NÃO PRONÚNCIA
INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 410º
Nº 2
DO C. P. PENAL
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
Sumário

I - Não sendo a decisão instrutória (de pronúncia ou de não pronúncia) uma sentença, não lhe são aplicáveis as regras contidas no artigo 410º, nº 2, do C. P. Penal, porque privativas dessa peça processual.
II - Porém, no recurso interposto da decisão instrutória pode discutir-se a suficiência dos indícios probatórios recolhidos nas fases preliminares do processo (inquérito e instrução) - que justifica, ou não, a submissão do arguido a julgamento -, pode avaliar-se da deficiente fundamentação da decisão, e pode também aquilatar-se da existência de contradição entre a matéria que foi considerada indiciada e aquela que o não foi.
III - Na decisão instrutória têm de constar os factos considerados suficientemente indiciados e aqueles em relação aos quais se considera não existirem indícios suficientes, e tal seleção factual (em decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia) tem de ser devidamente fundamentada, não por exigência do artigo 374º do C. P. Penal (que é norma privativa das sentenças), mas, isso sim, do dever genérico da fundamentação dos atos decisórios (previsto no artigo 97º, nº 5, do C. P. Penal).
IV - Ocorrendo, na decisão instrutória, contradição entre os factos considerados indiciados e os factos tidos por não indiciados, enumeração de “factos” que não o são (porque não ultrapassam a mera conclusão - incapaz de permitir defesa -) e, ainda, uma insuficiente fundamentação da opção decisória tomada em diversas vertentes factuais, verifica-se a existência de “irregularidade”, de conhecimento oficioso, a exigir reparação, dada a gravidade que acarreta para a decisão em causa.
V - Em matéria de “irregularidades”, o Código de Processo Penal, no seu artigo 123º, nº 2, consagrou uma “válvula de segurança” para prevenir situações como a agora em apreço, ao permitir ordenar oficiosamente a reparação daquelas que possam afetar o valor do ato praticado (se na génese da irregularidade está uma omissão, pode ordenar-se a reparação oficiosa desse vício quando o ato omitido, podendo ainda ser praticado, afete o valor dos atos subsequentes).

Texto Integral




Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora


I. RELATÓRIO

No processo de inquérito que, com o n.º 11/16.4GBADV, correu termos pelo Departamento de Investigação e Ação Penal [1.ª Secção de Faro] da Procuradoria da República de Faro, com origem em queixa apresentada por (A), o Ministério Público, em despacho que proferiu a 14 de abril de 2021, decidiu «o arquivamento dos autos, nos termos do artigo 277.º, n.º 2 do Código Penal, por não se terem recolhido indícios suficientes da prática dos crimes de ofensa à integridade física negligente, de intervenções médico-cirúrgicas e/ou de homicídio negligente
(A), devidamente identificado nos autos e neles constituído Assistente, requereu a abertura da instrução.
E distribuído que foi o processo – ao Juízo de Instrução Criminal de Faro [Juiz 2] da Comarca de Faro –, por decisão judicial datada de 17 de novembro de 2023, foi proferida decisão instrutória de não pronúncia
- dos Arguidos (B) e (C) pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punível pelo artigo 137.º, n.º 2, do Código Penal;
- do Hospital Particular do Algarve, Grupo HPA Saúde, pela prática de um crime de exposição ou abandono, previsto e punível pelo artigo 138.º do Código Penal.
Inconformado com esta decisão, o Assistente dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«I- A decisão recorrida enferma de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão; e entre a própria fundamentação, o que resulta do próprio texto por ele mesmo e conjugado com as regras da experiência, assim incorrendo no vício da al. b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, em ambas as vertentes.
II- Os factos indiciados em sede de instrução, no texto de fls. 4 a 8, e listados como factos indiciados de 1 a 38, mostram uma realidade factual que aponta necessariamente para que os arguidos incorreram na responsabilidade que lhes é imputada pelo Assistente. Maxime, e só como exemplo, o Facto Indiciado 34, ainda que se trate de uma conclusão: havia uma exigibilidade de cumprimento de deveres de cuidado, neste caso concreto, que estavam ao alcance e dentro do poder de capacidade individual dos arguidos enquanto médicos.
III- Os factos e essa mesma conclusão estão no texto da decisão, nessas páginas e pontos, para as quais por economia processual se remete, dando-as por reproduzidas para todos os legais efeitos. Ora, estes factos assim indiciados chocam de modo frontal e inconciliável, com os Factos Não Indiciados, onde se diz em jeito aliás conclusivo, mais que factual, precisamente o contrário.
IV- Ou seja, na al. a) desses não indiciados factos, que ao não ter havido diagnóstico e terapêutica precoces contribuiu para o agravamento do estado de saúde da paciente com o resultado morte, que era evitável. Facto / conclusão este que perante toda a matéria factual indiciada e as conclusões que dela resultam, se torna absolutamente incompreensível; e é inconciliavelmente contraditório com tudo o que está indiciado de 7 a 38, especialmente com o indiciado nos pontos 16 a 25, 26, e em 33, 35 a 37.
V- Pois que num lado e noutro dizem-se coisas absolutamente inconciliáveis, as quais não podem conviver por totalmente contraditórias de modo insanável, no mesmo texto. A simples leitura, sem mais e sem necessidade de aduzir qualquer outra explicação, demonstra hialinamente essa absoluta contradição.
VI- Do mesmo vício comunga a alínea b) dos Factos Não Indiciados. Tudo quanto se indicou no texto, de 1 a 38 como Factos Indiciados, demonstra que os arguidos agiram de forma consciente e que sabiam, pois não ignoravam e assim o aceitaram, do resultado morte que poderia advir dessa sua conduta de não prestar os cuidados atempados podendo e devendo fazê-lo.
VII- É patente a contradição insanável; coexistem uma coisa e o seu contrário no mesmo texto da decisão; e isto decorre do texto, com influência decisiva na decisão, que por isso mesmo não foi conforme ao direito. Insanável contradição que se estende também à fundamentação ao cotejá-la com a decisão de Não Pronúncia. Verifica-se, pois, o vício previsto na al. b) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, nas suas duas vertentes, o que se deixa alegado para todos os legais efeitos, devendo neste recurso declarar-se a existência de tal vício.
VIII- A decisão contém também erro notório na apreciação da prova, erro que resulta do próprio texto pela sua simples leitura, assim incorrendo no vício da al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP. Pois toda a prova indiciária, produzida em sede de instrução (páginas 8 a 14 da decisão), conduz necessariamente à conclusão de que os arguidos tinham de ser pronunciados pelos crimes que o assistente lhes imputa.
IX- Quer a prova resultante das conclusões tiradas na perícia médico-legal, quer a prova testemunhal, apontam sem qualquer obscuridade para uma terapêutica e um prognóstico tardios, e afirmam com base científica que a serem mais precoces teriam evitado o resultado morte, embora a morte seja sempre um desfecho possível (neste acrescentamos nós, como em qualquer outro caso) – texto da decisão, pág. 11 e 12.
X- Porém, considerando a prova testemunhal e a perícia, concluiu o Tribunal a fls. 12, que não teve dúvidas de que os arguidos (…), ao se depararem com os sintomas apresentados pela paciente, pelo menos ao 5.º dia do pós-operatório, ou seja, dia 17-02-2016, deveriam ter agido de modo diferente recorrendo a exames e procedimentos médicos que só ocorreram no dia seguinte (…) – cf. pág. 12; Mas espantosamente, daqui retira, logo no parágrafo seguinte da mesma pág. 12 que apesar de se considerar que os arguidos (…) deveriam ter diligenciado antecipadamente pelo diagnóstico e respetiva terapêutica, não pode o Tribunal afirmar, que não o tendo feito, a omissão dos arguidos contribuiu para o agravamento do estado de saúde da paciente com o resultado morte que era evitável. E com base neste raciocínio concluiu pela Não Pronúncia dos arguidos, em evidente e notório erro na apreciação da prova.
XI- Ora, parece-nos que a Mma. JIC apreciou de modo totalmente incorreto as provas no seu conjunto, pois da afirmação de que a deiscência é complicação grave e que pode causar a morte, deu por irrelevante que o diagnóstico e a terapêutica tinham sido tardias, com base em que (pensamento exposto na decisão), a morte sempre poderia ocorrer. Quando o raciocínio e a conclusão têm de ser exatamente opostos.
XII- Em defesa da vida humana os cuidados médicos devem ser prestados a tempo, sob diagnósticos corretos e precoces sempre que possível, ainda que em situações em que a possibilidade da morte seja uma hipótese. Se assim não fosse, deixar-se-iam morrer todos os doentes com qualquer infeção grave ou patologia que envolvesse risco de morte, argumentando que a possibilidade de morte sempre existiria.
XIII- A leitura do Parecer Médico-Legal tem que ser feita nos seguintes termos: embora a deiscência seja uma complicação grave que pode causar a morte, uma abordagem que tivesse sido atempada, com diagnóstico precoce e terapêutica também precoce da fístula, teria contribuído, significativamente para a melhoria do prognóstico da doente e para a redução do risco morte.
XIV- A palavra significativamente marca aqui toda a diferença entre o raciocínio exposto na Decisão, que conduziu à Não Pronúncia; e entre o raciocínio que aqui apresentamos, que a nosso ver sempre demonstrará negligência no tratamento, falta de comportamento correto e atempado e, portanto, o não cumprimento das leges artis que os médicos arguidos, no caso concreto, deveriam ter observado. E bem assim, responsabilidade do HPA na ocorrência da morte da vítima.
XV- Porque havia uma exigibilidade de cumprimento de deveres de cuidado, neste caso concreto, que estavam ao alcance e dentro do poder de capacidade individual dos arguidos enquanto médicos.
XVI- O que a Decisão reconhece ao dar como indiciado que ao terem efetuado à paciente aquela intervenção cirúrgica, os arguidos não podiam desconhecer a probabilidade de na fístula vir a ocorrer a deiscência que acabou por se verificar; e por isso, fosse sua obrigação, dentro das suas capacidades e deveres profissionais, anteciparem essa probabilidade, estarem atentos a ela e avançarem com diagnóstico precoce e terapêutica adequada. O que não sucedeu.
XVII- Deste modo foi a prova apreciada com erro notório, vício que levou também a uma decisão a nosso ver, contrária à que deveria ter sido tomada; e vício constante na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, que aqui se deixa alegado para todos os legais efeitos.
XVIII- Por tudo o que se deixa alegado, também a decisão faz uma errada apreciação da prova produzida e disponível ao Tribunal, com violação do art.º 127.º do CPP uma vez que não se aplicaram ao caso concreto e no que interessa as regras da experiência, bem como não se valorou a prova científica que resulta da perícia médica realizada pelo Conselho Médico Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal.
XIX- Ainda que seja a Mma. JIC a entidade competente para apreciar a prova, sempre essa apreciação se tem que conformar com as regras de experiência comum, conforme determina o artigo 127.º do CPP. Artigo que deste modo foi violado, o que deve ser declarado na decisão que se proferir neste recurso.
Termos em que se alega e conclui, devendo o presente recurso proceder por provado, revogando-se a decisão recorrida, e substituindo-a por outra que pronuncie os arguidos pelos crimes que lhes foram imputados pelo Assistente na Acusação Particular anexa ao RAI, a qual deverá assim seguir para julgamento, acompanhada do PIC que lhe está anexo.
Assim se fazendo JUSTIÇA»

