ao ora Arguido, por força do disposto no n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal.

225-Caso se entenda que, por ora e desde já, ainda não se afigura possível proceder à suspensão da execução da pena única fixada no Acórdão recorrido (sem conceder), o presente recurso deve ser julgado procedente, por verificação do vício de insuficiência da matéria de facto provada no Acórdão recorrido, nos termos do artigo 410.º, n.º 2 - a), do CPP, e, em consequência, o Acórdão recorrido deve ser revogado e deve ser ordenada a baixa do processo para reparação deste vício, com vista a que seja efectivamente indagada, em sede factual, a matéria de facto relevante (melhor indicada no capítulo V. do corpo das presentes alegações) para apreciar a questão relativa à interpretação e aplicação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal.

226- Em qualquer caso, independentemente da solução jurídica a dar à questões anteriores, o presente recurso deve ser julgado procedente e o Acórdão recorrido deve ser revogado, por violação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, cuja matéria é de conhecimento oficioso e, ainda, deve ser admitida a junção do relatório médico relativo ao ora Arguido, com data de 1 de Maio de 2023, que foi junto pela Defesa em 2 de Maio de 2023, procedendo-se, em consequência, à suspensão da execução da pena única de prisão, ao abrigo do n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal.

227-Acresce que, independentemente da solução jurídica a dar às questões anteriores, o presente recurso deve ser julgado procedente e o Acórdão recorrido deve ser revogado, por violação do direito de defesa do ora Arguido, por falta de capacidade para, por si e pessoalmente, exercer a defesa neste processo face à condenação na pena única de 8 anos de prisão efectiva determinada no Acórdão recorrido.

228-Acresce que, independentemente da solução jurídica a dar às questões anteriores, o presente recurso deve ser julgado procedente e o Acórdão recorrido deve ser revogado, por violação dos artigos 50.º, n.º 1, e 77.º, n.º 1, do Código Penal, devendo a pena única de prisão ser reduzida para 4 anos de prisão (correspondente ao limite mínimo da moldura do concurso de crimes) e a sua execução ser suspensa, ao abrigo do artigo 50.º do Código Penal (sem prejuízo da pugnada suspensão da execução da pena única de prisão, ao abrigo do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal).

229- Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 5 do artigo 411.º do Código de Processo Penal, o ora Arguido Recorrente requer a realização no Supremo Tribunal de Justiça a audiência prevista nesta norma legal, especificando-se os seguintes pontos concretos para debate na audiência ora requerida:

(a) Pontos / artigos 96. a 249. da motivação / corpo das alegações abaixo, integrados no capítulo IV. da motivação / corpo das alegações abaixo (correspondentes aos pontos / artigos 42. a 87. das conclusões do presente recurso), afigurando-se relevante debater estes pontos muito precisos, por forma a demonstrar e discutir que o Acórdão recorrido violou o n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal, ao fixar e aplicar uma pena única de 8 anos de prisão efectiva, sem proceder à sua suspensão ao abrigo do n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal, face à matéria provada constante do Acórdão recorrido;

(b) Pontos / artigos 203. a 249. da motivação / corpo das alegações abaixo, integrados no capítulo V. da motivação / corpo das alegações abaixo (correspondentes aos pontos / artigos 88. a 104. das conclusões do presente recurso), afigurando-se relevante debater estes pontos muito precisos, por forma a demonstrar e discutir que, em caso de não suspensão da pena única de prisão ao abrigo do artigo 106.º do Código Penal face à matéria provada constante do Acórdão recorrido, então, tal como já pugnado pelo próprio Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, o Acórdão recorrido incorreu em vício de insuficiência da matéria de facto prevista no artigo 410.º, n.º 2 - a), do CPP, para efeitos de apreciação a questão jurídica da suspensão da execução da pena única de prisão, ao abrigo do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, em face da mera leitura do Acórdão recorrido;

(c) Pontos / artigos 295. a 340. da motivação / corpo das alegações abaixo, integrados no capítulo VII. da motivação / corpo das alegações abaixo (correspondentes aos pontos / artigos 132. a 154. das conclusões do presente recurso), afigurando-se relevante debater estes pontos muito precisos, por forma a discutir que o Acórdão recorrido incorreu na violação o artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal e outras normas processuais (melhor identificadas no aludido capítulo VII.), ao não admitir a junção de relatório médico superveniente relativo ao estado clínico do ora Arguido, datado de 1 de Maio de 2023, que foi junto pela Defesa em 2 de Maio de 2023, apesar de o próprio Ministério Público não se ter oposto à sua junção;

e

(d) Pontos / artigos 392. a 477. da motivação / corpo das alegações abaixo, integrados no capítulo IX. da motivação / corpo das alegações abaixo (correspondentes aos pontos / artigos 172. a 210. das conclusões do presente recurso), afigurando-se relevante debater estes pontos muito precisos, por forma a demonstrar e discutir que, ao fixar uma pena única de 8 anos de prisão efectiva, o Acórdão recorrido incorreu na violação do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal e de princípios constitucionais que consagram a protecção da dignidade humana, proporcionalidade, garantias em processo criminal e o direito à saúde.”]

1.7.2. No Tribunal da Relação o MPº respondeu, dizendo (segue transcrição como no original):





O objecto do Recurso, a que ora se responde, surge delimitado e definido, com absoluta clareza, pelo douto Despacho de 30.10.23, lavrado pelo Exmº Sr Juíz Vice- Presidente desse Colendo Tribunal, cingindo-se, nesse conspecto, à pena única (de 8 A de prisão), aplicada ao recorrente, nesse sentido traduzindo agravamento da anterior e originária pena congénere (fixada em 7.03.22).





Dessa sorte, definitivamente, foram expurgadas as “questões associadas” que o recorrente enunciou e escalpelizou, todas elas, de resto, alvo de apreciação pelo primeiro Tribunal sindicante (RL-Lx), que uma por uma as rejeitou, fundamentadamente, sendo, por seu turno, o inovadoramente convocado “reenvio prejudicial”, para o TJUE, marginal, estranho, ao objecto recursório, tal como gizado pela Decisão de 30.10.23





Cabe, pois, por exclusão de partes, avaliar do (de) mérito da tese recursória quanto àquela pena final concreta (art 77º,1 e 2, CP).





Nesse particular (dosimetria) é pacífico que o Tribunal Superior só deve intervir correctivamente e de modo cirúrgico, determinando reajustamentos se detectar desvios aos critérios legais reinantes nessa matéria (artºs 40º, e 2, 71º,1 e 2, e 77º, 1 e 2, CP) ou insustentáveis desproporções, quer com anteriores Deliberações e Decisões, quer com os parâmetros constitucionais (art 18º,2, do Texto Magno)- cfr Acs. de 27.05.09 (desse Colendo Tribunal) e de 13.10.21 (RP).





Ora, nessa senda, conferindo a elevada ilicitude(modo concertado e grupal da actuação, agindo com prevalência ou ascendente que a posição societária de topo lhe proporcionava, sempre obedecendo a um mesmo e, portanto, repetido perfil comportamental, pormenorizadamente planeado, com apoio de pessoas da sua total confiança e proximidade), o alto grau de culpa (dolo directo), expressa nos factos, as muito intensas exigências preventivas (“maxime” gerais, mas também especiais, resultante da ausência de juízo auto crítico, traduzido na não devolução dos exorbitantes valores por si desapossados) e a incompreensível motivação delitiva (atendendo ao privilegiado estatuto sócio-económico e financeiro de que desfrutava antes), evidenciando reforçada falta de preparação para actuar de modo fidelizado ao Direito (art 71º, 1 e 2, e 77º,1, CP), por um período de 3 anos, gerou-se a inevitabilidade de agravação da pena única originária.





Fundamentação exaustivamente partilhada (artºs205º,1, CRP,71º,3, CP,e375º,1, CPP), quer no Acórdão (fls 609 a 612), quer no âmbito do voto de vencida (fls 663 a 667), secções da Deliberação recorrida onde se dissecaram aspectos da “imagem global” da factualidade (gravidade do ilícito total e conexões entre cada episódio criminoso) e da personalidade do recorrente nela expressa (art 77º,1, CP).





A actuação dissimuladora exteriorizada (com complexos circuitos intermédios até ao beneficiário final) e a não devolução, até ao momento presente (mais de uma década, período durante o qual não foi diagnosticado com qualquer patologia limitativa da sua capacidade cognitiva, convenhamos), do mais simbólico valor ao (s) ofendido (s) que fosse, são bem emblemáticas das necessidades preventivas, constituindo o “quantum” recorrido a “fórmula mínima” de ainda se alcançarem os fins últimos e indeclináveis (art 40º,2, CP), abaixo do que a assertividade da Ordem Jurídico-Penal naufragaria aos “olhos comunitários”, descredibilizando-se fortemente o sistema de justiça, “in casu” guardião da confiança nos mercados financeiros, nacionais e internacionais, de forma insustentável.





Sendo assim, havendo completude de ponderação dos critérios normativos pré-fixados, com inegável equilíbrio, não sendo o actual estado de saúde (qualquer que seja o nível de degradação intelectual) do recorrente impeditivo da emissão do apontado juízo de censura ético-penal, e sem embargo da avaliação que deva ocorrer, mas sob a égide do TEP, quanto à (in)viabilidade do cumprimento de tal pena, somos a sugerir a manutenção respectiva, porque judiciosa e irrepreensível (embora coma condicionante decorrente da involuntária não interposição de Recurso pelo MºPº, na 2ª Instância, que implica o accionamento da regra de proibição de “reformatio in pejus: art 409º,1, CPP).”


1.8. Realizada audiência e efectuada a deliberação pelo colectivo de juízes conselheiros, dar-se-á de seguida nota do seu resultado e da respectiva fundamentação.


II- CONHECENDO


2.1.- Visando permitir e habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância da decisão recorrida e tal como tem sido posição pacífica da jurisprudência o âmbito do recurso (na parte admissível) é delimitado pelas conclusões que o(s) recorrente(s) extrai(em) da respectiva motivação, sem prejuízo da ponderação das questões que sejam de conhecimento oficioso. (1)


Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.


Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso. Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).


2.2. Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente e os limites de admissibilidade traçados pelo despacho que o admitiu, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das que possa haver de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são:

• A definição da limitação dos temas do recurso interposto face ao despacho do Exmº Vice Presidente do STJ no sentido da restrição de admissibilidade parcial do mesmo ao segmento da pena unitária.

• A justificabilidade da agravação da pena unitária de 6 para 8 anos de prisão.

• A admissibilidade ou não de junção na fase de recurso neste STJ de documentos supervenientes para prova do agravamento do estado clínico do arguido e aplicação do artº 106º do CP

• A doença do arguido (Alzheimer) e a verificabilidade da hipótese de suspensão da execução da pena ao abrigo do artº 106º do CP.

• O pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia


2.3. De Direito -A posição deste Supremo Tribunal


2.3.1- Definição da limitação dos temas do recurso interposto face ao despacho do Exmº Vice Presidente do STJ no sentido da restrição de admissibilidade parcial do mesmo ao segmento da pena unitária.


As questões colocadas ao STJ pelo arguido (retiradas das 229 conclusões dos 509 §§ de motivação apresentados) foram justificadas pelo mesmo fazendo menção introdutoriamente:


- À sua incidência apenas sobre o respectivo segmento decisório relativo à pena única e a todas as questões que lhe estão associadas, nelas incluindo nomeadamente, os aspectos jurídicos relativos à suspensão da pena única, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal e (ii) a questão relativa à inadmissibilidade da junção de relatório médico, datado de 1 de Maio de 2023, apresentado pelo ora Arguido em 2 de Maio de 2023, quanto à evolução superveniente da Doença de Alzheimer.


-Considerando que o Acórdão recorrido não confirmou a pena única que havia sido fixada no Acórdão da 1.ª Instância de 7 de Março de 2022, mas antes a agravou de 6 para 8 anos de pena de prisão efectiva em desfavor do ora Arguido (em resultado da apreciação do recurso do Ministério Público), então o segmento decisório do Acórdão recorrido relativo à pena única e às questões que lhe estão associadas afigura-se recorrível, porquanto, por um lado, o artigo 400.º, n.º 1 - f), do CPP apenas veda o recurso para o STJ quando o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de recurso, confirme, a decisão proferida pela 1.ª Instância, o que não sucedeu neste caso quanto à pena única e às questões que lhe estão associadas e


-Considerando também que a pena única excede o limite de cinco anos de prisão previsto no artigo 432.º, n.º 1 - c), do CPP, o recurso é admissível ao abrigo desta norma.


-Que os artigos 400.º, n.º 1 - f), e 432.º, n.º 1 - c), do CPP e artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, interpretados no sentido de que é insusceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o Acórdão do Tribunal da Relação que rejeita suspender a pena única de 8 anos de prisão que foi agravada pela Relação e aplicada a arguido com Doença de Alzheimer ou demente, viola os artigos 1.º, 20.º, n.º 5 in fine, e artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que consagram o princípio da dignidade humana, direito ao processo equitativo e as garantias do processo criminal, incluindo o direito ao recurso. (…)”


B) Enunciou, então, as seguintes questões a debater , a apreciar pelo STJ e que, por agora, resumiremos sinteticamente ao enunciado mais relevante, a saber (pela ordem em que as apresentou):


1ª)- Pedido de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da EU (com formulação das seguintes questões):


(a) Em caso de ser diagnosticada Doença de Alzheimer (provada) ao arguido sem perigosidade durante o julgamento de processo-crime relativo a três crimes de abuso de confiança, a condenação deste arguido (com 78 anos) à execução de uma pena única de oito anos de prisão efectiva é contrária aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?


(b) Em caso de ser diagnosticada Doença de Alzheimer (provada) ao arguido sem perigosidade durante o julgamento de processo-crime relativo a três crimes de abuso de confiança, a condenação deste arguido (com 78 anos) à execução de uma pena única de oito anos de prisão efectiva, sem que lhe tenha sido feita perícia-médica requerida pela defesa, é contrária aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?


(c) A condenação de arguido com Doença de Alzheimer (provada) sem perigosidade, por


três crimes de abuso de confiança, em pena única de prisão efectiva, sem que lhe tenha sido realizada perícia médica, é contrária aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?


(d) O julgamento e condenação de arguido com Doença de Alzheimer (provada) sem


perigosidade, por três crimes de abuso de confiança, em pena única de 6 ou 8 anos de prisão efectiva, sem que lhe tenha sido realizada perícia médica requerida pelo próprio Arguido, é contrária aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?


(e) O julgamento e condenação de arguido com Doença de Alzheimer (provada) sem perigosidade, por três crimes de abuso de confiança, em pena única de 6 ou 8 anos de prisão efectiva, sem que lhe tenha sido realizada perícia médica requerida pelo próprio Arguido para avaliar anomalia psíquica sobrevinda, é contrária aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?


(f) A condenação de arguido de 78 anos com Doença de Alzheimer (provada) sem perigosidade, por três crimes de abuso de confiança, em pena única de prisão efectiva e a negação da sua suspensão, por se considerar que não ficou provada anomalia psíquica, mas sem que tenha sido realizada perícia médica requerida pelo arguido, é contrária aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?


(g) É conforme ao Direito Comunitário, nomeadamente aos artigos 6.º - a), 168.º, n.ºs 1 (§1) e 5, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e aos artigos 35.º e 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, julgar e condenar Arguido com Doença de Alzheimer, sem perigosidade, ao cumprimento de pena de prisão efectiva, sem lhe realizar perícia médica requerida pela Defesa e sem que o Arguido tenha prestado declarações em julgamento?


2ª) - Violação do artigo 106.º, n.º 1, do código penal: a não suspensão da pena única, a doença de alzheimer como anomalia psíquica e o manifesto equívoco do acórdão recorrido na referência à falta de “responsabilidade” do tribunal pela doença de alzheimer do arguido.


Neste segmento, a defesa do arguido entende que o Acórdão recorrido incorreu em erro na interpretação e aplicação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, tendo violado esta norma e, em consequência, deve ser revogado e ser determinada a suspensão da pena única de prisão aplicada, ao abrigo desta norma.


3ª) Vício de insuficiência da matéria provada do acórdão recorrido (artigo 410.º, n.º 1 - a), do CPP)


Neste segmento diz a defesa que o Acórdão recorrido entendeu invocar matéria de facto que considerou necessária para apreciar a questão jurídica da suspensão da execução da pena face á doença do arguido, mas esta matéria de facto não foi considerada “provada”, nem “não provada” e nem sequer foi indagada em sede de perícia médica.


Acrescenta ainda que o Acórdão recorrido refere que não seria possível suspender a pena única de prisão, ao abrigo do n artigo 106.º do Código Penal, porque não se teria provado o nível da gravidade da Doença de Alzheimer do ora Arguido e, apesar desta doença ter sido provada, acrescentou – sem ter conhecimentos técnico para o efeito – que não se teria provado que o ora Arguido estivesse impedido “que o impeça de se auto-determinar e de perceber o alcance dos presentes autos e suas consequências”


Trata-se, segundo o recorrente, de um vício de base relativo à deficiência e omissão no apuramento de aspectos e efeitos relativos à Doença de Alzheimer do ora Arguido, que são necessários para decidir a suspensão da execução pena única de prisão, matéria relevante para a questão da suspensão da pena única ao abrigo do artigo 106.º do Código Penal e que é de indagação e conhecimento oficiosos.


Com a invocação deste vício pede que, em consequência, deva ser ordenada a baixa para a sua reparação com vista a que seja efectivamente indagada, em sede factual, a matéria de facto para apreciar a questão relativa à interpretação e aplicação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal.


4ª)-Violação do conhecimento oficioso da matéria relevante para apreciação do artigo 106.º do código penal


Salienta a defesa do arguido que esta questão de direito diz respeito à pena única de prisão, em particular, à sua suspensão e que, enquanto questão de direito, a interpretação e aplicação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal é de conhecimento oficioso na verificação e indicação da matéria de facto relevante para apreciação desta questão.


Por isso, pretende que o Acórdão recorrido seja revogado e, em consequência, deva ser determinada a baixa do processo para determinação de perícia médica ao ora Arguido, ao abrigo 154.º, n.º 1, 156.º, n.º 1, 158.º, n.º 1, 159.º e 340.º, n.º 1, do CPP, para efeitos da determinação e avaliação da anomalia psíquica posterior em causa no artigo 106.º no Código Penal.


5ª) - Violação do artigo 106.º, n.º 1, do código penal por não admissão da junção de relatório médico relativo a anomalia psíquica superveniente


A defesa entende que o Acórdão recorrido deve ser revogado, por violação do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal, cuja matéria é de conhecimento oficioso e, ainda, deve ser admitida a junção do relatório médico relativo ao ora Arguido, com data de 1 de Maio de 2023, que foi junto pela Defesa em 2 de Maio de 2023, procedendo-se, em consequência, à suspensão da execução da pena única de prisão, ao abrigo do n.º 1 do artigo 106.º do Código Penal.


6ª) Violação do direito fundamental de defesa por incapacidade de exercício pessoal do direito de defesa pelo arguido ou, no limite, por impossibilidade de provar a incapacidade do exercício pessoal do direito de defesa pelo arguido.


A defesa do arguido entende que o Acórdão recorrido deve ser revogado, por violação do direito de defesa do mesmo, por falta de capacidade para, por si e pessoalmente, exercer a defesa neste processo face à condenação na pena única de 8 anos de prisão efectiva determinada no Acórdão recorrido.


7ª)Violação do artigo 77.º na determinação da medida da pena única


A defesa alega:


“A pena única de 8 anos de prisão efectiva fixada no Acórdão recorrido afigura-se manifestamente desproporcional considerando que, nos presentes autos, o ora Arguido não tem antecedentes criminais, tem 79 anos e padece da Doença de Alzheimer, bem como que também estão em causa crimes exclusivamente patrimoniais, a pena única deve ser fixada, sempre, abaixo dos 5 anos.


As circunstâncias relativas às condições pessoais do ora Arguido Recorrente demonstram que as exigências de prevenção especial são nulas ou se situam no limiar mínimo, porquanto se afigura evidente que o ora Arguido Recorrente não carece de ressocialização.


Qualquer pena de prisão efectiva terá efeitos adversos e perniciosos quer sobre a saúde física, neurológica e psicológica do ora Arguido Recorrente, quer sobre a sua socialização e integração familiar. qualquer prisão efectiva – ainda para mais na duração determinada no Acórdão recorrido – causará ou, pelo menos, acelerará o falecimento do ora Arguido.


Atenta a doença de Alzheimer do ora Arguido Recorrente, conjugada com a sua avançada idade e situação física, neurológica e psicológica acima indicadas, o ora Arguido Recorrente não tem condições para, por si e sem assistência, prover e tomar a sua correcta medicação diária e demais cuidados que o seu estado de saúde requer.


O artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, interpretado no sentido de que o agente com idade de 77 ou 78 anos com doença de Alzheimer diagnosticada no decurso do julgamento


pode ser condenado a pena única de prisão efectiva superior a 5 anos, viola os artigos 1.º, 19.º,


n.º 4, 32.º, n.º 1, e 64.º da CRP, que consagram os princípios fundamentais da dignidade humana, proporcionalidade e garantias de processo criminal e, ainda, o direito à saúde.


A pena única de 8 anos de prisão fixada no Acórdão recorrido deve ser reduzida e que, por força do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, esta pena única determinada em sede de cúmulo deve corresponder ao limite mínimo da moldura aplicável ao concurso (4 anos), estando sempre em causa uma pena inferior a cinco anos de prisão, que deve ser suspensa na sua execução, por força do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal (sem prejuízo da suspensão da execução da pena de prisão, ao abrigo do artigo 106.º, n.º 1, do Código Penal).


8ª) Violação do artigo 50.º, n.º 1, do código penal, quanto à suspensão da execução da pena de prisão


O Acórdão recorrido deve ser revogado relativamente ao seu segmento decisório em que fixou e aplicou uma pena única de 8 anos de prisão efectiva e, em consequência, ser determinada uma pena única não superior a cinco anos de prisão, preferencialmente em 4 anos de prisão, mínimo da moldura abstracta do cúmulo jurídico, cuja execução deve ser suspensa, por força do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.”


2.3.2. - As questões a conhecer em face dos limites de admissibilidade do recurso.


2.3.2.1. As 8 (oito) questões enunciadas serão de seguida analisadas nos limites quer da sua admissibilidade quer da respectiva consistência, pela ordem que consideramos ser a mais adequada tendo em conta a sua colocação mais correcta segundo uma relação de prejudicialidade. O conhecimento das mesmas obviamente dependerá da sua admissibilidade prévia em face dos limites de recorribilidade traçados. Neste conspecto, caberá efectuar algumas considerações explicativas.


Vejamos então.


2.3.2.2. Os n.ºs 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição consagram o direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (que tem no direito de acesso aos tribunais a sua dimensão mais importante) e o direito a um processo justo, equitativo, cuja densificação se faz através de outros princípios, (entre os quais por exemplo, o direito a prazos razoáveis de recurso)


O n.º 1 do artº 32.º da Constituição condensa todas as garantias de defesa em processo penal, nomeadamente o direito ao recurso, que integra o núcleo essencial das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas e que pressupõe um duplo grau de jurisdição, traduzindo-se no direito a que a questão seja reapreciada por um tribunal superior, quer quanto à matéria de facto, quer em matéria de direito [J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 2007 516]


Nos termos do artºº405.º do Cód. Proc. Penal, o recorrente (seja o arguido ou qualquer outro sujeito processual) pode reagir contra o despacho que não admitir o seu recurso através de reclamação para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige (n.º 1).


2.3.2.3. Ora, nos termos do aludido dispositivo processual, em caso de reclamação de despacho que não tenha admitido recurso (in casu, o do relator na Relação e que inicialmente não admitiu para o STJ), a decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar (mesmo parcialmente) o despacho de indeferimento. Porém, dada a sua eficácia provisória, não vincula o tribunal de recurso quanto à admissibilidade, efeito e regime de subida, o qual pode decidir não admitir ou então atribuir também um efeito e regime de subida diferentes.


Por outras palavras, deve entender-se do sentido e alcance desta norma que a não vinculação do tribunal superior se refere à admissibilidade (parcial ou total) e não ao despacho do Exmº Vice Presidente na parte em que não admitiu os recursos e limitou a apreciação à matéria da pena única.


O tribunal superior (in casu o STJ) pode concordar ou não com a admissibilidade nesta parte mas já não pode discutir se o que não foi admitido o deveria ter sido, sendo que qualquer discordância da defesa na parte não admitida pelo despacho que incidiu sobre a reclamação, mesmo no plano da constitucionalidade, teria de o ser sobre o referido despacho directamente.


Assim, todo o segmento indeferido pelo despacho do Sr Vice Presidente ficará sempre fora do objecto de análise do presente recurso, o qual incidirá apenas sobre a discussão atinente à pena unitária.


Diga-se, ainda, que esta norma atributiva aos presidentes dos tribunais de recurso da competência para apreciação das reclamações dos despachos a quo que não admitam ou retenham um recurso interposto, não viola qualquer preceito constitucional, nomeadamente quanto à competência para exercerem funções jurisdicionais (artº 202.º/1, CRP).-(cfr Acórdãos do TC 351/2007 e 220/18)


A não admissão do recurso, entre outras, pode ter como base razões atinentes à irrecorribilidade (v.g. artºs. 400.º, 36.º/2, 42.º/1, 45.º/6, 86.º/5, 89.º/2, 141.º/6, 153.º/3, 291.º/2, 310.º/3, 313.º/4, 364.º/4 e 397.º/2), à intempestividade, à falta de legitimidade e/ou interesse em agir.


