CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DO PEDIDO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PODERES DO JUIZ
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
CONDENAÇÃO EM OBJETO DIVERSO DO PEDIDO
CONDENAÇÃO EXTRA VEL ULTRA PETITUM
PETIÇÃO INICIAL
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Sumário


I- Decorre do princípio dispositivo a necessária correspondência entre a acção e a sentença.
II- De acordo com a «teoria da identificação da acção», consagrada no artigo 581.º CPC, esta decompõe-se em três elementos: sujeitos, pedido e causa de pedir.
III- Resulta da necessária correspondência entre o pedido e a sentença que o juiz deve conhecer, sob pena de nulidade, de todo o pedido e unicamente desse pedido.
IV- Se de todos os elementos incluídos no contexto da petição inicial se pode facilmente deduzir as consequências jurídicas dos factos da causa de pedir, não há necessidade de se citar a norma legal.
V- Cabe sempre ao tribunal, alicerçado nos factos da causa, qualificar juridicamente a situação que é submetida à sua apreciação.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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AA, BB, CC e DD instauraram acção declarativa, com processo comum, contra EE e FF, pedindo que seja reconhecida a existência de passivo da herança aberta por óbito de GG, no valor de € 275.000,00 e, em virtude dos Réus terem assumido a posição jurídica do herdeiro insolvente, HH, a condenação dos Réus a pagar-lhes a quantia global de € 77.494,25-sendo € 55.000,00 a título de capital e € 22.494,25 a título de juros de mora vencidos, aos quais acrescerão juros de mora vincendos à taxa supletiva legal até efectivo pagamento – respeitante à sua quota hereditária.

Alegam para tal, e em síntese, que são herdeiros de GG, juntamente com HH, cujo quinhão hereditário foi adquirido, em processo de insolvência, pelos RR.

Correu processo de inventário, no âmbito do qual a massa insolvente de HH não aprovou o passivo da herança que fora relacionado como verbas nºs. 1 a 3 da Relação de Bens.

O total do capital em dívida à data da morte da devedora GG era de € 275.000,00, sendo que os autores liquidaram integralmente os referidos empréstimos que constituíam o passivo da herança da inventariada, respectivamente, em 04/10/2011, 12/12/2011 e 22/12/2011.

Os réus contestaram. Alegam que tendo alguns desses empréstimos sido liquidados antes da morte da inventariada, poder-se-ia tratar de crédito sobre a herança mas não de uma dívida da herança que ainda não estava aberta, ainda assim, a presunção é que terá sido a inventariada a liquidar o dito crédito. Todos os demais créditos foram liquidados posteriormente. Alegam ainda que os AA litigam de má fé, por saberem que estão a reclamar algo que sabem não ter qualquer fundamento.

Após audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, a qual julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) Reconheceu a existência de passivo da herança aberta por óbito de GG, no valor de €163.950,70, a favor do aqui Autor BB;

b) Absolveu os RR do pedido de condenação no pagamento aos AA, da quantia global de €77.494,25, sendo € 55.000,00 a título de capital e € 22.494,25 a título de juros de mora vencidos e vincendos;

Inconformados, interpuseram os autores competente recurso para o Tribunal da Relação de Évora.

O relator proferiu decisão singular que julgou o recurso improcedente e confirmou a decisão do primeiro grau.

Reclamaram os autores para a conferência. O colectivo de juízes revogou o segmento b) do dispositivo da sentença recorrida, que substituiu por outro que condenou os apelantes os apelados a pagar ao apelante BB a sua quota parte do passivo da herança, ou seja 1/5 (um quinto), do montante apurado de € 163.950, 70 (Cento e sessenta e três mil, novecentos e cinquenta Euros e setenta cêntimos), o que se traduz na quantia de €32.790,14 (trinta e dois mil, setecentos e noventa euros e catorze cêntimos), acrescida dos respectivos juros, a contar da data da citação dos Apelados.

