COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
INJUNÇÃO
REGULAMENTO
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
TRIBUNAIS PORTUGUESES
Sumário


Sendo apresentado requerimento de injunção europeia para pagamento de um crédito emergente de um contrato de compra e venda, celebrado entre uma empresa portuguesa e outra sediada no Reino Unido, nos termos do Regulamento (CE) n.1896/2006 (de 12 de dezembro), e tendo-se provado que o local de entrega das mercadorias era em Portugal, a competência internacional cabe ao tribunal português (e não aos tribunais do Reino Unido) nos termos do artigo 7º, n.1 do Regulamento (EU) n.1215/2012.

Texto Integral






Processo n.21307/20.5T8PRT.E2-A.S1


Recorrente: “AGARI International Limited”


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. “Évoralimentar - Comércio Grossista de Produtos Alimentares, Ldª” apresentou requerimento europeu de injunção de pagamento, nos termos do Regulamento (CE) 1896/2006 (de 12 de dezembro), contra “Agari International Limited, com sede no Reino Unido.


Pediu, além do mais, a condenação da requerida a pagar-lhe a quantia global de 144.261,80€, correspondente ao preço de uma transação comercial havida entre requerente e requerida, sendo 134.558,82€ a título de capital em dívida e 9.702,98€ a título de juros vencidos sobre o referido capital, desde as datas dos vencimentos das faturas até à data de entrada do requerimento em juízo.

2. A requerida apresentou oposição à injunção, pedindo a sua absolvição da instância por entender, além do mais, que se verificava a exceção de incompetência absoluta do Tribunal.

Alegou, além do mais, que nos termos do art.6º do Regulamento (CE) n.1896/2006, que remete para o Regulamento (CE) n. 44/2001 (de 22 de dezembro de 2000), sendo a sua sede social no Reino Unido, deveria ter sido demandada perante os tribunais do Reino Unido, por serem esses os competentes para dirimir o presente litígio.

3. A requerente exerceu o contraditório sobre essa questão, pugnando pela improcedência da exceção deduzida e reafirmou a competência do tribunal português para dirimir o litígio.


Alegou, em resumo, que o Regulamento (CE) n. 44/2001 foi revogado pelo Regulamento n.1215/2012, o qual estabelece no seu art.7º que em matéria contratual as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão, sendo que no caso de venda de bens o lugar do cumprimento da obrigação será o lugar onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, e no caso dos autos a entrega dos bens ocorreu nas suas instalações em ..., em janeiro de 2020.


Referiu ainda a requerente que fez constar das faturas a indicação de carga e descarga, uma vez que a mercadoria iria ser transportada pela ré até ao Reino Unido, e a fatura pode ser utilizada como documento de transporte, desde que contenha os elementos referidos no n. 5 do art.36º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e ainda a indicação dos locais de carga e descarga, referidos como tais, e a data e hora em que inicia o seu transporte.

4. Atendendo à matéria de facto alegada e ao disposto no art.7º do Regulamento n. 1215/2012, de 12 de dezembro, foi determinada a produção de prova, nomeadamente, testemunhal com vista à determinação do tribunal competente.

Produzida a prova testemunhal, foi julgada procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da nacionalidade e, em consequência, foi a requerida absolvida da instância.

5. Inconformada com tal decisão, a requerente apelou para o TRE, tendo este tribunal anulado a decisão recorrida por omissão de factos provados e não provados e respetiva fundamentação.

6. Voltando os autos à primeira instância, foi proferida nova decisão na qual foi sanada a referida omissão, tendo sido julgada procedente, uma vez mais, a exceção dilatória de incompetência absoluta deste tribunal em razão da nacionalidade e, em consequência, absolvida a requerida da instância.


7. Novamente inconformada, a requerente interpôs recurso de apelação, tendo o TRE julgado procedente o recurso e, consequentemente, revogado a decisão recorrida, considerando os tribunais portugueses internacionalmente competentes.


8. Inconformada com a decisão da segunda instância, a ré interpôs recurso de revista.


Nas suas alegações, a recorrente formulou as seguintes conclusões:


«A. O tribunal da primeira instancia deu como provado que os bens foram entregues no Reino Unido porque, além do mais, das faturas que a autora juntou aos autos como meio de prova consta isso mesmo.