Não admitido o recurso, ainda que em parte, o meio próprio de reação é a reclamação do despacho e não o recurso onde se repristinem fundamentos contidos no recurso rejeitado.


A decisão do presidente do tribunal superior é, pois, definitiva, quanto ao segmento em que confirma, rejeitando a reclamação, o despacho de indeferimento (total ou parcialmente) sem prejuízo de eventual recurso de constitucionalidade.


Pelo contrário, quando revoga o despacho reclamado (mesmo parcialmente) e ordena a admissão do recurso ou a sua subida imediata, essa decisão vincula apenas o juiz do tribunal recorrido mas já não o tribunal de recurso.


Este, por sua vez, mantém inteira liberdade para dizer de direito e, na apreciação que faça, continua a poder não admitir o recurso (ou, mesmo, a alterar o seu momento de subida e efeito) mas sempre nos limites definidos nos termos em que o recurso foi admitido (total ou parcialmente).


A decisão do presidente do tribunal superior, quando seja de indeferimento da reclamação, não é sindicável, 2não pode dele ocorrer reclamação para a Conferência, porque não prevista, pois a decisão proferida na reclamação, contra despacho que não admite o recurso, sendo uma decisão singular, de uma só pessoa, não é “decisão sumária” para o efeito do artºº 417.º/7 e 419.º/3/a, nem objeto de reclamação para a conferência, via aplicação subsidiária do CPC, pois o legislador enquadrou no Código de Processo Penal de modo suficiente o regime legal aplicável.


Deste modo, alcança-se o sentido e extensão dos efeitos da rejeição da reclamação e também da parte em que foi admitida, v.g, dos termos em que transitaram questões já não cognoscíveis pelo Tribunal ad quem e os limites em que este, aceitando o despacho de admissibilidade, definiu a extensão da mesma.


Serve isto para dizer que este Tribunal compreende aquela limitação e concorda, como adiante se explicará, com a admissibilidade do recurso interposto limitado apenas à matéria da pena única, ficando de fora todas as questões atinentes à matéria de facto, imputabilidade, qualificação jurídica dos crimes e penas parcelares ( de 4 anos de prisão), condições socio económicas, familiares, pessoais e clínicas do arguido, direito de defesa e determinação de meios de prova que estejam abrangidas na dupla conforme, analisadas em dois graus de recurso.


2.3.2.4. Reabordando pois a matéria da admissibilidade do recurso, face à verificação de condenação em penas parcelares inferiores a 5 anos de prisão (in casu, três penas de prisão de 4 anos cada por crime de abuso de confiança qualificado), de uma pena única que foi 6 anos de prisão na 1ª instância e agravada para 8 anos , no Tribunal da Relação, na sequência de provimento parcial de recurso do MPº, salientaremos de seguida, o essencial que agora mais importará reter da matéria de reclamação decidida pelo Exmº Sr Vice Presidente do STJ.

[“(…)

Recurso interposto do acórdão condenatório de 24 de maio de 2023, não admitido por despacho de 14 de setembro de 2023.

1. O reclamante limita, expressamente (aliás, em conformidade com o que lhe permite o disposto no artºº 403º, n.ºs 1 e 2, al.ª f), do CPP), o objeto do seu recurso em 2º grau, para o Supremo Tribunal de Justiça, à sindicância da medida da pena única que o acórdão recorrido o Tribunal da Relação, julgando parcialmente procedente o recurso do Ministério Público, agravou de 6 para 8 anos de prisão.

Considera, pois, definitivamente assente a matéria de facto e decididas as questões de direito (máxime: a autoria, a qualificação jurídica dos factos, o concurso de crimes e a medida de cada pena parcelar), com exceção da medida da pena conjunta.

Efetivamente assim é, porque o acórdão da Relação, proferido em recurso, confirmou a condenação do arguido pela prática, em concurso efetivo, de três crimes de abuso de confiança, na pena de 4 anos de prisão por cada, verificando-se dupla conformidade decisória no caso, exceto quanto à medida da pena única, aplicada em cúmulo jurídico das três referidas penas parcelares.

Certamente que o reclamante limitou deste modo o âmbito do seu recurso por conhecer bem a jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal e que o Tribunal Constitucional tem julgado conforme ao direito fundamental ao recurso consagrado no artºº 32.º n.º 1 da Constituição da República.

É que “Tem sido jurisprudência constante deste STJ, que a inadmissibilidade de recurso decorrente da dupla conforme impede este tribunal de conhecer de todas as questões conexas com os respectivos crimes, tais como os vícios da decisão sobre a matéria de facto, a violação dos princípios do in dubio pro reo e da livre apreciação da prova, da qualificação jurídica dos factos, da medida concreta da pena singular aplicada ou a violação do princípio do ne bis in idem ou de quaisquer nulidades, como as do artigo 379.° do CPP” - acórdão de 17.06.2020, proc. n.º 91/18.8JALRA.E1.S1.

Também no acórdão de 20.10.2021, deste Supremo, de que fui relator, decidiu-se que “ I - A dupla conforme é um mecanismo jurídico-adjetivo destinado a obviar à repetição sucessiva de juízos, em recurso, sobre as mesmas questões.

II - Impede um terceiro juízo sobre todas as questões subjacentes à decisão, sejam de constitucionalidade, substantivas ou processuais, referentes à matéria de facto ou à aplicação do direito, confirmadas pelo acórdão da Relação, contanto a pena judicial confirmada não seja superior a 8 anos de prisão.” - proc. 528/19.9GCFAR.E1.S1.

2. quando à medida da pena única:

“(…) O despacho reclamado fundamenta a não admissão do recurso no disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP.

O elemento central dessa norma, que define a não recorribilidade e os critérios da dupla conformidade decisória, é, como decorre do que vem de citar-se, a confirmação, integral ou in mellius, da decisão recorrida.

No caso, tendo a Relação agravado da medida da pena única, a confirmação é apenas parcial.

Porque não houve dupla conforme, integral ou in mellius, não resulta verificada a inadmissibilidade de recurso em mais um grau, estabelecida nas disposições conjugadas dos artºs. 432.º ,n.º 1, al.ª b) e 400.º, n.º 1. al.ª f) .do CPP.

Com efeito, no respeitante à pena única, ocorreu agravamento, tendo em conta que o Tribunal da Relação a elevou de 6 para 8 anos de prisão.

Há, assim, nesse segmento divergência entre as duas decisões, em prejuízo do condenado.

3. Por outro lado, se não se considerasse que não houve dupla conforme no respeitante à pena única em que o arguido foi condenado, então haveria que aplicar o disposto na alínea e) do n.º 1 do mesmo preceito, onde se estabelece serem irrecorríveis os “acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos ...”.

Assim, no respeitante à pena única aplicada pela Relação no acórdão recorrido, por ser superior a 5 anos sempre seria admissível recurso ao abrigo da referida alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º, para a qual remete o disposto no artºº 432º, n.º 1, al.ª b), ambos do CPP.

(…)”]

2.3.2.5. Numa breve reaproximação ao cerne do tema do trânsito em julgado (parcial ou total), sabemos que uma decisão se considera transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação, tal como se define no artigo 628.º do Código de Processo Civil (C.P.C.), aplicável ex vi do artigo 4.º do C.P.P. [e deixa de ser susceptível de reclamação transcorrido o respetivo prazo ou se, em momento anterior, os sujeitos processuais com legitimidade para tal renunciarem expressamente a arguição de nulidades e o despacho a reconhecer o trânsito em julgado ocorrer antes da interposição, nomeadamente, de recurso para fixação de jurisprudência (artº 107.º, n.º 1, CPP, ac. STJ 21-04-2010],http://www.dgsi.pt)- AC STJ de 27-05-2021 Proc. n.º 105/20.1SHLSB-A.L1-A.S1 - 5.ª Secção - António Gama)


A propósito dessa noção tem sido precisamente a partir deste artigo 628.º do C.P.C. que o Supremo Tribunal de Justiça (S.T.J.) tem vindo a densificar o conceito de trânsito em julgado.


Com base nele, tem vindo pois a decidir que «(…) no caso em que o recurso não é admissível para o STJ, a decisão transita a partir do momento em que já não é possível reagir processualmente à mesma, estabilizando-se o decidido, pelo que, no caso de decisões que não admitam recurso, o trânsito verifica-se findo o prazo para arguição de nulidades ou de apresentação do pedido de correcção (artºs 379º, 380º e 425º, nº 4 do CPP), ou seja, o prazo-regra de 10 dias fixado no nº 1 do artº 105º do CPP, em caso de não arguição ou de não apresentação de pedido de correcção e, em caso de arguição, após o trânsito da decisão que conhece da arguição, data a partir da qual se inicia a contagem do prazo dos recursos extraordinários que pressupõe trânsito em julgado. Deste modo, impede-se a abertura de uma nova via para prolongar, ou seja, alterar os prazos legalmente estabelecidos.»


Usando aqui da expressão de Germano Marques da Silva3,o trânsito em julgado da decisão ocorre a partir do momento em que a ordem jurídica considera em regra sanados os vícios que porventura nela existissem.


E esse momento do trânsito em julgado verifica-se desde que se torna impossível impugnar/recorrer da decisão.


Atendendo aos relevantes efeitos associados ao trânsito em julgado [como sejam a exequibilidade da decisão (artº 467.º, n.º 1, do CPP), o prazo para interposição de recursos extraordinários (artºs. 438.º, n.º 1 e 446.º, n.º 1, ambos do CPP), ou momento a partir do qual se iniciam os prazos de contagem de prescrição da pena (artº 122.º, n.º 2, do CP), bem como os institutos do caso julgado ou do non bis in idem], o mesmo desempenha uma relevante função de acautelamento da segurança jurídica.


São, justamente, a previsibilidade a estabilidade e a segurança, no firmamento da data do trânsito em julgado que o STJ tem invocado para, nomeadamente, decidir que a reclamação apresentada ao abrigo do disposto no artº 405.º, do CPP do despacho que não admitiu o recurso não tem qualquer reflexo no trânsito em julgado do acórdão da Relação, pois que, a decisão do presidente do Supremo que indefere a reclamação da decisão que não admite o recurso limita-se a declarar e confirmar a «insusceptibilidade» do recurso, a qual, ao nível do trânsito do acórdão recorrido, se deverá reportar ao momento em que o recurso já não é legalmente possível.


Isto é, o acórdão transita «logo que», no caso, se esgote a possibilidade de recorrer por a lei não admitir recurso”. Num plano mais lato, o que se sustenta é que (…) a decisão transita a partir do momento em que já não é possível reagir processualmente à mesma, estabilizando-se o decidido. (cfr, por todos, Ac do STJ de11-03-2021, no proc. n.º 130/14.1PDPRT.P1.S1 - 5.ª Secção, in http://www.dgsi.pt ).


Também no caso de decisões que não admitam recurso, o trânsito verifica-se findo o prazo para arguição de nulidades ou apresentação de pedido de correcção (artºs. 379.º, 380.º e 425.º, n.º 4, do CPP), ou seja, o prazo-regra de 10 dias fixado no n.º 1, do artº 105.º, do CPP, em caso de não arguição ou de não apresentação de pedido de correcção” e, em caso de arguição, após o trânsito da decisão que conhece da arguição, data a partir do qual se inicia a contagem do prazo de eventual recurso de constitucionalidade ou então a execução ou possibilidade de execução de uma pena aplicada.


Por outro lado, numa aproximação, de seguida, ao conceito e limites da dupla conforme ínsito ao artº 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, dir-se-á, ainda:


Como esclarece Eduardo Maia Costa, no acórdão de 26.02.2014 (proc. n.º 851/08.8TAVCT. G1. S1), “a confirmação não significa nem exige a coincidência entre as duas decisões. Pressupõe apenas a identidade essencial entre as mesmas, como tal devendo entender-se a manutenção da condenação do arguido, no quadro da mesma qualificação jurídica, e tomando como suporte a mesma matéria de facto.” E esta confirmação admite ainda, na mesma linha de coerência jurídico-processual, “a redução da pena pelo tribunal superior; ou seja, haverá confirmação quando, mantendo-se a decisão condenatória, a pena é atenuada, assim se beneficiando o condenado.4


2.3.2.6.


Dito isto.


O artº 432º nº1 do CPP dispõe que se pode recorrer para o STJ das decisões das Relações proferidas em recurso e que não sejam irrecorríveis nos termos do artº 400º do mesmo diploma.


É o caso das decisões destas, entre outras (como o caso da confirmação condenatória ) mas que confirmem pena superior a 8 anos de prisão- artº 400 nº1 f), a contrario) e quando em recurso agravem decisão condenatória da 1ª instância em pena de prisão (parcelar ou única) superior a 5 anos ( cfr neste sentido também, anotação 2 ao artº 432º do Comentário ao CPP, de Paulo P. Albuquerque, Vol II, 5ª edição, pagª 725).


Nestes casos, e porquanto a Lei 94/2021 de 21.12 não aditou expressamente (podendo tê-lo feito, se fosse essa a intenção do legislador) à parte final da alínea b) o nº1 do artigo 432º a referência aos “fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artº 410º do CPP”, diferentemente do que sucedeu expressamente com as alíneas a) e c) do mesmo preceito, não se pode o recurso, nos seus fundamentos, convocar no todo ou em parte, os vícios ali aludidos nesse artº 410º nºs 2 e 3 do CPP- cfr neste sentido os Ac do STJ de 15.2.2023, procº 7528/13.0TDLSB.L3.S1 e de 1.3.2023, processo 589/150JABRG.G2.S1.


Ainda assim, o seu conhecimento (apenas ou ainda que) oficioso, e não por ter havido invocação de vícios ou nulidades como fundamento de recurso, não ficará arredado quando se tratar de situações em que seja evidente, patente e notória a sua verificação.


Tem sido enfatizado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, estará também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respetivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspetos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aqui se incluindo as questões relacionadas com a apreciação da prova – nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e do princípio in dubio pro reo ou de questões de proibições ou invalidade de prova –, com a qualificação jurídica dos factos e com a determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares em caso de concurso de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como questões de inconstitucionalidade suscitadas neste âmbito (cfr., por exemplo, os acórdãos de 11.4.2012, no Proc. 3989/07.5TDLSB.L1.S1, de 25.6.2015, no Proc. 814/12.9JACBR.S1, de 3.6.2015, no Proc. 293/09.8PALGS.E3.S1, e de 6.10.2016, no Proc. 535/13.5JACBR.C1.S1, bem como, quanto à atenuação especial da pena, os acórdãos de 5.12.2012, no Proc. 1213/09.SPBOER.S1, e de 23.6.2016, no Proc. 162/11.1JAGRD.C1.S1)» [acórdão do STJ de 14.03.2018, processo 22/08.3JALRA.E1.S1, LOPES DA MOTA (relator), alojado em www.dgsi.pt , entre outros].”


Por seu lado, o Tribunal Constitucional decidiu, em Plenário, no seu acórdão n.º 186/2013, «não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão».


Tal orientação foi reafirmada pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos n.ºs 212/2017 e 599/2018


Vide igualmente outras decisões no mesmo sentido, todas do ano de 2022, superiores a uma trintena, amplamente citadas no Ac STJ de 07.12.2022 [Relator Orlando Gonçalves], no processo 406/21.1JAPDL.L1.S1, que nos permitimos dar aqui por reproduzido, dada a clareza e rigor do mesmo.


Ora, mutatis mutandis, sendo as penas parcelares inferiores a 5 anos de prisão e apenas a pena única superior a esse limite ainda que igual ou inferior a 8, fica arredada a arguição de recurso com fundamento em vícios atinentes às penas parcelares e pena única ( no âmbito confirmado pelo menos até ao segmento de 6 anos de prisão) dentro daquela dupla conformidade.


As penas concretas aplicadas foram todas inferiores a 5 anos de prisão, tendo sido confirmadas pelo Tribunal da Relação, o qual em nada alterou os factos ou a qualificação jurídica da 1ª instância.


Assim sendo – atento o atrás referido e o estabelecido na conjugação dos artºs. 400º, nº 1, al. e) e f) e 432º, nº 1, al. b), do CPP, o recurso interposto não é admissível (como de certa forma o não foi no despacho do tribunal superior incidente sobre a reclamação) na parte que ultrapassa esta questão, apenas podendo ser apreciada, como aquele despacho o referiu, à matéria referente à pena única fixada em cúmulo jurídico, por superior a 5 anos, na parte e pelos fundamentos da agravação de 6 para 8 anos de prisão.


Também assim será no caso ora em análise em face da confirmação da decisão de culpabilidade (sem haver qualquer alteração da decisão sobre a matéria de facto e da decisão relativa ao enquadramento jurídico-penal dos factos apurados, com as quais, de resto, o próprio recorrente, se conformou)


Com efeito, esse juízo confirmativo garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo artº 32.º, n.º 1 da CRP, não havendo, assim, violação do direito ao recurso nem tão pouco dos direitos de defesa do arguido (artºs. 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, da CRP) na vertente e expressão constitucional que citámos.


Isto significa, visto o disposto nos artºs. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1ª Instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), não podendo ser novamente objeto de recurso para o STJ a matéria relacionada com a determinação da medida das penas individuais pelas quais o recorrente foi condenado.


De igual modo, mutatis mutandis para o que nos interessa aqui, por identidade de razões quanto à alínea e) do nº1 do artº 400 do CPP, se aplicaria o decidido no Ac. do TC (plenário) n.º 186/2013 5:


“Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, “na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão.”


Assim, tem de se concluir que é irrecorrível a decisão firmada pelo Tribunal da Relação na parte em que, de facto e de direito, confirmou a decisão da primeira instância e fixou as penas parcelares e a pena única (esta pelo menos nos 6 anos, excepto no que a agravou), e no tocante todas as questões procedimentais ou substantivas que as pudessem afectar nesses limites, entre os quais a própria fundamentação da não suspensão da execução da pena ao abrigo do artº 106º do CP, a qual, saliente-se, nem sequer foi afectada ou diferenciada na solução apesar daquele agravamento).


A limitação de cognoscibilidade decorre ainda da circunstância de a Relação se ter baseado na apreciação da matéria de facto fixada também quanto à condição clínica do arguido (esta, sem prejuízo do que adiante referiremos ainda de relevante quanto às alegadas condições de agravamento)


2.3.2.7-Fica deste modo esclarecida à exaustão, a questão da admissibilidade e limites de conhecimento do recurso interposto pelo arguido, tendo em conta as noções de trânsito em julgado e de dupla conforme bem como o teor do despacho do Exmº Sr Vice Presidente ao limitar a sua admissibilidade à matéria da pena única.


E, por conseguinte, este STJ apenas conhecerá da matéria nesse segmento limitada ao agravamento da pena única de 6 para 8 anos e das razões que lhe estiveram subjacentes. Ou seja, retomando a conclusão de que, caso a Relação tivesse confirmado e mantido a decisão da 1ª instância, não haveria recurso para o STJ, então é de concluir que todas as questões subjacentes à dupla conformidade estarão estabilizadas e decididas, nomeadamente a de que, mesmo que este STJ mantenha a pena única de 8 anos ou a altere , nunca o fará por menos de 6 anos de prisão, “limite” daquela dupla conformidade e que a sua suspensão ao abrigo do artº 106º do CP seria matéria praticamente decidida no seu essencial, pois não foi pelo agravamento da pena unitária de 6 para 8 anos de prisão que se modificaram em substância as razões da decisão nesse segmento e que entendeu não a fazer actuar, decisão essa que seria exactamente a mesma quer a pena fosse de 6 anos de prisao quer fosse a de 8 anos (se bem que, mais adiante, retomaremos mais explicadamente o tema, em parte, limitada ao invocado agravamento clínico do recorrente no intervalo entre a decisão de 1ª instância e a decisão do recurso interposto para a Relação.)


2.3.3 - Da justificabilidade (ou não) da agravação da pena unitária de 6 para 8 anos de prisão.


2.3.3.1 - Para melhor inserção e compreensão do que em seguida desenvolveremos, recordamos que ficou fixada definitivamente a matéria de facto relativa aos ilícitos, quer no plano objectivo quer subjectivo e também a atinente à prova e aos termos, além do mais, da decisão sobre a prova produzida e analisada no tocante, sobretudo, às condições socieconómicas, familiares, pessoais e clínicas (condição clínica e nível de agravamento) do arguido, inalterável no STJ por força quer da dupla conformidade quer da compressão dos poderes deste, limitados que estão à matéria de direito.


Ficou assim Provado, entre o mais, que:

[(…) Condições psicológicas e físicas do arguido AA

256- O arguido AA tem vindo a sentir dificuldades e lapsos de memória e, ainda, desgaste emocional, físico e psicológico.

257- O arguido AA tem dificuldades de audição.

Factualidade relativa à inserção familiar, socioprofissional e antecedentes criminais do arguido.(…)

286-No presente o arguido mantém um estilo de vida recatado, raramente saindo de casa, ocupando-se essencialmente com a leitura dos jornais, a preparação da sua defesa no presente processo judicial e a escrever as suas memórias.

287-No contacto com o arguido, agora com 76 anos, sobressai alguma fragilidade física e psicológica, desde 2014 o arguido tem vindo a perder a força e a determinação que lhe eram características, mostra-se abatido e evidencia uma lentificação generalizada, falhas de memória.

(…)

292-Ao arguido foi diagnosticada a doença de Alzheimer, conforme declaração médica do Senhor Doutor VVVVV de 12/10/2021 (cfr., documento junto a 14/10/2021, referência 30535752).

(…)”

O tribunal de 1ª instância considerou dever aplicar pena única de 6 anos de prisão pelas seguintes razões (expressivamente sucintas, digamos):

[“(…)

Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar. Este procedimento desenvolve-se em três fases: investigação e determinação da moldura da pena abstracta; investigação e determinação, dentro da moldura abstracta, da medida concreta da pena a aplicar; e, finalmente, escolha da espécie de pena que deve efectivamente ser cumprida.

O crime de abuso de confiança qualificado previsto no artigo 205.º n.º 1 e n.º 4 alínea b) do Código Penal, é punido com pena de 1 a 8 anos de prisão.

*

Na determinação da pena concreta a aplicar recorre-se ao critério global previsto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, o qual dispõe "a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção". Pelo que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa e da prevenção – especial e geral positiva ou de integração –, concretizadas a partir da eleição dos elementos para elas relevantes.

A culpa e a prevenção "são os dois termos do binómio", através dos quais será construído o "modelo de medida da pena".

Com tal desiderato no horizonte, importa definir as funções e a interrelação que a culpa e a prevenção desempenham em sede da medida da pena.

A culpa estabelece o máximo de pena concreta ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade.

A prevenção geral positiva traduz a necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena.

E prevenção especial consubstancia as necessidades inerentes à ressocialização do delinquente.

Na determinação do substrato da medida da pena, isto é, da totalidade das circunstâncias do complexo integral do facto (factores de medida da pena) que relevam para a culpa e a prevenção (cfr., artigo 71.º n.º 1 do Código Penal), há que atender a "todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele" (artigo 71.º n.º 2 do Código Penal).

Daqui, decorre a construção do seguinte modelo: dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma violada – entre o ponto óptimo – que nunca deve ultrapassar o limite máximo de pena adequado à culpa, mas que não tem obrigatoriamente com ele coincidir – e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar em último termo, a medida da pena.

Exposto o raciocínio e o modelo imanente à determinação da medida da pena, considerando o enquadramento jurídico-penal efectuado, impõe-se a determinação concreta da pena.

Relevam por via da culpa, para efeitos de medida da pena:

- no sentido da agravação da ilicitude contribui o grau de conhecimento e a intensidade da vontade no dolo: dolo directo, os danos causados com a conduta e o estatuto económico –este estatuto extremamente agrava o grau de culpa.

Ponderados todos estes factores, deve estabelecer-se o grau de culpa perto do limite máximo da moldura abstracta.

Revelam por via da prevenção especial para efeito de medida da pena:

12. a inserção familiar e social;

13. a ausência de passado criminal;

14. a idade do arguido e o seu estado de saúde;

- o comportamento processual do arguido que manifestamente não assume o desvalor e as consequências da sua conduta.

Pelo que, a conjugação destes factores enfraquece as necessidades de prevenção especial, devendo o seu grau deve situar-se no num plano abaixo do da prevenção geral positiva.

No que se refere à prevenção geral positiva ou de integração, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade do ordenamento jurídico, fica assegurada com a imposição ao arguido da pena de 4 anos de prisão pela prática de cada um dos crimes de abuso de confiança.

Este é o ponto mínimo ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos colocado em perigo de lesão.

*

Determinadas as penas parcelares do arguido impõe-se dar cumprimento ao desiderato legal inscrito no n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, determinando a pena única a aplicar a este arguido.

Assim, haverá que construir a moldura penal do concurso.

Esta tem como limite máximo a "soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes" e como limite mínimo "a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes".

Deste modo, a moldura penal do concurso do arguido tem como limite máximo 12 anos de prisão e como limite mínimo 4 anos de prisão de prisão.

