RECURSO PENAL
ACLARAÇÃO
INDEFERIMENTO
Sumário


I - Inexistindo no regime adjetivo penal a previsão de pedidos de aclaração de sentença ou acórdão, temos, porém, o artigo 380.º, n.º1, do CPP, aplicável aos acórdãos proferidos em recurso ex vi do artigo 425.º, n.º4, permitindo que qualquer das partes requeira ao tribunal que proferiu a sentença o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade que ela contenha, e cuja eliminação não importe modificação essencial.

II - Uma decisão é obscura ou ambígua quando for ininteligível, confusa ou de difícil interpretação, de sentido equívoco ou indeterminado. A obscuridade de uma decisão é a imperfeição desta que se traduz na sua ininteligibilidade; a ambiguidade tem lugar quando à decisão, no passo considerado, podem razoavelmente atribuir-se dois ou mais sentidos diferentes, só relevando se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que não seja possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se diz ambíguo.

Texto Integral








RECURSO n.º 234/20.1T9VLG.P1.S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO


1. AA, tendo sido notificado do acórdão deste STJ, de 15.02.2024, que negou provimento ao recurso que havia interposto do acórdão da Relação do Porto, de 13.09.2023, que o condenou, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22.1, na pena de 5 (cinco) anos e 11 meses de prisão, veio requerer a aclaração do acórdão deste Supremo, apresentando as seguintes razões (transcrição):


1. Atendendo à complexidade da causa e ao facto de estar em causa a reclusão de um ser humano importa que o mesmo esteja suficientemente e inequivocamente esclarecido sobre os motivos pelos quais o mesmo irá cumprir pena de prisão.


2. Da leitura da decisão subsistem algumas dúvidas quanto ao sentido da mesma pelo que se impõe que seja devidamente esclarecido, com a indispensável clareza e fundamentação, de facto e de direito, se do texto do Acórdão ora a aclarar se pode retirar e entender que a decisão proferida não colide frontalmente com o disposto no artigo 71.º do CP uma vez que tal decisão suscita dúvidas ao recorrente acerca do iter cognitivo que o tribunal percorreu na decisão de manutenção da pena aplicada.


3. Entendimento jurídico indispensável para se aquilatar da sua submissão aos direitos, liberdades e garantias impostas previstas e positivadas na CRP.


Nestes termos e nos mais de Direito, que V. Exas doutamente suprirão, face ao supra exposto e pelas razões aduzidas se requer que seja aclarada a decisão nos termos acima expostos.


2. Cumprido o contraditório, respondeu o Ministério Público, concluindo que não existe qualquer ambiguidade, ininteligibilidade, confusão, sentido equívoco ou indeterminado que razoavelmente possam ser atribuídos ao acórdão em reclamação.


3. Cumpre decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO


1. Inexistindo no regime adjetivo penal a previsão de pedidos de aclaração de sentença ou acórdão, temos, porém, o artigo 380.º, n.º1, do CPP, que estatui: «O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando – a) (…); b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial».


A referida disposição legal, aplicável aos acórdãos proferidos em recurso ex vi do artigo 425.º, n.º4, do CPP, permite que qualquer das partes requeira ao tribunal que proferiu a sentença o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade que ela contenha, e cuja eliminação não importe modificação essencial.


Uma decisão é obscura ou ambígua quando for ininteligível, confusa ou de difícil interpretação, de sentido equívoco ou indeterminado. A obscuridade de uma decisão é a imperfeição desta que se traduz na sua ininteligibilidade; a ambiguidade tem lugar quando à decisão, no passo considerado, podem razoavelmente atribuir-se dois ou mais sentidos diferentes, só relevando se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que não seja possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se diz ambíguo (cf. Acórdãos do STJ, de 11.04.2002, proc. P01P3821, e de 9.06.2005, proc. 05P909, disponíveis em www.dgsi.pt).


O haver-se decidido bem ou mal, de forma correta ou incorreta, em sentido contrário ao preconizado pelo recorrente, é coisa totalmente diversa da existência de obscuridade ou ambiguidade do acórdão.


Já Alberto dos Reis ensinava que uma sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade (Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, 1984, p. 151).


Em suma, obscuridade existe quando o sentido da decisão, ou da sua fundamentação, não é claro, não é certo e transparente, deixando dúvidas quanto ao seu verdadeiro sentido.


