CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
ELEMENTO SUBJECTIVO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Sumário

I - Para estarem preenchidos todos os elementos subjetivos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez não é necessário que o agente conheça a exata taxa de álcool no sangue com que conduz (que saiba, ou admita como possível, que essa taxa é superior a 1,2 g/l).
II - Não deve ser rejeitada a acusação que, no tocante aos elementos subjetivos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, refere o seguinte: “o arguido atuou de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que se encontrava sob a influência de álcool e que, nessas condições, lhe estava vedada a condução de veículo na via pública, não se coibindo de o fazer, o que representou. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”.

Texto Integral




Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Faro - Juiz 2, no âmbito dos autos com o nº130/23.0PTFAR foi, em 20 de novembro de 2023, proferido o seguinte despacho (transcrição):

“Registe e autue como processo comum, com intervenção do tribunal singular.

Nos presentes autos foi deduzida acusação pelo Ministério Público contra o arguido (A), imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

Assenta tal imputação na seguinte (transcrita) factualidade:

1. No dia 12/10/2023, pelas 00:10 horas, na Rua José Mateus Horta, em Faro, o arguido conduzia o automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula (…..), com uma taxa de álcool no sangue registada de 2,34 g/l, a que corresponde uma taxa de álcool de pelo menos 2,22 g/l deduzido o erro máximo admissível.

2. Naquelas circunstâncias espácio-temporais, o arguido foi interveniente em acidente de viação, tendo embatido com o veículo por si conduzido, na porta dianteira direita, lateral anterior direita do veículo com a matrícula (…..) e na parte posterior direita da bagageira, vértice posterior direito do pára-choques e lateral posterior direito do veículo com a matrícula (…..), que se encontravam estacionados naquele local, resultando danos materiais em todos os veículos.

3. O arguido actuou de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que se encontrava sob a influência de álcool e que, nessas condições, lhe estava vedada a condução de veículo na via pública, não se coibindo de o fazer, o que representou.

4. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”

Nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 3, al. b) do CPP “a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.” Sendo que, os factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido são os que preenchem o tipo objectivo e subjectivo, do crime que na acusação lhe é imputado.

Determina o artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal que, quando não tenha havido fase de instrução (como é o caso destes autos), o juiz deve rejeitar a acusação “se a considerar manifestamente infundada”.

E nos termos do disposto no n.º 3 do mesmo artigo, são quatro os motivos explicitados na lei que permitem ao juiz rejeitar a acusação por manifestamente infundada, e são eles: a) quando a acusação não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.

A exigência de indicação precisa na acusação dos factos imputados ao arguido, resulta do princípio acusatório consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa e das garantias de defesa do arguido, mostrando-se essencial que o arguido conheça, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles possa convenientemente defender-se, por forma a que não possa ser surpreendido em julgamento com factos não previstos na acusação.

Atendendo à acusação deduzida, afigura-se que a mesma é manifestamente infundada por não conter a narração dos factos, nos termos da al. b) do n.º3 daquele artigo, no que se refere ao elemento subjectivo.

Vejamos.

Dispõe o artigo 292.º do Código Penal que “Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”

Quanto aos elementos objectivos do crime, resulta da norma legal que pratica um crime quem i) conduzir ii) veículo com ou sem motor iii) na via pública ou equiparada iv) com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.

Quanto ao elemento subjectivo, para além de se punir a negligência, pune-se o dolo em qualquer uma das suas modalidades (artigo 14.º do Código Penal), devendo o agente, pelo menos, representar como possível que conduz veículo rodoviário com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l.

Nas palavras de Germano Marques da Silva (1), “o preenchimento do elemento subjectivo do tipo compreende quer a forma dolosa, quer a forma negligente sendo que será dolosa sempre que o agente, tendo consciência do seu estado, pratica a condução do veículo rodoviário”.

Os elementos subjectivos do crime são expressos na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre - isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico-, voluntária ou deliberadamente-querendo a realização do facto-, conscientemente -isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei -consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude.

In casu, ainda que da acusação conste os factos que preencham os elementos objectivos do tipo de crime, não se encontra descrito naquela factualidade o elemento intelectual do dolo, no que se refere ao facto de o arguido conduzir o veículo sabendo ser portador de uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l.