Recorrem agora os réus de revista, concluindo a sua minuta da seguinte forma:

a) Um dos princípios que enformam o direito processual civil e cuja questão, nesta perspectiva tem cariz essencialmente adjectivo mormente o princípio do dispositivo ou da disponibilidade objectiva e, mais concretamente, com uma das suas principais manifestações – o princípio do pedido;

b) Não é concebível num estado de direito que a jurisdição contenciosa cível, não tenha correspondência directa entre o conteúdo da decisão e a vontade expressa pela parte no pedido formulado;

c) O princípio do pedido tem consagração inequívoca no art. 3º/1 do CPC o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes (…).

d) É ao autor que, naturalmente, incumbe definir a sua pretensão, requerendo ao tribunal o meio de tutela jurisdicional adequado a satisfazê-la.

Será na petição inicial que o autor deve formular esse pedido – art. 552º/1, e) do CPC –, dizendo "com precisão o que pretende do tribunal – que efeito jurídico quer obter com a acção”;

e) Com efeito, como dispõe o art. 609º/1 do CPC, a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir;

f) É a essa pretensão assim definida que o tribunal está adstrito, não podendo decretar um outro efeito, alternativo, apesar de legalmente previsto.

g) Como afirma Paula Costa e Silva, "o acto (postulativo) tem não só uma eficácia vinculante para o tribunal, como também uma função delimitadora da actuação do tribunal"; esse acto tem uma "função constitutiva insubstituível";

h) É o princípio do pedido, como sublinha a mesma Autora, que "determina que o tribunal se encontra vinculado, no momento do proferimento da decisão, ao decretamento das consequências que o autor do acto postulativo lhe requerera. Não pode decidir-se por um maius, nem por um aliud";

i) Como flui do que se disse, também tem por escopo essencial a tutela da posição do demandado, permitindo-lhe que se defenda em relação ao conteúdo concreto daquele pedido. Só assim se assegura e cumpre o princípio do contraditório (cfr. art. 3º do CPC) que aquele princípio igualmente visa preservar;

j) Ora com o devido respeito e salvo melhor opinião, o Autor BB, em momento algum, assume ou invoca na acção de que é parte, a figura de fiador, o pedido formulado pelos Autores, mormente o Autor BB, em momento algum invoca como causa de pedir a fiança e o subsequente instituto jurídico da sub-rogação;

l) A ação nunca poderá nascer da iniciativa do juiz, o que bem se compreende atendendo à posição de imparcialidade que deverá manter no processo e à justiça relativa que se procura obter no mesmo. Não existe, portanto, ação sem petição. Da petição inicial deverão constar certas indicações, a exposição das razões de direito que servem de fundamento à ação, a formulação do pedido e da respetiva causa de pedir e a especificação dos factos narrados que se devem considerar provados e dos factos que o autor se propõe provar;

m) O princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil, e, na estrita perspetiva das partes, quiçá o mais relevante;

n) Entendem os apelantes que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora é nulo por excesso de pronúncia e pela violação de um dos princípios basilares do Direito Processual Civil, o princípio do contraditório nos termos dos artigos conjugados do art.º 3.º, 609.º, e 615.º n.º 1 alinea e) do Código de Processo Civil, por se ter substituído aos AA, consubstanciando o acórdão em factos e direito que não fazem parte da petição inicial ou do pedido por estes formulado.

Termos em que e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o acordão do Tribunal da Relação de Évora ser declarado nulo por excesso de pronúncia e consequentemente ser a nulidade suprida, conhecendo-se do objecto do recurso, mantendo-se as decisões proferidas em primeira instância e a decisão singular proferida no Tribunal da Relação de Évora, com o que se fará a serena JUSTIÇA».

Os autores apresentaram contra-alegações pronunciando-se pela improcedência do recurso.


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Constituem questões decidendas saber se o acórdão impugnado padece dos vícios de extra e ultrapetição e se desrespeitou o princípio do contraditório.