É a partir, da moldura penal assim encontrada, que se determina a pena única concreta aplicável ao arguido, em função das exigências gerais de culpa e de prevenção.

Para tal, a lei fornece ao julgador, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no artigo 71.º n.º 1 do Código Penal, um critério especial: "na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente" (artigo 77.º n.º 1 2.ª parte do Código Penal). A existência deste critério especial obriga a uma especial fundamentação, em função desse critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indispensável conexão entre o disposto nos artigos 77.º n.º 1 e 71.º n.º 3, ambos do Código Penal.

Ponderada a gravidade do ilícito global praticado, fornecida pelo período de tempo que perdurou a conduta delituosa, é de atribuir à pluralidade de crimes algum efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.

Pelo que, se afigura adequada a aplicação ao arguido da pena única de 6 anos de prisão.”

(…)”]

2.3.3.2 - Não obstante, o Tribunal da Relação, julgando parcialmente procedente o recurso apenas do MPº e apenas quanto ao agravamento da pena unitária de 6 anos, justificou-o pela seguinte forma (e que, para uma melhor compreensão da lógica da decisão, incluiremos também na transcrição o que se segue no segmento da mesma quanto às penas parcelares):

[“(…)

Consequentemente, sem necessidade de maiores considerações, não se mostrando reunidos os requisitos legais subjacentes ao instituto da atenuação especial da pena, improcede, também aqui, o recurso interposto.

E, afastada que está a hipótese de atenuação especial da pena, dentro da moldura penal aplicável - de 1 a 8 anos de prisão - entendemos que não merece censura a decisão recorrida, mostrando-se as penas parcelares fixadas com justiça e equilíbrio, dando resposta adequada às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, sem ultrapassarem o grau de culpa do arguido.

Com efeito, estabelece o artºº 71.º, n.º 1, do C. Penal que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».

Assim, culpa e prevenção constituem o binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena. (…)

A pena deverá, assim, por um lado, intimidar e desencorajar todos aqueles que pretendem iniciar-se na prática delituosa e, por outro, integrar e ressocializar o delinquente.

Estabelece ainda o artºº 71.º, n.º 2, do C. Penal que, na determinação da medida concreta da pena, haverá que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime, e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

No caso em apreço, lendo o acórdão recorrido, é manifesto que o Tribunal a quo ponderou todos os aspectos que devia ponderar, nos termos previstos no citado artºº 71.º do C. Penal, sem esquecer as condições pessoais do arguido, entre as quais a sua idade, a doença de que actualmente padece e a ausência de antecedentes criminais, vindo a fixar as penas parcelares, abaixo do meio da moldura penal aplicável, sanções que se mostram equilibradas, proporcionais e adequadas às necessidades de prevenção e que não ultrapassam o grau de culpa do arguido

Com efeito, considerou o Tribunal a quo verificar-se uma agravação da ilicitude, tendo em conta o grau de conhecimento do arguido e a intensidade da vontade no dolo, directo, bem como a dimensão dos danos causados e, ainda, o estatuto económico do arguido, vindo também a considerar que esse estatuto agrava de forma extrema o grau de culpa, daí concluindo que perante tais factores seria de situar o grau de culpa do arguido perto do limite máximo da moldura abstracta.

Mas não se ficou por aí o acórdão recorrido, vindo também a considerar, agora a favor do arguido, a sua inserção familiar e social, a ausência de passado criminal, bem como a idade do arguido e o seu estado de saúde.

E o Tribunal a quo valorou ainda o comportamento processual adoptado pelo arguido, que manifestamente não assume o elevado desvalor e as consequências da sua conduta.

E da conjugação de tais factores concluiu o Tribunal a quo que as necessidades de prevenção especial se mostravam enfraquecidas, situando-se num plano abaixo do da prevenção geral positiva, vindo a considerar, no que se refere à prevenção geral positiva ou de integração, que a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade do ordenamento jurídico ainda ficava assegurada com a imposição ao arguido da pena de 4 anos de prisão por cada um dos crimes de abuso de confiança por ele praticados, considerando ser esse o ponto mínimo ainda comunitariamente suportável da medida da tutela dos bens jurídicos violados.

E, na verdade, perante a elevada ilicitude das condutas do arguido, elevadíssimo valor dos prejuízos causados e o seu também elevado grau de culpa, evidenciando a sua conduta, dado o seu estatuto profissional e económico, um inaceitável desrespeito pelos seus deveres profissionais que lhe impunham que defendesse os interesses das empresas do grupo que geria e não que se aproveitasse dos poderes que detinha para as prejudicar, e verificando-se ainda que o arguido não demonstrou qualquer interiorização do desvalor da sua conduta, nem responsabilização pelos seus actos, não tendo procurado ressarcir a ofendida, apesar do largo período de tempo já decorrido sobre a prática dos factos, assim evidenciando uma incapacidade de auto-censura incompreensível em alguém com o seu estatuto económico e social, é evidente que a fixação das penas parcelares abaixo do meio da moldura penal aplicável teve claramente em conta a idade do arguido e a doença de que o mesmo actualmente padece, bem como a ausência de antecedentes criminais.

E, em sede de determinação da medida da pena, não tinha o Tribunal a quo que reproduzir os concretos factos dados como provados, designadamente os apurados quanto às suas condições económicas e pessoais, sendo certo que quando o Tribunal afirma ponderar a inserção familiar e social, a ausência de passado criminal, a idade do arguido e o seu estado de saúde, está a remeter para o que, sobre essas matérias, resultou provado.

Outra coisa não pode entender-se, (sublinhado nosso) não fazendo, assim, qualquer sentido o afirmado pelo Recorrente no sentido de o Tribunal a quo não ter valorado o facto de o arguido ter 77 anos de idade e de sofrer presentemente de doença de Alzheimer.

É manifesto que tais aspectos foram valorados, sendo precisamente o que se apurou nessa matéria - arguido com 77 anos de idade e padecendo actualmente de doença de Alzheimer - que fez situar as penas parcelares abaixo do meio da moldura penal aplicável.

Defender, como o faz o Recorrente, que a pena a aplicar-lhe pela prática de cada um dos crimes de abuso de confiança agravado se devia situar no mínimo legal, evidencia, face à gravidade da factualidade apurada, uma completa desvalorização quer dos bens jurídicos protegidos com a norma violada, quer da elevada ilicitude da conduta do arguido, revelando um alheamento inaceitável das suas responsabilidades e dos elevadíssimos prejuízos que causou.

Perante o quadro factual apurado, é manifesto que a fixação das penas parcelares no mínimo legal configuraria uma benevolência injustificada, uma indulgência inaceitável perante a elevada gravidade das condutas adoptadas pelo arguido, a significativa persistência da sua vontade criminosa, as gravíssimas consequências das condutas que adoptou, planeadas com pormenor, e a ausência de interiorização do desvalor da sua conduta e de responsabilização pelos seus actos.

Quanto ao requerido pelo Ministério Público no sentido de as penas parcelares serem fixadas em 6 anos de prisão por cada um dos crimes de abuso de confiança agravado perpetrados pelo arguido, pelas razões acabadas de expor, entendemos também que não lhe assiste razão.

Com efeito, apesar da elevada gravidade da conduta do arguido e elevado grau da sua culpa, entendemos, como o Tribunal a quo, que a doença de que o arguido presentemente padece e a sua idade, aliadas à ausência de antecedentes criminais e à sua integração familiar e social, enfraquecem as necessidades de prevenção especial, justificando-se assim que a pena a aplicar por cada um dos crimes praticados pelo arguido seja fixada abaixo do meio da moldura penal aplicável, afigurando-se que a pena de 4 anos de prisão fixada pelo Tribunal de 1ª Instância para cada um dos crimes se mostra justa, equilibrada e adequada às necessidades de prevenção especial, dando ainda resposta adequada às necessidades de prevenção geral que no caso se fazem sentir, não violando também o grau de culpa do arguido.

E, tendo as penas parcelares sido fixadas dentro da moldura penal aplicável e mostrando-se as mesmas devidamente justificadas, nos termos exigidos pelo artºº 71.º, n.º 3, do C. Penal, conforme resulta do excerto do acórdão recorrido acima transcrito, em que, sem desnecessárias repetições, se indicam os aspectos considerados para efeito de determinação da medida da pena, é também evidente que inexiste qualquer violação das normas e princípios constitucionais, designadamente dos indicados pelo Recorrente - artººs 1.º, 19.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da CRP -, resultando da tramitação dos presentes autos que foram respeitados todos os direitos do arguido, não se mostrando minimamente beliscados os princípios fundamentais da dignidade humana, nem o da proporcionalidade, nem ainda as garantias do processo criminal.

Quanto ao princípio da dignidade humana a que o Recorrente faz repetidamente apelo, insistindo estar o mesmo a ser violado pela aplicação da pena fixada pela 1ª Instância, importa lembrar que o respeito por tal princípio, para além de exigir a fixação da pena de acordo com o grau de culpa do arguido - o que foi efectivamente feito quanto às penas parcelares -, também se evidencia na capacidade de assunção de responsabilidades pelos actos praticados, especialmente quando deles decorrem elevadíssimos prejuízos para terceiros, não configurando a punição de um crime, com pena determinada com observância dos princípios e normativos legais aplicáveis, qualquer violação da dignidade humana do autor de tal crime, mas tão só a aplicação da lei a que todos os cidadãos estão sujeitos.

O arguido, como os demais cidadãos, deve pautar o seu comportamento de acordo com o direito, sendo que, quando o não faz, está sujeito, como os demais, às consequências legalmente previstas para as condutas ilícitas que adopta.

Nestes termos, uma vez que, como vimos, as penas parcelares de 4 anos de prisão fixadas pela 1ª Instância não padecem de qualquer excesso, mostrando-se justas, equilibradas e adequadas às necessidades de prevenção especial e ao grau de culpa do arguido, dando ainda resposta adequada às necessidades de prevenção geral, impõe-se manter tais penas.

Consequentemente, improcedem, nesta parte, os recursos interpostos pelo Ministério Público, por um lado, e pelo arguido, por outro.”

(…)

No que respeita à pena única fixada (sublinhado e negrito nossos) para além de considerarmos extremamente exígua a respectiva fundamentação, entendemos ainda, perante a imagem global do facto e personalidade do arguido nela revelada, que a mesma é demasiado benévola, não dando resposta adequada nem à culpa do arguido, nem às necessidades de prevenção.

Na verdade, quanto às regras da punição do concurso de crimes, estabelece o artºº 77.º do C. Penal:

(….)”

O Tribunal a quo ponderou a gravidade do ilícito global praticado, para cuja análise se impõe considerar o conjunto da factualidade apurada, bem como o período de tempo em que perdurou a conduta delituosa, vindo a concluir que em tal quadro era de atribuir à pluralidade de crimes algum efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.

Não obstante assim ter considerado, concretamente que era de atribuir à pluralidade de crimes algum efeito agravante dentro da moldura penal conjunta, o que se verifica é que a pena única efectivamente fixada pela 1ª Instância não espelha esse agravamento, vindo o Tribunal a quo a fixar pena que se situa em 1/4 da moldura penal aplicável, ou seja, significativamente abaixo do que considerou quanto às penas parcelares, fixadas ligeiramente abaixo do meio da moldura penal aplicável.

Vejamos.

Conforme consta da decisão recorrida, quanto à moldura penal do cúmulo jurídico a efectuar de harmonia com o disposto no citado artºº 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, a pena mínima a aplicar ao arguido será a mais elevada das penas que lhe vão concretamente aplicadas, no caso de 4 anos de prisão, e, a pena máxima, a soma de todas as penas parcelares aplicadas, no caso de 12 anos de prisão.

No caso concreto, impõe-se valorar todos os aspectos acima referidos relativos aos factos praticados pelo arguido e à sua personalidade.

Impõe-se, pois, ponderar o conjunto dos factos ilícitos perpetrados, elevada ilicitude dos mesmos e considerável grau de preparação das condutas adoptadas pelo arguido, que pormenorizadamente planeou, recorrendo até à intervenção de terceiros por forma a melhor dissimular a ilicitude dos seus comportamentos, importando considerar ainda a idêntica natureza dos ilícitos criminais que integram o cúmulo jurídico.

Impõe-se valorar ainda a personalidade revelada pelo arguido, manifestada no elenco dos factos julgados provados, bem como o seu comportamento anterior, caracterizado pela ausência de antecedentes criminais, e posterior aos factos, expresso sobretudo na sua postura de total ausência de auto-crítica relativamente à ilicitude e danosidade das suas condutas ilícitas, condutas que o arguido desvaloriza, mostrando- se indiferente às consequências nefastas dos seus próprios actos, que não procurou colmatar.

De ponderar também as expectativas da comunidade no sentido da defesa do ordenamento jurídico, que se mostram elevadas em face das características e gravidade das condutas ilícitas praticadas pelo arguido e período de tempo durante o qual o arguido planeou e executou tais condutas.

Por fim, impõe-se considerar ainda a idade do arguido, já com 78 anos de idade, e a situação de doença de Alzheimer de que presentemente padece, aspectos que, aliados à ausência de antecedentes criminais e à inserção familiar e social de que o mesmo beneficia, atenuam as necessidades de prevenção especial.

Em tal quadro, ponderando todos os referidos aspectos, resulta evidente que a pena única se deve situar no meio da moldura penal aplicável, concretamente em 8 anos de prisão, pena que se mostra justa e adequada às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir e ainda equilibrada e proporcional ao grau de culpa do arguido, sem qualquer violação do princípio da proibição do excesso.

Não tem, pois, qualquer razão o arguido quando sustenta que a pena única fixada pela 1ª Instância é excessiva e desproporcional, verificando-se antes que a mesma é excessivamente benévola e indulgente, não dando resposta justa e equilibrada às necessidades de prevenção e ao muito elevado grau de culpa do arguido.

Consequentemente, dando parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, impõe-se agravar a pena única, fixando-a em 8 (oito) anos de prisão.

E, perante a medida de tal pena única - de 8 anos de prisão -, resulta evidente que o disposto no artºº 50.º, n.º 1, do C. Penal não tem aqui qualquer aplicação, já que a concreta pena fixada - como aliás já acontecia com a pena única fixada pela 1ª Instância - excede os cinco anos de prisão previstos em tal normativo legal para a suspensão da execução da pena de prisão.

Improcede, pois, igualmente nesta parte, o recurso interposto pelo arguido, obtendo parcial provimento o intentado pelo Ministério Público.

(…)”]

2.3.3.3- Ora, em face desta abordagem ao caso em recurso que o Tribunal da Relação efectuou, pode pois concluir-se que o agravamento da pena radicou, essencialmente, na constatação, que agora se sintetiza de entre o que antes se transcreveu, que foi exígua a respectiva fundamentação, que perante a imagem global do facto e personalidade do arguido nela revelada a mesma é demasiado benévola, não dando resposta adequada nem à culpa do arguido, nem às necessidades de prevenção , que “o tribunal a quo, ao atribuir à pluralidade de crimes algum efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”, não espelhou na pena única esse efeito agravante (que caracterizou como”algum”) pena que se situou em 1/4 da moldura penal aplicável, significativamente abaixo do que considerou quanto às penas parcelares e, também, que o arguido revelou postura de total ausência de autocrítica relativamente à ilicitude e danosidade das suas condutas ilícitas, que desvalorizou com indiferença perante as consequências nefastas dos seus próprios actos, que não procurou colmatar.


Salientou-se finalmente a importância das expectativas da comunidade no sentido da defesa do ordenamento jurídico,(…) elevadas.


Esta agravação determinada pelo Tribunal da Relação, ainda assim insuficiente na perspectiva do impressivo voto de vencida da Sra Desembargadora adjunta, parece-nos também de sufragar, ratificar e merecer o nosso inteiro consenso.


Vejamos então.


2.3.3.4 - O artº77.º do Código Penal perfilha o «sistema da pena conjunta», na medida em que a punição do concurso de crimes supõe a discriminação das penas concretas que o integram. Na lição de Figueiredo Dias “Pena conjunta existirá sempre que as molduras penais previstas, ou as penas concretamente determinadas, para cada um dos crimes em concurso sejam depois transformadas ou convertidas, segundo um «princípio de combinação» legal, na moldura penal ou na pena do concurso.”.


Dentro deste sistema, é habitual configurar-se um princípio de absorção puro, em que a punição do concurso será constituída simplesmente pela pena mais grave dentre as penas parcelares, e um princípio da exasperação ou agravação, em que “a punição do concurso ocorrerá em função da moldura penal prevista para o crime mais grave, mas devendo a pena concreta ser agravada por força da pluralidade dos crimes (sem que, todavia, possa ultrapassar a soma das penas que concretamente seriam aplicadas aos crimes singulares).”.


A doutrina vem entendendo que o modelo de punição do concurso de crimes consagrado no artº77.º do Código Penal, sendo um sistema de pena conjunta, não é construído, porém, de acordo com o princípio de absorção puro, nem com o princípio da exasperação ou agravação, nos termos definidos, mas sim de acordo com um sistema misto, que vem sendo chamado de sistema do cúmulo jurídico.6


Também a jurisprudência segue este caminho, consignando-se, entre outros, no acórdão do S.T.J. de 3 de outubro de 2012, que o modelo de punição do nosso Código Penal é um sistema misto de pena conjunta “erigido não de conformidade com o sistema de absorção pura por aplicação da pena concreta mais grave, nem de acordo com o princípio da exasperação ou agravação, que agrega a si a punição do concurso com a moldura do crime mais grave, agravada pelo concurso de crimes.”7.


Doutrina e jurisprudência coincidem em especificar que no cúmulo jurídico, a pena conjunta é definida dentro de uma moldura cujo limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e o limite máximo resulta da soma das penas efetivamente aplicadas, emergindo a medida da pena conjunta, não apenas dos factos individualmente considerados, numa visão atomística, mas da imagem global do facto imputado e da personalidade do agente.


A pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no artº71º.º, n.º1, um critério especial estabelecido no artº77.º, nº 1, 2ª parte, ambos do Código Penal.8


Os parâmetros indicados no artº71.º do Código Penal, servem apenas de guia para a operação de fixação da pena conjunta, não podendo ser valorados novamente, sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais fatores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes.9


Na busca da pena do concurso, explicita Figueiredo Dias, na obra que vimos seguindo, que “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).”


Como refere ainda, na doutrina, Cristina Líbano Monteiro, com o sistema da pena conjunta, perfilhado neste preceito penal, deve olhar-se para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.10


As conexões ou ligações fundamentais na avaliação da gravidade da ilicitude global, são as que emergem do tipo e número de crimes, dos bens jurídicos individualmente afetados, da motivação, do modo de execução, das suas consequências e da distância temporal entre os factos, sem esquecer as concretas penas aplicadas aos crimes.


Na avaliação da personalidade unitária do agente, referenciada aos factos, deve verificar-se se estes correspondem a uma atuação episódica, acidental ou, pelo contrário, se esta é uma atuação estruturada num comportamento persistente de vida de crime.


En passant, muito embora ao caso agora não interesse, por não ser problema de cumulação superveniente, sempre aditaremos , no entanto, que também e quando por razões variadas, em regra decorrentes do desconhecimento da existência de outro ou outros processos em que o arguido tenha sido acusado ou por dedução de acusações em tempos diversos, são frequentes os casos em que os crimes, em concurso efetivo ou real, não são julgados no mesmo processo.


Nestas circunstâncias o legislador, admitindo que não seria justo, por violação, desde logo, dos princípios da igualdade, da culpa e da proporcionalidade, estabeleceu no artº78.º, n.º1 do Código Penal, que «Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, (sublinhado nosso),sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.».


Resulta desta norma que se mantém o princípio de as regras da punição do concurso de crimes previstas artº77.º do Código Penal, se aplicarem igualmente ao conhecimento superveniente do concurso efetivo de crimes delas não se diferenciando no seu essencial e que a pena conjunta do concurso superveniente é também encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, de acordo com os critérios gerais de medida da pena contidos nos artigos 71.º, n.º1 e 77.º, a que acrescem os do artº78.º, todos do Código Penal.


Neste sentido, sublinha o acórdão do S.T.J. de 15 de novembro de 2012 (proc. n.º 178/09.8PQPRT-A.P1.S1), que “a determinação da medida da pena conjunta num caso de conhecimento superveniente do concurso, nos termos do artº78.º do CP, é feita em função dos critérios gerais da culpa e das exigências de prevenção estabelecidas nos artºs. 40.º, n.º1 e 71.º, n.º1, do CP, a que acresce a necessidade de consideração do critério especial da 2.ª parte do n.º1 do artº77.º do mesmo Código, isto é, que na medida da pena do concurso são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”11.


Tudo se passa, pois, como se, por pura ficção, o tribunal apreciasse, contemporaneamente com a sentença, todos os crimes praticados pelo arguido, formando um juízo censório único, projetando-o retroativamente.12


Por outro lado, na operação de aferição sobre o processo de apreciação da escolha e da determinação da medida da pena, em sede de recurso, é consensual que a intervenção do tribunal ad quem tem no essencial uma função de “remédio jurídico”, a ele cabendo identificar incorreções, omissões ou erros evidentes atinentes ao raciocínio hermenêutico incidente nas normas constitucionais, convencionais e legais aplicadas ou mobilizáveis, por parte da instância recorrida.


Apenas nesse patamar é legítimo ao tribunal de recurso proceder à alteração do quantum da pena, não podendo interpretar e decidir como se fosse inexistente decisão anteriormente proferida–no caso vertente, a do tribunal de primeira instância, confirmada pelo menos até aos 6 anos na pena única em sede de recurso pelo Tribunal da Relação – que acabou por a agravar por mais dois anos e nesse segmento, sim, a aferição de proporcionalidade terá de verificar em que medida foram ou não igualmente respeitado aqueles procedimentos hermenêuticos.


A legitimação da intervenção do tribunal de recurso em termos de modificar, para mais ou para menos, a medida da pena aplicada (no caso, unitária), terá pois de seguir esses parâmetros na sua essência e caracterização enunciadas. Neste sentido, vide os Acs. de 15-11-2006 do STJ, Proc. n.º 2555/06- 3ª e Ac de 11-02-2015: Proc. 591/12.3GBTMR.E1.S1, que relembram a controvérsia sobre os limites de aferição da pena e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, p. 211)


Em suma, o olhar hermenêutico e de escrutínio da adequação ou correção da questionada medida da pena em sede de recurso será incontornável sobretudo em caso de manifesta desproporcionalidade (injustiça) ou de violação da racionalidade e das regras da experiência (arbítrio) na configuração e estruturação das operações tidas como necessárias à sua determinação nos parâmetros da lei. Nessas e em função dessas circunstâncias é que se justificará uma intervenção modificadora pelo tribunal ad quem na escolha e a determinação da medida da pena.


2.3.3.5- Descendo de novo ao caso concreto e perante a cumulação real de 3 infrações, punidas aliás com alguma benevolência, diga-se, apesar da sua elevadíssima ilicitude e intensidade de dolo que lhes esteve subjacente, não podemos afirmar que se trate de um caso, comprovadamente, de arguido por tendência. Mas também não podemos fechar os olhos ao facto de a sua actuação parecer um paradoxo de contornos muito pouco claros perante a suposta integridade do arguido e do seu muito elevado bem estar económico familiar e social, ao longo da sua vida, se comparado com o baixo nível de vida da maioria dos seus concidadãos, cuja possível explicabilidade não deixa de evidenciar aquilo que nas instâncias foi já caracterizado como ganância, ausência de autocrítica e indiferença pelos danos causados, em si alheias à doença de Alzheimer (cujo estado e nível de agravamento ainda não se conhecem bem desde as condenações), tanto mais que a sua imputabilidade foi determinada definitivamente pelas instâncias em matéria de facto.


A parametrização efectuada pelo Tribunal da Relação foi claramente a correcta e proporcional, tendo em conta os intervalos moldurais assinalados no nível intermédio do cúmulo jurídico ( 4Ax3penas = 12 anos).


Foi considerado o facto de o mesmo ser doente de Alzheimer mas, na verdade, não se detecta ter sido demonstrado ainda de forma segura e definitiva uma qualquer insensibilidade, incapacidade ou inadequação ao cumprimento de uma pena de prisão ou impossibilidade de oferta adequada de tratamento.


Impressivo foi o elevadíssimo nível do grau de culpa e de dolo, exigindo-se do arguido, face à sua elevada conotação pública e importância nos domínios bancário e financeiro, uma postura moral, ética e jurídica muito acima da maioria das pessoas. Daí que se compreenda que o tribunal recorrido, ainda que (como foi!) sensível ao estado clínico (nos contornos já conhecidos até à intermitência do recurso e sabendo-se, mesmo para quem seja leigo, face às regras da experiência e do que dela se apreende em inúmeros casos clínicos, que se trata de uma doença que, sendo lenta , acaba por ser incapacitante e até de sinais equivalentes a demência progressiva), também tivesse considerado, (e, a nosso ver, podia ter sido ainda mais explícito nisso) o elevado grau de prevenção geral, quer positiva quer negativa, desse modo sufragando as elevadas expectativas comunitárias numa punição que seja assertiva, sirva como sinal de saudável funcionamento do sistema de justiça e por ela se contribua para se evitarem outros casos como o do arguido.