B. Na verdade, e tal como foi sublinhado na sentença da primeira instancia:


“Compulsado o teor das aludidas faturas, constata-se que no campo “Local carga” consta “Nossa Morada”, ou seja, ..., e no campo “Entrega”, consta “Morada do cliente”, que, como sabemos é no Reino Unido, sendo que nenhuma das facturas está identificada a viatura que procedeu à recolha da mercadoria.


Da análise singela destas menções, somos levados a concluir que a mercadoria foi carregada na morada da autora e entregue à ré na morada desta, ao contrário do que a autora alegou no requerimento em que exerceu o contraditório sobre as questões prévias suscitadas pela ré (ou seja, que foi a própria a ré que veio a ... levantar a mercadoria, sendo que nesse momento emitiu as facturas, das quais fez constar a indicação da carga e descarga, uma vez que a mercadoria iria ser transportada pela ré até ao Reino Unido).


C. O art.362º do Cód. Civil determina que a prova documental é aquela que resulte de documento, como é o caso das facturas. Ainda neste normativo, define-se documento como “qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto”.


D. As facturas são um documento particular, nos termos da II parte do nº.2 do art.363º do Cód. Civil, pelo que as facturas A 000/924225, de 16 de janeiro de 2020, e A 000/924289, de 17 de janeiro de 2020, emitidas pela autora, fazem prova plena quanto às declarações que nelas constam - cfr. artº. 376º, n.º 1, do Cód. Civil.


E. Nesse sentido, pode ver-se o Ac. STJ de 03/02/2000, proferido no processo 1142/99, 7.ª Secção, em que foi relator o Exmº Conselheiro Dionísio Correia, disponível em https://www.stj.pt/?page_id=4471, bem como o Ac. STJ, de 29.11.2005, no proc. 05B3744, em que foi relator o Exmº Conselheiro Salvador da Costa.


F. Ora, existindo um documento que faz prova plena, o que dele resulta não pode ser afastado por prova testemunhal, que nem sequer é admissível - art. 393º nº 2 do cód. Civil.


G. Logo, a Relação não podia alterar a decisão da primeira instancia, nomeadamente no que se refere à alteração da matéria de facto, incluindo onde diz (pag. 14 do acórdão):


“Assim sendo, tendo por base o teor da prova testemunhal supra referida, forçoso é concluir que se impõe a alteração das resposta ao ponto 2 dos factos provados e ao ponto 1 dos factos não provados, os quais passam a ter a seguinte redacção:


- Ponto 2 dos factos provados: Não Provado.


- Ponto 1 dos factos não provados: Provado apenas que os bens adquiridos pela ré foram-lhe entregues pela autora em ... , na sede desta ( o qual passa a ser o ponto 2 dos factos provados).”


Sem conceder:


H. Ainda que o acórdão da Relação não sofresse do vício referido, continuaria a ser contrário á lei. Aliás, a sentença da primeira instancia refere:


“Inquiridas as testemunhas, que foram unânimes em explicar que apenas têm intervenção na parte logística da empresa e não têm qualquer conhecimento quanto aos contratos realizados, vieram as mesmas afirmar que a mercadoria foi entregue nas instalações da autora.”


I. Ora, não visando um recurso a repetição de um julgamento, a Relação só pode alterar a decisão da primeira instancia se lhe encontrar vícios concretos, pelo que, para alterar a matéria de facto com base no depoimento de testemunhas, teria a Relação de fundamentar o motivo porque o faz.


J. É certo que a Relação veio dizer (mal, no modesto entendimento da recorrente) que os depoimentos das testemunhas ouvidas “foram sinceros, espontâneos e, por isso, inteiramente credíveis, tendo tido conhecimento directo dos carregamentos da mercadoria adquirida pela R. à A.”


K. Ora, o problema é que a Relação justifica a alteração da matéria de facto com base numa razão de ciência que não existe e o próprio acórdão assim o reconhece.


L. O que está em causa, pelo menos nesta fase, não é se a mercadoria foi carregada, pelo que o alegado conhecimento directo dos carregamentos da mercadoria é inócuo.


M. A mercadoria seguramente que foi carregada no seu fabricante, foi carregada na ré, foi carregada em quem a adquiriu, e foi até carregada pelo seu consumidor final.


N. Só que, o objecto dos autos não é saber onde ocorreu uma operação logística, mas sim onde é que, juridicamente, a mercadoria foi vendida. E isso as facturas dizem.