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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes nas instâncias:

1) Os ora AA. são herdeiros de GG, natural da freguesia de ..., concelho de ..., falecida a.../11/2011, no estado de viúva de II

2) O processo de inventário por óbito de GG correu termos no Juízo Local Cível ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, Proc. nº. 381/12.3...;

3) À inventaria sucederam-lhe os seus 5 filhos: os ora AA. e o insolvente HH;

4) Na conferência de interessados que teve lugar no dia 02/10/2019, pelas 14:15, nos referidos autos de inventário, presidida pelo M. Juiz de Direito, Dr. JJ, Juiz ... do Juízo Local Cível ... a massa insolvente de HH não aprovou o passivo da herança que fora relacionado como verbas nºs. 1 a 3 da Relação de Bens de fls. 41 a 44 do referido processo de inventário nº 381/12.3..., no valor global de € 237.394,20 (duzentos e trinta e sete mil trezentos e noventa e quatro euros e vinte cêntimos);

5) Durante a Conferência de Interessados o M. Juiz proferiu despacho considerando que havia insuficiência de provas para poder decidir sumariamente a questão do passivo da herança e, consequentemente, remeteu a decisão dessa questão para os meios comuns, referente a empréstimos concedidos pela agência de ... da CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS;

6) Os RR. adquiriram o quinhão hereditário de que era titular o insolvente HH, na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da inventariada GG, por escritura pública outorgada no dia 16 de Agosto de 2019 no Cartório Notarial em ... a cargo da notária KK, de folhas 71 a 73 do livro de notas para escrituras diversas nº 258-A;

7) Os RR. foram habilitados a ocupar a posição do interessado na massa insolvente de HH no processo principal de inventário e seus apensos, por decisão proferida em 21/10/2019 no Proc. nº 381/12.3...;

8) GG era mutuária dos seguintes empréstimos:

a. Contrato de empréstimo e de garantias, Linha de Crédito com juros bonificados para apoio ás PME do sector agrícola e pecuário – auxílio minimis – ao abrigo do Decreto Lei nº 1-A/2010, de 4 de janeiro, contrato nº ...7.791, no montante de até € 160.000,00, concedido pela Agência de CGD de ..., com data de 12/04/2010, e início de vigência a 16/04/2010, no qual tinham a posição de fiadores CC e cônjuge LL, BB e cônjuge MM;

b. Contrato de empréstimo bonificado para campanhas na agricultura, silvicultura e pecuária, contrato nº...0.490, até € 57.000,000, concedido pela Agência de CGD de ..., com data de 02/09/2010;

c. Contrato de Mútuo, contrato nº ...5.490, no montante de € 100.000,00, concedido pela Agência de CGD de ... em 16/05/2011;

d. Contrato de Mútuo, contrato nº ...6.490, no montante de € 60.000,00, concedido pela Agência de CGD de ... em 27/11/2011.

9) Nos termos do documentos junto a fls. 60 verso e 61,cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. declarou:

“I. Em 28/10/2021, por débito na conta de depósito à ordem n.º ...30, titulada por GG, CC, BB, AA e por DD, foi liquidada a quantia de €40.832,00 (quarenta mil e oitocentos e trinta e dois euros), referente à amortização extraordinária no âmbito do empréstimo com o n.º de operação ...5.490, de que era mutuária GG;

II. Em 30/10/2022, por débito na conta de depósito à ordem n.º ...30, titulada por GG, CC, BB, AA e por DD, foi liquidada a quantia de €20.416,00 (vinte mil e quatrocentos e dezasseis euros), referente à amortização extraordinária no âmbito do empréstimo com o n.º de operação ...5.490, de que era mutuária GG;

III. Em 12/12/2011, por débito na conta de depósito à ordem n.º ...30, titulada por GG, CC, BB, AA e por DD, foi liquidada a quantia de €43.817,01 (quarenta e três mil e oitocentos e dezassete euros e um cêntimo), referente à amortização extraordinária no âmbito do empréstimo com o n.º de operação ...5.490, de que era mutuária GG;