Por sua vez, os erros ou lapsos referidos no preceito serão erros ou falhas de escrita ou de cálculo.


Reportando-se a deficiências cuja correção não importe “modificação essencial” [do julgado], o que o referido preceito legal significa é que quando a sentença contiver erro material, obscuridade ou ambiguidade, esse erro deve ser corrigido e essa obscuridade desfeita desde que vá ao encontro daquilo que o tribunal quis efetivamente dizer.


O recorrente não esclarece, minimamente, de que obscuridade ou ambiguidade enferma o acórdão visado, nem quais são as suas dúvidas quanto ao “iter cognitivo” que o tribunal percorreu e que culminou na prolação do acórdão.


Foi expressamente referida no texto do acórdão a aplicação do disposto no artigo 71.º do Código Penal, com a enunciação dos fatores a ponderar na determinação concreta da pena.


Diz-se, além do mais:


«Na determinação da pena a aplicar ao ora recorrente, o tribunal de 1.ª instância ponderou que, dentro do tráfico comum – pois afastou o tráfico agravado por que vinha pronunciado o arguido -, o grau de ilicitude situa-se num patamar muito elevado, “considerando o número de actos de venda praticados e a circunstância de parte (pouco expressiva, é certo) do produto estupefaciente ser um droga dura (cocaína)”.


O arguido agiu sempre com dolo direto e tem antecedentes criminais por crimes de natureza diversa.


A favor do arguido, a 1.ª instância considerou a postura, “no essencial, colaborante com o Tribunal”; a conduta prisional do arguido enquanto preventivamente preso; a apoio familiar.


Transcrevendo o relatório social, o acórdão recorrido salientou, além do mais, que o arguido é capaz de identificar o desvalor e gravidade dos factos, “todavia, em sentido abstrato, no contexto da problemática aditiva, o arguido associa o desequilíbrio emocional ao cometimento de situações transgressivas”; refere-se a demonstração de “juízo critico e reflexivo face à sua trajetória de vida, identificando a necessidade de manter acompanhamento especializado na área da saúde mental, bem como se manter afastado de ambientes associados ao abuso de estupefacientes”; a manutenção, no contexto prisional, de acompanhamento na área de psiquiatria para fazer face à problemática aditiva.


Na ponderação de todos os fatores que indica na fundamentação, entendeu o tribunal de 1.ª instância ser ajustada a pena de 5 (cinco) anos de prisão. Considerando que, muito embora as exigências de prevenção geral sejam muito prementes, “as de prevenção especial encontram-se francamente atenuadas pelo forte apoio familiar e inserção profissional de que dispõe em meio livre”, além do “efeito inibidor do tempo já decorrido com sujeição a prisão preventiva que se espera fortemente dissuasor de futuras práticas delituosas”, a 1.ª instância decidiu suspender a execução da pena com sujeição a regime de prova.»


A Relação do Porto, diversamente, fixou a pena em 5 anos e 11 meses.


Lê-se no acórdão deste STJ:


«Está em causa, essencialmente, o tráfico de canábis, ainda que também se tenha provado o tráfico (em quantidade pouco expressiva) de cocaína.


É frequente a desvalorização do tráfico de canábis no confronto com o tráfico de chamadas “drogas duras”.


Porém, a ideia de que o consumo de canábis não tem efeitos perniciosos, nem gera dependência, carece de fundamento científico, como se extrai, entre outros trabalhos, do «Relatório Europeu sobre Drogas – 2020», do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA)», onde se assinala que “a canábis tem hoje um peso significativo nas admissões a tratamento de toxicodependência”.


Não se demonstrou a agravação prevista no artigo 24.º da Lei n.º 15/93, em qualquer das circunstâncias imputadas, nomeadamente a da alínea j), relativa à atuação “como membro de bando destinado à prática reiterada dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º, com a colaboração de, pelo menos, outro membro do bando”.


No entanto, para além de o grau de ilicitude revelado no comportamento do arguido ser “muito elevado, considerando o número de atos de venda praticados” e a duração do período em que a atividade de tráfico se desenvolveu, não podemos deixar de ponderar, igualmente, no plano da ilicitude, o papel do arguido/recorrente como fonte de fornecimento de estupefacientes aos restantes arguidos, o que alimentou, a jusante, a atividade de tráfico por estes realizada.