Ora, tendo o dolo necessariamente dois momentos ou elementos constitutivos (o conhecimento – elemento intelectual que consiste na representação na mente do agente da facticidade descrita no tipo; e vontade – o elemento intelectual ou momento psicológico do iter criminis – que consiste na vontade de praticar o facto típico, o facto constante da acusação que expressa que o arguido conduzia o veículo “bem sabendo que se encontrava sob a influência de álcool”, não se mostra suficiente para retirar que o agente sabia que tinha uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l.

Na verdade, para se verificar a prática deste ilícito, não basta que o agente saiba que conduz sob influência de álcool (pois, conduzindo com uma TAS inferior a 1,20 g/l, não pratica um crime), importa, sim, que o mesmo saiba, ou pelo menos que represente como possível, que conduz com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l.

Não constando daquela factualidade que o arguido “sabia ou pelo menos que representava como possível que conduzia com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l”, a acusação deduzida pelo Ministério Público não se mostra suficientemente completa para integrar aquele (ou qualquer outro) tipo criminal.

Ademais, tal como se decidiu no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015 “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP”.

Neste conspecto, carecendo a acusação de tal alegação factual, é a mesma manifestamente infundada, pois que nunca levaria à condenação do arguido, não cumprindo o disposto na lei quanto à narração sintética dos factos que permitissem preencher o elemento subjectivo do tipo na sua plenitude, uma vez que o dolo é um facto.

Pelo exposto e ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea b), do CPP, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido (…..) por manifestamente infundada e, consequentemente, determino que, após trânsito do presente despacho, se proceda ao oportuno arquivamento dos autos.

Declaro extintas todas as medidas de coacção aplicadas ao arguido nestes autos (artigos 214.º, n.º 1, alínea c) e 311.º, n.º 2, alínea a), ambos do Código de Processo Penal).

Sem custas por delas estar isento o Ministério Público.

Notifique.


*

Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

A. No despacho de acusação em apreço foi imputado ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) ambos do CP, para julgamento em processo abreviado.

B. Por decisão, datada de 20/11/2023, o Tribunal a quo decidiu rejeitar a acusação pública por manifestamente infundada, nos termos do disposto 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b), do CPP, por alegada insuficiência factual do elemento subjectivo do crime imputado ao arguido.

C. O despacho de acusação respeita todos os pressupostos formais e materiais exigidos pelos artigos 391.º-A e 283.º, n.º 3 aplicável ex vi do artigo 391.º-B, n.º1 do CPP.

D. Dispõe o artigo 283.º, n.º 3, al. b) do CPP que: “A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”.

E. Não há fundamento para rejeitar a acusação pública deduzida nos autos, uma vez que não se verifica nenhum dos vícios previstos no artigo 311.º do CPP, na medida em que a acusação contém os elementos objectivos, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos e os elementos subjectivos que traduzem a conduta interior do agente na sua relação com o facto material.

F. Com efeito, da acusação resulta, de forma clarividente, que se encontram descritas, ainda que de forma sintética, todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do dolo, uma vez que ali é enunciado, de forma peremptória, que o arguido sabia que estava sob a influência do álcool, mas que ainda assim, conduziu o veículo na via pública, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, e que o fez de forma consciente, razão pela qual se conclui, forçosamente, que ao actuar da forma descrita, ponderou reflectidamente na conduta supra referida, actuando, de acordo com essa pretensão, desejando assumir tal comportamento.

G. O crime de condução de veículo em estado de embriaguez é um crime de mera actividade em que o que se pune é simplesmente o acto de o arguido se ter disposto a conduzir veículo na via pública sob o efeito do álcool.

H. Assim, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 292.º, n.º 1 do CP e 311.º, n.º 2, al. a) e 3, al. b) do CPP.

Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a decisão judicial recorrida, substituindo-a por outra, que designe data para a audiência de discussão e julgamento, nos termos do estatuído no artigo 312.º do CPP.

O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.