Prevenção geral essa que, assumindo “(…) o primeiro lugar como finalidade da pena(…)”, na vertente positiva, seja sobretudo de “integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face á violação da norma; em suma, na expressão de Jackobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida”13


Não fosse a sinalização da doença do arguido já detectada, cremos até que a punição feita nas instâncias, na determinação quer das penas parcelares quer da pena única teria sido bem superior, dada a gravidade dos crimes mesmo tendo em conta aquela prevenção geral positiva de integração.


Mantém-se pois a pena única de 8 anos de prisão.


2.3.4 - Mas será caso de suspensão de execução da mesma (não ao abrigo do artº 50º do CPP pois que o limite imposto nesta norma é de até 5 anos) mas do artº 106º do CP?


Neste conspecto há que aditar algumas considerações, necessárias, até porque em boa medida, o recurso interposto gravitou essencialmente em torno desta questão.


Porém, antes de abordarmos directamente o problema, há que tomar posição, preliminarmente, neste segmento, acerca da admissibilidade ou não da junção de documentos supervenientes requerida a 3 dias da audiência de julgamento neste STJ.


Vejamos então.


Estando a audiência para alegações nos termos do artº 435º do CPP designada para o dia 15 de Fevereiro de 2024, veio a defesa do arguido requerer 3 dias antes e já na fase após abertura e assinatura de vistos, suscitar a junção de documentos consubstanciando relatórios médicos periciais supervenientes realizados pelo Instituto de Medicina Legal no âmbito de dois processos judiciais (baseados em exames directos ao ora Arguido), que pretende poderem evidenciar o agravamento substancial superveniente do estado clínico do ora Arguido, em particular, quanto à evolução (após 3 de Julho de 2023) negativa, da Doença de Alzheimer de que o ora Arguido já padece.


O motivo subjacente ao pedido de junção superveniente destes documentos periciais médicos, na perspectiva da defesa, teve por finalidade a aplicação do artº 106º do CP por este Supremo Tribunal de Justiça. no âmbito da decisão do recurso em apreciação.


Com efeito, alega o requerente que se lhe afigura evidente que o relatório pericial junto como DOC. 1 suporta, por si só e sem necessidade de mais, o que a Defesa já alegou em sede de recurso interposto nestes autos (e mesmo anteriormente perante a 1.ª Instância):

“(…)

i. que o ora Arguido padece de anomalia psíquica causada por Doença de Alzheimer, que tem de ser considerado para efeitos do artigo 106.º do Código Penal;

ii. o ora Arguido não tem capacidade humana, nem condições de autonomia, de ser submetido a uma pena efectiva de prisão, o que torna ainda mais evidente a necessidade de aplicar o artigo 106.º do Código Penal;

iii. a aplicação do disposto no artigo 106.º do Código Penal é oficiosa, sem prejuízo do que já foi tempestivamente alegado por esta Defesa a este propósito;

iv. que deve ser realizada uma perícia médica nos presentes autos para efeitos do artigo 106.º do Código Penal, por forma a que seja respeitado o direito fundamental de defesa do Arguido neste processo (sem prejuízo das demais violações que oportunamente se alegaram e não foram sanadas) e, bem assim, a sua dignidade humana, o que determina a baixa do processo para este efeito, tal como já foi alegado por esta Defesa em ambas as instâncias recursórias.

Que a junção dos aludidos relatórios periciais supervenientes (desde logo, inclusivamente, face ao Acórdão recorrido) afigura-se admissível, à luz da Jurisprudência dos Tribunais portugueses e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, quer porque a questão jurídica relevante que justifica a junção deste relatório foi oportunamente suscitada pela Defesa nestes autos, sendo o agravamento da Doença de Alzheimer muito relevante para apreciação das questões indicadas no artigo 1. acima, quer porque as aludidas questões jurídicas poderiam ser, no limite, suscitadas apenas em sede de recurso e conhecidas de forma oficiosa, nomeadamente no que respeita ao artigo 106.º do Código Penal. (…)]

O requerente concluíu o pedido de junção, dizendo ainda:

“As questões relativas ao artigo 106.º do Código Penal podem ser suscitadas unicamente na fase de recurso, mesmo que não tenham sido suscitadas em 1.ª Instância, então, por maioria de razão, a junção de documentos supervenientes em fase de recurso, relativamente ao agravamento do estado de anomalia psíquica do arguido, afigura-se ainda mais admissível quando tais questões foram oportunamente suscitadas quer perante a 1.ª Instância, quer nos próprios recursos dirigidos aos Tribunais Superiores.”

O MPº foi notificado para se pronunciar, tendo optado por fazê-lo em audiência, oralmente, onde tomou posição no sentido da sua inadmissibilidade nesta fase de recurso e, também, no sentido da respectiva irrelevância para a decisão a proferir, considerando não se tratar de questão nova com superveniência relevante, que o alegado agravamento deverá ser tido apenas em atenção na fase de execução da pena e nessa altura avaliado na sua maior actualidade, em face das características evolutivas e degenerativas da doença de Alzheimer.


Tais exames médicos oficiais supervenientes foram realizados pelo Instituto de Medicina Legal e de Ciências Forenses decorrentemente de pedidos oficiais nesse sentido provenientes de dois processos judiciais pendentes.


O DOC 1 – Foi judicialmente solicitado em Accão cível Pauliana - Proc 802/22.7... (MP contra arguido) foi notificada à defesa do arguido a junção , por via postal, a 30 de Nov 23.


O DOC 2- foi judicialmente no âmbito do Processo/Inquérito Crime nº 184/12.5... a correr termos na Instância Central ... Secção Criminal – ... a 27-09-2023. e notificada a junção à defesa a 4.1.2024.


Os resultados de tais exames cuja junção foi requerida constam dos relatórios periciais datados de 27 de Novembro de 2023 (cfr. Doc. 1) e, ainda, de 4 de Dezembro de 2023 e 21 de Dezembro de 2023. –(cfr. Doc. 2).


O Docº 1 consiste em Relatório elaborado por COLÉGIO MULTISCIPLINAR do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses datado de 27/11/2023, com intervenção de Perito Psiquiatra Forense, Perita Neurologista e Perito Neuropsicólogo Clínico com especialidade em neuropsicologia e psicologia da justiça.

A 06.06.2023 pela Mmª. Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca de ..., no âmbito de Processo Cível de Ação Pauliana n.º 802/22.7..., que corre os seus trâmites no Juízo Central Cível de ... Juiz ..., fora solicitada a sua realização visando informação destinada a confirmar a veracidade da alegação do réu relativa à sua impossibilidade em comparecer em tribunal por razões de saúde e a prestar depoimento de parte sobre matéria dos temas da prova.

Foi elaborado, tendo por base entrevista ao arguido e, ainda, nos seguintes elementos:

[4.1. Elementos do Processo nº 802/22.7... enviados para consulta

4.2. Declaração Médica de Neurologia do C.. ...... Neurológico datada de 12/07/2021

4.3. Relatório de Tomografia de Emissão de Positrões do Centro Clínico C........... datado de 17/06/2021

4.4. Relatório de Tomografia de Emissão de Positrões do Centro Clínico C........... sem data, mas posterior ao anterior

4.5. Da Informação Clínica (de Neurologia) datado de 02/07/2022 identificado como Doc 2 junto ao requerimento ref 45343411

4.6. Relatório de Neurologia datado de 12/10/2021 que de acordo com requerimento Ref . 44171548 tinha sido junto como doc 1 na audiência prévia de 5 de dezembro de 2022

4.7. Relatório de Neurologia datado de 01/05/2023 enviado ao I..... com ref .......58 a 15/09/2023.

4.8. Relatório da Avaliação Neuropsicológica de 08/06/2022 mencionado a pg 6/16 (17/39) do requerimento Ref . 44171548.

4.9. Relatório da Avaliação Neuropsicológica de 12/07/2021

4.10. Relatório da Avaliação Neuropsicológica de 11/09/2023

4.11. Consulta de Registos clínicos do C.. ...... Neurológico Sénior

4.12. Consulta de Registos de consulta de medicina geral e/ou medicina interna recente, no caso do Médico Internista da Fundação C........... (…)]

Tal relatório em sede de discussão e conclusões, refere no essencial o que importava apurar em face das questões suscitadas pelo tribunal:

[“(…) Confirma-se sofrer o examinado de patologia neurológica/neuropsiquiátrica, mais propriamente Doença de Alzheimer muito provável, estando não só presente a necessária semiologia clínica, como sendo o diagnóstico igualmente suportado por exames complementares de diagnóstico estruturais (imagiológicos), funcionais (neuropsicológicos) e fisiopatológicos (biomarcadores).

(…)

8.2- Impossibilidade de comparecer em tribunal por razões de saúde

Não existindo real ou absoluta impossibilidade em comparecer , não se nos suscitam, porém, dúvidas médicas razoáveis, quanto a estar em grau clinicamente moderado, e assim relevante médico-legalmente, comprometidas as suas declarações, fruto da sua patologia e da situação que em si sempre será stressante para qualquer cidadão em abstrato, incluindo naturalmente o examinando em concreto. Enfatiza-se, de qualquer modo, que mais uma vez tal compromisso não sendo absoluto, não impossibilita nem é impeditivo, da referida comparência nem da toma de declarações admitindo-se, todavia, que possa ser útil e medicamente recomendável que se possa acompanhar por pessoa que escolha, para o que está capaz.

(…) igualmente ao serem referenciadas dificuldades várias, incluindo em razão de patologia neuropsiquiátrica e outras condições de saúde física, estamos em crer ser cautelar o evitar sessões prolongadas no tempo sem interrupções, até perante cansaço fácil. Acresce, e enfatiza-se, que dos relatórios médicos que foram juntos aos autos, também não se retira expressamente essa impossibilidade material decomparência. Do mesmo modo nãoforam verbalizados nem encontrada suplementar documentação clínica ou outras evidências objetivas, de queixas de outros aparelhos ou sistemas nomeadamente cardiovascular ou pneumológico ou doença infeciosa ou imunológica, que possam constituir contraindicação médica absoluta para ida ao Tribunal.

8.3 . E a prestar depoimento de parte sobre matéria dos temas de prova

Com base no acima fundamentado e descrito, pode ser afirmado estar comprometida mas não impossibilitada a prestação de depoimento sobre matéria dos temas de prova, sendo que atenta a diminuição das funções cognitivas apuradas e descritas, é expectável dificuldade acrescida seja na prestação seja na devida valoração pelo Tribunal, já que faculdades como a memória, a atenção, a velocidade de processamento e mesmo a linguagem e discurso estão diminuídas em nível apurado

(…)]

Por sua vez o Docº 2- reporta-se a Relatório da perícia médico-legal psiquiatria/neurologia, datado de 21 de dezembro de 2023.


O Exame foi solicitado pela Comarca de... - Instância Central ... Secção Criminal – ...através de ofício nº 428938757, 27-09-2023 no âmbito do Processo/Inquérito n 184/12.5... e notificado à defesa a 4.1.2024.


Foi elaborado com recurso a:

a) Pesquisa documental: (consulta dos elementos clínicos disponibilizados pelo examinando e enviados pelo Tribunal); b) Observação direta: entrevista ao examinando com avaliação médica incluindo exame do estado mental e exame físico que ocorreu no dia 28-09-2023 e c) Informação colateral: entrevista à esposa do examinando que ocorreu no dia 28-09-2023; b) Dados documentais:

-Relatório clínico do médico GGGGGGG (Neurologista com a cédula

profissional ...81), do Centro Clínico C..........., datado de 14 de julho de 2021:

-Relatório de avaliação neuropsicológica realizado a 17/05/2021 no Centro Clínico C........... pela Psicóloga Dra. HHHHHHH (OP ...24)

-Relatório de PET-18F-florbetabeno subscrito pelo médico IIIIIII, especialista em Medicina Nuclear, com a cédula profissional ...41 realizado no Centro Clínico C........... a 17/06/2021.

- Relatório clínico do médico VVVVV, Neurologista, com a cédula profissional ...49, do C..... ........... ......, datado de 12/07/2021

-Relatório da avaliação neuropsicológica realizada a 12/07/2021 no ... subscrito pela Dra. JJJJJJJ (Psicóloga Clínica, especialista em Neuropsicologia com a cédula profissional ...98)

Relatório subscrito pela Médica KKKKKKK, com a cédula profissional ...18, relativa a RM-crânio encefálica realizada a 08/07/2021

-Relatório clínico do C..... ......... .. .. ............ onde foi observado a 20/07/2021 a 23/07/2021.

Relatório de PET-FDG, subscrito pela médica LLLLLLL, especialista em Medicina Nuclear, com a cédula profissional ...54 realizado no Centro Clínico C........... a 03/08/2021

-Relatório do Service de chimie clinique, Dr MMMMMMM, referente à análise do Líquido Céfalo-raquídeo realizado em 23/09/2021

- Relatório clínico do médico VVVVV, Neurologista, com a cédula profissional ...49, do C..... ........... ......, datado de 12/10/2021

- Relatório clínico do médico VVVVV, Neurologista, com a cédula profissional ...49, do C..... ........... ......, datado de 02/07/2022

- Relatório da avaliação neuropsicológica realizada a 08/06/2022 no ... subscrito pela Dra. JJJJJJJ (Psicóloga Clínica, especialista em Neuropsicologia com a cédula profissional ...98)

-Relatório da avaliação neuropsicológica realizada a 11/09/2023 no ... subscrito pela Dra. JJJJJJJ (Psicóloga Clínica, especialista em Neuropsicologia com a cédula profissional ...98)

-Avaliação neuropsicológica (realizada na delegação do sul do I....., datada de 16/10/2023)

-Exame complementar:- RELATÓRIO DA PERÍCIA MÉDICO-LEGAL Psicologia - Relatório psicológico datado de 4 Dezembro de 2023 (Data do exame ao arguido 16/10/2023 -Esta Perícia Psicológica foi realizada no âmbito do Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº. 184/12.5... (…) na sequência do pedido da Profª. NNNNNNN, médica neurologista, que solicitou um exame complementar para avaliação neurocognitiva aprofundada no sentido de objetivar o desempenho nos vários domínios cognitivos, incidindo essencialmente, sobre memória e funções executivas, complementado por medidas de avaliação de esforço reduzido ou simulação).

(…)

- Análise toxicológica (realizada na delegação do centro do I....., datada de 23/10/2023)”

*


Nele foram respondidos os seguintes quesitos:


a) O ora Arguido tem alguma patologia do foro ou natureza neurológica? Se sim, qual?


b) O nível ou quantidade de placas de “beta-amilóide” depositadas no Sistema Nervoso Central do cérebro do ora Arguido está acima de níveis considerados aceitáveis ou normais?


c) Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, em que medidas e quais os efeitos da deposição de placas de “beta-amilóide” no Sistema Nervoso Central do cérebro do ora Arguido sobre o seu estado de saúde?


d) A capacidade cognitiva do ora Arguido, incluindo a nível de memória e capacidade de interacção de resposta - pergunta em cenários de stress (como um interrogatório em processo crime, na qualidade de arguido), está afectada? Se sim, em que medida?


(e) Afigura-se provável ou possível que a situação neurológica do ora Arguido se esteja agravar ou é susceptível de se agravar, com perda progressiva (ainda mais acentuada) de capacidade cognitiva e autonomia física e motora? Se sim, em que medida e dentro de que prazo?


(f) Afigura-se possível curar a patologia neurológica do ora Arguido?


Em resposta aos quesitos cujo teor integral não se transcreve mas para onde se remete, por razões de protecção de privacidade de dados, concluíu-se, além do mais e no essencial, que:

[“Em conclusão, apesar dos défices cognitivos atrás referidos, o Arguido mantém uma boa capacidade de interação pessoal, compreensão e expressão verbal, raciocínio e um estado emocional que, no nosso entender, não impedem que seja submetido a um interrogatório judicial na qualidade de Arguido. Atendendo a que o Arguido apresenta défices de memória não é possível garantir o rigor dos conteúdos evocados.]

Resulta do histórico dos autos que o recurso do Acórdão TRL de 24 de Maio de 20203 foi interposto a 3 de Julho de 2023.


Foi admitido para o STJ por despacho do Exmº Sr Vice Presidente do STJ a 30 Out 23.


A 2 de Nov 2023 foi ordenada a subida ao STJ e notificada à defesa na mesma data por via postal.


Os documentos supervenientes reportam-se a relatórios periciais médicos elaborados já na fase posterior ao Acórdão recorrido no âmbito de outros dois processos judiciais pendentes, visando responder a questões muito concretas (que constam do elenco supra relatado) e, com excepção dos exames periciais em si, das entrevistas neles mencionadas ao arguido e esposa, do Relatório de Neurologia datado de 01/05/2023 enviado ao I..... com ref 146238858 a 15/09/2023, do Relatório da Avaliação Neuropsicológica de 11/09/2023, do Relatório da avaliação neuropsicológica realizada a 11/09/2023 no ... subscrito pela Dra. JJJJJJJ (Psicóloga Clínica, especialista em Neuropsicologia , da - Avaliação neuropsicológica (realizada na delegação do sul do I....., datada de 16/10/2023) e do Relatório psicológico datado de 4 Dezembro de 2023,


tais exames baseiam-se em documentação clínica muito anterior à prolação daquele acórdão, alguns até anteriores ao acórdão da 1ª instância.


Sublinha-se, ainda, que a junção de tais relatórios médicos periciais foi requerida apenas a 3 dias da audiência designada para alegações neste STJ, podendo tê-lo sido, manifestamente, logo pouco depois de 4 de janeiro de 2024. Não tendo sido, há a violação clara da proporcionalidade na escolha do “timing”, sabendo a defesa que o processo já tinha ido a vistos e, naturalmente, o colectivo de juízes já estaria a par dos termos do processo visando a deliberação, encerrada que fosse a audiência, nos termos, mutatis mutandis, prevista no artº 424º do CPP.


Tanto bastaria para, numa solução mais radical e restringente, considerar esse injustificável atraso de junção como determinante para a imediata rejeição da admissibilidade de tais documentos.


No entanto, entendemos que outra melhor e mais decisiva razão se imporá para justificar tal inadmissibilidade.


Sem prejuízo do que anteriormente veio de se expor em matéria de conhecimento de vícios, oficiosamente ou não, o STJ decide de direito nos termos do artº 434º do CPP. Em contrário, nas Relações, ex vi do artº 430º do CPP, conhece-se de facto e de direito e poderá fazer-se renovação de prova.


No caso dos presentes autos de recurso, a junção de documentos como se pretende e se requereu, visaria poder aferir-se da existência de factualidade demonstrativa de agravamento superveniente da situação clínica do arguido com vista à possibilidade de aplicação do artº 106º do CP, isto é, em caso de aplicação de uma pena de prisão, esta ser suspensa na sua execução nas condições ali indicadas.


Sendo matéria de facto atinente à prova de um agravamento, e independentemente do alcance que, de tais relatórios, se possa retirar , essa prova não pode ser produzida em recurso, ainda por cima do qual se conhece matéria apenas de direito.


Contudo, e sem se pôr em causa a seriedade e alcance de tais documentos clínicos, tendo ainda em conta que a doença diagnosticada ao arguido é de evolução degenerativa, em timing que ainda se desconhece, tais documentos não responderiam sequer à questão essencial que a seguir desenvolveremos e que se atém a saber se, em caso de o arguido sofrer de uma anomalia psíquica ela estará já em nível de agravação tal que o coloque na impossibilidade de compreender o sentido de uma pena de prisão.


Ora, tais documentos ou mesmo outros que venham a ser relevantemente produzidos, serão, quando muito, eventualmente pertinentes, em caso de decisão de se aplicar uma pena de prisão efectiva e o tribunal de condenação se confrontar ou for confrontado com uma necessidade, mesmo antes de se iniciar a execução da pena, de reavaliação da situação clínica do arguido por forma a poder, com os elementos mais actuais possíveis, avaliar o ponto exacto da alegada degeneração clínica, da capacidade do arguido em entender ou compreender o sentido da pena aplicada e o nível da anomalia psíquica relevante para os efeitos do artº 106º do Código penal.


Nestes termos, a junção dos documentos é, na presente fase de recurso, inapropriada, para não dizer mesmo, irrelevante, reporta-se a aferição de matéria de facto que não é da competência deste Supremo Tribunal e, derradeiramente, concedendo, nem sequer tenderia a cabalmente habilitar que se respondesse de forma clara e acertada à matéria subjacente à problemática da aplicação do artº 106º do CP.


A admissibilidade mesmo em fase de recurso, em circunstâncias de superveniência de agravamento clínico, teria sentido para efeitos de prova de matéria de facto (ainda que atinente ao dito agravamento clínico superveniente) para cuja apreciação de mérito este STJ não se afigura competente pois trata-se de assunto e factualidade a aferir, após o acórdão da Relação recorrido, na fase posterior ao trânsito de decisão de aplique uma pena de prisão.


De todo o modo, obiter dictum, a referida intempestividade de junção, mesmo em matéria de facto (que ao caso não releva apreciar por não ser matéria de competência deste STJ), estaria sempre a coberto de previsão de constitucionalidade como decorre, nomeadamente, do já analisado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão 289/2020 (14)


Por isso, e sempre sem prejuízo do que de seguida se exporá quanto à pertinência ou não da aplicabilidade ao caso do regime de suspensão previsto no artº 106º do CP, nega-se a admissibilidade da junção da documentação em referência, porquanto inoportuna, a qual deverá ser desentranhada.


Taxa de justiça do incidente a seu cargo em 3 Uc (no final do presente acórdão será novamente referenciada esta condenação tributária).


Passemos agora ao desenvolvimento seguinte, entrando mais detalhadamente no tema da aplicação do artº 106º do CP.


2.3.4.1- Começaremos desde logo por ter de dar por assente, no essencial, o decidido pelas instâncias sobre a doença do arguido. Esta, nos contornos fácticos provados, nos limites que este STJ não tem de curar em alterar porquanto definitivamente assentes, não impediu a determinação do grau de culpa e de consciência dos seus actos e foi tida em consideração, até, na “minoração” das penas parcelares e única.


O Tribunal da Relação confirmou que a execução da mesma não deveria ser suspensa, apesar da doença de Alzheimer do arguido, tendo em conta o desenvolvimento que fez na apreciação nomeadamente no 5.º recurso interlocutório (-Da invocada nulidade, ou irregularidade, do despacho que indeferiu a realização de perícia médica) , do 7º recurso interlocutório (interposto do despacho de 21.10.2021, no segmento em que apreciou o requerimento do arguido de 14 de Outubro de 2021 e decidiu que a doença de Alzheimer, diagnosticada ao arguido, não obsta ao prosseguimento do processo, indeferindo o pedido formulado pelo arguido de suspensão do processo ou do seu arquivamento por inutilidade superveniente da lide) e no ponto 2.3.8.6. da decisão ” ( Das invocadas nulidades por omissão de pronúncia sobre questão de anomalia psíquica superveniente e por falta de realização de perícia médica”).


Ao que agora importa ainda realçar, naqueles recursos e também neste último segmento foi explicado, em duplo grau de apreciação, que:

a. (dos 5º e 7º recursos interlocutórios)-

[“(…)

interposto do despacho de 21.10.2021, no segmento em que apreciou o requerimento do arguido de 14 de Outubro de 2021 e decidiu que a doença de Alzheimer, diagnosticada ao arguido, não obsta ao prosseguimento do processo, indeferindo o pedido formulado pelo arguido de suspensão do processo ou do seu arquivamento por inutilidade superveniente da lide. (…) No caso concreto, não estando em causa apurar da imputabilidade ou inimputabilidade do arguido na data da prática dos factos - para o que, aí sim, se impunha a realização de perícia médica - não se vislumbra qualquer necessidade de realizar uma perícia para se atestar se, durante a realização do julgamento, o arguido sofre, ou não, de alguma doença do foro neurológico, sendo que, como bem refere o despacho recorrido, tal prova pode ser feita por atestado médico, entretanto junto aos autos.

Na verdade, não tendo sido posta em causa a veracidade dos atestados médicos juntos aos autos, é manifesto que o Tribunal não pode desconsiderá-los, fazendo os mesmos prova daquilo que atestam, isto é, da doença de que padece o arguido, o que torna por isso inútil a realização da requerida perícia.

Acresce que não se descortina também para que serviria a referida perícia, mesmo que nela se respondesse afirmativamente a todos os seus quesitos e designadamente aos formulados sob as alíneas d) e e), determinando-se ainda, eventualmente, a “medida” da afectação da capacidade cognitiva do arguido e do agravamento provável da sua situação neurológica.

Com efeito, de tal perícia não poderiam retirar-se quaisquer consequências para além do que já pode retirar-se do atestado médico e documentação clínica juntos aos autos no sentido de o arguido sofrer de doença de Alzheimer.

E o facto de, já em sede de arguição de nulidade e irregularidade do despacho de 07.09.2021 que indeferiu a perícia médica em causa, sustentar o arguido que tal perícia poderia ser aproveitada para eventual e futura aplicação do disposto nos artººs 105.º e 106.º do C. Penal, não leva a alterar o decidido, sendo certo que a perícia médico-neurológica requerida pelo arguido visava a avaliação médica para saber se o arguido sofria de anomalia psíquica que o impedisse de exercer, de forma plena, a sua defesa, nomeadamente através da prestação de declarações, sendo este o pedido que foi efectivamente indeferido pelo despacho proferido em 07.09.2021.