O arguido detinha na sua residência, além do mais:


- num móvel, uma balança digital de cor preta, de marca “Becken”, que continha vestígios de cocaína e uma balança digital com capacidade para 500gr, de cor cinzenta com capa a “imitar” um telemóvel;


- no chão da sala, uma embalagem contendo no seu interior 10 (dez) placas de um produto prensado de cor castanho, que se logrou apurar tratar-se de 963,546 gramas de canábis resina, acondicionado em papel celofane, com as inscrições “WWWW; ” (cfr. item 2 do exame do LPC, constante de fls. 3457 e 3458); (duas) embalagens revestidas com fita cola de cor castanha e com borracha (balões) de cor laranja e verde, contendo no seu interior 9 (nove) placas, e 1 (uma) placa de um produto prensado de cor castanho, que se logrou apurar tratar-se de 962,743 gramas de canábis resina, acondicionadas em papel celofane, com as inscrições “WWWW”;


- na casa de banho do patamar inferior: na gaveta de um móvel, dois pedaços de uma pasta prensada de cor castanha, que se logrou apurar tratar-se de 73,317 gramas de canábis resina; dois embrulhos em saco plástico transparente, contendo sumidades floridas e frutificadas da planta que se logrou apurar tratar-se de 4,348 gramas de folhas e sumidades floridas ou frutificadas da planta de canábis; no interior de uma cesta, em cima do móvel da casa de banho, uma balança digital de cor preta, de marca “Pritich”, contendo vestígios de cocaína;


- no seu quarto, por debaixo da cama, dentro de um saco plástico, dois pedaços de maior tamanho e vários pedaços desfeitos, de uma pasta prensada de cor castanha, que se logrou apurar tratar-se de 90,418 gramas de canábis resina; no chão, por baixo da mesa de madeira, uma caixa em papel contendo no seu interior sumidades floridas e frutificadas de planta de canábis, que se logrou apurar tratar-se de 890 gramas de folhas e sumidades floridas ou frutificadas da planta de canábis; várias saquetas herméticas, que se encontravam em cima da mesa de madeira; uma saqueta de plástico transparente, contendo no seu interior sumidades floridas e frutificadas de planta que se logrou apurar tratar-se de 7,701 gramas de folhas e sumidades floridas ou frutificadas da planta de canábis;


- no quarto de hóspedes, quatro pedaços de uma pasta prensada de cor castanha, que se logrou apurar tratar-se de 156,348 gramas de canábis resina.


No estabelecimento comercial que explorava, denominado “P......... ........”, o arguido detinha:


- no balcão, uma saca plástica de fecho rápido contendo no seu interior 10 (dez) saquetas de fecho rápido para acondicionamento de matéria estupefaciente, por trás da máquina registadora;


- na cozinha e despensa, dois pedaços de uma pasta prensada de cor castanha que se apurou tratar-se de 177,172 gramas de canábis resina, acondicionados dentro de um saca plástica de cor verde, dissimulada na parte superior do forno, e dois pedaços de uma pasta prensada de cor castanha, que se apurou tratar-se de 147,865 gramas de canábis resina, acondicionados dentro de um saco de plástico branco, estando este, por sua vez, dentro de um saco de papel de cor preta com a inscrição “MANGO”, em letras brancas, que se encontrava dissimulado na parte superior do forno;


- na arrecadação/garagem, dentro de uma caixa de cartão de formato retangular, de cor azul e branca com a inscrição “VITENDER”, um (1) invólucro enrolado em papel celofane, borracha amarela e fita isoladora castanha, contendo no seu interior dez (10) placas de uma pasta prensada de cor castanha, que se logrou apurar tratar-se de 956,100 gramas de canábis resina, ostentando cada uma a menção “EL CHAPO”.


Está em causa, para além do mais apreendido, o total de 3.527,509 gramas de canábis-resina e de 902,049 gramas de folhas e sumidades floridas ou frutificadas da planta de canábis.


Acresce que na posse do arguido / recorrente foram apreendidas as quantias de 2.050,00€ e 350,00€, contrapartidas em numerário de entregas de haxixe feitas pelo arguido a terceiros - conforme resulta do ponto 88 dos factos assentes.