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«- Face ao teor do parecer do Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal, a decisão de não pronúncia não enferma de contradição, não se verifica erro notório na apreciação da prova, nem foi violado o artigo 127.º do Código de Processo Penal.
- O parecer não identificou, nem concretizou, uma violação de deveres de cuidado por parte dos médicos que trataram a falecida.
- O parecer não conseguiu estabelecer um nexo de causalidade entre os tratamentos médicos e o resultado morte.
- A dúvida sobre a verificação de alguns dos factos relevantes para a imputação criminal, tem de ser valorada de acordo com o princípio in dúbio pro reo e da presunção de inocência do arguido.
- Pelo que, deve manter-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
V.Exas., Venerandos Desembargadores, porém, melhor dirão.»

Respondeu, também, o Hospital Particular do Algarve, S.A., formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«A. A não indiciação do facto Ao não ter havido diagnóstico e terapêutica precoces contribuiu para o agravamento do estado de saúde do paciente, com o resultado morte, que era evitável (pontoa)) não entra em contradição com qualquer dos factos indiciados, designadamente com os factos dos pontos 16, 17 e 26, que indiciam que os arguidos médicos terão realizado meios complementares de diagnóstico 6 dias após a intervenção perante os incessantes e cada vez mais fortes vómitos e náuseas, e que a verificação da fístula da anastomosa gastrojejunal foi tardia ou que a paciente veio a falecer, em resultado das complicações decorrentes das intervenções cirúrgicas de 12 a 19 de fevereiro de 2016,
B. A decisão do Tribunal a quo a propósito da não indiciação dos factos do ponto a) e ponto b) fundamenta-se em conclusões e esclarecimentos do Conselho Médico Legal expressas em parecer técnico-científico juntos aos Autos, por força da regra estabelecida no art.º 163.º do CPP;
C. O Parecer técnico-científico do Conselho Médico reconhece que “na fase inicial, as manifestações clínicas e imagiológicas de uma deiscência anastomótica digestiva são frequentemente inespecíficas”, o que dificulta “o diagnóstico, e que, embora um diagnóstico e uma terapêutica mais precoces da fístula anastomose gastrojejunal do mini-bypass/bypass gástrico pudessem ter contribuído para a melhoria do prognóstico, esta constitui uma complicação muito grave podendo conduzir à morte, mesmo com um tratamento oportuno”.
D. Ou seja, o facto de ter sido considerado indiciado que apenas 6 dias após a intervenção foi pelos arguidos médicos solicitados a realização de uma TAC e a colocação de uma sonda nasogástrica e que os problemas não haviam sido detetados atempadamente ou que o desfecho trágico tenha resultado de complicações decorrentes das intervenções cirúrgicas de 12 e 19 de fevereiro de 2016, não entra em contradição com não ter sido considerado indiciado que a ausência de disgnóstico e terapêutica precoce tenha contribuído para o agravamento do estado de saúde da paciente, com o resultado morte, ou que este resultado era evitável.
E. Relevando ainda o facto, como faz notar o parecer técnico-científico de que “no caso em apreço o nexo de causalidade entre os sintomas descritos e o falecimento de (D) é difícil de estabelecer, pois para este contribuíram todos os eventos adversos verificados nos procedimentos terapêuticos posteriores.”;
F. Como refere o Conselho Médico “A morte ocorreu aproximadamente 17 meses após a cirurgia bariátrica, cerca de 14 meses após a última intervenção cirúrgica e 13 meses após a decisão de limitação terapêutica. Embora a certidão de óbito indique, como causa de morte, a encefalopatia anóxica e o status pós-cirurgia bariátrica complicada, o processo não inclui as informações clínicas dos dias que antecederam o evento fatal.”
G. O Recorrente insiste na responsabilidade do Hospital Particular do Algarve, S.A., sem, no entanto por em causa a decisão recorrida a este respeito, sendo certo que não existem dúvidas que o crime de exposição ou abandono p. e p. pelo 138.º do Código Penal, não consubstancia um crime de responsabilidade criminal de entidade coletiva, ao abrigo do art.º 11.º do Código Penal, o que aliás não deixa de ser decidido como tal pelo Tribunal a quo.
Nestes termos não deverá ser dado provimento ao recurso interposto e, consequentemente, deverá ser mantida a decisão instrutória.
Assim se fazendo
JUSTIÇA»

Na resposta que apresentaram, os Arguidos (C) e (B) defendem a improcedência do recurso.
Posição semelhante é defendida pelo Hospital Particular do Algarve, S.A.

Enviados os autos a este Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer [transcrição]:
«O Recurso foi interposto e motivado, atempadamente, por quem tem legitimidade e interesse em agir.
Nada obsta ao conhecimento do Recurso em conferência.
O Recurso deve ser julgado improcedente

Observou-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Na resposta que apresentou, o Assistente manteve a posição anteriormente assumida nos autos.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância são colocadas as questões:
- da contradição insanável entre a fundamentação e entre a fundamentação e a decisão;
- do erro notório na apreciação da prova;
- da incorreta valoração da prova.

û
A decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição]:
«I – Relatório
Por decisão de 14/04/2021, a Digna Magistrada do Ministério Público procedeu ao arquivamento dos autos, por entender não existirem indícios suficientes da prática de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação de leges artis, previsto e punido no artigo 150.º, n.º 1 e 2, um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido no 148.º, n.ºs 1, 2 alínea a) e 3, com referência ao art.º 144.º, al. d), todos do Código Penal ou de homicídio por negligência, previsto e punido no artigo 137.º do Código Penal.
Inconformado, veio (A), na qualidade de Assistente, pugnar pela pronúncia de (B), (C) e do Hospital Particular do Algarve, Grupo HPA Saúde, porquanto os primeiros, enquanto médicos, não efetuaram os diagnósticos e terapêuticas atempadas que poderiam evitar o resultado morte a (D) e o último porque tinha a obrigação de prestar cuidados atempados e assistência à paciente, sempre que esta solicitava tal assistência ante as dores e os sintomas que sentia.
Conclui que, com tal conduta, os arguidos (B) e (C) cometeram em coautoria o crime de homicídio por negligência grosseira, p.p. art.137.º nº 2 do C. Penal e o Hospital Privado do Algarve, pessoa coletiva, cometeu o crime de exposição ou abandono, p. e p. pelo art.º 138.º do C Penal.
Para tal, requereu a inquirição de testemunhas e juntou documentos.
A requerida abertura de instrução foi deferida por despacho de 18/06/2021 tendo-se determinado esclarecimentos adicionais à perícia realizada.
Procedeu-se à audição das testemunhas, admitiu-se a junção de documentos e realizou- se o debate instrutório, que decorreu sob observância de todo o formalismo legal, como consta da respetiva ata.