O. Logo, ao invocar um (falso) conhecimento directo da operação logística de movimento da mercadoria, para o confundir com a operação jurídica da sua transmissão, a Relação violou de forma flagrante as normas que lhe permitiam alterar a matéria de facto, nomeadamente o art. 662 do CPC.


P. Aliás, a ré não respeitou o ónus do art. 640 do CPC, pois os fundamentos que invocou para a alteração da matéria de facto não sustentam tal alteração.


Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, com as consequências legais, designadamente revogando o acórdão da Relação e substituindo-o por outro que mantenha a sentença proferida na primeira instância, por ser de Justiça.»


Cabe apreciar.


*


II. FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objeto do recurso


A revista é admissível nos termos do art. 629º, n.2, alínea a) do CPC por estar em causa uma questão de competência do tribunal.


O objeto do recurso é o de saber se o tribunal onde o requerimento de injunção foi apresentado é o tribunal internacionalmente competente.


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2. Factos provados com relevo para a decisão da causa.


Após reapreciação da prova testemunhal (gravada), a Relação alterou o julgamento da matéria de facto, passando a constar como provados os seguintes factos:


«1 - Entre a autora, na qualidade de vendedora, e a ré, na qualidade de compradora, foi celebrado um contrato de compra e venda de bens alimentares.


2- Os bens adquiridos pela ré foram-lhe entregues pela autora em ..., na sede desta (aditado pela Relação).»


*


3. O direito aplicável


3.1. A única questão em análise nos presentes autos é a de saber se o tribunal onde foi proposta a ação é, ou não, o tribunal internacionalmente competente para julgar o presente pleito.


Como resulta dos autos, o conflito entre as partes respeita a um contrato de compra e venda de bens alimentares, no qual figura como vendedora uma empresa portuguesa – a ÉVORALIMENTAR, Ldª” e como compradora uma empresa sedeada no Reino Unido – a “AGARI International Limited”.


Está, assim, em causa um caso de natureza transfronteiriça, tal como definido no art. 3º do Regulamento n.1896/2002, respeitante a matéria comercial, que, por isso, cabe no seu âmbito de aplicação, tal como previsto nos artigos 2º e 4º deste Regulamento, sendo a respetiva competência judiciária determinada segundo as regras do direito comunitário aplicáveis, tal como prevê o art.6º do referido Regulamento.


As regras de competência judiciária (após a revogação do Regulamento n.44/2001) passaram a estar previstas no Regulamento (EU) n.1215/2012 (de 12 de dezembro), aplicável a partir de 10.01.2015.


3.2. O litígio em causa (tal como o requerente o configura e o recorrido não o nega) respeita a um contrato transfronteiriço, de compra e venda de bens alimentares, entre duas empresas, sendo a vendedora sediada em Portugal e a compradora sediada no Reino Unido. Assim, estando em causa matéria de natureza comercial, encontra-se justificada a aplicação do Regulamento n.1215/2012 (pois o caso não respeita a nenhuma das matérias excluídas do seu âmbito de aplicação pelo art.1º deste Regulamento).


O artigo 4º do referido Regulamento estabelece como regra geral (e supletiva) a de que as pessoas devem ser demandadas no Estado-Membro onde estão domiciliadas. Porém, tal regra comporta as exceções previstas no art.7º, correspondentes a hipóteses de competências especiais.


Estabelece o Regulamento 1215/2012 (na sua SECÇÃO 2) o seguinte:


«Competências especiais


Artigo 7.º


As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:


1) a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;


b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:


- no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues; (…)»


Considerando que não houve convenção prévia das partes sobre o tribunal competente (dado que as partes não a invocam), o elemento decisivo para a determinação do tribunal internacionalmente competente é o do lugar onde os bens vendidos foram (ou deviam ser) entregues, como previsto no art.7º, n.1 do referido Regulamento.


Conhecido esse facto, a conclusão quanto à competência do tribunal será inequívoca: só pode ser o tribunal do Estado-Membro onde se situa o local de entrega.


Após alteração da matéria de facto, o TRE concluiu que o lugar da entrega foi em ..., nas instalações da vendedora (onde as mercadorias foram carregadas).


3.3. A recorrente entende que o tribunal recorrido errou ao considerar que a entrega dos bens vendidos ocorreu em ..., pois na sua opinião o lugar de entrega era no Reino Unido, sendo, consequentemente, competentes os tribunais desse reino.