Perante o teor do atestado médico junto aos autos, é manifesto que dele não resulta que o arguido se encontra impedido de prestar declarações ou de exercer o seu direito de defesa nos termos legalmente previstos.

Lê-se efectivamente em tal atestado médico, datado de 12.10.2021:

“(…) –[vide texto transcrito mais adiante]

O que resulta do teor deste atestado é que, feitos os exames nele indicados, se conclui que o arguido padece de doença de Alzheimer, que tal diagnóstico é baseado em critérios clínicos e suportado por marcadores de imagem cerebral e bioquímicos que permitem um diagnóstico de doença de Alzheimer com elevado grau de certeza (alta especificidade), que, após o último relatório datado de julho de 2021, o Dr. AA tem apresentado um agravamento progressivo das limitações cognitivas e motoras descritas e que o quadro clínico de defeito cognitivo que apresenta atualmente, nomeadamente o defeito de memória, limita a sua capacidade para prestar declarações em pleno uso das suas faculdades cognitivas, acrescentando-se ainda que, num contexto de stress emocional ou ansiedade é expectável um agravamento do defeito cognitivo apresentado.

E, refere-se ainda no mesmo atestado médico que, perante este diagnóstico etiológico e as limitações funcionais apresentadas foi iniciada terapêutica farmacológica com o medicamento rivastigmina, indicado para o tratamento da Doença de Alzheimer.

Ora, perante o teor de tal documento clínico, é evidente que do mesmo resulta que a doença de Alzheimer diagnosticada ao arguido lhe provoca algumas limitações cognitivas e motoras, sendo que o defeito cognitivo que apresenta, nomeadamente o defeito de memória, limita a sua capacidade para prestar declarações em pleno uso das suas faculdades cognitivas.

Sofrendo o arguido de doença de Alzheimer, é natural que o mesmo apresente alguma limitação das suas capacidades, designadamente a nível da memória, não se encontrando assim no pleno uso das faculdades cognitivas que anteriormente detinha.

Porém, de tal não resulta que o arguido não tenha capacidade para prestar declarações nestes autos, nem que não possa defender-se.

Como diz o Tribunal a quo «as afirmações de que o arguido está demente ou o "arguido não tem capacidade para se autodefender por si" ou o arguido não entende o alcance do julgamento, constituem uma petição de princípio que não têm sustentação no atestado médico junto aos autos.»

De facto assim é, resultando da simples leitura de tal atestado médico que tais conclusões dele não podem ser retiradas.

Ao arguido foram asseguradas todas as garantias de defesa, designadamente o recurso, consagradas no artºº 32.º da CRP, bem como o direito a um processo justo e equitativo, nos termos previstos no artºº 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tendo ainda sido respeitados todos os direitos que a lei lhe reconhece nos artººs 61.º e seguintes do C.P.P..

Por outro lado, o arguido poderia/deveria ter estado presente em julgamento, nos termos previstos nos artººs 332.º a 334.º do C.P.P., tendo-lhe ainda sido permitido assistir ao julgamento à distância, dada a sua idade e à situação de pandemia relativa à doença covid então vivida, possibilidade que não quis usar.

O arguido poderia ainda ter prestado declarações nos termos previstos no artºº 343.º do C.P.P., o que poderia ter igualmente feito através de meios de comunicação à distância, caso o tivesse requerido.

Porém, nada disso fez o arguido, isto é, não compareceu ao julgamento desde o seu início, não assistiu ao mesmo à distância - compareceu tão só na última sessão da audiência de julgamento, onde apenas se identificou - e não se dispôs a prestar declarações, nem presencialmente, nem à distância, lutando antes pela não realização do julgamento, nos termos já analisados nos anteriores recursos interlocutórios e agora pela suspensão ou arquivamento dos presentes autos.

Trata-se, porém, de opções do arguido que não podem ser confundidas com qualquer incapacidade sua de prestar declarações em Tribunal.

O facto de sofrer de doença que altera e limita as capacidades que antes apresentava, não significa que não possa prestar declarações, nem que não possa defender-se.

Como dissemos, nos autos foram assegurados todos os direitos de defesa do arguido, fazendo o mesmo o uso deles que entendeu adequado.

O arguido não compareceu em julgamento desde o seu início por opção sua, e não requereu também para prestar declarações à distância, sem se deslocar ao Tribunal, evitando assim uma maior situação de stress, igualmente por opção sua, refugiando-se atrás da alegada incapacidade para prestar declarações.

Porém, como vimos, o que é referido pelo atestado médico junto aos autos é que, em face da doença de Alzheimer de que padece, o arguido já não prestará declarações no uso das capacidades que antes detinha, verificando-se alguma limitação dessa capacidade, designadamente a nível de memória.

Diz o arguido que a prestação de declarações pelo arguido em julgamento é um elemento crucial e fundamental ao exercício do direito de defesa dos arguidos em processo penal, que se impõe ao Tribunal, não podendo o arguido estar limitado no exercício deste seu direito, incluindo quanto à sua capacidade cognitiva, sob pena de não exercer o direito de defesa de forma plena e que as garantias constitucionais de defesa implicam que os arguidos tenham o direito fundamental de exercer a sua defesa, através da prestação de declarações em julgamento perante o Juiz, devendo este direito de defesa e contraditório ser exercido de forma plena e sem limitações.

Ora, não vemos que tenha sido imposta ao arguido qualquer limitação.

Na verdade, não se vislumbra que o Tribunal a quo não tenha estado disposto a ouvir o arguido, ou tenha de alguma forma limitado o seu direito de prestar declarações, sendo que foi o próprio arguido que, no uso do direito ao silêncio que a lei lhe reconhece (artºº 343.º do C.P.P.), optou por não prestar declarações.

E a doença de que o arguido actualmente padece e as limitações daí decorrentes também não são da responsabilidade do Tribunal.

O direito do arguido de prestar livremente declarações tem que ser exercido pelo próprio com as condições que, no momento em que as presta, apresenta ou detém, sendo manifesto que não pode o Tribunal a quo assegurar-lhe quaisquer capacidades que o mesmo tenha eventualmente perdido.

Por outro lado, não cabe também ao Tribunal a quo reconhecer ao arguido qualquer especial direito, não previsto na lei, de não ser julgado pelos factos que lhe são imputados por entretanto ter passado a padecer de doença de Alzheimer.

Aliás, no caso de pessoas inimputáveis ou com inimputabilidade diminuída, não deixa a lei de lhes reconhecer os mesmos direitos e deveres que reconhece a qualquer arguido, podendo os mesmos prestar declarações perante o Tribunal e fazendo-o necessariamente com as capacidades que detêm.

Acresce que, nos termos previstos no n.º 2 e 3 do artºº 334.º do C.P.P., sempre que o arguido se encontrar praticamente impossibilitado de comparecer à audiência, nomeadamente por idade, doença grave ou residência no estrangeiro, pode requerer ou consentir que a audiência tenha lugar na sua ausência, sendo que, se o tribunal vier a considerar absolutamente indispensável a presença do arguido, ordena-a, interrompendo ou adiando a audiência, se isso for necessário.

Quer isto dizer que, mesmo nas situações em que o arguido se encontra praticamente impossibilidade de comparecer, se o Tribunal entender que a presença do arguido não é absolutamente indispensável, não adia o julgamento.

E, nos termos previstos no n.º 4 do mesmo artºº 334.º do C.P.P., sempre que a audiência tiver lugar na ausência do arguido, este é representado, para todos os efeitos possíveis, pelo defensor.

(…)

No caso em apreço, a presença do arguido não foi considerada indispensável pelo Tribunal, tendo por isso o julgamento prosseguido na sua ausência, sendo o mesmo representado para todos os efeitos legais pelo seu Ex.mo Defensor.

E, no caso, se o mesmo não comparece em julgamento, não declara que pretende prestar declarações, designadamente através de meios de comunicação à distância, assim evitando o stress que a deslocação ao Tribunal lhe poderia causar, ou declara que desejava prestar declarações mas que não o faz por ter passado a padecer de doença de Alzheimer e já não deter as capacidades que anteriormente detinha, é evidente que é o próprio arguido que renuncia ao direito de prestar declarações que a lei lhe reconhece, não podendo assacar responsabilidades ao Tribunal por opção que ele próprio toma.

É que não basta afirmar-se que se pretende prestar declarações, impondo-se que, simultaneamente, o arguido aja de acordo com a manifestação de tal pretensão, apresentando-se em julgamento para o efeito ou solicitando para ser ouvido por meios de comunicação à distância.

Como dissemos, o direito do arguido de prestar livremente declarações tem que ser exercido pelo próprio com as condições que, no momento em que as presta, apresenta ou detém, não cabendo, nem podendo o Tribunal assegurar-lhe quaisquer capacidades que o arguido tenha eventualmente perdido.

É, pois, manifesto que não foi negado ao arguido o seu direito de prestar livremente declarações, presencialmente ou até à distância, nem o exercício de qualquer outro direito que legalmente lhe esteja reconhecido, tendo sido o próprio que optou por não prestar declarações.

E as consequências decorrentes da doença de Alzheimer de que padece o arguido, nomeadamente a diminuição das suas capacidades cognitivas, designadamente de memória, também não são fundamento de suspensão dos presentes autos ou de arquivamento por extinção do procedimento criminal por inutilidade superveniente da lide.

(…)”]

b. No ponto 2.3.8.6. da decisão [-Das invocadas nulidades por omissão de pronúncia sobre questão de anomalia psíquica superveniente e por falta de realização de perícia médica]


[“(…)Alega ainda o arguido, ora Recorrente, que, mesmo tendo ficado provado que o arguido tem doença de Alzheimer e irá cumprir 78 anos em 25 de Junho de 2022 (nºs 244 e 292 dos factos provados), o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão relativa à suspensão da pena de prisão aplicada, por anomalia psíquica superveniente, nos termos previstos no artºº 106.º, n.º 1, do C. Penal, o que constitui nulidade por omissão de pronúncia, de harmonia com o disposto no artºº 379.º, n.º 1, alínea c), do C.P.P..

E, para tanto, sustenta que a solução preconizada no artºº 106.º, n.º 1, do Código Penal existe precisamente porque o agente com doença de Alzheimer, ainda por cima no caso de ter idade avançada e situação física, neurológica e psicológica fragilizadas e debilitadas, como é o caso do arguido, não tem condições para enfrentar uma pena de prisão efectiva, sendo que, no caso, o Recorrente não tem, por si e sem assistência, condições para prover e tomar a sua correcta medicação diária e demais cuidados que o seu estado de saúde requer, que a aplicação do n.º 1 do artºº 106.º do C. Penal, no caso concreto, visa salvaguardar a dignidade humana de uma pessoa com Alzheimer e a ponto de cumprir 78 anos, o que foi ignorado pelo acórdão recorrido, que não apreciou a questão.

Conclui que o acórdão recorrido deve ser anulado, baixando os autos à Ia Instância para apreciação da questão, ou, caso assim não se entenda, suprindo-se a referida nulidade e determinando-se a suspensão na sua execução da pena de prisão aplicada, nos termos previstos no citado artº° 106.°, n.° 1, do C. Penal.

Prosseguindo, sustenta ainda o Recorrente que, se assim se não entender, se impunha a realização de perícia médica para determinar se o arguido padecia de anomalia psíquica superveniente, incorrendo o acórdão recorrido em nulidade, nos termos previstos no artº° 120.°, n.° 2, alínea d), do C.P.P., por omissão de acto legalmente obrigatório por estar em causa diligência essencial para a descoberta da verdade material, tendo violado o disposto nos artº°s 151.°, 154.°, 159.°, n.°s 1, 2, 4 a 7, 163.° e 340.°, n.° 1, do C.P.P. e o artº° 106.° do C. Penal.

Por fim, defende também que o artº° 106.°, n.° 1, do C. Penal, interpretado no sentido de que, ao agente com anomalia psíquica relativa a doença de Alzheimer diagnosticada na fase de julgamento, não deve ser determinada a suspensão da execução da pena de prisão, viola os artº°s 1.°, 2.°, 19.°, n.° 4, e 32.°, n.° 1, da CRP, que consagram o princípio da segurança e confiança jurídicas ínsitas ao Estado de Direito e os princípios fundamentais da dignidade humana, proporcionalidade e garantias de processo criminal.

Na sua resposta, considerou o Ministério Público que, face aos relatórios médicos sucessivamente juntos aos autos, o arguido sofrerá de doença de Alzheimer e, como tal, padecerá de uma degradação cognitiva, não resultando, porém, de tais relatórios que o arguido padeça de uma anomalia psíquica (no caso, posterior aos factos) que, para efeitos do disposto no artº° 106.° do C. Penal, o torne “incapaz de entender e querer”, o que aqui se traduziria na incapacidade de perceber as consequências e o alcance de uma sentença condenatória e, mais do que tudo, de uma pena. Dizendo que, para poder beneficiar do regime previsto nesse preceito, necessário é que o arguido padeça de anomalia psíquica que o prive da capacidade de compreensão da pena, afirma que dos relatórios médicos juntos aos autos nada indicia que o arguido esteja privado dessa compreensão, razão pela qual não se vislumbra porque haveria o acórdão recorrido de pronunciar-se sobre a questão relativa à suspensão da pena de prisão aplicada, por anomalia psíquica superveniente, nos termos do artºº 106.º, n.º 1, do C. Penal, se os referidos pressupostos de aplicação estavam longe de verificar-se.

Conclui não se verificar a invocada nulidade, acrescentando que, a verificar-se, sempre poderia ser suprida, levando porém, a decisão diversa da pretendida pelo arguido quanto à suspensão da pena aplicada.

Por fim, considera também que não se verificam as inconstitucionalidades apontadas ao artºº 106.º do C. Penal por violação dos artººs 1.º, 2.º, 19.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da CRP.

Quanto à alegada violação da obrigação e necessidade de realização de perícia médica, sustenta o Ministério Público que tal questão foi objecto de recurso interlocutório, ao qual respondeu pugnando pela improcedência do recurso do arguido, remetendo para o ali alegado.

Vejamos.

(…)

No caso em apreço, alega o Recorrente que, tendo ficado provado que o arguido sofre de doença de Alzheimer e irá cumprir 78 anos em 25 de Junho de 2022 (nºs 244 e 292 dos factos provados), o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão relativa à suspensão da pena de prisão aplicada, por anomalia psíquica superveniente, nos termos previstos no artºº 106.º, n.º 1, do C. Penal, o que constitui nulidade por omissão de pronúncia (artºº 379.º, n.º 1, alínea c), do C.P.P.).

Vejamos se assim é.

Determina-se no artºº 106.º do C. Penal, sob a epígrafe «anomalia psíquica posterior sem perigosidade», que: (…)

Independentemente de se definir qual o tribunal a quem compete aplicar o disposto no citado artºº 106.º do C. Penal - se o Tribunal do Julgamento, se o Tribunal de Execução das Penas - importa desde logo referir que a factualidade julgada provada não permite concluir que o arguido padece de anomalia psíquica que o torne incapaz de determinar a sua vontade e de compreender o alcance e fundamentos da sentença condenatória de que foi alvo e da pena que lhe vai aplicada.( sublinhado e itálicos nossos)

Ora, a anomalia psíquica a que alude o artºº 106.º, sobrevinda ao agente após a prática do crime, tem que ser de tal forma grave que coloque o arguido numa situação semelhante à de um inimputável, isto é, sem o domínio da vontade e sem a capacidade de entender, só não determinando o internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis - como acontece no caso previsto no artºº 105.º do C. Penal, em que também se prevê a situação de anomalia psíquica sobrevinda ao agente após a prática do facto - porque na situação prevista no artºº 106.º tal anomalia psíquica posterior não torna o agente perigoso, ao contrário do que acontece na previsão do artºº 105.º do C. Penal.

Com efeito, não é qualquer doença do foro psíquico, sobrevinda ao agente depois da prática do crime, que permite alterar a forma de cumprimento da pena de prisão, impondo-se que esteja em causa uma anomalia psíquica de tal forma grave que torne o arguido incapaz de entender e querer, bem como de perceber o alcance do processo criminal de que está a ser alvo e suas consequências, o que no caso, perante a factualidade julgada provada, manifestamente não se verifica.

Aliás, são diversas as doenças do foro psíquico que não se traduzem em qualquer incapacidade do paciente para gerir a sua própria pessoa e os seus bens. (…)

Nos autos não se colocou qualquer questão quanto à imputabilidade do arguido e daí que não tenha sido necessária a realização de qualquer perícia médica para aquilatar da sua imputabilidade na data da prática dos factos.

E a questão colocada sobre a doença de que o arguido padece presentemente, matéria relevante para determinação da medida da pena, não impõe a realização de qualquer perícia médica, bastando-se com a junção da documentação médica que a ateste.

A perícia médica inicialmente requerida pelo arguido e indeferida pelo Tribunal a quo foi objecto de recurso interlocutório atrás analisado, tendo-se concluído pela desnecessidade e inutilidade da mesma perícia face à junção da documentação clínica relativa a tal doença.

Por outro lado, perante a documentação clínica junta aos autos durante o julgamento, foi dado como provado no acórdão recorrido que ao arguido foi diagnosticada a doença de Alzheimer, conforme declaração médica do Senhor Doutor VVVVV de 12/10/2021 (cfr., documento junto a 14/10/2021, referência 30535752).

(…)

Perante o teor do relatório médico transcrito dúvidas não existem de que o arguido padece presentemente da doença de Alzheimer.

Porém, tal documento não dá conta de qualquer anomalia psíquica que incapacite o arguido de determinar a sua vontade, de entender e querer, bem como de perceber o alcance do processo criminal de que está a ser alvo e suas consequências.

E os demais factos julgados provados, quanto às condições pessoais e económicas do arguido, também não permitem concluir por qualquer incapacidade do arguido para entender e querer.

(…)

Tais elementos foram considerados provados com base no relatório social junto aos autos, o qual foi elaborado a partir de entrevista com o arguido, acompanhado do seu advogado, a pedido do próprio arguido, e em entrevista com a mulher e um amigo do arguido.

Ora, perante os factos dados como provados acabados de descrever, é manifesto que deles não resulta qualquer facto que indicie que o arguido padece de anomalia psíquica superveniente que o torne incapaz de gerir a sua pessoa e bens ou que evidencie que o mesmo apresenta um discurso incoerente e ilógico, ou que não tenha capacidade de entender e querer, nem de compreender o alcance do processo criminal de que está a ser alvo e da pena aplicada.

Na verdade, sem esquecer o facto julgado provado sob o n.º 292 do qual consta que ao arguido foi diagnosticada a doença de Alzheimer, conforme declaração médica do Senhor Doutor VVVVV de 12/10/2021 (cfr., documento junto a 14/10/2021, referência 30535752), bem como a factualidade apurada vertida nos n.ºs 256 e 257, em que se lê que o arguido AA tem vindo a sentir dificuldades e lapsos de memória e, ainda, desgaste emocional, físico e psicológico, tendo dificuldades de audição, certo é que se apuraram outros factos que evidenciam que a doença de que o arguido padece neste momento não tem para já - e felizmente - a gravidade que a defesa do arguido pretende fazer crer.

Com efeito, ficou também provado que o arguido:

Em 13 de Julho de 2014, o arguido AA cessou as funções de CEO da "Grupo Espírito Santo" que exerceu desde Setembro de 1991 e, desde o colapso do "Grupo Espírito Santo" em Agosto de 2014, não exerce qualquer actividade profissional.

Desde então (meados de 2014), os dias do arguido AA são passados a trabalhar na sua defesa e no livro das suas memórias.

280. O arguido é um trabalhador incansável, com elevado sentido de
responsabilidade.

O próprio detém uma auto-imagem de profissional empenhado, competente, determinado e de líder incontestado, mas democrático, como seria exigência de outros importantes accionistas do banco como era o caso da C..... ......... .. ...... .........

Muito dedicado ao trabalho, foi o cônjuge, que não exercia actividade profissional, quem assumiu a educação quotidiana dos filhos, para os quais o arguido tinha pouco tempo, gozando poucas vezes férias e por curtos períodos.

Apesar disso, existe um vínculo afectivo forte entre pai e filhos, mostrando-se estes solidários com os pais na fase actual da sua vida.

286. No presente o arguido mantem um estilo de vida recatado, raramente saindo
de casa, ocupando-se essencialmente com a leitura dos jornais, a preparação da sua defesa
no presente processo judicial e a escrever as suas memórias.

287. No contacto com o arguido, agora com 76 anos, sobressai alguma
fragilidade física e psicológica, desde 2014 o arguido tem vindo a perder a força e a
determinação que lhe eram características, mostra-se abatido e evidencia uma lentificação
generalizada, falhas de memória.

291. Neste quadro – apoio da filha -, não é sentida uma perda de qualidade de vida, embora a vida social do casal ficou muito reduzida com os acontecimentos de 2014, com a consequente exposição mediática do arguido e com o afastamento de algumas pessoas do seu leque de relações, o que também tem proporcionado uma contenção de gastos. (sublinhados nossos)

Ora, perante tal quadro fáctico, resulta evidente que a alegada incapacidade não se reveste de gravidade suficiente para fazer funcionar a norma vertida no artºº 106.º do C. Penal, alterando a forma de cumprimento da pena de prisão fixada ao arguido, sendo certo que a concreta pena aplicada, sendo superior a cinco anos de prisão, não permite a suspensão da execução da pena prevista no artºº 50.º, n.º 1, do C. Penal.

Ocupando o arguido os seus dias com a leitura dos jornais, a preparação da sua defesa no presente processo judicial e a escrever as suas memórias, resulta evidente que a doença de que presentemente padece não o torna incapaz de gerir o seu dia a dia, nos termos referidos, informando-se do que se passa no país e no mundo, através da leitura de jornais, preocupando-se com os presentes autos, ajudando na preparação da sua defesa, e escrevendo as suas memórias, aspecto este que evidencia que mesmo as falhas de memória de que dá conta o relatório médico são combatidas pelo arguido, procurando por certo defender a auto-imagem de profissional responsável, empenhado, competente, determinado e de líder incontestado, mas democrático, que continua a manter.

Aliás, o arguido apresentou-se em Tribunal na última sessão da audiência de julgamento, altura em que se identificou e declarou não querer prestar declarações por lhe ter sido diagnosticada a doença de Alzheimer – em perfeita consonância com a defesa que foi apresentando nos autos – sem evidenciar qualquer incapacidade de entender e de responder ao que lhe estava a ser perguntado. E, em tal quadro, perante a matéria de facto julgada provada, é manifesto que nada nos autos indiciava que o arguido padecesse de qualquer anomalia psíquica que lhe tivesse sobrevindo após a prática dos factos para os efeitos previstos no artºº 106.º do C. Penal, razão pela qual, sendo a pena única aplicada pela 1ª Instância de 6 anos de prisão, não tinha o Tribunal a quo que ponderar a aplicação nem do disposto no artºº 50.º, n.º 1, do C. Penal, nem do vertido no artºº 106.º do mesmo C. Penal, por não se mostrarem verificados os respectivos pressupostos legais.

Não resultando nem dos relatórios médicos juntos pelo arguido durante o julgamento, nem dos factos julgados provados quanto às suas condições de vida, nem ainda da intervenção do arguido em audiência - a qual, apesar de curta, sempre permitiria constatar qualquer incapacidade do arguido para entender o que lhe era perguntado -, qualquer suspeita de privação da capacidade de compreensão por parte do arguido, é evidente que não recaía sobre o Tribunal a quo qualquer obrigação de se pronunciar sobre questão que não se colocava nos autos, sendo manifesta a ausência de quaisquer indícios que permitissem concluir pela verificação, nesse momento, de qualquer incapacidade do arguido para entender e querer.

E a circunstância de o arguido ter aludido à hipótese de aplicação do artº 106.º do C. Penal como um dos argumentos por si apresentados para justificar a realização de perícia médica que repetidamente requereu tendo em vista justificar a não prestação de declarações por parte do arguido e o pedido de arquivamento ou suspensão dos autos, também não obrigava o Tribunal a justificar no acórdão recorrido a não aplicação do citado artºº 106.º do C. Penal, sendo certo que, como vimos, os factos considerados provados não indiciam qualquer incapacidade do arguido que o impedisse de se auto-determinar ou de se expressar de forma livre e esclarecida, mesmo que com algum deficit de memória, nem de entender o mundo que o rodeia e as decisões de que é alvo.

Não obstante, importa lembrar que o Tribunal a quo já tinha expresso o seu entendimento quanto ao momento de aplicação do disposto no artºº 106.º do C. Penal, o que fez no despacho proferido em 17.09.2021, no qual considerou que tal aplicação só poderia ter lugar depois de uma decisão condenatória com trânsito em julgado, competindo a sua aplicação ao Tribunal de Execução de Penas.

Lê-se, de facto, em tal despacho:

«Requerimento de 13/09/2021 (referência 30240746):

Mediante o mesmo, veio o arguido requerer a nulidade ou irregularidade do despacho datado de 6 de Setembro de 2021 e com data de assinatura electrónica certificada de 7 de Setembro de 2021 (com a referência 408098829), que indeferiu a realização da perícia médico-neurológica requerida pelo arguido através dos seus requerimentos de 15 de Julho de 2021 (referência 29830311) e de 31 de Agosto de 2021 (referência 30131209) e determinada a realização da perícia médico-neurológica requerida pelo arguido no seu requerimento de 15 de Julho de 2021 (referência 29830311).