II – Despacho saneador
O Tribunal é o competente.
Não existem outras nulidades ou questões prévias que importem conhecer.
*
III – Das finalidades da instrução
A instrução, conforme refere o artigo 286.º, n.º 1 e nº 2 do Código de Processo Penal é uma fase facultativa do procedimento criminal que visa a comprovação judicial da decisão do Ministério Público, enquanto titular da ação penal orientado pelo princípio da legalidade (artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa) de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A estrutura acusatória do processo criminal implica que a atividade cognitiva do Tribunal – na fase de instrução ou na fase do julgamento – esteja limitada pelo objeto processual – cfr. art.º 32.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa. O objeto processual será definitivamente delimitado pela acusação ou, no caso de decisão de arquivamento do Ministério Público, pelo requerimento de abertura de instrução – neste sentido Frederico Isasca em Alteração Substancial dos factos e a sua relevância no processo penal português, Coimbra editora, pág.174 e segs. É a acusação que fixa, perante o Tribunal, o objeto do processo. É ela que delimita e fixa os poderes de cognição do Tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da conjunção do objeto do processo penal.
Para cumprir o objetivo de controlar, em sede judicial, a decisão que encerrou o inquérito, deve o Juiz de Instrução ordenar e realizar os atos instrutórios que considere necessários, nos termos do artigo 290.º, n.º 1 do Código Processo Penal, existindo apenas uma única diligência obrigatória – o debate instrutório, previsto no artigo 297.º do Código Processo Penal.
O Ministério Público, ao proferir o despacho de acusação ou de arquivamento, deve pautar a sua ação pela noção de indícios suficientes, ou seja, deve acusar se encontrar indícios suficientes da verificação do crime e de quem foi o seu agente, ou arquivar o processo se tais indícios não foram recolhidos – artigos 283.º, n.º 1, e 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Este juízo que preside ao encerramento do inquérito não está isento de sindicância, quer pelo superior hierárquico do magistrado do Ministério Público que prefere a decisão (artigo 278.º do Código de Processo Penal), quer pelo juiz de instrução, através do mecanismo que temos vindo a explanar.
Assim, também em sede de instrução será novamente efetuado o juízo de existência ou não de indícios suficientes de quem cometeu o crime e de quem foi o seu agente.
Deste modo, será necessário trazer à colação, o artigo 308.º, n.º 1 do CPP de acordo com o qual, o juiz deverá pronunciar o arguido se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos dos quais depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Caso não seja possível reunir tal acervo probatório, deverá ser proferido despacho de não pronúncia.
Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução (cfr. Acórdão do TRC de 10/09/2008, processo 195/07.2GBCNT.C1, www.dgsi.pt).
Conforme refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, 1993, Verbo, Tomo II, págs. 85 e 86, “a prova indiciária (indiciação suficiente) permite a sujeição a julgamento, mas não constitui prova, no significado rigoroso do conceito, pois que aquilo que está provado já não carece de prova e a acusação e a pronúncia tornam apenas legítima a discussão judicial da causa. A natureza indiciária da prova significa que não se exige a prova plena, a «prova», mas apenas a probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança criminal”.
Importa, por conseguinte, determinar se nos presentes autos se mostram preenchidos de forma suficiente tais indícios.
*
IV – Dos factos
IV.1 – Dos factos indiciados em sede de instrução:
1. (D) deu entrada na Unidade de Gambelas do Hospital Particular de Faro no dia 12 de Fevereiro de 2016, a fim de ser submetida a intervenção cirúrgica para by pass gástrico.
2. A referida intervenção foi levada a cabo, por indicação da arguida pessoa coletiva, pelos médicos (B), médico cirurgião auxiliar, e (C), médico cirurgião principal, também arguidos.
3. Antes da intervenção, os serviços da arguida HPA e os dois arguidos (B) e (C) asseguraram quer à paciente, quer a seu marido, ora Assistente, que a cirurgia em causa era uma cirurgia fácil, sem riscos, que não demandaria para a sua execução e pós-operatório mais do que 3 ou 4 dias, e que ao segundo ou terceiro dia já a paciente deveria ter alta.
4. Pelo que o período de internamento máximo contratado, de acordo com a sugestão e informação dos arguidos, foi o de 5 dias.
5. O Assistente e a paciente pagaram o valor que a Arguida lhes solicitou como necessário ao custo daqueles 5 dias: 11.500,00€.
6. A cirurgia consistiu em encurtar o circuito alimentar excluindo grande parte do estômago e do intestino delgado, eliminando-os parcialmente na sua função alimentar, de modo a atenuar os problemas de obesidade da paciente e o seu peso.
7. Os arguidos informaram os familiares da intervencionada de que a intervenção tinha corrido bem, sem complicações.
8. O arguido (B) acompanhou a situação pós-operatória da paciente, enquanto esta se manteve internada e reportava o estado clínico ao arguido (C), cirurgião principal.
9. No pós-operatório a paciente começou a apresentar um quadro de vómitos frequentes e de dores intensas na zona abdominal, também muito frequentes, quase permanentes, dores essas que se faziam sentir também nas costas e braços.
10. Ante isso, o Assistente e bem assim a filha (E), face às queixas e aos evidentes sintomas de que alguma coisa não estava a correr bem, manifestaram a preocupação junto do HPA e solicitaram a melhor atenção para a situação da internada.
11. Também a paciente solicitava que a examinassem com o rigor necessário para se verificar se alguma coisa estava mal, pois as dores e o mau estar eram demasiadas; mas quer os serviços do HPA, quer a enfermeira de serviço repetiam que os médicos sabiam o que faziam e que esses sintomas eram perfeitamente normais, típicos do pós-operatório,
12. E ainda afirmando que o Hospital estava a par e no controlo dessa situação, os médicos atentos a ela e a paciente a ser medicada para o efeito.
13. Porém, a 18 de Fevereiro, 6 dias após a intervenção, a paciente viu-se obrigada a telefonar para o seu marido, aqui Assistente, a informá-lo de que as dores tinham subido de intensidade de tal modo que não conseguia quase suportá-las e que tinha dificuldade até em respirar; e ainda que estava farta de chamar pelo pessoal do Hospital, para que lhe dessem assistência e tratamento, mas que ninguém aparecia.
14. E foi preciso que a filha da paciente (E), na sequência dessa chamada, telefonasse imediatamente para o HPA a dar conta da situação uma vez mais, e a reclamar que fossem prestados à mãe a atenção e os cuidados que se justificassem, ao mesmo tempo que manifestava grande preocupação com o estado de saúde da paciente assim tão agravado.
15. A resposta que obteve dos serviços foi a de que iriam ver o que se passava.
16. Só nesse dia 18, 6 dias após a intervenção, e perante os incessantes e cada vez mais fortes vómitos e náuseas, e queixas de dor abdominal, foi pedido pelos arguidos uma TAC, e colocada sonda nasogástrica na paciente, verificando-se então a existência de líquido, que foi sendo extraído durante várias horas, sem, porém, atenuação das queixas.
17. Só então, pela primeira vez, os arguidos comunicaram aos familiares da paciente que na verdade havia problemas com ela que, todavia, não tinham sido detetados atempadamente, mas que não podiam dizer ainda mais nada.
18. Nesse mesmo dia e na sequência desses exames, às 23 horas, a paciente foi levada para o bloco operatório em situação de urgência, o que a família da (D) só soube porque já após isso o arguido (B) telefonou para a filha da paciente a informar que a mãe ia ser operada.
19. Segundo o arguido (B) comunicou depois aos familiares, - a 19.02.2016 — a paciente fora levada com toda aquela urgência para o bloco operatório, porque tinham os arguidos afinal detetado nos exames as causas daquelas dores, vómitos e transtornos,
20. e que eram afinal uma deiscência (rotura) da cicatriz, por onde saía líquido biliar e entérico, causador de uma inflamação que deixava agora a paciente em estado crítico; uma fuga na ligação gástrica jejunal, entre o estômago e o intestino, na zona da cicatriz.
21. Tudo o que só agora detetavam, na cirurgia de laparotomia exploradora.
22. Face à situação, a paciente foi deixada laparatomizada (com o ventre aberto) para que durante dias os arguidos pudessem ir efetuando a limpeza.
23. Tendo eles induzido a paciente em estado de coma para tal efeito.
24. Durante o estado de coma induzido e no decurso destes procedimentos médicos, a paciente sofreu paragem cardio-respiratória.
25. Durante o pós-operatório, os arguidos descuraram diagnóstico e terapêutica atempados.
26. Pois a verificação da fístula da anastomosa gastrojejunal foi tardia.
27. Nos dias 18 e 19 de Fevereiro, o HPA pediu aos familiares da paciente que efetuassem um pagamento extra, justificando o pedido pelo facto da paciente ainda se encontrar internada, pagamento esse que foi de 135,00€, e que o paciente efetuou.
28. Pediu ainda o HPA um adicional de 500,00€, como adiantamento das despesas de prestações de serviços médicos ainda a fazer, o qual pagaram.
29. A 23.02.2016, pelas 21h, (F), amiga da filha da paciente, telefonou para o HPA para saber do estado clínico da paciente, e é então informada de que a paciente afinal tinha sido transferida para o Hospital Distrital de Faro.
30. Essa transferência foi efetuada sem qualquer informação, autorização dos familiares, ou o pedido de assinatura em termos de responsabilidade e só disto souberam através daquela amiga (F).