O arguido respondeu ao recurso nos seguintes termos:

“1º A douta Sentença proferida deverá manter-se integralmente, por ser justa e adequada. Na verdade,

2º Adere-se e concorda-se plenamente com a fundamentação de facto e de direito constante da douta Sentença, ora recorrida, para ela se remetendo,

Donde,

3º Deverá improceder totalmente o recurso interposto pelo Ministério Público, com as legais consequências, assim se fazendo JUSTIÇA!

No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer nos seguintes termos: “ (…) Apreciando O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (Cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 e de 24-3-1999 e ainda Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

Nestes moldes e face às conclusões formuladas pela nossa Ex.ma Colega junto da 1ª instância ela entende que o despacho ora posto em crise, ao rejeitar a acusação pública por manifestamente infundada, nos termos do disposto 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b), do CPP, por alegada insuficiência factual do elemento subjectivo do crime imputado ao arguido, mal andou e deve ser revogado por Vossas Excelências.

Cumpre, desde já, adiantar que se secunda com a necessária e devida vénia, a posição do MºPº, na 1ª instância.

Senão vejamos:

No despacho de acusação, na parte que aqui importa atender ficou a constar “expressis verbis”:

Naquelas circunstâncias espácio-temporais, o arguido foi interveniente em acidente de viação, tendo embatido com o veículo por si conduzido, na porta dianteira direita, lateral anterior direita do veículo com a matrícula (…..) e na parte posterior direita da bagageira, vértice posterior direito do pára-choques e lateral posterior direito do veículo com a matrícula (…..), que se encontravam estacionados naquele local, resultando danos materiais em todos os veículos.

3. O arguido actuou de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que se encontrava sob a influência de álcool e que, nessas condições, lhe estava vedada a condução de veículo na via pública, não se coibindo de o fazer, o que representou.

4. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”

Nessa esteira, a Mme Juiz “a quo” referiu:

“(…) In casu, ainda que da acusação conste os factos que preencham os elementos objectivos do tipo de crime, não se encontra descrito naquela factualidade o elemento intelectual do dolo, no que se refere ao facto de o arguido conduzir o veículo sabendo ser portador de uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l…

Salvo sempre melhor e mais elevado entendimento e sempre com o máximo e devido respeito, parece-nos que na configuração da Mme Juiz” a quo” era necessário que o arguido (anteriormente) fizesse teste de álcool e que nesse teste de álcool tivesse atingido uma TAS de, pelo menos 1,20 g/l ou superior e, não obstante isso, iniciasse a condução de veículo automóvel.

Não nos parece ser de acolher tal entendimento.

Em nosso entender, o elemento subjectivo mostra-se preenchido conforme o MºPº da 1ª instância ao fazer constar da acusação ora posta em crise: O arguido actuou de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que se encontrava sob a influência de álcool e que, nessas condições, lhe estava vedada a condução de veículo na via pública, não se coibindo de o fazer, o que representou.

Nesse sentido e como avisadamente, a nossa Ex.ma Colega junto da 1ª instância referenciou, por todos, Ac. Relação de Lisboa de 12.01.2011, relator Rui Gonçalves ao referir:

No que tange ao tipo subjectivo do crime em causa bastaria uma singela leitura de alguma das várias centenas de decisões dos Tribunais Superiores publicitadas (Disponíveis em http://www.dgsi.pt/. ) para facilmente se enxergar, sem necessidade elucubração metafísica, que, a este respeito, é habitual plasmar-se nos factos provados v.g.:

— “O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de conduzir o veículo automóvel em causa, bem sabendo que não estava em condições de conduzir em segurança, por se encontrar sob a influência do álcool”.

— “O arguido quis e agiu na forma descrita, de modo livre, consciente e voluntária, bem sabendo que conduzia um veículo motorizado na via pública e que o fazia sob a influência de bebidas alcoólicas”.

— “O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei;”

— “O arguido tinha perfeito conhecimento das características da referida viatura, ciente de que se encontrava a conduzir tal veículo sob a influência do álcool, querendo, não obstante esse facto, conduzir a viatura nessas condições.”

— “Sabendo que essa conduta era proibida e punida pela lei penal”; — “O arguido sabia que não lhe era permitido circular ao volante do veículo referido ou de qualquer outro veículo motorizado apresentando uma TAS superior a 1,2 g/l;

— “O arguido previu e quis actuar da forma descrita, sabendo que se encontrava com uma TAS superior à legalmente permitida para poder circular com o seu veículo naquela via e assumiu a sua condução;

— “O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo bem que a sua conduta era proibida por lei”.