IV. Em 29/09/2011, por débito na conta de depósito à ordem n.º ...30, titulada por GG, CC, BB, AA e por DD, foi liquidada a quantia de €53.307,51 (cinquenta e três mil e trezentos e sete euros e cinquenta e um cêntimo), referente à amortização extraordinária no âmbito do empréstimo com o n.º de operação ...0.490, de que era mutuária GG;

V. Em 22/11/2011, por débito na conta de depósito à ordem n.º ...30, titulada por GG, CC, BB, AA e por DD, foi liquidada a quantia de €62.394,20 (sessenta e dois mil e trezentos e noventa e quatro euros e vinte cêntimos), referente à amortização extraordinária no âmbito do empréstimo com o n.º de operação ...6.490, de que era mutuária GG;

VI. Em 18/04/2016, por débito na conta de depósito à ordem n.º ...30, titulada por GG, foi liquidada a quantia de €41.061,40 (quarenta e um mil e sessenta e um euros e quarenta cêntimos), referente à amortização extraordinária no âmbito do empréstimo com o n.º de operação ...7.791, de que era mutuária GG;

Mais se declara, para os efeitos tidos por convenientes, que os movimentos supra indicados permitiram a liquidação integral dos montantes ainda em dívida nas operações supra identificadas, cuja liquidação integral ocorreu em:

. 12/12/2011 (Operação n.º ...5.490)

. 28/08/2011 (Operação n.º ...0.490)

. 22/12/2011 (Operação n.º ...6.490)

. 16/04/2016 (Operação n.º ...6.490)”

10) BB emitiu a 22 de Dezembro de 2011 o cheque com o número ...95, sacado da conta da Caixa Geral de Depósitos com o número ...30, no valor de €62.500,00 (sessenta e dois mil e quinhentos euros), o qual foi depositado no mesmo dia na conta da Caixa Geral de Depósitos com o número ...30 (fls. 67, 67 verso e 73);

11) Nesse mesmo dia foi debitado da conta com o número ...30 o valor de €62.394,20, passando a conta do saldo de €66.378,10 para €3.983,90;

12) Os AA provisionaram a conta da CGD de que a inventariada era titular com os seguintes montantes:

a. A 16/04/2014, €5.000,00, por transferência bancária proveniente de conta titulada pela Autora AA;

b. A 16/04/2014, €19.000,00, provenientes de conta bancária titulada pelo A. BB, e posteriormente transferido para a conta da Caixa Agrícola aberta em nome de “Herança Indivisa – GG;

c. A 16/04/2014, €14.000,00, provenientes de conta bancária titulada pelo A. DD e posteriormente transferido para a conta da Caixa Agrícola aberta em nome de “Herança Indivisa – GG;

d. A 15/04/2015, €42.000,00, provenientes da conta bancária titulada por BB, e posteriormente transferido para a conta da Caixa Agrícola aberta em nome de “Herança Indivisa – GG;

e. A 18/04/2016, o valor de €40.450,70 proveniente de conta titulada pelos AA BB e DD.


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Do limite imposto à sentença pela acção e do excesso de pronúncia ex artigo 615.º, 1, alínea e) CPC

Os recorrentes alegam que o acórdão recorrido enferma de vício formal, por violação dos princípios dispositivo e do contraditório.

Mais especificamente afirmam que a Relação violou, além do artigo 3.º, os artigos 609.º e 615.º, 1, alínea e) do Código de Processo Civil (serão deste diploma os artigos ulteriormente citados sem outra menção).

Preceitua esta última proposição que a sentença é nula quando o tribunal condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (artigo 615.º, 1, alínea e)), o que resulta de se terem ultrapassado os limites da condenação contemplados no artigo 609.º, 1, o qual dispõe que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir (ultrapetição).

Vejamos se têm razão.