31. A paciente encontra-se assim partir de 23.02.2016, no Hospital Distrital de Faro, onde entrou às 19h15m, em estado crítico, com diversas infeções em vários órgãos internos, e com previsão da sua recuperação muito reservada.
32. Esteve internada neste Hospital de Faro, ainda no Hospital São Sebastião EPE em Santa Maria da Feira e de novo no Hospital de Faro entre 23 de Fevereiro de 2016 e 26 de Julho de 2017.
33. A paciente, em resultado das complicações decorrentes da situação descrita acima, ocorrida no HPA como resultado das intervenções cirúrgicas de 12 e 19 de Fevereiro de 2016, veio a falecer em 26 de Julho de 2017, por encefalopatia anóxica e status pós cirurgia bariátrica, causas decorrentes e enquadráveis na deiscência anastomótica pós by pass gástrico.
34. Havia uma exigibilidade de cumprimento de deveres de cuidado, neste caso concreto, que estavam ao alcance e dentro do poder de capacidade individual dos arguidos enquanto médicos.
35. Ao terem efetuado à paciente aquela intervenção cirúrgica, os arguidos não podiam desconhecer a probabilidade de na fístula vir a ocorrer a deiscência que acabou por se verificar.
36. Daí que fosse sua obrigação, dentro das suas capacidades e deveres profissionais, anteciparem essa probabilidade, estarem atentos a ela e avançarem com diagnóstico precoce e terapêutica adequada. O que não sucedeu.
37. Ao não ter havido diagnóstico e terapêutica precoces contribuiu para não haver qualquer significativa melhoria do estado de saúde da paciente.
38. O HPA tinha a obrigação de prestar cuidados atempados e assistência à paciente, aliás, internada nas suas instalações, sempre que esta solicitava tal assistência ante as dores e os sintomas, dos quais por si só não podia defender-se ou tratar-se.

IV.2 – Dos factos não indiciados em sede de instrução
a) Ao não ter havido diagnóstico e terapêutica precoces contribuiu para o agravamento do estado de saúde da paciente, com o resultado morte, que era evitável.
b) Os arguidos agiram de forma livre e consciente, bem sabendo que com essa conduta poderiam causar a morte da paciente, resultado que não ignoravam e que ainda assim aceitaram.