Para tal argumentou que:

as circunstâncias pessoais do arguido não constitutivas dos crimes que lhe são imputados não retira relevância à perícia médico-neurológica e, muito menos, a torna desproporcional.

à excepção do caso pontual em que a perícia médica visa averiguar a possível inimputabilidade por anomalia psíquica do arguido à data dos alegados factos que constituem o ilícito típico penal, todas as demais perícias médicas neurológicas dos arguidos recaem sobre as condições pessoais do arguido à data do julgamento e da prolação da decisão final.

- a perícia médico-neurológica não releva apenas para avaliar a conduta
posterior do arguido à prática dos factos e as suas condições especiais na determinação de uma eventual sanção;

esta perícia médico-neurológica pode, igualmente, relevar para o Tribunal ficar dotado de condições e suporte clínico-médico para avaliar a aplicação do disposto no artigo 106.º do Código Penal, que vincula o Tribunal a determinar, imediatamente, a suspensão da execução de uma eventual pena de prisão a aplicar ao agente sem perigosidade ou, no caso de agentes com perigosidade, levar à aplicação do artigo 105.º do Código Penal;

ao contrário de um atestado médico que não constitui prova pericial em sentido técnico-processual (mas sim prova documental), o juízo técnico "inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador", por força do disposto no n.º 1 do artigo 163.º do Código Processo Penal;

mesmo que o Tribunal pretenda afastar esta presunção prevista no n.º 1 do artigo 163.º do Código Processo Penal, por a sua convicção divergir do juízo contido no parecer dos peritos, então o Tribunal terá de, sempre e obrigatoriamente, fundamentar esta divergência, nos termos do n.º 2 do artigo 163.º do Código Processo Penal, o qual não se aplica à prova documental;

a prestação de declarações por parte do arguido é um direito fundamental deste, que se impõe ao Tribunal e até constitui um acto legalmente obrigatório, nos termos dos artigos 61.º n.º 1 alínea b), 343.º n.º 1 e n.º 2, 361.º n.º 1, todos do Código Processo Penal, caso o arguido pretenda exercer este seu direito, o que obriga e vincula o Tribunal a realizar uma perícia, quando existem indicadores nos autos de que o Arguido sofre de patologia que o pode impedir de exercer este direito a prestar declarações de forma plena;

a perícia médico-neurológica requerida pelo arguido, a avaliação médica para saber se o arguido tem uma anomalia psíquica que o impede de exercer, de forma plena, a defesa, nomeadamente através da prestação de declaração, não é uma prerrogativa do Tribunal, mas sim um direito fundamental do arguido que se impõe ao Tribunal.

o Tribunal sempre deveria e deverá determinar a perícia médico-neurológica em causa, ao abrigo do n.º 7 do artigo 159.º do Código Processo Penal, nos termos e com o objecto já requerido pelo arguido, a qual se impõe ao Tribunal como um acto legalmente obrigatório;

não obstante a letra da lei no n.º 7 do artigo 159.º do Código Processo Penal se referir à perícia "psiquiátrica" e as áreas da neurologia e psiquiatria em estrito sentido técnico-médico serem distintas, a verdade é que esta norma utilizou a expressão "perícia psiquiátrica" em sentido amplo (e não em sentido estrito técnico-médico), por forma a abranger também as perícias médico-neurológicas.

Cumpre apreciar e decidir.

*

Perante a argumentação expendida, existe uma evidência ineludível: o Tribunal já se pronunciou sobre o pedido de realização da perícia médica.

Em sentido técnico jurídico o requerimento em apreço constitui uma impugnação do mérito da decisão proferida e não uma invocação de vícios formais da decisão.

Nesta medida, essa argumentação é própria de uma motivação de requerimento de interposição de recurso.

E, como tal, a simples invocação do esgotamento do poder jurisdicional deste Tribunal seria suficiente para sustentar uma decisão de indeferimento do requerido. No entanto, por uma questão de respeito pelo esforço efectuado pelo requerente e de forma a explicitar melhor as razões de decidir.

Não é uma qualquer anomalia psíquica que impõe a aplicação dos artigos 105.º ou 106.º do Código Penal

Deve tratar-se de uma anomalia psíquica que torne o arguido inimputável. Pois só a inimputabilidade pode fundamentar a suspensão ou a não execução de uma pena de prisão.

Por outro lado este é um tribunal de julgamento e não um tribunal de execução de penas.

Assim sendo previamente à aplicação das normas invocadas está obviamente a decisão de condenação do arguido com trânsito em julgado, a qual ainda não aconteceu e não se afigura que possa acontecer a curto prazo.

Desta forma, o argumento em causa é um não argumento para a necessidade de realização da perícia médica.

A prova de padecimento de doença qualquer que seja a sua natureza não impõe a realização de uma perícia médica.

A força probatória de um documento não impugnado e não contraditado impõe ao Tribunal com igual vigor à de uma prova pericial.

O Tribunal só pode ignorar um documento com tal força probatória, se demonstrar facto irrelevante para a apreciação do objecto do processo.

Ora, se nenhum dos intervenientes processuais coloca em causa a veracidade e o valor dos atestados médicos e da documentação clínica que verse sobre a situação clínica de um arguido, sendo os factos demonstrados por tal documentação relevantes para a decisão da causa, a realização de uma perícia médica que eventualmente fará a demonstração os mesmos factos (tendo em consideração o objecto da perícia requerida) é um acto inútil, irrelevante e desproporcional.

O Tribunal não desconsidera, nem nunca desconsiderou, os direitos de defesa dos arguidos, designadamente o direito de prestar declarações sobre o objecto do processo.

É certo que a prestação declarações insere-se no núcleo dos direitos fundamentais de defesa de qualquer arguido.

Como direito que é pode ou não ser exercido. E, este não exercício do direito de prestar declarações faz, igualmente, parte integrante dos direitos fundamentais de defesa do arguido (direito ao silêncio ou direito à não incriminação).

A decisão de não deferimento da realização da perícia médica não se baseou na dispensa do arguido em comparecer em julgamento - aliás, em primeiro lugar, o Tribunal decidiu que a ausência do arguido não impediu o início do julgamento, nem o seu decurso em segundo lugar, o arguido está dispensado pelo tribunal de comparecer em julgamento, com exclusão da sessão em que se encontra agendada a realização de alegações finais, a fim de querendo prestar últimas declarações antes da prolação do acórdão, nesta sessão, caso o arguido não compareça terá de justificar a falta ou não, conforme se mantenham em vigor as regras excepcionais emergentes da pandemia em curso.

O arguido é o titular dos direitos de defesa e, como tal, está na sua disponibilidade exercê-los ou não.

Se o arguido requerer o agendamento de uma sessão para prestar declarações, o Tribunal é obrigado a satisfazer tal pedido.

Se o arguido padece de alguma diminuição da sua capacidade cognitiva ou intelectual que condicionem o conteúdo das suas declarações é uma circunstância que naturalmente condiciona o exercício do direito de prestação de declarações, mas tal constitui vicissitude da prova testemunhal - aqui entendida em sentido amplo abrangendo as declarações de arguido e de assistente. A qual se coloca em todos os julgamentos, pois cada pessoa é única, com capacidades diferenciadas. Cabendo ao Tribunal o munus de apreciar e avaliar. Esta é a tarefa quotidiana de um tribunal de julgamento.

Assim sendo, a realização de uma prova pericial para avaliar se o arguido tem capacidade ou não para prestar declarações, quando a prestação de declarações não é imposta pelo Tribunal, é uma actividade inútil, irrelevante, sem propósito válido.

A realização de uma perícia com a finalidade de obter uma conclusão por um perito médico no sentido do arguido ter ou não capacidade para prestar declarações em julgamento é um acto inútil e irrelevante.

Se a conclusão for no sentido da incapacidade de prestação de declarações e o arguido insistir em prestar declarações, face a tal conclusão pericial o Tribunal não poderia ter em consideração tais declarações e, como tal, a sua prestação não poderia ser admitida.

Se a conclusão for no sentido da capacidade ou capacidade diminuída de prestação de declarações, o arguido pode optar por prestar ou não prestar declarações - se optar por usar do direito ao silêncio, tal comportamento não poderá ser valorado positiva ou negativamente pelo tribunal; se optar por prestar declarações, caberá no âmbito funcional do tribunal apreciar e valorar as mesmas.

Em suma, qualquer que seja a capacidade do arguido para prestar declarações, o exercício do direito está na disponibilidade do arguido e a apreciação e valoração das declarações cabe ao tribunal; estando este impedido de valorar o silêncio do arguido, seja este motivado pela simples vontade de omissão ou pela incapacidade de acção.

Finalmente, o tribunal ordena a realização dos meios de prova que se lhe afigurem úteis e relevantes.


O Tribunal não entende que a realização de qualquer perícia seja um acto legalmente obrigatório, nem nunca tal imposição poderá emergir do disposto no artigo 159.º n.º 7 do Código Processo Penal – como parece querer inferir o arguido.

Neste caso, como abundantemente se tem tentado explicitar, realização daa perícia em causa constitui um acto inútil, irrelevante e desproporcional.

*

Nos termos e pelos fundamentos expostos, indefiro o requerido.

Notifique.»

(sublinhados nossos)

E, vendo o disposto no referido artºº 106.º do C. Penal, incluído no Capítulo VIII do Código Penal, relativo ao Internamento de imputáveis portadores de anomalia psíquica, tendemos a concordar com o Tribunal a quo quando defende que o referido normativo legal tem aplicação já na fase de execução da pena, competindo a sua aplicação ao Tribunal de Execução das penas.

Com efeito, o que se diz no n.º 1 do artºº 106.º do C. Penal, incluído, como vimos, no «Capítulo VIII - Internamento de imputáveis portadores de anomalia psíquica», é que «se a anomalia psíquica sobrevinda ao agente depois da prática do crime não o tornar criminalmente perigoso, em termos que, se o agente fosse inimputável, determinariam o seu internamento efectivo, a execução da pena de prisão a que tiver sido condenado suspende-se até cessar o estado que fundamentou a suspensão.».

O capítulo em causa respeita ao internamento de imputáveis portadores de anomalia psíquica, que foram julgados e condenados em pena de prisão, mas que no momento do cumprimento da pena sofrem de anomalia psíquica, quer nas situações em que tal anomalia já se verificava na data da prática do facto (artºº 104.º do C. Penal), quer nas situações em que tal anomalia sobrevém ao agente após a prática do crime (artºº 105.º do C. Penal). Está sempre em causa o cumprimento/execução da pena de prisão a que o agente foi condenado, que é substituído por internamento, quando, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie (artºº 91.º, n.º 1, do C. Penal), ou quando se entender, face à anomalia psíquica de que padece, que o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial, ou que ele perturbará seriamente esse regime (artºº 104.º do C. Penal).

Uma outra situação prevê a lei e que respeita à situação em que ao agente imputável condenado em pena de prisão sobrevém uma anomalia psíquica que não o torna perigoso (artºº 106.º do C. Penal).

O disposto neste artºº 106.º constitui extensão do previsto no artºº 105.º -anomalia psíquica posterior -, mas agora inexistindo perigosidade do autor.

Neste caso, o cumprimento/execução da pena de prisão em que o agente foi condenado é suspenso durante o tempo em que durar a anomalia psíquica, sendo o período dessa suspensão descontado no tempo da pena que estiver por cumprir.

É isso mesmo que resulta do disposto no n.º 3 do mesmo artºº 106.º do C. Penal que estipula que «a duração da suspensão é descontada no tempo da pena que estiver por cumprir, sendo correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2, 3, 4 e 5 do artigo 99. º»

Ao referir que «a duração da suspensão é descontada no tempo da pena que estiver por cumprir», indica, sem dúvida, o legislador que está em causa pena de prisão cujo cumprimento já se iniciou, sendo o seu cumprimento (execução) suspenso por força da anomalia psíquica sobrevinda ao agente após a prática do crime que não o torna perigoso, sendo tal cumprimento/execução retomado quando cessar a causa da suspensão, isto é, quando cessar a situação de anomalia psíquica. E o disposto no artºº 108.º do C. Penal indica também que estamos a falar de medida a aplicar na fase de execução da pena de prisão, já que nele expressamente se referem as medidas previstas nos artººs 104.º a 106.º como «alterações ao regime normal de execução da pena».

Não está, assim, em causa no artºº 106.º do C. Penal a aplicação de uma pena de substituição da pena de prisão, como é o caso da suspensão da execução da pena de prisão cujos pressupostos, duração e regime se mostram definidos no artºº 50.º e seguintes do Código Penal, mas antes uma alteração ao regime normal de execução/cumprimento da pena de prisão, prevendo-se as circunstâncias (anomalia psíquica, sem perigosidade, sobrevinda ao agente após a prática do crime) em que o cumprimento de uma pena de prisão que se mostra em execução é suspenso, suspensão que se verificará enquanto durar o facto que determinou tal suspensão, isto é, enquanto se verificar a situação de anomalia psíquica, sendo retomado quanto e se tal circunstância deixar de se verificar.

O cumprimento/execução da pena é suspenso durante determinado período, por força da anomalia psíquica entretanto verificada, sendo retomado logo que terminar a situação de anomalia psíquica.

Não está, pois, em causa qualquer substituição da pena de prisão aplicada -como é o caso da pena prevista no artºº 50.º do C. Penal -, mas apenas uma interrupção do cumprimento da pena de prisão aplicada, por força da anomalia psíquica de que o agente passou a padecer, cumprimento que será retomado logo que terminar a situação de anomalia psíquica.

O disposto no artºº 106.º do C. Penal não prevê assim a aplicação de uma nova pena que substitua a pena de prisão fixada, prevendo antes a possibilidade de interrupção do cumprimento da pena de prisão aplicada durante o período em que se verificar uma situação de anomalia psíquica sobrevinda ao agente após a prática do crime que não o torna perigoso.

Está, pois, em causa uma alteração da forma de cumprimento/execução da pena de prisão aplicada, dada a situação de anomalia psíquica verificada.

Ora, nos termos previstos no artºº 138.º, n.º 2, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, após o trânsito em julgado da sentença que determinou a aplicação de pena ou medida privativa da liberdade, compete ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a respectiva execução e decidir da sua modificação, substituição e extinção, sem prejuízo do disposto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, determinando-se na alínea o) do n.º 4 do mesmo artºº 138.º que sem prejuízo de outras disposições legais, compete aos tribunais de execução das penas, em razão da matéria, determinar o internamento ou a suspensão da execução da pena de prisão em virtude de anomalia psíquica sobrevinda ao agente durante a execução da pena de prisão e proceder à sua revisão, cabendo-lhe ainda, nos termos previstos na alínea g) do n.º 4 do mesmo artºº 138.º do CEPMPL declarar a caducidade das alterações ao regime normal de execução da pena, em caso de simulação de anomalia psíquica.

Por outro lado, a alínea a) do n.º 1 do artºº 164.º do CEPMPL prevê também o internamento determinado pelo Tribunal de Execução das Penas nas situações de anomalia psíquica manifestada durante a execução da pena privativa da liberdade, nos casos previstos nos n.ºs 1 dos artigos 104. º, 105.º e 106.º do Código Penal.

Mas mesmo que se entenda que o Tribunal do Julgamento também pode suspender o cumprimento/execução da pena de prisão que aplicou, dada a situação de anomalia psíquica sem perigosidade sobrevinda ao agente após a prática do facto, e pelo período de duração desta, sempre seria necessária a verificação da situação de anomalia psíquica, com a gravidade a que acima se aludiu.

Chama o Recorrente a atenção para os factos considerados provados dos quais resulta que tem 78 anos, tem sentido dificuldades e lapsos de memória e, ainda, desgaste emocional, físico e psicológico, tem dificuldades de audição e tem vindo a perder a força e a determinação que lhe eram características, mostra-se abatido e evidencia uma lentificação generalizada, falhas de memória.

Sem prejuízo da doença de Alzheimer que foi diagnosticada ao arguido, não nos parece que os aspectos referidos permitam considerar verificada qualquer situação de anomalia psíquica que impeça o arguido de se auto-determinar ou de se expressar de forma livre e esclarecida, mesmo que com algum deficit de memória, nem de entender o processo criminal de que está a ser alvo e as consequências do mesmo.

As referidas dificuldades, lapsos, desgaste e perda de força e determinação afiguram-se normais em alguém com a idade do arguido, vivendo o que o mesmo presentemente tem vivido, designadamente com a pendência dos presentes autos, aspectos eventualmente agravados pela doença de Alzheimer de que actualmente padece, mas tal não é suficiente para sequer indiciar que o mesmo sofre de anomalia psíquica que o impeça de entender o significado destes autos e das suas consequências.

O arguido compareceu na última sessão da audiência de julgamento, tendo-se identificado e declarado que não pretendia prestar declarações, acrescentando não estar em condições de o fazer por lhe ter sido diagnosticada a doença de Alzheimer, não tendo evidenciado qualquer incapacidade de compreensão do que lhe era perguntado, nem das razões por que ali se encontrava.

Acresce que, se a doença de que o arguido padece se agravar, vindo a incapacitá-lo nos termos referidos, sempre será possível a aplicação, pelo Tribunal de Execução das Penas, quer do disposto no citado artºº 106.º do C. Penal, quer nos demais institutos legalmente previstos para situações de doença, incapacidade ou idade avançada, vertidos no Código de Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, designadamente o previsto no artºº 216.º e ss., relativo à modificação da execução da pena de prisão de reclusos portadores de doença grave, evolutiva e irreversível ou de deficiência grave e permanente ou de idade avançada.

Por todas as razões referidas, não evidenciando a factualidade julgada provada qualquer situação de anomalia psíquica de que o arguido padeça, não tinha o Tribunal a quo que se pronunciar, de novo, agora em sede de acórdão final, sobre a aplicabilidade, nesse momento, do artºº 106.º do C. Penal, como não tinha que aludir à aplicabilidade do disposto no artºº 50.º do C. Penal, dada a manifesta falta de preenchimento dos respectivos pressupostos legais.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, sem necessidade de outras considerações, forçoso é concluir que a decisão recorrida não padece da invocada nulidade por omissão de pronúncia.

Mas mesmo que se entendesse que o Tribunal a quo devia abordar tal questão no acórdão recorrido e que, não o tendo feito, incorreu na prática de nulidade por omissão de pronúncia, certo é que tal eventual nulidade sempre podia ser suprida por este Tribunal de Recurso.

Ora, pelas razões que já deixámos expostas, pese embora a doença de Alzheimer diagnosticada ao Recorrente, não se mostrando indiciada, na factualidade julgada provada, qualquer incapacidade do arguido que o impeça de se auto­determinar e de perceber o alcance dos presentes autos e suas consequências, entendemos que, neste momento, não se verificam os requisitos legais de que a lei faz depender a aplicação do disposto no artºº 106.º do C. Penal, entendendo ainda que, em caso de futuro agravamento das consequências da doença que coloquem o arguido numa situação semelhante à de inimputabilidade, isto é, sem o domínio da vontade e sem a capacidade de entender, a aplicação de tal preceito deverá ser feita pelo Tribunal de Execução das Penas nos termos atrás referidos, assim se acautelando todos os direitos do arguido.

E tal interpretação não viola qualquer princípio ou normativo constitucionais, nem os vertidos nos artººs 1.º, 2.º, 19.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da CRP, que consagram os princípios fundamentais da dignidade humana, proporcionalidade e garantias de processo criminal, nem quaisquer outros, sendo certo que nos autos não se fez prova de anomalia psíquica de que o arguido padeça que o impeça de entender e querer, isto é, que o coloque numa situação semelhante à de inimputabilidade, e que o Código de Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, prevê um conjunto de medidas que permitem acautelar os direitos do arguido caso tal incapacidade venha no futuro a sobrevir-lhe.

Consequentemente, improcede, também aqui, o recurso interposto pelo arguido.

Por fim, no que respeita à alegada nulidade por falta de realização da perícia médica, remete-se para o que atrás se escreveu sobre a questão, resultando evidente nos autos que a realização de tal perícia - que foi requerida pelo arguido para que fosse atestado que o mesmo padece de doença de Alzheimer, tendo em vista fundamentar o arquivamento ou suspensão dos presentes autos também por ele requeridos, por não deter a liberdade e capacidade entendidas pela defesa como necessárias para exercer a sua defesa prestando declarações -, não constitui qualquer acto que se impusesse para o apuramento da verdade material, mostrando-se os factos que se pretendia provar com a realização de tal perícia - doença de Alzheimer de que padece o arguido - demonstrados nos autos, com base na documentação clínica apresentada para o efeito pelo mesmo arguido.

E em tal documentação clínica nunca foi posta em causa a imputabilidade do arguido na data da prática dos factos, aspecto também não suscitado em sede de recurso.

Consequentemente, tendo sido analisado e decidido que a falta de realização de tal perícia médica não constituía qualquer nulidade, designadamente a prevista no artºº 120.º, n.º 2, alínea d), do C. Penal, por não constituir acto que se reputasse essencial para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, uma vez que nos autos nunca foi posta em dúvida a imputabilidade do arguido na data da prática dos factos, visando a requerida perícia apurar tão só se, na fase do julgamento, o arguido padecia de doença de Alzheimer, facto entretanto provado por relatório médico, nada mais se impõe acrescentar quanto à desnecessidade de tal perícia médica, sendo ainda certo que a doença de Alzheimer de que o arguido padece, dada como provada no acórdão recorrido, foi, como se impunha, tomada em consideração para efeito de determinação da medida da pena.

Consequentemente, também nesta parte, o recurso interposto pelo arguido não merece provimento. (…)” (Fim de citação)]

c. E ainda, no acórdão recorrido, do ponto 2.3.9. – [Requerimento apresentado pelo Recorrente em 02.05.2023 solicitando a junção aos autos do documento designado “Informação Clínica”, datado de 01.05.2023 e subscrito pelo Prof. Doutor VVVVV]

[“(…) Por requerimento apresentado em 02.05.2023, veio o Recorrente requerer a junção aos autos, nesta fase de recurso, de documento designado “Informação Clínica”, datado de 01.05.2023, subscrito pelo Prof. Doutor VVVVV, informação que alude a agravamento da situação de saúde do arguido. Notificado, pronunciou-se o Ministério Público pela intempestividade da junção de tal documento, face ao disposto no artºº 165.º do C.P.P., não se opondo, porém, à sua admissão formal, por dizer respeito a questão a debater na audiência que se encontrava designada nos autos.

Vejamos.

Sob a epígrafe «Quando podem juntar-se documentos», determina-se no

artºº 165.º do C.P.P. que

«1 - O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.

- Fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.

- O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a pareceres de advogados, de jurisconsultos ou de técnicos, os quais podem sempre ser juntos até ao encerramento da audiência.»

(sublinhado nosso)

Decorre de forma clara do normativo legal transcrito que a junção de documentos deve ser feita até ao encerramento da audiência, em 1ª Instância naturalmente, sendo que a renovação da prova que poderá ter lugar na audiência prevista no artºº 423.º do C.P.P., a ter lugar em sede recurso, respeita tão só à prova produzida em 1ª Instância que, nas circunstâncias descritas no artºº 430.º do C.P.P., poderá ser renovada.

É, pois, pacífico o entendimento de que a realização da audiência constitui, o limite temporal máximo para apresentação de documentos.

Nestes autos de recurso, teve lugar a audiência, mas não teve lugar qualquer renovação da prova, pelo que as provas a considerar para análise do acerto ou desacerto do acórdão recorrido serão apenas as que foram produzidas até ao encerramento da audiência em 1ª instância.

E, compreende-se que assim seja, já que, como sabemos, os recursos são remédios jurídicos que visam corrigir ou colmatar erros ou incorrecções de que padeçam as decisões recorridas e não proferir decisão nova sobre aspectos que não puderam ser, nem foram, analisados e decididos pelo Tribunal a quo.

Não obstante, a junção de um documento na fase do recurso poderá ser excepcionalmente admitida se estiver em causa decidir qualquer aspecto que possa vir a ter efeito na decisão da causa, como é a situação a que alude o Ac. do TRP de 21.12.2022, tirado no Proc.º 711/18.4 GBAGD.P1 - citado pelo Recorrente no requerimento de 02.05.2023 em que pede a junção do mencionado documento -processo em que, de forma excepcional, se admitiu o reenvio do processo para realização de perícia relativa às faculdades mentais do arguido quando só na fase de recurso se levantam fundadas dúvidas sobre a imputabilidade deste e esta questão não foi suscitada em primeira instância.

Acontece, porém, que, no caso sub judice, o documento em causa releva apenas para efeito de cumprimento da pena, isto é, para determinar qual a forma como tal cumprimento terá lugar, questão a apreciar pelo Tribunal de Execução das Penas, nos termos atrás referidos, nele não se suscitando qualquer dúvida, mínima que fosse, sobre a imputabilidade do arguido na data da prática dos factos.

O agravamento da situação de doença do arguido - o qual, perante o tipo de doença neuro-degenerativa de que o mesmo padece, é expectável que continue a verificar-se - terá que ser considerado para efeitos de cumprimento da pena, cumprimento que deverá ser adaptado à real situação que o arguido então apresentar, mas não releva para a decisão dos autos, na qual a doença de Alzheimer de que o arguido padece já foi valorada para efeito de determinação da medida da pena. Assim, não apresentando o referido documento qualquer excepcionalidade que se impusesse valorar neste momento, não é o mesmo admissível face ao disposto no artºº 165.º do C.P.P..