Os autores peticionaram o seguinte:

«NESTESTERMOS enos mais dedireito aplicável, queo Tribunal doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada totalmente procedente, por provada, e por consequência:

a) deve ser reconhecida a existência do passivo da herança aberta por óbito de GG, no valor de € 275.000,00; e

b) em virtude dos RR. terem assumido a posição jurídica do herdeiro insolvente, HH, devem ser condenados no pagamento aos AA. da quantia global de 77.494,25 (setenta e sete mil quatrocentos e noventa e quatro euros e vinte cinco cêntimos) - sendo € 55.000,00 a título de capital e € 22.494,25 a título de juros de mora vencidos, aos quais acrescerão juros de mora vincendos à taxa supletiva legal até efetivo pagamento – respeitante à sua quota hereditária;

c) devem os RR. ser condenados nas custas e nos mais que legal for».

A 1.ª instância decidiu deste modo:

a) Reconheceu a existência de passivo da herança aberta por óbito de GG, no valor de €163.950,70, a favor do aqui Autor BB;

b) Absolveu os RR do pedido de condenação no pagamento aos AA, da quantia global de €77.494,25, sendo € 55.000,00 a título de capital e € 22.494,25 a título de juros de mora vencidos e vincendos».

Os autores recorreram e o relator, em decisão singular, julgou improcedente o recurso e, consequentemente, confirmou a decisão do primeiro grau.

Reclamaram os autores para a conferência. Então o colégio dos juízes deliberou nestes termos:

«1-Revogar o segmento b) do dispositivo da sentença recorrida, que se substitui por outro com a seguinte redacção:

«Condenar os Apelados a pagar ao Apelante BB a sua quota parte no passivo da herança, ou seja 1/5 (um quinto), do montante apurado de € 163.950, 70 (Cento e sessenta e três mil, novecentos e cinquenta Euros e setenta cêntimos), o que se traduz na quantia de €32.790,14 (Trinta e dois mil, setecentos e noventa Euros e catorze cêntimos), acrescida dos respectivos juros, a contar da data da citação dos Apelados.

2- Fixar custas a cargo dos Apelados (artigo 527°, n° 1, 1ª parte e n° 2, do CPC».

Como facilmente se conclui do confronto entre o pedido e o decidido em ambos os graus, a Relação não ultrapassou os limites do campo de cognição que lhe foi fixado na petição inicial quanto ao pedido b), antes conheceu de todo o pedido e unicamente do que lhe foi pedido.

Por outro lado, a citação dos réus, com a disponibilização da petição e documentos juntos facultou aos recorrentes o conhecimento da pretensão dos autores e respectivas razões, das quais tiveram a possibilidade de se defender.

E fizeram-no com perfeito conhecimento de causa. Ficou pois assegurado o contraditório, no chamado nível horizontal.

É sabido, e os recorrentes referem-no, que este princípio tem também uma vertente vertical, que acautela as decisões surpresa e permite que as partes participem na construção da decisão final (artigo 3.º, 3).

Acontece que nenhuma surpresa pode ser assacada à decisão ora impugnada, porquanto o tribunal não seguiu qualquer terceira via, antes decidiu de facto e de direito nos precisos termos em que a acção foi configurada e controvertida, como melhor veremos mais abaixo.

Na verdade, a análise do recurso não pode ficar por aqui.

Lendo bem as conclusões dos recorrentes, verifica-se que é maior a amplitude que os recorrentes conferem à suposta falta de correspondência entre a acção e a sentença:

Na verdade concluem também:

j) Ora com o devido respeito e salvo melhor opinião, o Autor BB, em momento algum, assume ou invoca na acção de que é parte, a figura de fiador, o pedido formulado pelos Autores, mormente o Autor BB, em momento algum invoca como causa de pedir a fiança e o subsequente instituto jurídico da sub-rogação;

l) A ação nunca poderá nascer da iniciativa do juiz, o que bem se compreende atendendo à posição de imparcialidade que deverá manter no processo e à justiça relativa que se procura obter no mesmo. Não existe, portanto, ação sem petição. Da petição inicial deverão constar certas indicações, a exposição das razões de direito que servem de fundamento à ação, a formulação do pedido e da respetiva causa de pedir e a especificação dos factos narrados que se devem considerar provados e dos factos que o autor se propõe provar.