IV.3 – Da fundamentação de facto
A convicção do tribunal quanto aos factos suficientemente indiciados alicerçou-se na consideração conjugada, à luz das regras da experiência, de toda a prova recolhida nos autos em sede de inquérito e de instrução.
Vejamos em pormenor.
Tanto o assistente como a testemunha (E) foram consentâneos nos seus relatos, explicando que (D) ingressou no Hospital Particular do Algarve, no dia 12.02.2016, para realizar a cirurgia de colocação de by pass gástrico pelos cirurgiões (C) e (B) tendo em vista debelar o problema de obesidade de que padecia.
Acresce que, no dia seguinte à cirurgia, a paciente queixou-se, à testemunha e ao assistente, que sentia muitas dores no abdómen e nas costas e no dia 17.02.2016 iniciou sintomas de náuseas e vómitos que logo reportaram aos profissionais de saúde, incluindo ao arguido (B). Pelos profissionais de saúde foi sempre dito que os sintomas que a paciente apresentava eram normais e típicos do pós-operatório.
Já no dia 18, reporta o assistente que (D) lhe telefonou queixando-se de que as dores tinham subido de intensidade, que vomitava constantemente e que pedia ajuda aos profissionais do Hospital, sem que ninguém a ajudasse ou aparecesse. Nessa sequência, a testemunha (E) contactou diretamente a sociedade arguida a reportar a situação.
No mais, e tendo-se mantido os sintomas e as queixas de dor, foram realizados exames, nomeadamente TAC, e nesse mesmo dia foi a paciente operada de urgência.
Concluem que no dia 21.02.2016 têm conhecimento, através de uma amiga, que (D) foi transferida para o Centro Hospitalar Universitário do Algarve sem que o Hospital Particular do Algarve (HPA) tivesse o cuidado de os informar do ocorrido, desconhecendo até ao momento quem autorizou a transferência de hospital e por que motivo, até porque, dias antes, a sociedade arguida solicitou ao assistente que efetuasse um pagamento extra, justificando o pedido pelo facto da paciente ainda se encontrar internada, pagamento esse que efetuou.
Posteriormente, (D) foi helitransportada para o Hospital de Santa Maria da Feira para tentar uma “possível recuperação”, tendo regressado em Junho de 2017 para o Centro Hospitalar Universitário do Algarve já fora do coma e com assistência nos Cuidados Intermédios mas prognóstico muito reservado, onde acabou por falecer no dia 26.07.2017 (conforme também se verifica do teor do assento de óbito a fls. 139 e 141).
Em sede de inquérito, o arguido (B) relatou que acompanhou a situação clínica de (D) nos dias posteriores à cirurgia e que reportava o estado clínico ao arguido (C).
Aduz que, nos dias seguintes à operação, a paciente apenas se queixou da fibromialgia de que padecia, tendo sido medicada para o efeito; a dor no abdómen apenas se manifestou no dia 17/02; de entre 17 e 18/02 houve um agravamento no estado clínico com náuseas e vómitos; a doente apresentava um abdómen distendido e doloroso à palpação e, nesse contexto, foi pedido um exame (TAC abdominal pélvico) e análises clínicas gerais. Nessa sequência, juntamente com o arguido C, decidiram colocar uma sonda nasogástrica na paciente, de modo a permitir o esvaziamento do estômago residual (excluído do circuito alimentar) de acordo com o que foi identificado nos exames anteriormente efetuados, foi extraído líquido durante várias horas, mas as queixas abdominais mantiveram-se.
Face ao quadro clínico, os arguidos decidiram fazer endoscopia digestiva alta sendo que, durante a endoscopia digestiva alta, o gastroenterologista consegue ver o trajeto de entrada do estômago, mas não consegue identificar o de saída; findo o exame o quadro de instabilidade manteve-se com o agravamento de taquicardia, dor abdominal, distensão e vómito, pelo que foi realizada uma cirurgia de urgência - laparotomia exploradora - de modo a verificar o que na realidade se passava na zona do abdómen, constatando-se uma deiscência (abertura) da cicatriz tendo dali saído o liquido biliar e entérico.
Na sequência disso, tentaram limpar a zona abdominal, o que foi feito por vários dias/etapas, ficando a doente "com a barriga aberta" – laparotomizada - face à "limpeza", o quadro clínico da doente estabilizou e melhorou.
Salientou o arguido que esta última cirurgia é feita com a paciente em coma induzido e constatou - através dos registos - que a (D) havia sofrido uma paragem cárdio-respiratória durante o período em que ficou em coma induzido.
Por último, conclui que desconhece quem deu a indicação de transferência da paciente para o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA).
Já o arguido (C) confirmou ter sido quem efetuou o by pass acrescentando que, após a cirurgia, a doente estava bem e não ocorreu qualquer incidente ou complicação, tanto que no dia seguinte iniciou a ingestão de líquidos.
Aditou o arguido que apenas teve intervenção na primeira cirurgia e não teve mais contacto com a doente; que realizou a cirurgia no Hospital Privado do Algarve e como tudo estava bem regressou ao Porto, tendo conhecimento dos factos após a cirurgia por intermédio do arguido (B).
Em sede de instrução, foram ouvidos os médicos que receberam e trataram a paciente no Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA).
Deste modo, a testemunha (G) recorda-se de ver (D) em muito mau estado clínico acrescentando que, em nenhum momento, os arguidos a contactaram para esclarecer o ocorrido, sendo habitual os médicos cirurgiões acompanharam os seus doentes, o que estranhou.
A testemunha foi perentória ao afirmar que todas as cirurgias têm riscos e que, na sua opinião, os arguidos deviam ter feito uma intervenção mais precoce, uma vez que quando a paciente foi transportada para o CHUA já apresentava disfunção multiorgânica.
Pese embora desconheça que procedimentos clínicos foram tomados no Hospital Privado e após uma breve súmula sobre a fístula e a sépsis contraída por (D), quando confrontada com o teor do diário clínico, junto aos autos, a testemunha constatou que dos sintomas apresentados pela paciente, no dia 17.02.20216, não era percetível que a mesma já estivesse com sépsis, muito embora seja da opinião, enquanto médica, que seria prudente monitorizar a doente.
Relativamente aos sintomas apresentados no dia 18.02.2016 declara que os mesmos se intensificaram e que se deveria intervir.
Também (H) conheceu (D) apenas quando esta foi transportada para o CHUA para os cuidados intensivos e não teve conhecimento do que ocorreu no Hospital Privado do Algarve.
Quando confrontado com o teor do diário clínico, a testemunha considerou que os sintomas apresentados pela paciente no dia 16.02.2016 não são passíveis de alarme, considerando-os normais para um pós-operatório.
Já no dia seguinte considera que os sintomas são todos “normais” para um pós-operatório, à exceção dos vómitos, mas teria de analisar a paciente para poder afirmar que procedimentos deveriam ter sido feitos.
Na mesma linha de testemunho, (I) e (J) são desconhecedores do ocorrido no HPA e não se recordam da paciente.
Sem olvidar, o Tribunal atendeu ao teor do parecer técnico-científico, junto aos autos, que nos esclarecimentos solicitados pelo arguido (B) foi categórico ao afirmar que “Ao quinto dia pós- operatório, de acordo com os registos de enfermagem, a evolução clinica não era favorável, destacando-se os vómitos persistentes (com inicio ao terceiro dia): a necessidade de suspensão da dieta hídrica, com instituição de pausa alimentar, e a ausência de restabelecimento do transito intestinal permanecendo sem emissão de gases e fezes desde a intervenção cirúrgica. A avaliação clínica médica do dia 17/02/2016, quinto dia pós-operatório. Não está registada no processo clínico (que inclui apenas o registo de enfermagem), assim como os resultados de eventual investigação efiológica para o quadro clínico apresentado. Os referidos sinais e sintomas mencionados no processo. suscitam a suspeita de uma complicação cirúrgica. A ponderação da realização de exames complementares neste momento, nomeadamente analíticos e imagiológicos. poderia ter contribuído para um diagnóstico mais precoce e uma terapêutica mais atempada.”
Deste modo, o Tribunal não teve dúvidas de que os arguidos (B) e (C) ao se depararem com os sintomas apresentados pela paciente, pelo menos, ao 5º dia do pós-operatório, ou seja, dia 17.02.2016, deveriam ter agido de modo diferente, recorrendo a exames e procedimentos médicos que só ocorreram no dia seguinte face ao agravamento do estado de saúde de (D).
Assim, e apesar de se considerar que os arguidos (B) e (C) deviam ter diligenciado antecipadamente pelo diagnóstico e respetiva terapêutica, não pode o Tribunal afirmar que não o tendo feito, a omissão dos arguidos contribuiu para o agravamento do estado de saúde da paciente, com o resultado morte e que era evitável.
Como bem refere o parecer técnico-científico “Reforça-se que as manifestações iniciais de uma deiscência anastomótica no contexto de cirurgia bariátrica podem ser inespecíficas, dificultando o diagnóstico, e que, embora um diagnóstico e uma terapêutica mais precoces da fistula da anastomose gastrojejunal do min bypass/bypass gástrico pudessem ter contribuído para a melhoria do prognóstico, esta constitui uma complicação muito grave podendo conduzir à morte mesmo com um tratamento oportuno”.
Ora, se mesmo um tratamento precoce poderia conduzir à morte, também não é certo afirmar- se que esse tratamento precoce poderia contribuir para a melhoria do estado de saúde da paciente. Tal equação cairá sempre na dúvida tanto para o Tribunal bem como para os profissionais de saúde, pelo que mais não resta ao Tribunal considerar como não indiciados os factos a) e b).
Ainda do teor do parecer juntos aos autos pode-se observar que no presente caso clínico, apesar do quadro clínico indiciar uma intercorrência pós-operatória, o diagnóstico e a terapêutica da deiscência da gastrojejunostomia foram tardios, apenas após o desenvolvimento de sépsis e do choque séptico. A deiscência da gastrojejunostomia do mini-bypass/ bypass gástrico, em contexto de choque séptico, exigiu uma abordagem terapêutica de "controlo de dano", com múltiplas intervenções cirúrgicas para controlo do foco infecioso e complicou-se por encefalopatia anóxica. No entanto, outras intercorrências contribuíram para a evolução clínica desfavorável, incluindo a hemorragia per- operatória e a fístula anastomótica (que requereu tratamento cirúrgico) que ocorreram no restabelecimento do trânsito digestivo, com esofagogastrostomia, realizado em 10 de Março de 2016; a hemorragia intra-operatória e a sépsis pós-operatória (com necessidade de re-intervenção para esplenectomia e drenagem e de tratamento de suporte de órgão), verificada após a aplicação de cola biológica na esofagogastrostomia efetuada em 10 Maio de 2016; e, ainda, a paragem cardiorrespiratória ocorrida no dia 31 de Maio de 2016, de etiologia não completamente esclarecida, e que agravou substancialmente o quadro neurológico, conduzindo à decisão de limitação terapêutica.
Com efeito, verifica-se que várias foram as intercorrências que sucederam e contribuíram para o falecimento da vítima que ocorreu 17 meses após a cirurgia bariártica, portanto, nada nos garantindo que se os arguidos agissem antecipadamente o estado de saúde desta não agravava do mesmo modo.
Sublinha-se que o facto b) induz que os arguidos sabiam que ao não diagnosticarem a paciente mais cedo podiam conduzi-la à morte, conformando-se com a conduta. Ora, não resulta dos autos qualquer prova para o efeito. Os arguidos poderiam não ter tido o cuidado que lhes era devido enquanto médicos, mas não resulta dos autos que estes equacionaram e conformaram-se que com a sua falta de ação a paciente eventualmente poderia falecer.
Resulta, para nós, claro e inequívoco que, o cotejo da prova supra enunciada, não nos permite concluir existirem indícios suficientes de que os arguidos praticaram os factos a que alude o assistente no RAI.
*
V. Enquadramento jurídico-penal dos factos
Aos arguidos (B) e (C) é imputada a prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.º 137.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.
O art.º 137.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, estabelece que:
“1 - Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos.”
A estrutura do tipo em presença é aparentemente simples e pode linearmente sintetizar-se pela forma seguinte: o respetivo sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, tratando-se, pois, de um crime comum; a conduta típica consiste em, através do emprego de qualquer meio ou mecanismo, suprimir a vida de outrem; ainda em sede de tipo objetivo, é necessário que a morte (desvalor de resultado) seja objetivamente imputável (num critério teleológico-normativo) à conduta violadora do cuidado devido.
Para que determinada conduta possa ser subsumida à materialidade objetiva do referido tipo incriminador é necessário que o agente tenha, por ação ou por omissão, realizado o resultado proibido por lei: a supressão da vida de outrem.
Neste sentido e uma vez que o evento ocasionado se distingue, em termos fenomenológicos, da conduta que lhe dá causa, pode dizer-se que o crime de homicídio negligente é, do ponto de vista da atuação do agente sobre o bem jurídico protegido, um crime material ou de resultado.
Tratando-se de responsabilidade negligente, o comportamento do agente haverá de configurar a violação de um dever objetivo de cuidado (cfr. art.º 15.º do Código Penal), sendo este o elemento normativo nuclear em torno do qual se estrutura o ilícito típico em presença.
O dever de cuidado é, “em termos dogmáticos, o ideal de um cânone de comportamento que a sociedade julga como o mais adequado à protecção de bens jurídico-penais” (Faria Costa, “O Perigo em Direito Penal”, pág. 478), e os crimes negligentes inscrevem-se, justamente em razão da imprecisão do conceito, na categoria dos chamados tipos abertos.
Revertendo ao caso dos autos, importa começar por determinar se, com a conduta por si empreendida, os arguidos violaram um qualquer dever objetivo de cuidado, cuja inobservância se possa dizer causal da morte de Maria Teresa Costa.
Assim, e desde logo, com recurso às regras da boa prática médica e tendo em vista a adoção das cautelas e cuidados necessários a evitar a produção de um resultado como o que ocorreu no presente caso por qualquer profissional médico, afigura-se-nos evidente que competiria aos arguidos, enquanto médicos, ter diagnosticado e procedido ao respetivo tratamento, pelo menos, no 5º dia do pós-operatório.
De qualquer forma, para que um determinado comportamento seja subsumível ao disposto no art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal, o resultado produzido haverá de ser imputável à concreta violação do dever objetivo de cuidado pelo agente, em conformidade com as regras da imputação objetiva.
Uma vez que a falta de observância das normas de cuidado, constituindo embora um indício do preenchimento do tipo de ilícito, não pode, em caso algum, fundamentá-lo (cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág.108), necessário se torna ainda, para que a ilicitude se afirme, que o resultado típico proibido possa ser imputado à concreta violação do dever objetivo de cuidado pelo agente, em conformidade com as regras da imputação objetiva. E isto porque “a mera omissão dum dever jurídico não implica, desde logo, a possibilidade objetiva da negligência”, sendo ao invés “necessário que esse dever jurídico se possa dizer adequado a evitar a produção do evento” (ob. cit., pág. 425). Dito de outro modo, é necessário que no dano ocasionado – no caso, a morte da vítima - se possa reconhecer uma concretização típica do perigo - no caso, para a vida da falecida - criado, assumido ou potenciado pelo agente ao não observar o dever de cuidado a que estava obrigado em razão das regras da experiência ou por força de determinada norma jurídica.