E tal entendimento não fere qualquer normativo ou princípio constitucional, como tem sido entendido pelo Tribunal Constitucional que tem decidido não julgar inconstitucional o disposto no artºº 165.º, n.º 1, do C.P.P., interpretado no sentido de que não é admissível, após a prolação da sentença da 1.ª instância, a junção de documentos em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após aquele momento, só então sendo do conhecimento do arguido.

A título de exemplo, veja-se o que consta do Acórdão n.º 90/2013, de 3 de Maio, publicado no D.R., 2.ª Série, n.º 85, de 03.05.2013, pág. 14.014, no qual podemos ler:

«O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta questão de constitucionalidade nos Acórdãos n.º 392/2003 e 397/2006, nos quais não julgou inconstitucional o artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo-se escrito o seguinte no primeiro destes arestos:

"... a intempestividade da junção de documentos supervenientes, na fase de recurso para a relação, está directamente conexionada com os termos em que a lei regula os recursos em processo penal, particularmente, no que concerne à reapreciação da matéria de facto.

A decisão em 2.ª instância, sobre matéria de facto, não significa um segundo julgamento no sentido de se deverem apreciar novos elementos de prova. O juízo do tribunal de recurso tem por objecto a decisão de 1.ª instância, com a possibilidade, em certos casos, de "renovação" da prova (não de apresentação de novos elementos da prova - novas testemunhas, novos documentos) com os mesmos elementos probatórios que serviram de base à decisão recorrida.

Escrevem, a propósito, Simas Santos e Leal Henriques ("Recursos em Processo Penal", 3.ª ed., pág. 58):

"Ao estatuir que "sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, o recurso interposto de uma sentença (isto é, de uma decisão que conhece, a final, do objecto do processo) abrange toda a decisão", o artigo 402.º, consagra no seu n.º 1, o princípio do conhecimento amplo. O objecto legal dos recursos é, assim, a decisão recorrida e não a questão por esta julgada; com o recurso abre-se somente uma reapreciação dessa decisão, com base na matéria de direito e de facto de que se serviu ou podia servir a decisão impugnada, pré­existente, pois, ao recurso".

Ora, a Constituição (maxime, artigo 32.º n.º 1), se assegura o direito ao recurso, deixa, no entanto, ao legislador ordinário uma margem de livre conformação na regulação do recurso, não impondo, de modo algum, que esta se traduza na permissão de um segundo julgamento da questão decidida em 1.ª instância.

Nesta lógica se compreende, sem vício de inconstitucionalidade, a proibição de junção de documentos supervenientes com vista a alterar a matéria de facto dada como provada em 1.ªinstância.»

É nítido que a interpretação sindicada está directamente conexionada com a perspectiva sobre os termos em que a lei ordinária define o âmbito dos recursos em processo penal, particularmente no que concerne à reapreciação da matéria de facto.

O Tribunal recorrido revela a sua visão sobre este tema quando disserta a propósito do disposto no n.º 1, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal:

"Deste preceito legal resulta que os recursos dirigidos a um tribunal hierarquicamente superior não se destinam a apreciar questões novas, não visam avaliar em primeira linha questões que não tenham sido suscitadas na 1.ª instância. Pelo contrário, estes meios de impugnação das decisões judiciais visam a reanálise, a reapreciação, de questões que já tenham sido conhecidas pelo tribunal recorrido ou que podiam e deviam ter sido conhecidas, apesar de não terem sido apreciadas, com o intuito de correcção de vícios, de erros, de omissões ou de escolha da melhor solução jurídica para o caso.

A interposição de recurso deixaria de consubstanciar um meio de impugnação das decisões judiciais, de sindicância e de avaliação do seu mérito, com o intuito da sua modificação, para passar a ser um meio de vinculação do tribunal de recurso, do tribunal hierarquicamente superior, à decisão de questões novas, ainda não apreciadas pelo tribunal recorrido.

Deste modo, não ocorre qualquer vício da decisão judicial, susceptível de reparação pelo tribunal hierarquicamente superior através de recurso, quando o tribunal de 1.ª instância não teve a possibilidade de se pronunciar sobre a questão que motiva a interposição do recurso, muito em particular por essa questão nova não ser cognoscível à data da decisão impugnada, por ter sido suscitada após a sua prolação, sendo desconhecida para o tribunal a quo."

Em matéria penal, o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição que, relativamente à sentença condenatória, se traduz na necessidade de assegurar ao arguido a faculdade de pedir a sua reapreciação, quer quanto à matéria de direito, como à matéria de facto, por um tribunal superior.

Mas, o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efectuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, com direito à produção de novos meios de prova, designadamente os supervenientes, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando, face às provas produzidas na 1.ª instância, conforme já se decidiu no Acórdão 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt ), onde se lê:

"Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1.ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de "duplo julgamento". A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução...".

Daí que o direito do arguido recorrer da sentença condenatória, na parte em que decidiu a matéria de facto, possa não contemplar a possibilidade do tribunal de recurso apreciar novas provas que o arguido apresente em sede de recurso, mesmo que estas sejam supervenientes. É que tal fundamento de recurso já não se situa em sede de apreciação da correcção do julgamento da instância inferior que não teve a possibilidade de ponderar tais provas, visando antes a realização de um novo julgamento pelo tribunal de 2.ª instância, que também valore a prova apresentada já em sede de recurso.

Isto não quer dizer que a existência de novas provas não deva ser passível de utilização pelo arguido, de forma a que sejam assegurados, na plenitude, os seus direitos de defesa. Mas o mecanismo processual que possibilite essa utilização não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de segunda instância, que está a decidir sobre a procedência de um recurso ordinário, que analise e pondere, em primeira mão, essas provas supervenientes ao julgamento em primeira instância.

O nosso sistema processual penal prevê desde logo um expediente, no artigo 449.º do Código de Processo Penal, que, no seu n.º 1, d), admite a revisão da sentença transitada em julgado quando "se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si, ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação".

(…)

Todavia, há que ter presente que a possibilidade de novos meios de prova serem valorados pelo tribunal de recurso, o que, não se esqueça, poderia também acontecer por iniciativa da acusação, introduziria sérias perturbações e dilações à tramitação da instância recursória, pondo em causa a estabilidade e celeridade da sua tramitação, apresentando-se como uma solução dificilmente praticável.

Daí que, existindo interesses e valores dignos de tutela que justificam que se fixe um marco temporal na tramitação processual para a apresentação de provas, que exclua a fase de processamento do recurso ordinário, o legislador tenha liberdade para compatibilizar os diferentes valores em jogo, impedindo a produção de novas provas em sede de recurso ordinário, mesmo que supervenientes, mas assegurando, designadamente, que as mesmas poderão fundamentar a dedução imediata de um recurso de revisão, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, com uma tramitação caracterizada pela celeridade e pela possibilidade de ser ordenada a suspensão do cumprimento da pena entretanto iniciada, como sucede com as regras do recurso extraordinário de revisão acima descritas. É uma solução de distribuição dos custos do sacrifício de valores que respeita as exigências de proporcionalidade e que preserva o conteúdo essencial daqueles.

Além disso, não está excluída também a possibilidade de documentos supervenientes, com determinadas características, poderem excepcionalmente relevar em mecanismos como o reenvio para novo julgamento ou de renovação da prova, em caso de detecção dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, possibilidade que a decisão recorrida não deixa de encarar ao considerar que os documentos em causa não eram susceptíveis de "incontestavelmente influírem na decisão da causa".

Em suma, existindo no regime processual penal, quanto à matéria em questão, outros mecanismos, cujo regime confere ao arguido uma suficiente exequibilidade do seu direito de defesa perante a superveniência de provas, e não tendo a interpretação sindicada afastado o exercício desses meios de reacção, denota-se que tal interpretação não coloca em causa a garantia do direito de defesa do arguido, designadamente do direito ao recurso de uma sentença condenatória, nem do direito a um processo equitativo

Assim sendo, e pelas razões expostas, impõe-se concluir que a interpretação normativa objecto de fiscalização não viola o disposto nos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, da Constituição, nem se vislumbra que ofenda qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que o recurso apresentado pelo arguido… não merece provimento nesta parte.”.»

Dúvidas não existem, pois, de que não é admissível a requerida junção de documento.

Mas, mesmo que se entendesse que tal documento deveria ser apreciado nesta fase por se referir à situação de doença do arguido - o que não se admite, mas se considera por mera hipótese de raciocínio - certo é que o seu teor não permite concluir com segurança sobre o concreto agravamento das consequências decorrentes da doença do arguido, já que tal documento não atesta a percepção de quem o subscreve, aludindo essencialmente às percepções que outros clínicos, não concretamente identificados, terão retirado da observação do arguido.

As limitações nele referidas não foram, ao que do documento consta, objecto de observação directa do médico neurologista que o subscreve.

Não obstante, mesmo admitindo que se verificam os agravamentos referidos naquele documento, a maioria deles relativos a aspectos físicos e motores, certo é que nele não se alude a qualquer incapacidade do arguido de entender e querer, isto é, a qualquer situação que pudesse ser equiparada à situação de inimputabilidade superveniente à data da prática dos factos.

A informação clínica em causa, bem como outra que venha a retratar a evolução da situação clínica do arguido, será relevante, como dissemos, para efeitos de cumprimento da pena, designadamente para aplicação dos institutos legalmente previstos para situações de doença, incapacidade ou idade avançada, vertidos no Código de Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, como é o previsto no seu artºº 216.º e ss., relativo à modificação da execução da pena de prisão de reclusos portadores de doença grave, evolutiva e irreversível ou de deficiência grave e permanente ou de idade avançada.

Consequentemente, não retratando a informação clínica de 01.05.2023 qualquer nova situação que não tivesse sido valorada na decisão recorrida, mas apenas o agravamento das consequências de doença que já foi valorada para efeito de determinação da medida da pena, também por força de tal documento não se impõe a realização de qualquer perícia médica nestes autos, relevando o referido agravamento para efeitos do cumprimento da pena aplicada nestes autos, a considerar, por isso, pelo Tribunal de Execução das Penas.

Impõe-se, pois, concluir pela inadmissibilidade da junção do aludido documento nesta fase, muito embora o mesmo possa vir a ser relevante, nos termos referidos, já na fase de cumprimento da pena de prisão aplicada nos presentes autos.

Por todos os fundamentos expostos, impõe-se julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA do acórdão final.

(…)]


2.3.4.2 -Vejamos então:


Desde logo, apreende-se indubitavelmente, da leitura do Acórdão recorrido, uma abundante conformação, em detalhe e muito bem fundamentada, com a posição da 1ª instância, fixando definitivamente a questão dos contornos e o nível de extensão, tidos como comprovados quanto à doença do arguido e à sua capacidade de avaliação dos efeitos de uma pena.


O citado artº 106.° do CP (Anomalia psíquica posterior sem perigosidade) dispõe que:


(…) (vide texto já transcrito anteriormente).


O texto actual desta disposição penal corresponde ao do DL n.° 48/95, de 15 de Março, ex artº 105.° do texto de 1982, sem alterações relevantes. A fonte da disposição é o artigo 125.°, § 2.°, do projecto de revisão do CP de EDUARDO CORREIA.


Como sucedia com o artº 105.° do texto de 1982, permitia-se que se suspendesse a execução da pena de prisão «até cessar o estado que fundamentou a suspensão».


Importando pois, que a anomalia psíquica post delictum não gerasse perigosidade criminal do agente, nem a sua inaptidão ao regime dos estabelecimentos comuns.


Uma vez que não haja perigosidade, nem tão-pouco a continuação do cumprimento da pena, se já iniciada, dado que esta perde o seu sentido ressocializador, tornando-se injustificável o internamento em estabelecimento de inimputáveis. Por isso se previu nesta norma a possibilidade de suspensão da execução da pena, até que cesse o estado de anomalia psíquica que lhe serve de base, findo o qual ocorrerá o reexame da situação para se saber qual a solução mais indicada de entre as dos n.ºs 2, 3 e 4 do artº 99.° (eventual liberdade condicional e substituição por trabalho a favor da comuni­dade).


Na Comissão Revisora do Projecto de 1991 quanto à anomalia psíquica posterior (…) gerando uma inadaptação ao regime prisional comum, foi assinalada a tradição penal portuguesa, que tem reclamado este regime especial, de suspensão da execução da pena, para ter lugar o tratamento, também no caso do artigo em referência.


A ideia base subjacente a este regime é a de que há aqui uma espécie de inca­pacidade para a percepção do sentido da pena que o indivíduo tem de cumprir. Porquanto não tem, então, sentido sujeitar um indivíduo ao cumprimento de uma pena de prisão, o melhor caminho é proceder ao seu tratamento, suspendendo-se a exe­cução da pena, com oportuno cumprimento do que dela restar quando tiver cessado o estado de anomalia psíquica, valendo também aqui todas as razões de vicariato-


Foi ainda referido na mesma Comissão Revisora que a anomalia psíquica deve ser aquela que impede a execução de uma pena com sentido para o delinquente. (sublinhado nosso).


Cabe ao Estado, interessado em que a execução da pena atinja as suas finalidades, ocupar-se do tra­tamento da anomalia e, durante o mesmo, o mesmo Estado já está a ocupar-se do delinquente, o que, em consequência, legitima que esse período deva ser imputado na pena. (n.° 3) (Acta n.° 13, 143).- [por todos, CP anotado ( arº 106º) de Simas Santos e Leal Henriques- 4ª Ed-II Vol.]


En passant, não cremos que se deva concluir do texto da norma que a competência para a suspensão da execução da pena deva ser aferida apenas ou necessariamente apenas pelo tribunal de execução de penas mas, antes, nada impede dos textos legais vigentes que a sua avaliação seja ou possa ser efectuada desde o momento em que seja possível e justificado, o que poderá ocorrer bem antes do início de execução da pena.


Se, até ao início da execução da pena e desde que a anomalia psíquica superveniente ao crime seja detectada, havendo elementos suficientes que a comprovem no sentido em que a mesma determine e justifique uma suspensão, ela pode e deve ser aplicada mesmo antes da respectiva execução.


Vejamos a aplicação desta abordagem ao presente caso.


Sabemos que a doença diagnosticada ao arguido (Doença de Alzheimer está inscrita na rúbrica F00.0 da 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial de Saúde) é evolutiva e comporta uma degradação progressiva, também das faculdades mentais e de percepção de quem dela padeça.


Pode configurar-se uma elevada probabilidade de um impacto significativo e, até, irreversível, da doença de Alzheimer na vida do paciente, que permita até concluir que a mesma possa gerar uma anomalia psíquica geradora de incapacidade do doente que seja condenado numa pena de prisão percepcionar o sentido do cumprimento da mesma (no todo ou em parte).


Numa breve aproximação à doença de Alzheimer, tipologia e características, citando obras de referência15, nomeadamente in Doença de Alzheimer: perspetivas de tratamento, Pereira, Pedro Miguel Cabral de Melo, pub. ( 2021) em https://ubibliorum.ubi.pt/handle/10400.6/1484 e https://www.rcaap.pt/results.jsp lemos que:

[ “(…)

A Doença de Alzheimer foi descrita pela primeira vez por Alois Alzheimer há mais de cem anos [1]. É a demência mais comum e afeta cerca de 75% das mais de 35 milhões de pessoas no mundo com demência [2]. É uma doença neurodegenerativa progressiva que apresenta duas lesões cardinais características: placas senis e emaranhados neurofibrilares. Estas alterações neuropatológicas podem ser provocadas por alterações genéticas e ambientais [3]. Durante a década passada, muitas hipóteses foram propostas para a patogénese da Doença de Alzheimer. Aquelas que foram globalmente aceites foram a teoria da cascata de β-amilóide e a teoria da hiperfosforilação da proteína tau [4]. Clinicamente, a Doença de Alzheimer é caracterizada por perda progressiva de memória e orientação e outros défices cognitivos que incluem afetação do julgamento e da tomada de decisões, apraxia e perturbações da linguagem [5] (sublinhado nosso). Durante anos, foram realizados vários ensaios clínicos com o objetivo de curar a doença e diminuir a sua progressão; contudo, ainda não existem terapias efetivas.

(…)

Após investigação extensa e detalhada, foi possível concluir que há diversos tratamentos em estudo com o objetivo de curar a doença e desacelerar a sua progressão; no entanto, nenhum se revelou eficaz. Entre aqueles é de salientar os compostos que têm como alvo as vias de amilóide e tau, a neuroinflamação e o dano oxidativo. O fármaco que apresentou melhores resultados clínicos (melhoria na função cognitiva de pacientes com Doença de Alzheimer moderada a severa) foi o Etanarcept, um inibidor do fator de necrose tumoral. Num futuro próximo esperam-se os resultados dos ensaios clínicos que ainda estão a decorrer.]- ( as notas no texto estão remetidas para as obras constantes do final do mesmo)

2.3.4.3 - Ora, olhando ainda mais de perto o caso concreto, recordemos que ficou provado que:

[“(…)292. Ao arguido foi diagnosticada a doença de Alzheimer, conforme declaração médica do Senhor Doutor VVVVV de 12/10/2021 (cfr., documento junto a 14/10/2021, referência 30535752).

Após a prolação da decisão de 1.ª Instância e também em fase de recurso, foram juntos ao processo elementos que indicavam que, enquanto doença degenerativa e progressiva, a Doença de Alzheimer de que o ora Arguido padece lhe provocou um agravamento do seu estado clínico, incluindo agravamento de […], conforme relatório médico, de 1 de Maio de 2023, junto pelo Arguido em 2 de Maio de 2023.


O facto provado remete para o teor da declaração médica de 12 de Outubro de 2021, da qual consta o que já antes se transcreveu.


As instâncias entenderam, em dupla conforme (de facto e direito), apesar da doença diagnosticada ser já uma certeza em si, não haver porém elementos claros determinantes de uma suspensão da execução da pena porquanto os níveis (sinais) de agravamento não impunham ainda a confirmação dos pressupostos de ausência significativa ou total de capacidade de compreensão pelo arguido do sentido e finalidade da pena aplicada visando a intervenção do regime do artº 106º do CP.


Do mesmo modo se concluíu pelo carácter (ainda) não decisivo da documentação junta em recurso, mesmo que fosse de admitir a mesma.


O Tribunal da Relação, apesar de não a admitir em via de recurso, emitiu uma opinião sobre a mesma e que, por cautela, ainda que o pudesse ser (admitida) para efeito da determinação de uma suspensão nos termos do artº 106º, considerou que, apesar dela, não se alcançava uma certeza sobre o grau de agravamento, acabando de certa forma por remeter a questão, tendencialmente, para o Tribunal de Execução de Penas.


Tal documentação também a consideramos, pelo seu conteúdo, até à data em que foi apresentada nos autos, insuficiente, para determinar o grau de incapacidade ou anomalia superveniente do arguido. Nada nos autos nos diz nem comprova com certeza e clareza que o mesmo está já de tal modo afectado pela doença de Alzheimer que justifique, mesmo na presente fase, uma declaração de suspensão.


Até demonstração em contrário, a doença pode ser tratada em ambiente prisional consoante o seu grau e estado de evolução. Porém, se a incapacidade de compreensão, entendimento e adaptação ao sentido e finalidade da pena fosse já de tal modo grave que não colocasse dúvidas relevantes, também não vemos impossibilidade legal directa e decisiva no sentido de declaração suspensiva nos termos do artº 106º do CP mesmo antes da fase de execução propriamente dita.


Numa situação clínica em que seja evidente, indubitável, seguro e convincente a inapropriedade de aplicação da pena de prisão, face à doença indicada (ou outro tipo qualquer de anomalia psíquica superveniente ao crime) seria de todo injustificável e desumano sujeitar o condenado à execução da pena ou mesmo a iniciá-la para depois a suspender.


Tal avaliação, tendo em conta os sinais dos autos e o tempo ou delonga ainda previsível de aplicação bem como, dadas ainda as características evolutivas da doença e a sua maior ou menor lentificação, terão ou poderão ser determinadas com mais exactidão e segurança médico-científica à data mais actual possível, próxima daquela execução, para a qual a instância de condenação deverá ser proactiva e sensível.


Dado porém, que nos cenários possíveis, importará sempre concluir que estamos indiscutivelmente perante uma doença com elevada expectativa de sinais de agravamento e degenerescência física e mental e que, a existir anomalia psíquica excludente da capacidade de o arguido entender e compreender o sentido da pena, aquela bem pode vir a verificar-se até à data de execução concreta da mesma, deve ser o Tribunal de condenação e não o TEP a accionar o artº 106º do CP.


O TEP apenas actuaria se o arguido fosse primeiramente colocado no EP como recluso, situação essa que seria inaceitável humanamente e até nem caberia no seu âmbito de competências definidas no artº 138º nº 4 do CEPMPL (Lei 115/23009) e, nomeadamente, nas alineas j) e o) desse normativo, de onde resulta que a sua intervenção suporia sempre a concreta reclusão.


Ora, a lei não exclui directa ou indirectamente a competência do tribunal de condenação para aferição dos pressupostos de aplicação do artº 106º do CP até à data da detenção para cumprimento de pena, se for o caso de verificação do estado de saúde, o qual pode e deve ser desde logo aferido para aqueles fins, determinando se a pena deve ou não passar à execução num EP já sob a alçada do TEP .


Trata-se de um cenário perfeitamente lógico e provável devido precisamente à natureza evolutiva da doença.


Serve isto para dizer que é de admitir como sendo de elevada probabilidade que o arguido, face ao tempo já decorrido desde a condenação inicial e até àquele momento executivo -e que se prevê ainda possa sofrer algumas delongas processuais-, seja ou possa estar afectado de anomalia psíquica tal, decorrente nomeadamente da evolução da doença de Alzheimer de que comprovadamente sofre, que o coloque na situação precisamente prevista pelo artº 106º do CP.


Que sentido faria recluí-lo no EP para avaliação dessa situação se verificável antes da detenção? Nenhum!


Consequentemente, neste cenário, pode até vir a existir entretanto uma declaração ou uma avaliação médica válida que evidencie ou demonstre com clareza uma anomalia psíquica com carácter de não perigosidade geradora de incapacidade de compreensão do sentido e execução da pena por parte do arguido. Apresentada que seja, nomeadamente pela defesa ou por iniciativa do próprio tribunal de condenação, com base em sinais ou dados médicos inquestionáveis da verificação dessa elevada probabilidade, não competirá ao TEP mas, ainda, àquele Tribunal, mesmo após o trânsito em julgado, mas sempre antes da execução efectiva da pena, fazer a aferição da aplicabilidade (ou não) do artº106º do CP.


Posto isto, o recurso é julgado improcedente, sem prejuízo porém dessa verificação cautelar avaliativa até ao momento da decisão de detenção do arguido.


2.3.4.4- Sem prejuízo, porém, do plano abordado no conhecimento e decisão em recurso neste STJ e que antecede, considerando as questões em recurso formuladas e a sua sujeição em função dos limites da dupla conformidade em sede de facto e de direito, e da avaliação da situação de facto/clínica do arguido, naturalmente que o pedido de reenvio prejudicial ao TJUE (e que pressuporia a intenção jurisdicional definitiva (que não existe ainda) de não suspender a execução da pena caso se detectasse, que não detectou, doença já gravemente incapacitante e com violação de normas de Direito Europeu) , e a suspensão ao abrigo do artº 50º do CPP, fica prejudicado e é improcedente, respectivamente.


Salientaremos, ainda, de todo o modo e quanto ao pedido de reenvio prejudicial, a sua inoportunidade, inadequação e desnecessidade, tanto mais que o Tribunal de Justiça da UE não interpreta decisões judiciais nacionais, vg. atinentes a admissões ou rejeições de prova pericial mas normas de ou em confronto com direito europeu originário e/ ou derivado.


As preocupações jurisdicionais do TJUE têm efectivamente incidido em questões de (des)respeito por direitos fundamentais quando estejam em causa também graves situações de doença em ambiente prisional e disponibilização e tratamentos médicos adequados.


A este propósito, se bem que num plano diferente do caso concreto mas que reflecte aquelas preocupações no plano, nomeadamente, da cooperação penal internacional e seguindo de perto a reflexão retirada de Marina Cedeño Hernán [in La protección de los derechos y garantías fundamentales como límite a la cooperación judicial en el sistema de la orden europea de detención y entrega, in Diario LA LEY, Nº 10425, Enero de 2024, Editorial LA LEY ], podemos salientar, fundamentalmente, que (em tradução livre do texto original em castelhano):

[“(…)

Contudo, o Tribunal do Luxemburgo admitiu que, para além das razões específicas de recusa previstos nos artigos 3.º a 5.º da Decisão-Quadro 2002/584 (OEE/MDE), podem intervir os princípios da reconhecimento e confiança mútuos no recusar a execução de um mandado de detenção europeu em circunstâncias excepcionais de especial gravidade. Entre estas circunstâncias excepcionais estão aquelas que implicam um risco de que a pessoa a entregar ser submetida a tratamento desumano ou degradante, proibido no artigo 4º da CDFUE, quer pelo estado dos centros penitenciários ou pela falta de tratamento adequado em casos de doenças graves.