Sustenta a sua tese na alegação de que o TRE teria feito errada avaliação da prova constante dos autos, tanto da prova testemunhal como da prova documental. E pretende que, em revista, o STJ se pronuncie sobre o modo o tribunal recorrido apreciou as provas.


Deve, desde já, afirmar-se que a pretensão da recorrente se apresenta destituída de fundamento.


3.4. Como decorre do previsto no art.682º do CPC, em regra, a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada pelo STJ. Esta regra é complementada pelo disposto no art.674º, n.3, primeira parte, nos termos da qual o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista.


Tal regra só admite como exceção a hipótese de existir ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.


No caso concreto, o facto cuja prova releva para a decisão da questão jurídica respeitante à competência do tribunal é o de saber em que local foram entregues as mercadorias vendidas pela requerente à requerida. É manifesto que, pela própria natureza de tal facto, não está em causa a exigência legal de um específico meio de prova (como acontece quando a lei exige um documento autêntico). Trata-se, sim, de um facto que pode ser demonstrado por qualquer meio de prova, podendo ser alvo de prova testemunhal (nos termos do art.392º do CC), como efetivamente foi, não se verificando qualquer impedimento a esse tipo de prova (nos termos dos artigos 393º e 394º do CC).


Entende a recorrente que o local de entrega era o Reino Unido e que tal facto resultava de documento com força probatória plena – a fatura emitida pela vendedora.


Não lhe assiste razão. A fatura não é, por si só, um documento dotado de força probatória plena, quanto ao local de entrega das mercadorias, pois não se trata de documento autêntico (vd. art.371º do CC), nem de documento particular reconhecido por entidade oficial (vd. art.376º do CC) que lhe ateste o valor dessa informação.


O tribunal recorrido, ao reapreciar a prova produzida, baseou-se, assim, em elementos probatórios que pode apreciar livremente, pelo que não se pode concluir que tenha existido violação de qualquer norma que fixe a força de determinado meio de prova.


Feito este percurso, conclui-se que, no caso concreto, como a jurisprudência tem reiteradamente entendido, não cabe a este tribunal sindicar o modo como o tribunal recorrido valorou a prova produzida em tribunal, dado não estar em causa prova com valor tarifado.


Veja-se, a propósito, o que se resume no recente Acórdão do STJ, de 19.12.2023 (relator Luís Espírito Santo)1, no processo n. 1929/20.5T8VRL.G1.S1:


« Desde que não se coloque no âmbito da revista a violação pelo acórdão recorrido de normas respeitantes à prova tarifada, com força legalmente vinculativa, encontrando-nos, ao invés, perante prova apreciada livremente pelas instâncias, nos termos gerais do artigo 366º e 369º do Código Civil e 466º, nº 3, do Código de Processo Civil, o juízo de facto autónomo extraído pelo acórdão recorrido está fora do superior controlo por parte do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência do que se dispõe nos artigos 662º, nº 4, e 674º, nº 3, do Código de Processo Civil.»


3.5. Encontrando-se definitivamente apurado que a entrega dos bens vendidos ocorreu em Portugal (mais concretamente, em ...), ao STJ cabe apenas, nos termos do art.682º, n.1 do CPC aplicar o direito correspondente.


Como supra referido, determinando-se no art.7º do Regulamento 1215/2012 que o tribunal competente para apreciar o litígio é o do local da entrega, dúvidas não existem de que este é o tribunal português, como bem entendeu o acórdão recorrido, em cuja fundamentação se afirma:

«No caso em apreço, tendo por base um contrato de compra e venda de bens alimentares celebrado entre A. e R, e sendo apurado que o local da entrega de tais bens à R. era nas instalações da A., situadas em ..., forçoso é concluir que o tribunal competente para conhecer do pleito é o Tribunal Judicial de Évora, mais concretamente o Juízo Central Cível e Criminal de ..., onde, aliás, os presentes autos se encontram já a correr termos

Em resumo, não existe fundamento para censurar o acórdão recorrido, pois este fez a correta aplicação das normas pertinentes ao caso sub judice.


DECISÃO: Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente e confirma-se o acórdão recorrido, devendo os autos continuar os seus termos na primeira instância.


Custas pela recorrente.


Lisboa, 19.03.2024


Maria Olinda Garcia (Relatora)


Luís Espírito Santo


Leonel Serôdio





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1. Publicado em:

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a4d70bcaa9b8814980258a8b004fdeb1?OpenDocument↩︎