— “Actuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que conduzia veículo por via de circulação terrestre, afecta ao trânsito público, tendo ingerido bebidas alcoólicas, e querendo fazê-lo.”

— “O arguido, que havia voluntariamente ingerido bebidas alcoólicas, não ignorava que não podia conduzir veículos automóveis no estado em que se encontrava.”

— “Agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida.”

— “Ao proceder conforme o descrito tinha o arguido perfeito conhecimento de que não podia circular, na via pública, conduzindo o mencionado veículo, sob a influência do álcool, mas, não obstante esse conhecimento, ingeriu antes de iniciar a condução, bebidas alcoólicas necessárias e suficientes para acusar a supra referida taxa de alcoolemia.”

— “O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punida”.

— “O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, no exercício da condução automóvel de veículo na via pública, não obstante saber que estava influenciado pelo consumo de álcool em limites superiores aos legais.”

— “ O arguido sabia ainda que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.”

— “O arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas e que a condução de veículos na via pública ou em vias abertas ao trânsito público quando se apresenta uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2 g/I constitui conduta proibida e punível por lei.”

— “Agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que aquela conduta é punida por lei penal.”

— “Agiu o arguido, voluntária e conscientemente, bem sabendo que conduzia um veículo, na via pública, após a ingestão de bebidas alcoólicas.”

— “Mais sabia que a sua conduta não era permitida por lei.”

— “O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, representando como possível que conduzindo o veículo referido em 1) após a ingestão de bebidas alcoólicas cometia um crime e, ainda assim, conformou-se com tal facto”;

“ — Actuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que conduzia veículo por via de circulação terrestre, afecta ao trânsito público, tendo ingerido bebidas alcoólicas, e querendo fazê-lo.”

— “ O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que caso bebesse bebidas alcoólicas, pelo menos em quantidade igual à por si ingerida, não podia conduzir veículos na via pública;”

— “O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei.”

— “Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que ingerira bebidas com teor alcoólico e em quantidade que sabia determinar-lhe uma TAS superior a 1,20 g/l e que, por isso, não podia conduzir veículos automóveis na via pública como efectivamente fazia.”

— “O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente com conhecimento de que não podia conduzir veículo automóvel na via pública sob a influência do álcool e, não obstante, não se coibiu de o fazer, sabendo que tal conduta para além de censurável era proibida por lei.”

— “O arguido sabia que não podia conduzir veículos sob a influência de bebidas alcoólicas.”

— “Agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei.”

— “O arguido, que havia ingerido voluntariamente bebidas alcoólicas, sabia que não lhe era permitido conduzir na via pública no estado em que se encontrava, desta feita agindo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”

O Ilustre Desembargador enuncia, de forma clara, as diversas formulações efectuadas pelos Ex.mos Colegas junto da 1ª instância relativamente a situações factuais idênticas às descritas nos autos.

Mais se aduz a esse propósito que o elemento emocional do crime de condução em estado de embriaguez não exige que o agente saiba a exacta taxa, mas apenas que ao actuar da forma como actuou teve a consciência de que se encontrava sob o efeito do álcool. Ao agir dessa forma, o arguido não pode ter deixado de admitir como possível que a quantidade de álcool que ingerira o faria incorrer no ilícito criminal em causa.

Aliás, no caso em apreço (atenta a elevada taxa de alcoolemia apresentada – TAS de 2,34 g/l , a qual após deduzido o erro máximo admissível ficou fixada em 2,22 g/l, significativamente acima da taxa mínima prevista no tipo objectivo – 1,2 g/l), o arguido exercia a perigosa actividade da condução automóvel, sujeita à prévia aprovação em exame teórico e prático sobre a condução automóvel, tendo o dever de saber os limites legalmente estabelecidos e que a condução sob o efeito do álcool constitui um dos factores mais relevantes da sinistralidade automóvel.

Encontram-se, deste modo, verificados os elementos do dolo: intelectual (representação), volitivo (exerceu voluntariamente a condução) e emocional (sabendo que era criminalmente punido) e que se mostram, pelo menos, de forma suficiente, plasmados na acusação.