A «teoria da identificação da acção», entre nós consagrada no artigo 581.º, decompõe a acção em três elementos: sujeitos, pedido e causa de pedir. Deixando de parte o elemento sujeitos, que não carece no caso do nosso cuidado, concentremos a nossa atenção sobre os dois elementos objectivos do esquema triádico: o petitum e a causa petendi:

Além do que já foi dito quanto aos limites impostos à sentença pelo pedido, o juiz deve resolver tudo quanto foi pedido na causa, quer por via principal, quer ope excepcionis, quer ope reconvencionis, nada deixando sem decisão formal, a menos que se verifique uma relação de prejudicialidade entre as questões a ele submetidas (artigo 608.º, 2, 1.ª parte).

Consequentemente, é nula a sentença que deixe de pronunciar-se sobre qualquer questão que devesse apreciar (omissão de pronúncia) ou que invoque como razão de decidir, um título ou uma causa ou facto jurídico, essencialmente diverso daquele que as partes, por via de acção ou de excepção, deduziram como fundamento das suas conclusões (extrapetição) – artigo 615.º, 1, alínea d)).

Analisando a petição inicial facilmente se constata, em primeira linha, que os autores não deram cumprimento ao disposto no artigo 552.º, 1, alínea d), ou seja, não expuseram as razões de direito que servem de fundamento à acção, falta desde logo assinalada pelo primeiro grau.

Esta falta é, porém, mais aparente do que real e mesmo a existir não constituiria vício susceptível de ser invocado e conhecido neste terceiro grau.

A este respeito podemos divisar, na literatura jurídica nacional, três correntes distintas: para uns não há qualquer dever ou ónus para as partes de exporem as razões de direito; para outros tal indicação é imposta por lei, mas a sua falta implica mera irregularidade; finalmente outros entendem que estamos diante de um dever ou, ao menos, perante um ónus.

A tese menos exigente pertence, entre outros, a Remédio Marques, o qual refere que «como o tribunal não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de Direito, a menção das razões de direito na petição inicial não é essencial, não é indefectível do conteúdo desta peça processual; pelo que a falta de alegação de tais regras de Direito não traduz qualquer nulidade ou irregularidade processual, nem, muito menos, torna a petição inepta» (J.P.Remédio Marques, Acção declarativa à luz do código revisto, Coimbra Editora, Coimbra, 2007:273).

Ao lado deste autor, podemos colocar Paulo Ramos de Faria /Ana Luísa Loureiro, que defendem que a petição pode ser omissa quanto aos fundamentos de direito» considerando que cabe ao juiz proceder à indagação e aplicação do direito (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed., Vol. I, Almedina, Coimbra, 2014:37).

No outro extremo, encontramos Fernando Luso Soares e José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre.

Estes últimos autores afirmam: «Mas, a fundamentação de direito, não tendo embora função individualizadora da pretensão, não deixa de constituir um ónus, na medida em que o autor, se o não fizer, no mínimo, a indicação da norma jurídica ou do princípio jurídico que tenha por aplicável, não poderá vir a arguir a nulidade da sentença que venha ser proferida, sem prévia audição das partes, com fundamento jurídico que elas não tenham anteriormente considerado» (Código de Processo Civil, Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017:492).

Fernando Luso Soares, por sua vez, distingue na petição inicial elemento formais e elementos substanciais. De entre estes indica as razões de direito, ao lado dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir (Processo Civil de Declaração, Almedina, Coimbra, 1985:539).

Este autor começa por explicar que indicar razões de direito não constitui necessariamente citar disposições legais, bastando que os elementos de direito estejam incluídos no contexto dos articulados induzindo as consequências jurídicas dos factos da causa de pedir (ibidem 541).