No caso dos autos, como já supra referimos e como o próprio Parecer Científico concluiu, a omissão do dever dos arguidos de diagnosticarem a paciente atempadamente pode não ter criado ou potenciado o risco de produção do resultado danoso, uma vez que a deiscência anastomótica digestiva é uma complicação grave e mesmo com um tratamento atempado, pode conduzir à morte.
Como refere o Prof. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, p,571: «(…) no caso dos crimes comissivos por omissão, a conduta em causa é uma omissão de determinada ação. Assim não se pode dizer que a omissão causou, ou não causou o resultado. O que tem de se perguntar é se a ação omitida (apesar de jurídico penalmente imposta) teria impedido o resultado. Portanto, o juízo de adequação, no caso de omissão, não é um juízo de efetividade, mas sim um juízo hipotético».
Deste modo haverá imputação do resultado à conduta omissiva, quando se comprovar que se o agente obrigado a agir tivesse realizado a ação devida, o resultado não teria ocorrido.
Ora e voltando ao caso concreto, cumpre referir que o juízo pericial do parecer técnico científico aponta no sentido de que, mesmo um diagnóstico e uma terapêutica mais precoces da fistula da anastomose gastrojejunal do min bypass/bypass gástrico pudessem ter contribuído para a melhoria do prognóstico, esta constitui uma complicação muito grave podendo conduzir à morte mesmo com um tratamento oportuno, ou seja, mesmo que os arguidos tivessem adotado a conduta que se lhes impunha não é possível concluir que teriam evitado a morte.
Conforme já referimos, só existe negligência quando a conduta do agente se traduza na criação de um risco não permitido, previsível ou cognoscível para o mesmo, e quando se verifica um resultado danoso mediante a concretização e atualização de tal risco. Assim, se o resultado - morte - se tivesse produzido ainda que tivessem sido observados todos os cuidados médicos devidos, não pode concluir-se pela negligência.
Todavia, ainda que assim não se entenda, não tendo adquirido o Tribunal a convicção segura da verdade prática sobre os factos, não poderá pronunciar os arguidos atendendo ao princípio in dúbio pro reo, o que se decide.

Do Crime de exposição ou abandono:
O assistente imputa à sociedade arguida Hospital Privado do Algarve, pessoa coletiva, o crime de exposição ou abandono, p. e p. pelo art.º 138.º do Código Penal.
Ora, ainda que do requerimento de abertura de instrução, o assistente não alegue factos nem objetivos nem subjetivos do ilícito em crise, dispõe o artigo 11.º, do Código Penal que:
“1 - Salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas singulares são suscetíveis de responsabilidade criminal.
2 - As pessoas coletivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 152.º-A e 152.º-B, nos artigos 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 176.º, 217.º a 222.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285,º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 376.º, quando cometidos:
a) Em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou
b) Por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem”.
Resulta claro, face à norma em causa que o crime imputado ao Hospital não consubstancia um crime da responsabilidade criminal de entidade coletiva, face à excecionalidade da responsabilidade criminal das mesmas.
Assim e sem necessidade de mais considerandos, não poderá ser assacada qualquer responsabilidade à sociedade arguida Hospital Privado do Algarve, o que se decide.