Não assiste qualquer razão à Mme Juiz “a quo”.

A “talhe de foice” e “ad latere”, importa salientar que o arguido foi interveniente em acidente de viação dado que perdeu o controle do seu veículo e embateu em viaturas que se encontravam estacionadas na via pública (acidente que terá sido potenciado – muito provavelmente - pela TAS que apresentava).

No mais, secunda-se com a devida e merecida vénia o doutamente exposto pela Ex.ma Colega junto da 1ª instância, com acerto e bom saber jurídico.

Nesta conformidade e atento tudo o que se deixou exposto deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, dar provimento ao recurso apresentado pelo MºPº, na 1ª instãncia, revogar a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos”.

Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta ao Parecer.

Colhidos os vistos legais, os autos foram à conferência.

Cumpre decidir

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP)

No caso sub judice a questão suscitada pelo recorrente e que, ora, cumpre apreciar, traduz-se em saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que admita a acusação pública deduzida nos autos e designe data para a audiência de julgamento, nos termos do disposto no artigo 312º do Código de Processo Penal.

Apreciando

É do seguinte teor a acusação deduzida nos autos (transcrição):

“DO DESPACHO DE ACUSAÇÃO:

O Ministério Público deduz acusação, ao abrigo do disposto nos artigos 391.º-A, n.ºs 1 e 3, al. a) e 391.º-B, n.º 1 ambos do CPP, para julgamento em processo abreviado contra:

(A),

Porquanto,

1. No dia 12/10/2023, pelas 00:10 horas, na Rua José Mateus Horta, em Faro, o arguido conduzia o automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula (…..), com uma taxa de álcool no sangue registada de 2,34 g/l, a que corresponde uma taxa de álcool de pelo menos 2,22 g/l deduzido o erro máximo admissível.

2. Naquelas circunstâncias espácio-temporais, o arguido foi interveniente em acidente de viação, tendo embatido com o veículo por si conduzido, na porta dianteira direita, lateral anterior direita do veículo com a matrícula (…..) e na parte posterior direita da bagageira, vértice posterior direito do pára-choques e lateral posterior direito do veículo com a matrícula (…..), que se encontravam estacionados naquele local, resultando danos materiais em todos os veículos.

3. O arguido actuou de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que se encontrava sob a influência de álcool e que, nessas condições, lhe estava vedada a condução de veículo na via pública, não se coibindo de o fazer, o que representou.

4. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Pelo exposto, o arguido praticou como autor material (artigo 26.º, 1ª parte do CP), de forma consumada e dolosa (artigo 14.º, n.º 1 do CP):

- Um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

(…)”.

Vejamos:

Dispõe o artigo 311º nº 2 do CPP que «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente».

A acusação considera-se manifestamente infundada, segundo a norma do nº 3 do referido artigo:

a) quando não contenha a identificação do arguido;

b) quando não contenha a narração dos factos;

c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;

d) se os factos não constituírem crime».

Nos termos do artigo 32.º da Constituição Política da República Portuguesa:

1 - O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

(...)

5 - O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

Isto significa que a acusação e o julgamento têm que estar sedeados em órgãos diferentes: em ordem a conciliar o interesse público da perseguição criminal e as exigências da imparcialidade, isenção e objetividade do julgamento, a investigação e acusação, por um lado, e o julgamento, por outro, terão que caber a entidades diferentes. Quem acusa não julga e quem julga não pode acusar.

Deste mesmo princípio decorre outra consequência: a de o poder de cognoscibilidade do juiz estar delimitado pelo conteúdo da acusação, sendo esta que determina o objeto do processo. É o chamado princípio da vinculação temática.

"O princípio acusatório (n.º 5, 1.ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).

A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjetiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjetivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.

O princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame. Logicamente, o princípio acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento (cf. Acs TC n.ºs 219/89 e 124/90)." () J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, p. 522).

Nos termos da alínea b), do nº3 do artigo 283º do CPP a acusação contem, sob pena de nulidade, os factos relevantes para a imputação do crime.