O autor dá o seguinte exemplo: «O réu lesou o autor pela forma e nas condições descritas nos números anteriores»; «Por isso, tem o dever de indemnizá-lo, ressarcindo-o de todos os seus prejuízos»…-isto é aduzir razões de direito, sem dúvida, ainda que o autor não refira expressamente quaisquer dos artigos 562.º e segs. do Código Civil» (ibidem).

Luso Soares é terminante: as partes são obrigadas a indicar as razões de direito e, se não o fizerem, ficam sujeitos à ineptidão da petição, se não repararem o vício (Ibidem: 542 e 558).

Uma terceira corrente, que podemos considerar intermédia, defende que «a falta da exposição das razões de direito traduz-se na omissão de formalidade prescrita por lei», que é suprível.

É a posição de José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil, Anotado, Vol. II, 3:ª, ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1949:356 ), que tem sido interpretada com o sentido de que a falta das razões de direito acarreta a mera irregularidade da petição.

Acompanham, no essencial, esta tese, Manuel Andrade, para quem, à excepção dos casos em que as razões de direito dependem da invocação das partes (anulabilidades, prescrição, etc.) essas razões «só podem ser úteis (criar desde logo no juiz uma impressão favorável, etc.)», não sendo portanto um dever (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1979:109, também 111,1 e 118, 3) e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, os quais julgam ser menos premente, mas de qualquer modo importante, a menção das razões de direito do que das razões de facto, atendendo ao princípio iura novit curia (Manual de Processo Civil: 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985: 244/249).

Pois bem: o caso sujeito ilustra bem a explicação dada por Luso Soares de que há alegação do direito, mesmo sem citação de proposições normativas legais, quando os elementos de direito estão incluídos no contexto dos articulados com consequente dedução das consequências jurídicas dos factos constitutivos da causa de pedir.

Com efeito, os autores alegam que são herdeiros de GG, falecida a.../11/2011, que à falecida sucederam 5 filhos, estando entre eles os demandantes, que à data do óbito daquela havia uma dívida que os autores liquidaram totalmente.

Alegam designadamente, no artigo 9.º da petição inicial, que o capital em dívida dizia respeito, entre outros negócios, «a um contrato de empréstimo e de garantias, Linha de Crédito com juros bonificados para apoio às PME do sector agrícola e pecuário – auxílio minimis – ao abrigo do Decreto Lei nº 1-A/2010, de 4 de janeiro, contrato nº ...7.791, no montante de € 160.000,00, concedido pela Agência de CGD de ..., com data de 12/04/2010, e início de vigência a 16/04/2010».

Fazem nesse artigo expressa menção ao documento Doc. 7, para o qual remetem, onde se lê, logo no cabeçalho do Contrato de empréstimo e de garantias, que os autores CC e BB, e respectivos cônjuges, figuram como segundos outorgantes e fiadores.

Acrescentam que os réus adquiriram o quinhão hereditário de que era titular o insolvente HH, na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da inventariada GG, tendo sido habilitados a ocupar a posição do interessadomassainsolvente HH no processo principal de inventário e seus apensos.

Flui destas premissas a alegação de que «os AA. têm direito ao reconhecimento do passivo da herança no valor de € 275.000,00, com o correlativo direito a haverem dos RR. a quantia global de 77.494,25, sendo € 55.000,00 a título de capital e € 22.494,25 a título de juros de mora vencidos e vincendos à taxa de € 6,07 diários até efetivo pagamento, correspondente ao quinhão hereditário que adquiriram à massa insolvente de HH».

Donde o pedido de reconhecimento da existência do passivo da herança no valor indicado e, «em virtude dos RR. terem assumido a posição jurídica do herdeiro insolvente, HH» e o pedido cumulado de condenação dos réus a pagarem ao autor a mencionada quantia acrescida de jutos, respeitante à sua quota hereditária.