VI – Decisão
Face ao supra exposto, o Tribunal decide não pronunciar:
- os arguidos (B) e (C) pelo crime de homicídio por negligência grosseira, p.p. art.137.º n.º 2 do C. Penal.
- a arguida Hospital Privado do Algarve, pessoa coletiva, pelo crime de exposição ou abandono, p. e p. pelo art. 138º do C Penal.
Em consequência, determina-se o arquivamento dos presentes autos.
*
Custas pelo assistente fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.
Notifique.
Oportunamente arquive.»
û
Conhecendo.
(i) Da contradição insanável entre a fundamentação e entre a fundamentação e a decisão
Do erro notório na apreciação da prova
Pretendeu o Assistente (A), por via da abertura da fase processual de instrução, que requereu, o encaminhamento dos presentes autos para a fase processual do julgamento dos Arguidos (B) e (C), pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 2, do Código Penal, e do Hospital Particular do Algarve – Grupo HPA do Algarve –, pela prática de um crime de exposição ou abandono, previsto e punido pelo 138.º do Código Penal.
Realizada a instrução, veio a ser proferida decisão instrutória de não pronúncia.
E contra esta decisão se insurge o Assistente (A), através do presente recurso, invocando, desde logo, dois dos vícios consagrados no artigo 410.º do Código de Processo Penal, que acima se deixaram enunciados.
É consabido que são as conclusões pelo Recorrente extraídas da motivação do seu recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum – artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e, entre outros, o Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[2]] e, portanto, delimitam o objeto de recurso, assim se fixando os limites do horizonte do cognitivo deste Tribunal da Relação.
Por regra, a questão central do despacho que encerra a fase processual da instrução é a de saber se foram recolhidos indícios suficientes – pressuposto fundamental, quer da dedução de acusação, quer da prolação de despacho de pronúncia, pois, de contrário terá de ser arquivado o inquérito e proferido despacho de não pronúncia – da existência de crime e, na afirmativa, quem foi o seu agente e se este é punível.
Ponderar se os indícios probatórios recolhidos nas fases preliminares do processo – inquérito e instrução – são suficientes para justificar a submissão de arguido a julgamento pelos factos descritos no requerimento para abertura da instrução, com enquadramento jurídico-penal que o assistente lhes deu é a questão essencial a apreciar e a decidir neste recurso.
No entanto, há questões de natureza formal que não podem deixar de ser analisadas e conhecidas, ainda que não suscitadas pelo Recorrente, ou suscitadas com recorte jurídico que não é o nosso.
Temos como adquirido que não sendo a decisão instrutória – de pronúncia ou de não pronúncia – uma sentença, não lhe são aplicáveis as regras do artigo 410.º do Código de Processo Penal, porque privativas dessa peça processual.
Neste sentido, pode consultar-se, entre vários outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 9 de janeiro de 2024, proferido no processo n.º 702/19.8T9STR.E1: «I - Pese embora, em termos de sistematização, o artigo 410º, nº 2 do CPP se integre no capítulo da “Tramitação unitária do recurso” e tenha por epígrafe “Fundamentos do recurso”, o que poderia inculcar a ideia de que o seu âmbito de aplicação abrangeria todos os recursos, a verdade é que, no que diz respeito ao seu nº 2, a referência expressa à “apreciação da prova” e à “matéria de facto provada”, reconduz-nos necessariamente à peça processual a que tais referências se adequam, ou seja, à sentença. Tais vícios só poderão, pois, dizer respeito à sentença e não à decisão instrutória, conquanto nesta última, consabidamente, não existe matéria de facto provada e não provada, mas apenas matéria de facto suficientemente indiciada ou não suficientemente indiciada».
Isto posto, trataremos e decidiremos as questões suscitadas pelo Recorrente ao nível da suficiência de indícios probatórios recolhidos nas fases preliminares do processo – inquérito e instrução – que justifica a submissão de arguido a julgamento pelos factos descritos no requerimento para abertura da instrução, com enquadramento jurídico-penal que o assistente lhes deu.
E fazendo-o,
A lei estabelece parâmetros a que devem obedecer os atos processuais, designadamente as exigências de fundamentação dos atos decisórios.
Evidentemente que da decisão instrutória hão-de constar os factos considerados suficientemente indiciados e aqueles em relação aos quais se considera não existirem indícios suficientes.
E tal seleção factual – em decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia – tem de ser fundamentada, não por exigência do artigo 374.º do Código de Processo Penal [que é também norma privativa das sentenças], mas do dever genérico da fundamentação dos atos decisórios, previsto no n.º 5 do artigo 97.º do Código de Processo Penal.
Entendimento diverso impediria, em sede de recurso, avaliar a bondade das razões de decisão instrutória, de pronúncia ou de não pronúncia.
Entendimento diverso “deitaria por terra” o indiscutível entendimento de que sobre os factos considerados suficientemente indiciados, em decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia se forma caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura o processo perante a eventual descoberta de novos factos ou meios de prova.
Entendimento diverso significaria a supressão de um grau de jurisdição.
Neste sentido,
Frederico Lacerda Costa Pinto, in Direito Processual Penal, in Edição da FAFDL, 1998, página 164
J. M. Damião da Cunha, ”Ne bis in idem e exercício da ação penal”, in “Que futuro para o processo Penal”, página 557
Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 16 de dezembro de 2009 e de 16 de setembro de 2015, e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29 de outubro de2003 acessíveis em www.dgsi.pt
A leitura da decisão agora em recurso deixa-nos desconforto muito semelhante ao registado pelo Recorrente e que parcialmente fundamenta o seu recurso.
Efetivamente, a leitura da factualidade considerada indiciada, concretamente nos pontos 16, 17, 18, 19, 25, 26, 31, 33, 34, 35, 36 e 37 parece encaminhar para uma decisão de pronúncia.
Tais “factos” ao cabo e ao resto, não o são, porque não ultrapassam a mera conclusão, incapaz de permitir defesa.
Neste sentido, vejam-se os Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de novembro de 2012, proferido no processo n.º 862/11.6TAPFR.S1 e de 12 de julho de 2006, proferido no processo 06P1709, acessíveis em www.dgsi.pt/jstj
Vejamos, a título meramente exemplificativo.
No ponto 17, que problemas existiam? E qual o momento em que deveriam ter sido detetados?
No ponto 18, o que levou a paciente ao bloco operatório? Qual era a situação de urgência?
No ponto 19, o que foi encontrado nos exames, que, afinal tudo esclarecia?
No ponto 25, que diagnóstico ou terapêutica foram descurados e desatempados?
No ponto 26, porque foi tardia a deteção da fístula da anastomose gastrojejunal?
E por aí adiante…
Acresce que algumas das “conclusões” que constam dos pontos “da matéria de facto considerada como suficientemente indiciada” – 16, 17, 18, 25, 26 – bem como aqueles que constam dos pontos 19, 20, 21, 22, 23, 24 são inequívoca e irremediavelmente contraditórios.
São a afirmação simultânea de uma coisa e do seu contrário.
E clamorosamente incompatível é também o que consta do ponto 33 dos “da matéria de facto considerada como suficientemente indiciada” e o que consta da alínea a) “da matéria de facto considerada como não suficientemente indiciada”.
Aí se diz, na referida alínea a) que ao não ter havido diagnóstico e terapêutica precoces contribuiu para o agravamento do estado de saúde da paciente, com o resultado morte, que era evitável.
E no ponto 33 afirma-se que a paciente (D), em resultado das complicações decorrentes da situação acima descrita, ocorridas no Hospital Particular do Algarve, como resultado das intervenções cirúrgicas de 12 e 19 de fevereiro de 2016, veio a falecer em 29 de julho de 20167, por encefalopatia anóxica e status post cirurgia bariátrica, casas decorrentes e enquadráveis na deiscência anastomótica post by pass gástrico.
Neste contexto, a factualidade considerada na decisão em recurso surge de forma surpreendente e incompreensível.
Os “factos” considerados na decisão em recurso, com as características que lhes deixamos assinaladas, não suportam qualquer decisão – de pronúncia ou de não pronúncia –, pelo que não podem acolher-se.
E a sua fundamentação é particularmente escassa e, por isso, incapaz de os perceber e justificar, deixando os pareceres técnicos que se encontram junto ao processo por poucas referências ao seu conteúdo e conclusões, introduzidas de forma desgarradas e sem sentido.
A jurisprudência não é unânime quanto à natureza da invalidade que agora tratamos.
Parte dela encontra-se citada, com os argumentos de suporte, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16 de setembro de 2015, proferido no processo n.º 12/09.9TAVGS e acessível em www.gdsi.pt – acima já indicado e que temos seguido.
Como refere o Professor Cavaleiro de Ferreira [[3]], «… a apreciação do processo, em razão do seu fim, desdenha do que para esse fim foi acidental ou desnecessário, embora em si mesmo ilegal
A imperfeição do ato processual, por via da não observância da norma ou normas que regulam o seu processamento, pode assumir formas diversas consoante a gravidade do vício que lhe subjaz, desde a mera irregularidade até à inexistência.
Entre estes dois extremos, encontram-se os vícios que dão lugar à nulidade.
Esta, por sua vez, subdivide-se em nulidade insanável e nulidade dependente de arguição.
O nosso Código de Processo Penal adotou um sistema de nulidades taxativas.
Princípio que se encontra consagrado, de forma inequívoca no artigo 118.º do referido diploma legal e que é complementado por uma rigorosa delimitação geral e especial das causas de nulidade, sejam elas insanáveis ou dependentes de arguição.
E as irregularidades são tratadas, também na lei processual penal, como uma subespécie das nulidades, fazendo-lhes corresponder um vício de menor gravidade e submetendo-as a um regime de arguição limitado.
Mas o “retrato” nítido das irregularidades apenas se consegue por contraposição com o regime das nulidades propriamente ditas, sendo tendencialmente correto afirmar que constitui irregularidade aquele defeito que não é causa de nulidade. E dizemos “tendencialmente” porque o legislador, associando às irregularidades os defeitos que não são causa de nulidade, acaba por lhes atribuir – contra o que seria de esperar – efeitos invalidantes próprios das nulidades [algumas irregularidades determinam a invalidade do ato a que se referem e dos termos subsequentes que aqueles possam afetar, acabando por produzir os mesmos efeitos das nulidades].
Por outro lado, em matéria de irregularidades consagrou-se uma “válvula de segurança”, no n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal, quando se permite ordenar oficiosamente a reparação daquelas que possam afetar o valor do ato praticado.
Dito de outra forma, quando na génese da irregularidade está uma omissão, pode ordenar-se a reparação oficiosa desse vício quando o ato omitido, podendo ainda ser praticado, afete o valor dos atos subsequentes.
A situação que nos ocupa não encontra consagração na lei processual penal como nulidade.
Mas constitui irregularidade, de conhecimento oficioso, a exigir reparação, dada a gravidade que acarreta para a decisão em causa.
Dito de outra forma, quando na génese da irregularidade está uma omissão, pode ordenar-se a reparação oficiosa desse vício quando o ato omitido, podendo ainda ser praticado, afete o valor dos atos subsequentes.
É o caso dos autos.
E fica declarada a irregularidade.