Desta forma, são lógicas as exigências de conteúdo constantes dos preceitos acima referidos, na medida em que são impostas pela evidente premência, naquele contexto, de demarcar os factos concretos suscetíveis de integrar o ilícito de cuja prática estão os arguidos acusados.

“… regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos: - um, inerente ao objetivo imediato (….): a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objeto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados); - e, outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objeto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objeto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a esta a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.” (Ac. RL de 19/10/2006, Rec. 7143.06, 9ª Secção).

Revertendo ao caso dos autos, e como bem referido pelo recorrente “ (…) Antes demais, cumpre referir que no despacho ora em apreço consta erradamente que o processo deve ser registado e autuado como processo comum, quando o mesmo deveria ter sido autuado como processo abreviado.

Porém, ressalvando a aludida questão, que se deve tratar de um mero lapso de escrita, não se pode concordar com o entendimento expendido no despacho recorrido.

Isto porque o despacho de acusação rejeitada respeita e observa todos os pressupostos formais e materiais exigidos pelos artigos 391.º-A e 391.º-B, n.º 1, do CPP.

Com efeito, atentos os preceitos constantes nos artigos 283.º, n.º 3, aplicável ex vi do artigo 391.º-B, n.º 1 do CPP bastaria que a narração dos factos fosse efectuada, no todo ou em parte, para o auto de notícia.

Porém, a referida acusação não se limitou a remeter os autos a julgamentos por remissão para o auto de notícia, antes narrando os factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito imputado ao arguido, em despacho autónomo, cumprindo, desta forma e na íntegra, o disposto no artigo 283.º, n.º 3 do CPP.

Não obstante o supra exposto e escalpelizando a questão que levou à interposição do presente recurso, importa tecer algumas considerações sobre o dolo e os seus elementos, sem entrarmos no tratamento de diversas teses doutrinárias.

Nos elementos do tipo subjectivo de ilícito incluem-se os que se prendem com o dolo ou a negligência.

A doutrina hoje dominante conceitualiza o dolo como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, desdobrando-se em dois elementos: o elemento intelectual e o elemento volitivo.

O elemento intelectual do dolo consiste na representação, pelo agente, no momento em que pratica a conduta, de todos os elementos ou circunstâncias constitutivas do tipo de ilícito objectivo.

Quanto ao grau de conhecimento que o agente deve ter sobre todos os elementos objectivos do tipo legal, entende-se que é necessário e suficiente que ele possua o conhecimento considerado indispensável para uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada e para o seu carácter ilícito (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 351).

Por seu turno, o elemento volitivo, consiste na vontade, por parte do agente, de realizar o facto típico, depois de ter representado, ou previsto as circunstâncias ou elementos do tipo objectivo do ilícito.

Ora, dissecando-se o despacho de acusação recusado resulta, de forma que se entende por clara, que se encontram descritos, ainda que de forma sintética, para além dos elementos objectivos do tipo, os elementos subjectivos do tipo do dolo, uma vez que é enunciado que o arguido sabia e representou que se encontrava sob a influência de álcool e que, nessas condições lhe estava vedada a condução do veículo na via pública, mas ainda assim, não se coibiu de o fazer, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais afere-se da acusação que o arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, ou seja, que o arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para estar sob a influência do álcool (elemento intelectual do dolo), mas que ainda assim conduziu de forma ali descrita (elemento volitivo do dolo).

Em suma, da factualidade imputada ao arguido é de concluir:

a) Que o arguido sabia e tinha conhecimento, bem como estava consciente, que conduzia o veículo sob a influência de álcool;

b) Que o arguido conduziu o veículo na via pública de forma livre, voluntária e conscientemente;

Logo, entendemos que consta da acusação rejeitada o elemento intelectual do dolo.

Assim, não se pode concordar com o entendimento do Tribunal a quo de que é obrigatório constar na acusação pública, e no que ao crime em apreço diz respeito, que o arguido conduzia o veículo, sabendo ser portador de uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l.

Isto porque, no caso em apreço estamos perante um crime de mera actividade em que o que se pune é simplesmente o facto de o arguido se ter disposto a conduzir veículo na via pública sob o efeito do álcool.