Tal como no caso do acórdão do STJ de 27.10.2010, Proc. 6188/06.O... julgou não ser necessário a indicação das disposições legais quando a autora tinha pedido o divórcio e indicado como causa de pedir a separação de facto por três anos consecutivos e violação do dever conjugal de respeito, assim também, no caso submetido, basta que os autores tenham consignado os efeitos de direito que derivam da causa de pedir alegada.

Como se diz nesse aresto «a autora, na petição inicial, pede o divórcio e indica como causa de pedir a separação de facto por três anos consecutivos e a violação do dever conjugal de respeito.

É certo que não indicou as correspondentes disposições legais, nem tal era necessário, pois, como refere Alberto dos Reis (ob. cit., pag. 368), basta “consignar as razões de direito que delas derivam”.

E isso a autora fez».

Note-se que os recorrentes tiveram, como dissemos, a possibilidade legal para exercerem o contraditório, e no articulado defensivo tomaram expressa posição em relação ao alegado pelos autores, tendo afirmado que analisaram os documentos por estes juntos, só lhes suscitando dúvidas o teor do documento n.º 11 relativo aos pagamentos invocados.

Não se vê, portanto, como se pode dizer que o contraditório saiu diminuído.

Acresce que, mesmo que se sancionasse a ausência de citação de dispositivos legais com a nulidade do processo (artigo 186.º,1), nem mesmo assim se poderia considerar um hipotético vício de ineptidão da petição inicial, o qual só pode ser apreciado no despacho saneador ou, não havendo este, até à sentença final (artigo 200.º, 2; cfr. STJ de 26.3.2015, Proc. 6500707.4TBBRG.G2.S2).

O princípio Jura novit curia pesa imenso na equação das relações entre facto e direito e dos limites da actividade do juiz no julgamento da acção.

Facto e direito não se contrapõem como duas realidades distintas, como duas coisas que se podem claramente separar e avaliar singularmente. A contraposição entre direito e facto deve ser aceite como algo de dialéctico, o facto tende a fazer-se direito, e o direito actua-se no facto.

A lei, contudo, entrega o domínio do direito ao juiz: da mihi factum dabo tibi jus. O juiz, como flui do artigo 5.º, 3 não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

A jurisprudência deste Supremo, pelo menos desde o Assento n.º 4/95, de 28 de Março, tem potenciado a actuação deste princípio.

A doutrina deste aresto apoia-se justamente na possibilidade de o tribunal qualificar juridicamente a situação que lhe é posta, para converter a causa de pedir, inicialmente pressupondo um contrato de mútuo válido.

Mais significativamente, na Revista Ampliada n.º 372001, de 23 de Janeiro, este Supremo admitiu que o tribunal, por «alternativa de qualificação», pudesse corrigir o erro do autor que, em acção pauliana, em lugar de peticionar a ineficácia do acto e a faculdade de perseguir o bem alienado no património do terceiro adquirente, peticionou a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado.

No caso sujeito, a Relação, a admitir-se alguma ambiguidade no isolamento do direito aplicável, nunca estaria condicionado pelas razões (jurídicas) do autor.

Pode, por conseguinte, concluir-se que a Relação não desfigurou nem substituiu a causa de pedir ou o pedido da acção, quando julgou que «está demonstrado que o Apelante BB na qualidade de fiador logrou proceder ao pagamento de uma dívida, que fora contraída pela Inventariada GG, no montante de € 163.950,70, operando-se a sub-rogação legal do mesmo na posição e direitos do credor, nos termos do disposto no artigo 592.º, n.º 1, do Código Civil».

Pelo contrário: o acórdão julgou o recurso nos limites da acção, nem mais nem menos, nem coisa diversa.


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As custas do recurso, neste terceiro grau, são da responsabilidade exclusiva dos recorrentes ex artigo 527.º, 1 CPC.

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Pelo exposto, acordamos em julgar improcedente a revista e, consequentemente, em confirmar o acórdão impugnado.

Custas pelos recorrentes.


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19.03.2024

Luís Correia de Mendonça (Relator)

Maria Amélia Ribeiro

Ricardo Costa