As quantidades expressivas de produtos estupefacientes e os valores monetários objeto de apreensão, o elevado numero de vendas provadas e o período em que se desenvolveu a atividade de tráfico, permitem concluir que estamos na presença de um comportamento reiterado de venda.


No que concerne à gravidade das consequências do crime, não pode deixar de considerar-se elevada, tendo em conta a quantidade e natureza dos produtos estupefacientes que entraram no circuito de venda e as quantidades significativas de produto que só não entraram nesse circuito porque foram apreendidas ao arguido.


Ao longo do seu percurso profissional, o arguido explorou vários estabelecimentos comerciais na área da restauração, nomeadamente, cafés, snack-bares, confeitarias, pão-quente e restaurante, com o apoio da família, enquanto funcionários daqueles espaços, sendo que, à data dos factos, explorava pelo menos dois estabelecimento comerciais e gozava do apoio familiar, como se extrai da factualidade provada.


Como já se disse, o arguido/recorrente tem antecedentes criminais por crimes de natureza diversa, nunca tendo sido condenado, porém, por tráfico de estupefacientes.


Nem a atividade que realizava na exploração de estabelecimentos comerciais, nem o apoio familiar de que beneficiava, constituíram fatores que o afastassem da criminalidade.


No que toca à “postura, no essencial, colaborante com o Tribunal”, não podemos deixar de salientar, por um lado, a importância das interceções telefónicas e do produto estupefaciente detido pelo arguido e apreendido nos autos, e, por outro, que a postura “colaborante” do arguido não impediu que o mesmo, por exemplo, relativamente às suas relações com o arguido BB, tenha prestado declarações a que o tribunal de 1.ª instância não reconheceu credibilidade.


A conduta prisional do arguido, enquanto preventivamente preso, foi a adequada e normal a quem se encontra na situação de privação de liberdade.


Valoriza-se o propósito do arguido de se manter abstinente dos consumos ilícitos e de aceitar apoio para esse efeito – o que não é inédito, reportando o relatório social a existência de períodos, alternados, de abstinência e recaídas, apesar do acompanhamento e do apoio familiar -, mas não se alcança que, no balanço das circunstâncias que, no plano da culpa e da prevenção, devem ser valoradas, haja razão para divergir do juízo formulado pelo tribunal recorrido quanto à determinação da pena.


As exigências de prevenção geral são elevadas devido à frequência da prática do crime em causa e aos malefícios causados na sociedade civil, exigindo a clara reafirmação na comunidade da validade da norma violada.


As exigências de prevenção especial também são significativas.


Tendo em vista o referente jurisprudencial deste STJ, considerando a moldura penal abstrata, na ponderação dos fatores relevantes por via da culpa e da prevenção, concluímos que o procedimento judicial de determinação do quantum da pena de prisão aplicada ao arguido pelo tribunal recorrido, em 5 (cinco) anos e 11 (onze) meses de prisão, não merece qualquer censura, pelo que tal pena deve ser mantida.»


É manifesto, a nosso ver, que a fundamentação apresentada não consente quaisquer dúvidas quanto ao seu sentido, não contendo algum passo cujo sentido seja ininteligível ou se preste a interpretações diferentes ou contraditórias entre si: pelo contrário, o que se escreveu no acórdão visado é perfeitamente inteligível e não comporta qualquer dúvida de interpretação.


Pretender o contrário é, salvo o devido respeito, clamorosamente desconforme à realidade.


Se o recorrente /reclamante não apreendeu o sentido, a nosso ver e com modéstia, claríssimo, do acórdão cuja aclaração pretende, na parte transcrita ou em qualquer outro dos seus segmentos, não vislumbramos como esclarecê-lo.


Inexiste, pois, fundamento algum para a pretendida aclaração.


*


III – Dispositivo


Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em considerar que o acórdão de 15.02.2024 não carece de correção, por obscuridade e ambiguidade e, consequentemente, indeferir, por infundado, o pedido de aclaração apresentado pelo recorrente.


Custas pelo recorrente/reclamante, fixando-se em 2 Ucs a taxa de justiça (artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e sua Tabela III, anexa).


Supremo Tribunal de Justiça, 13 de março de 2024


(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)


Jorge Gonçalves (Relator)


António Latas (1.ª Adjunto)


Vasques Osório (2.º Adjunto)