Por outro lado, não existe um modo semântico único para a descrição dos factos que integram o tipo de dolo.”

Ora , de acordo com os ensinamentos de Figueiredo Dias [Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, ob. cit., pág. 529 e ss.], a culpa jurídico-penal revela-se através do tipo de culpa doloso e do tipo de culpa negligente, verificando-se o primeiro quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas.

Esta atitude íntima, de sobreposição dos interesses do agente do facto ao desvalor do ilícito pressupõe que este, para além de representar e querer a realização do tipo objectivo (dolo do tipo), actue também com consciência do ilícito, isto é, representando que o facto era proibido pelo Direito.

A consciência da ilicitude é também momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), acrescendo, como seu momento emocional, ao conhecimento de todas as circunstâncias do facto (elemento intelectual) e à vontade de realizar o facto típico (elemento volitivo), que são elementos do dolo do tipo, traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso).

A acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).

A esses elementos acresce o referido elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso.

Este elemento emocional é dado através da consciência da ilicitude e integra a forma de aparecimento mais perfeita do delito doloso. Daí que só possa afirmar-se que o agente actuou dolosamente quando, nomeadamente, esteja assente que o mesmo actuou com conhecimento ou consciência do carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta.

Todos esses elementos, que constituem os elementos subjectivos do crime, são habitualmente expressos na acusação através da utilização de uma fórmula pela qual se imputa ao agente ter agido de forma livre (isto é, podendo agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude). (cfr. Ac.trc, de 13-09-2017).

Na verdade, não há uma fórmula semântica única para a descrição dos factos que integram o tipo de dolo, sendo, naturalmente, livres a redacção e a utilização dos termos que servirão para descrever, para integrar o dolo, não havendo uma fórmula que, não sendo utilizada ipsis verbis, conduza fatalmente à queda da acusação por manifestamente infundada, por não conter a suficiente narração dos factos.

“Os factos – da acusação e da sentença – são sempre “enunciados linguísticos descritivos de acções” (na expressão de Perfecto Ibanez): da acção executada – factos externos – e da acção projectada na vontade – factos internos.- cfr. neste sentido, Acórdão da Relação de Évora de 27.6.2017 (in dgsi.pt).

Sintetizando, dir-se-á que ao que dolo diz respeito, o mesmo desdobra-se num elemento intelectual e num elemento volitivo. O elemento intelectual do dolo implica, desde logo, o conhecimento - previsão ou representação - por parte do agente, dos elementos materiais constitutivos do tipo objetivo do ilícito. O outro elemento do dolo, o elemento volitivo, consiste na vontade, por parte do agente, de realizar o facto típico, depois de ter representado – ou previsto- as circunstâncias ou elementos do tipo objectivo do ilícito.

E, atentando na acusação deduzida é manifesto que os factos dela constantes são suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido, pelos artigos 292.°, n.º1 e 69º, nº 1,al. a) do Código Penal por cuja prática o arguido foi acusado, designadamente factos que integram o elemento volitivo do dolo.

Com efeito, consta expressamente da acusação que o arguido atuou de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que se encontrava sob a influência de álcool e que, nessas condições, lhe estava vedada a condução de veículo na via pública, não se coibindo de o fazer, o que representou. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Ou seja, na acusação descreve-se que o arguido sabia que se encontrava sob a influência de álcool - elemento intelectual do dolo – mas que ainda assim conduziu o veículo da forma ali descrita- elemento volitivo do dolo.

Assim, a acusação deduzida pelo Ministério Público, tal como se encontra redigida, não se poderá considerar «manifestamente infundada» nos termos previstos nos artigos 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d), do CPP.

Nesta conformidade, a decisão em causa deve ser substituída por outra que não rejeitando a acusação, por manifestamente infundada, designe data para julgamento, se não se verificarem outras circunstâncias que impeçam a designação dessa data.

Decisão

Por todo o exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, revogar o despacho recorrido e determinar a substituição por outro que admita a acusação pública deduzida nos autos e designe data para a audiência de julgamento se não se verificarem outras circunstâncias que impeçam a designação dessa data.

- Sem custas.


*

Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 19 de março de 2024

Laura Goulart Maurício

Edgar Valente

Moreira das Neves