Outro cuidado que visa prevenir possíveis violações de direitos ou garantias fundamentais no Estado de emissão da ordem está incluída na décima terceira seção do Preâmbulo, segundo a qual "ninguém pode ser devolvido, expulso ou extraditado para um Estado onde haja sério risco de ser sujeito a punição de morte, tortura ou outras penas ou tratamentos desumanos ou degradantes" a secção dez do Preâmbulo refere-se ao procedimento institucional de reacção contra violações graves dos princípios fundamentais da União num Estado-Membro e prevê a suspensão através deste canal do mecanismo europeu de ordem de detenção e entrega.

Mais especificamente, a sua aplicação poderá ser suspensa em caso de “violação grave e persistente” dos princípios previstos no artigo 6.1 do Tratado da União Europeia, desde que seja verificado pelo Conselho através do procedimento previsto no artigo 7º do mesmo Tratado. Os valores democráticos e a obrigação de respeitar os direitos fundamentais, garantidos no da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e como resultam de tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, proclamado no artigo 6.º do TUE e reiterado tanto no Preâmbulo como no artigo 1.3 da Decisão-Quadro 2002/584, não pode tornar-se letra morta ao executar um Mandado de detenção europeu. Nesse sentido, a proibição de punição ou tratamento desumano ou degradante, estabelecido no artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeu, tem um carácter absoluto, pois é indissociável da dignidade humana.

Consequentemente, o TJUE de 18 de abril de 2023, EDL no caso C-699/21 16 referiu:

“o que acontecerá quando a entrega da pessoa implicar risco de morte iminente ou perigo real de sofrer uma deterioração grave, rápida e irreversível do seu estado de saúde ou uma redução significativa da esperança de vida. quando a autoridade judiciária que executa a euro ordem tem elementos objectivos dos quais se podem inferir razões sérias para acreditar que a pessoa alegada, atribuída a uma doença grave, pode correr um perigo real de redução da sua esperança de vida ou uma deterioração rápida, grave e irreversível do seu estado de saúde (…), será obrigada a suspender a entrega de acordo com o artigo 23, seção 4, da Decisão Quadro 2002/584. Não está claro quais são os elementos objetivos que permitem ao tribunal aferir se a execução da ordem de prisão e entrega põe em causa a eficácia dos tratamentos que serão fornecidos ao reclamado a respeito de suas patologias, pois a única coisa a que se refere é alguns relatórios médicos e uma opinião especializada sobre a doença. Na ausência de outros dados, a confiança e (…) o reconhecimento mútuo apoiariam a presunção de que os tratamentos oferecidos serão os adequados.

(…)”]

Por outro lado, no tocante à iniciativa e oportunidade do pedido de reenvio, caberá salientar, em geral, que se considera este processo útil quando, num caso apresentado perante um órgão jurisdicional nacional, for suscitada uma questão de interpretação nova e que tenha um interesse geral para a aplicação uniforme do direito da UE ou quando a jurisprudência existente não dê o necessário esclarecimento para lidar com uma nova situação jurídica.


Essencialmente, um reenvio deve ter por objeto a interpretação ou a validade do direito da UE, e não das regras de direito nacional ou questões de facto suscitadas no litígio no processo principal.


O TJUE só se pode pronunciar sobre o pedido de decisão prejudicial se o direito da UE for aplicável ao processo principal.


O próprio TJUE não aplica o direito da UE a um litígio interposto por um órgão jurisdicional de reenvio, uma vez que a sua função consiste em ajudar a encontrar uma solução para o mesmo; a função do órgão jurisdicional nacional consiste em tirar conclusões sobre a decisão do TJUE.


As decisões prejudiciais são vinculativas tanto para o órgão jurisdicional de reenvio como para todos os órgãos jurisdicionais em Estado-Membros da UE.


Deve proceder-se ao reenvio a partir do momento em que se torna claro que uma decisão do TJUE é necessária para que um órgão jurisdicional nacional profira a sua decisão e quando este esteja em condições de definir, com precisão suficiente, o quadro jurídico e factual do processo, bem como as questões jurídicas que este suscita.17


Assim, na explicação dos Procedimentos de Reenvio Prejudicial ao TJUE, veja-se, para maior compleição e entendimento, a excelente descrição, que aqui transcrevemos, a que aderimos, feita por PACHECO, M. F. C. T. M. (2017). in "O Reenvio Prejudicial enquanto instrumento de sensibilização dos juízes nacionais no quadro da protecção dos direitos fundamentais". Cadernos de Direito Atual 5 (2017):349/363. - Edição n.º 5(2017) [as notas de rodapé indicadas no texto constam da publicação original, para onde remetemos por facilidade de leitura]:

[“(…)

O TJUE – na sua missão fundamental de garantir o respeito pelo DUE – (…) competente para invalidar os próprios actos da União que violassem os direitos fundamentais e a legalidade da União. Na verdade, o TJUE, no quadro deste mecanismo, tem competência para verificar a validade de tais actos face ao DUE (originário e derivado), para interpretar o tratado e os actos adoptados pelas instituições e, ainda, para apreciar as medidas estaduais de execução dos actos de direito derivado. Deste modo, o TJUE, actua como um verdadeiro tribunal constitucional.

É neste contexto que o mecanismo do reenvio (artº 267.º TFUE) se evidencia como instrumento ideal[1] para garantir a uniformidade na aplicação deste direito, consubstanciando o mais adequado instrumento de defesa dos direitos dos particulares, bem como a ferramenta melhor adaptada à garantia da efectividade e implementação do DUE.

Não tendo o TJUE sido concebido como uma instância hierarquicamente superior aos tribunais nacionais este mecanismo permitiu a colaboração judicial entre ambos.

Na verdade, trata-se de um processo entre juízes e não entre partes (juiz nacional coloca a questão ao TJ, este responde-lhe, e aquele aplica a decisão prejudicial do TJUE ao caso concreto).

(…)

Graças ao funcionamento deste mecanismo o TJUE tornou-se directamente responsável pelo desenvolvimento do DUE. Trata-se, portanto, do instrumento que mais tem contribuído para a sua elaboração dogmática. Graças a ele é possível afirmar que os tribunais nacionais se têm revelado cada vez mais “europeizados”, vinculados que estão à aplicação de um “direito comum europeu” que nos enlaça.

Assim, qualquer tribunal nacional que tenha dúvidas (sublinhado nosso) relativamente ao DUE aplicável a um caso concreto que lhe tenha sido submetido dispõe da faculdade de as colocar ao TJUE antes de resolver a questão. Se se tratar de um tribunal nacional que decida em última instância, aquela faculdade converte-se em obrigação. Como veremos são estes os seus traços essenciais do mecanismo previsto no artº 267.º do TFUE.

Assistindo aos indivíduos o direito de invocar uma disposição de direito da União que goze dos predicados da aplicabilidade directa[2], ou do efeito directo[3], o juíz nacional tem de dar prevalência a tal disposição. Nesse exercício, pode aquele juiz ter dúvidas sobre a sua interpretação ou validade e, nesse caso, para evitar divergências jurisprudenciais entre os Estados-membros, deve colocar essa questão interpretativa ou de validade ao TJUE.

Existem, portanto, duas modalidades de reenvio quanto ao objecto: o reenvio para apreciação de validade dos actos institucionais e o reenvio de interpretação, que inclui actos institucionais, tratados e actos equivalentes – nomeadamente acordos internacionais em que a União é parte, princípios gerais de direito e os actos jurisdicionais anteriores.

O reenvio de interpretação visa indicar o sentido material de uma norma ambígua e determinar o seu sentido e alcance concreto, e o reenvio de apreciação de validade visa verificar a compatibilidade de um acto institucional com o DUE.

Qualquer órgão jurisdicional nacional[4] (origem legal e de jurisdição obrigatória) tem a “faculdade” de suscitar questões prejudiciais ao TJUE, caso considere que uma decisão sobre uma questão prejudicial seja necessária ao julgamento da causa (artº 267.º par. 3 TFUE). (sublinhado nosso)

A questão pode suscitar-se a pedido das partes ou pelo juíz, em qualquer fase do processo, e tem como limite a sua imprescindibilidade para a boa decisão da causa[5], cabendo exclusivamente ao último decidir se a suscitação da questão é ou não necessária para a decisão do litígio e envia-la para o TJUE (as partes nunca podem dirigir-se directamente ao TJUE). Os órgãos jurisdicionais nacionais, cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial, consagrado no seu direito interno, têm, contudo, a “obrigação” de o fazer (artº 267.º, par. 4 TFUE), pois nesta hipótese já não há possibilidade de reapreciação da causa por outro tribunal. Assim não sendo poder-se-ia formar uma jurisprudência nacional contrária ao DUE. Trata-se, portanto, de uma primeira excepção à regra do carácter facultativo do reenvio. O ac. Foto-Frost [6], reafirmado pelo ac. Zuckerfabrik[7], veio estabelecer uma segunda excepção àquela a faculdade, esclarecendo qual o “âmbito da obrigação de suscitação” da questão de apreciação de validade. Apesar do artº 267.º TFUE não distinguir, para efeitos da obrigatoriedade de reenvio, uma questão de interpretação de uma questão de validade, quando os órgãos jurisdicionais nacionais (de qualquer instância) tiverem sérias dúvidas sobre a validade de uma norma europeia aplicável no caso concreto e se tenderem para a sua invalidade, são obrigados a reenviar. (sublinhado nosso)

Já se considerarem o acto válido estão libertos de tal obrigação. Nas palavras do Tribunal «confrontado com uma questão de apreciação de validade de um acto comunitário, o juiz nacional (…) pode resolvê-la ele próprio, dispensando-se de a submeter ao TJ, se considerar que deve julgar válido o acto impugnado; mas, (…) é obrigado a proceder ao reenvio (o sublinhado é nosso) sempre que, em seu entender, a resolução da questão possa implicar a declaração da invalidade do acto em causa» (n.ºs 14 e 15)[8].

! Nos termos do 3.º par. do artº 267.º, sempre que uma questão de interpretação ou de validade seja suscitada perante um tribunal nacional cujas decisões sejam insusceptíveis de recurso ordinário, esse tribunal é, portanto, obrigado a reenviar. Esta obrigação não é absoluta, pois se o tribunal nacional tender para a suspeita da invalidade da norma nunca há limite a respeitar.

(…) Três situações em que o TJUE tem admitido um “desvio a tal obrigatoriedade de suscitação”, consagrados no ac. Cilfit[9] e confirmados pelo ac. Intermodal Transports[10]: a primeira é se a questão em causa não for pertinente e séria para a boa decisão da causa; a segunda é se já tiver havido pronúncia do TJUE em questão similar, ou seja, sempre que a concreta norma de DUE já tenha sido objecto de interpretação por parte do TJUE. Isto porque, gozando os acórdãos do TJUE de eficácia erga omnes, a decisão do TJUE torna-se vinculativa para o tribunal a quo e para todos os outros - inferiores e superiores – de todos os Estados que decidam em questões semelhantes. Ou seja, estes acórdãos não produzem efeitos apenas nos processos a que se referem, gozando de uma força de “precedente de facto” e do princípio da “autoridade da coisa interpretada” que justifica esta segunda dispensa

a terceira situação é quando se trata de norma de interpretação evidente, não deixando espaço a dúvida razoável, podendo a resposta solicitada ser claramente deduzida de jurisprudência anterior, circunstância a que se aplica o aforismo jurídico in claris non fit interpretatio. Esta terceira situação deu lugar à construção da “teoria do Acto Claro”, de novo sem prejuízo de em caso de permanência de qualquer dúvida acerca de tal clareza, o juiz dever ordenar o reenvio.

Segundo RASMUSSEN[11], esta jurisprudência (Cilfit) baseia-se numa engenhosa estratégia de “give and take”: após consentir uma ampla excepção à obrigatoriedade de reenvio, o TJUE formulou limites à “teoria do Acto Claro”, para incentivar os órgãos jurisdicionais a utilizarem o “mecanismo de cooperação judicial” (…) e, apenas o recusarem nas matérias inequivocamente evidentes, reduzindo a diversidade interpretativa do DUE. Uma vez existindo jurisprudência anterior em sentido claro, em vastos domínios do DUE, os juízes nacionais não ficam obrigados a dar cumprimento ao pedido de suscitação do envio da questão.”]

Ora, perante o que se acabou de citar e tendo em conta as matérias em causa no caso concreto, é bem de ver que o pedido de reenvio prejudicial ao TJUE suscitado não seria necessário nem oportuno e não resolveria sequer questão que nos colocasse sérias dúvidas de aplicação normativa.


A situação clínica do arguido (segundo a matéria de facto fixada já) não está ainda suficientemente demonstrada quanto a um agravamento significativo das suas capacidades de compreensão e é para nós claro que as instâncias definiram em sede de facto, com livre mas fundamentada determinação dos meios de exame convenientes e justificados, o limite que foi possível e justificável detectar quanto ao alegado agravamento da doença. A aplicação da norma do artº 106º do CP para eventual suspensão supõe e suporia dados clínicos de facto demonstrativos do real agravamento cabível numa possível aplicação do artº 106º do CP que afinal não foram demonstrados e, caso o estivessem, dela não resultaria nenhuma dúvida interpretativa ou confronto com qualquer disposição de direito comunitário europeu que salvaguarde e/ou garanta direitos fundamentais.


O reenvio solicitado tão pouco incidiria sobre a apreciação de validade dos actos institucionais ou consubstanciaria reenvio de interpretação (como antes se mencionou, que incluiria “actos institucionais, tratados e actos equivalentes – nomeadamente acordos internacionais” em que a União é parte, princípios gerais de direito e os actos jurisdicionais anteriores, o que não se coloca de modo conflituante no caso dos autos.


O suscitar da questão prejudicial ao TJUE não assentou sobre uma decisão nem existem dúvidas sobre uma questão necessária ao julgamento da causa que se caracterize como prejudicial.


O facto de alguém sofrer de doença de Alzheimer, só por si, não justifica aplicação do mecanismo de suspensão previsto no artº 106º do CP e esta norma, quando comprovada a doença num estado tal que importe uma anomalia psíquica de tal modo incapacitante da compreensão do sentido e finalidade da execução da pena não importa dúvidas algumas (v.g. interpretativas) em como possa ou deva ser aplicada, estando claramente em consonância com os elevados padrões de respeito, vg, das normas internacionais e europeias em sede de salvaguarda de direitos humanos fundamentais contidos nos Tratados e Convenções Internacionais.


Em suma, consideramos injustificado o pedido de reenvio formulado.


III- DECISÃO


3.1 - Pelo exposto, julga-se o recurso do arguido improcedente, sem prejuízo de aferição cautelar superveniente pelo tribunal de condenação como anteriormente referido em 2.3.4.3, até à fase de execução da pena aplicada visando actualizadamente a aferição do estado e gravidade da evolução da doença e a capacidade de compreensão pelo mesmo do sentido e finalidade da pena, para eventual aplicação (ou não) da suspensão da sua execução ao abrigo do artº 106º do CP.


3.2 - Taxa de justiça criminal a cargo do recorrente e que se fixa em 8 UCs (artigos 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26-02, e Tabela III anexa)


Taxa de justiça em 3 UC pelo incidente de junção documental superveniente a seu cargo também.


Lisboa, 29 de Fevereiro de 2024


Os Juízes Conselheiros


(texto elaborado em suporte informático , revisto e rubricado pelo relator – (artº 94º do CPP)





Agostinho Torres- (Relator)


Vasques Osório (Adjunto)


Jorge Gonçalves (Ajunto)


Helena Moniz (Presidente)





_____________________________________________

1. Neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.↩︎

2. Manifestando embora algumas dúvidas sobre a sua constitucionalidade, vide com interesse o Ac. TRL de 11-01-2011 : (Proc 629/04.8PASXL.L1-5- : “ (…) não restringe intoleravelmente ou implica um encurtamento inadmissível das garantias de defesa do arguido, nomeadamente o direito ao recurso, e por isso não pode considerar-se inconstitucional. De duvidosa constitucionalidade é a primeira parte do n.º4 do mesmo artigo 405.º do Cód. Proc. Penal, já que, ao atribuir carácter definitivo à decisão do presidente do tribunal superior que confirma o despacho objecto da reclamação (se bem que dela possa ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional), impede que o recurso chegue ao seu destinatário natural, que é o tribunal de recurso ( AC TRP citado);

Defender que sim por a decisão do presidente do tribunal superior que, deferindo a reclamação, manda admitir o recurso ser uma decisão proferida no exercício de funções jurisdicionais e dirime um conflito, pelo que, também ela, devia ser definitiva essa posição é insustentável.

Desde logo porque, a vingar esse entendimento, estar-se-ia a impor ao tribunal de recurso uma decisão (com a qual até pode estar em desacordo, como é caso) e, então sim, poder-se-ia falar em violação do aludido princípio constitucional do juiz legal.

Por outro lado, não se pode dizer que a decisão de uma reclamação de um despacho de não admissão de um recurso (que não admite contraditório, pois aos demais sujeitos processuais não é concedido o direito de responder à reclamação) dirima um conflito.

A constitucionalidade da primeira parte do n.º 4 do artigo 405.º é que pode ser questionada, já que, ao atribuir carácter definitivo à decisão do presidente do tribunal superior Se bem que dela possa ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional. que confirma o despacho objecto da reclamação impede que o recurso chegue ao seu destinatário natural, que é o tribunal de recurso.

É evidente que a situação, tal como hoje se nos apresenta, podendo dar lugar a decisões contraditórias do mesmo tribunal (embora de diferentes órgãos) sobre a mesma questão, não é satisfatória. Mas o que está mal é a lei, o que se impõe é uma alteração legal, de forma que deixe de ser o presidente do tribunal superior a decidir a reclamação e passe a ser o relator a ter essa competência, com possibilidade de reclamação para a conferência.

É essa a solução que, actualmente, o Código de Processo Civil (art.º 688.º) consagra e é, sem dúvida, a solução mais lógica e coerente. (…)”

Vide ainda, com interesse a (A. Gama) in www.dgsi.pt: “(…) porque não prevista, pois a decisão proferida no apenso de reclamação, contra despacho que não admite o recurso, sendo uma decisão singular, de uma só pessoa, não é “decisão sumária” para o efeito do art.º 417º n.º7 e 419º n.º3 al. a) do Código de Processo Penal, nem objecto de reclamação para a conferência, via aplicação subsidiária do CPC, pois o legislador gizou no Código de Processo Penal de modo completo o regime legal aplicável, nem pode ser objecto de recurso ou reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça, porque também não previstos, sendo essa limitação legal conforme a Constituição, como já decidiu o TC nos acórdãos n.ºs 260/2005 e 351/2007..↩︎

3. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo: Lisboa, 1994, p. 359↩︎

4. Entre a variada jurisprudência ver ainda recentemente, os acórdãos do STJ de 24.11.2022, relatado por Helena Moniz e de 30.11.2022, relatado por Lopes da Mota. Como se assinala neste último citado acórdão “Em jurisprudência firme, tem o Tribunal Constitucional sublinhado que o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição «não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição», isto é, de «um duplo grau de recurso», «em relação a quaisquer decisões condenatórias» (cfr. por exemplo, os acórdãos 64/2006, 659/2011 e 290/2014 do TC; assim, nomeadamente, os acórdãos de 9.10.2019 cit., de 14.03.2018, ECLI:PT:STJ:2018:22.08. 3JALRA.E1.S1.48 e de 12.12.2018, Proc. 211/13.9GBASL.E1.S1, www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/06/criminal_ sumarios _ 2018.pdf, bem como o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2013, n.ºs 11 e 12).”↩︎

5. Ver Ac. TC (Plenário) n.º186/2013, acessível no site do Tribunal Constitucional.↩︎

6. Cf. Figueiredo Dias, obra cit. págs. 282 a 284 e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág. 283↩︎

7. Cf. proc. n.º 900/05.1PRLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.↩︎

8. Cf. “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág.290/2.↩︎

9. Cf. Figueiredo Dias, obra cit., pág. 292.↩︎

10. Cf. “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 16, n.º1, , pág. 155 a 166 e acórdão do STJ, de 09-01-2008, CJSTJ 2008, tomo 1.↩︎

11. In, www.dgsi.pt.↩︎

12. Cf. neste sentido o acórdão do STJ, de 2-6-2004, in CJ, STJ , II , pág. 221.↩︎

13. Cit. Prof Figº Dias, v.g. a pág 72, § 55, in As consequências jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009- Coimbra Edª.↩︎

14. Cfr Ac. do TC de 28 de maio de 2020 in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200289.html?impressao=1

Onde, ao que aqui ao caso mais importa, se escreveu:

[“….) O Tribunal Constitucional já apreciou por diversas vezes a constitucionalidade do artigo 165.º, n.º 1, do CPP à luz das garantias de defesa e do direito ao recurso. Fê-lo nos Acórdãos n.ºs 392/2003, 397/2006 e 90/2013 (todos acessíveis, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), tendo sempre emitido um juízo negativo de inconstitucionalidade.

(…)

11. Esta jurisprudência é inteiramente transponível para o caso dos presentes autos, devendo acrescentar-se que as normas do recurso de revisão de sentença artigos 449.º e ss. do CPP não integram o objeto deste recurso de constitucionalidade.

Acresce que a mesma jurisprudência, no tocante aos citados princípios estruturantes do sistema português de recursos em processo penal, não foi posta em causa no Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de 26 de junho de 2018, Pereira Cruz e outros contra Portugal, Queixas n.ºs 56396/12 e 3 outras (v., em especial, o § 219; a decisão é acessível a partir da ligação https://hudoc.echr.coe.int/fre#{%22itemid%22:[%22001-184454%22]}).

Por outro lado, no caso vertente, devido ao tipo de documentos concretamente em causa, isto é, a aludida circunstância objetiva inerente à natureza e finalidade dos documentos a juntar (cf. supra o n.º 8), nem sequer se justifica questionar a dimensão do processo equitativo previsto no artigo 6.º da CEDH salientada por aquele Tribunal no citado Acórdão. Com efeito, a censura feita no caso Pereira Cruz respeitou à impossibilidade processual de o queixoso fazer apreciar jurisdicionalmente, em sede de recurso da matéria de facto, documentos tendo por objeto declarações feitas já depois da sentença condenatória entrevistas a meios de comunicação social e uma autobiografia que contradiziam diretamente os depoimentos anteriormente realizados pelos mesmos declarantes com referência a factos pelos quais o queixoso foi condenado (v., em especial, os §§ 229 e 230).

In casu, como se explicou anteriormente, os documentos que o recorrente pretendeu juntar aos autos em sede de recurso não são suscetíveis, segundo um juízo de evidência, de constituir prova direta de qualquer facto, limitando-se a valorar segundo juízos técnicos e com referência a um período temporal determinado não coincidente com aquele a que respeitou a apreciação feita pelo tribunal de 1.ª instância parte das situações já anteriormente objeto de perícias ordenadas pelo mesmo tribunal.

(…)Na verdade, são justamente as exigências de celeridade que levam o legislador a estabelecer determinados efeitos cominatórios ou preclusivos no que respeita ao exercício de determinados direitos processuais como seja, no presente caso, o estabelecimento de um limite temporal na tramitação processual para a apresentação de provas , o qual tem em vista também obviar à adoção de comportamentos que acarretem um protelamento indevido do processo. Por isso, não se vê como tal limitação à produção de novas provas em sede de recurso possa afetar a celeridade do processo.

Aliás, em bom rigor, a violação dos princípios da celeridade e economia processual invocada pelo recorrente não é dirigida diretamente à norma efetivamente aplicada pelo tribunal a quo, extraída do artigo 165.º, n.º 1, do CPP, mas sim à alternativa, por aquele proposta, de se lançar mão do «recurso extraordinário de sentença transitada em julgado previsto no art. 449.º n.º 1, do C.P.P.» enquanto mecanismo para apresentar meios de prova supervenientes, quando estes de per si, ou conjugados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. Com efeito, é relativamente a esta solução, na medida em que implica «a obrigatoriedade de se aguardar para um momento posterior ao trânsito em julgado a análise de uma defesa que o arguido podia apresentar antes desse trânsito», que na sua perspetiva, viola os referidos princípios da celeridade e economia processual (cf. conclusões 19.ª e 20.ª das alegações de recurso). Simplesmente, e como mencionado, tal preceito não integra o objeto do presente recurso.

(…)

III. Decisão

Pelo exposto, decide-se:

Não julgar inconstitucional o n.º 1 do artigo 165.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que, em sede de recurso para a relação que abrange a matéria de facto, é extemporânea e como tal inadmissível a junção de documentos considerados pela defesa como essenciais e imprescindíveis para aferir da justeza da condenação que tenham sido produzidos e conhecidos pelo recorrente somente depois da decisão da primeira instância ou após a interposição do recurso, quando tais documentos, objetivamente considerados, comportam apenas uma outra valoração de situações já objeto de perícias ordenadas pelo tribunal de primeira instância;

(…)”]↩︎

15. Cfr https://www.rcaap.pt/ in RCAAP - Repositórios Científicos de Acesso Aberto de Portugal↩︎

16. O caso teve origem e por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pela Corte costituzionale (Tribunal Constitucional, Itália), por Decisão de 18 de novembro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 22 de novembro de 2021, no processo relativo à execução de um mandado de detenção europeu emitido contra E. D. L.↩︎

17. Vide Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais in http://www.cadernosdedereitoactual.es/ojs/index.php/cadernos/article/view/134. e https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A32019H1108%2801%29↩︎