(ii) Quanto ao crime de exposição ou abandono, previsto e punível pelo artigo 138.º do Código Penal
Não temos qualquer dúvida quanto ao acerto da decisão recorrida.
Do disposto nos artigos 13.º e 11.º do Código Penal decorre, com toda a clareza, que o crime de exposição ou abandono não pode ser cometido pela Sociedade Arguida Hospital Privado do Algarve.
E porque assim é, aderimos à decisão recorrida, sem nada lhe acrescentar, para evitar a prática de ato inútil.
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Com o estrito propósito de auxiliar à boa administração da justiça e porque o processo contém elementos clínicos bastantes e esclarecedores, fazemos um relato daqueles que se nos afiguram relevantes para ultrapassar as dificuldades que deixámos assinaladas.
As fistulas/deiscências anastomóticas constituem uma das mais terríveis complicações da cirurgia digestiva e têm um importante impacto na mortalidade e morbilidade operatórias.
A sua patologia é multifatorial, incluindo, entre outros, fatores relacionados com o doente, as doenças subjacentes, a intervenção cirúrgica.
Uma anastomose bem-sucedida exige uma técnica cirúrgica meticulosa, com evicção de isquémia, tensão excessiva e obstrução distal.
A obesidade, a infeção e a desnutrição constituem fatores predisponentes para a falência de uma anastomose digestiva. No entanto, uma fistula anastomótica pode ocorrer mesmo na ausência de fatores de risco identificados.
Na fase inicial, as manifestações clínicas e imagiológicas de uma fistula anastomótica digestiva são frequentemente inespecíficas.
(D), no dia 12 de fevereiro de 2016, foi sujeita a intervenção cirúrgica bariátrica programada por obesidade mórbida.
Do seu quadro clínico subjacente consta fibromialgia, doença bipolar, dislipidemia, esteatose hepática e colecistectomia. Fazia medicação associada.
O nexo de causalidade entre os sintomas que a (D) apresentou após a intervenção cirúrgica e o seu falecimento é difícil de estabelecer, pois para este contribuíram todos os eventos adversos verificados nos procedimentos terapêuticos posteriores.
A morte ocorreu cerca de 17 (dezassete) meses após a cirurgia bariátrica, cerca de 14 (catorze) meses após a última intervenção cirúrgica e 13 (treze) meses após a decisão de limitação terapêutica.
E nestes 17 (dezassete) meses,
(i) No dia 18 de fevereiro de 2016 – sexto dia pós-operatório –, apresentando a (D) náuseas, vómitos, taquicardia, abdómen distendido e doloroso, ruídos peristálticos escassos, estado subfebril, com pele e mucosas ligeiramente descoradas e desidratadas e sob oxigenação, foi realizada
- uma tomografia computorizada abdominopélvica, sem contraste endovenoso e sem contraste oral, cujo relatório refere ”significativa distensão hídrica do estômago, quadro duodenal e ansas de jejuno até à anastomose com a bolsa gástrica, ponto a partir do qual as ansas de delgado apresentam um calibre normal, nomeadamente a ansa eferente. Preenchimento hídrico da porção distal do esófago. Ligeira quantidade de líquido ascítico perihepático, interansas no flanco esquerdo. Lâminas atelectásicas do parênquima de ambas as bases pulmonares;
- foi introduzida sonda nasogástrica, com drenagem de 500ml de líquido em quatro horas;
- foi realizada endoscopia digestiva alta, de cujo relatório consta “esófago de aspeto normal com algum conteúdo líquido esverdeado na sua porção distal. Anastomose gastrojejunal sem evidência de desicência. Apenas se individualiza uma ansa que se encontra preenchida com conteúdo líquido e coloca-se sonda no lúmen da ansa (sonda nasojejunal).
(ii) No dia 19 de fevereiro de 2016 – no sétimo dia pós-operatório –, apresentando-se a (D) em choque, com náuseas, vómitos biliares, polipneia, taquicardia e distensão abdominal,
- foi submetida, de urgência, a laparostomia mediana exploradora, “encerramento do coto gástrico com derivação de ansa de delgado à pele, lavagem peritoneal, drenagem e laparostomia com colocação de sistema de vácuo;
- per-operatoriamente, foi constatada deiscência de gastrojejunostomia, com disfunção multiorgânica, designadamente cardiovascular, renal, respiratória, hematológica e hepática;
- foi realizada uma TC abdominal que revelou “derrame pleural de pequeno volume bilateralmente, infiltrados pulmonares bilaterais. SNG no segmento distal do esófago. Extremidade distal do tubo traqueal distalmente à carina, no brônquio principal direito.
(iii) No dia 20 de fevereiro de 2016 foi realizada revisão de laparostomia, lavagem peritoneal e gastrotomia com Foley.
(iv) No dia 23 de fevereiro de 2016 foi realizada nova revisão de laparostomia, com lavagem e gastrostomia com Foley (“gastrostomia com saída de conteúdo biliar”).
(v) No dia 23 de fevereiro de 2016 a doente foi transferida para o Hospital Distrital de Faro e não mais regressou ao Hospital Particular do Algarve.
(vi) No dia 25 de fevereiro de 2016 foi realizada nova revisão de laparostomia e durante esta intervenção foi constatada “drenagem de conteúdo biliar e sair pelo orifício da gastrostomia” e “jejunostomia com edema marcado da parede, não funcionante”.
(vii) No dia 1 de março de 2016 foi realizada nove revisão de laparotomia, jejunojejunostomia, encerramento do orifício de gastrostomia e jejunostomia Witzel, ap´s tentativa infrutífera de gastrojejunostomia.
Na mesma ocasião, foi executada traqueostomia eletiva.
(viii) No dia 5 de março de 2016 foi realizada nova revisão de laparotomia, com encerramento de pequena deiscência na sutura do encerramento gástrico com PDS.
(ix) No dia 8 de março de 2016 foi realizada nova revisão da laparotomia, colocação de esponja de fibrinogénio humana (“a reforçar o encerramento da anterior da anterior fístula gástrica”) e remoção da sonda de jejunostomia (“extremidade da sonda de jejunostomia fora do lúmen intestinal”).
(x) No dia 10 de março de 2016, a doente foi re-operada, tendo-se procedido a “gastrectomia polar superior “ (“englobando a região da sutura gástrica e superfície cruenta da mesma”, “secção gástrica distal com GIA”), “isolamento e secção do esófago distal com Roticulator”, piloroplastia, esofagogastria com ILS21 e colocação de sonda nasogátrica transanastomótica. Durante a intervenção foi identificada “fuga pela sutura gástrica realizada anteriormente em local de gastrojejunostomia” e “surgiu hemorragia importante de vasos curtos e de vasos espelénicos, controlada com pontos hemostáticos”. A anastomose esofasogástrica foi concretizada apenas à segunda tentativa (por ausência de “agrafamento” do dispositivo automático de secção e sutura) e, no final, verificou-se um orifício anastomótico com necessidade de reforço com PDS2 (anel esofágico de aplicação da ILS21 “com falta de material e teste azul ade metileno com evidência de extravasamento”).
(xi) No dia 12 de março de 2016, foi realizado “encerramento da parede abdominal, sob prótese Omya de dupla face” com fitas PSD e Ethibond”.
(XII) No dia 8 de abril de 2016, a doente foi transferida para a Unidade de Cuidados Intermédios do Serviço de Urgência (UCISU), onde permaneceu até 10 de maio de 2016.
(xiii) No dia 21 de abril de 2016, foi colocado à paciente “clip por via endoscópica por fístula de anastomose esofagogástrica.
(xiv) No dia 10 de maio de 2016, foi executada laparotomia subcostal esquerda e “encerramento da fístula” esofasogástrica “com cola biológica” e colocação de sonda nasogástrica intra-gástrica, após verificação de “solução de continuidade” por endoscopia digestiva alta pero operatória e instilação de azul de metileno. O procedimento cirúrgico foi complicado por hemorragia per-operatória (600ml).
Ainda no dia 10 de maio de 2016, a doente foi transferida para a UCIP do Hospital de Faro, onde permaneceu até 23 desse mês, tendo desenvolvido choque misto séptico e hipovolémico (por abcesso subfrénico e rutura de hematoma esplénico) e “status de encefalopatia anóxica”.
(xv) No dia 13 de maio de 2016, a doente foi relaparotomizada, pela incisão subcostal esquerda, com esplenectomia, “laqueação de vaso curto” e drenagem. Durante a intervenção foi constatado “hematoma subcapsular do baço, extenso, com rutura, com drenagem hematopurulenta” e “emissão de líquido purulento”
(xvi) No dia 15 de maio de 2016, foi realizada nova traqueostomia e drenagem torácica por pneumotórax.
(xvii) No dia 20 de maio de 2016, o relatório de tomografia computorizada, entretanto realizada, descrevia, “A nível intracraniano, não se identificaram lesões hemorrágicas intra/extra-axiais. Não se identificaram sinais TDM de lesões vasculares recentes. Não se observaram sinais de edema. Sistema ventricular e espaços cisternais permeáveis (…). Alguns focos consolidativos no pulmão esquerdo. Há ligeira redução volumétrica do derrame pleural esquerdo (…). Abertura da parede abdominal à esquerda, na sequência de cirurgia prévia, com densificação dos planos na região do hipocôndrio esquerdo, onde se verifica material de drenagem, não se identificando evidentes coleções abecedadas. (…) Pequena lâmina líquida/ espessamento adjacente a parede gástrica e à abertura da parede gástrica e à abertura da parede abdominal (…)”.
(xviii) A doente permaneceu internada na UCIP do Hospital de Faro no período compreendido entre 10 de maio e 23 de maio de 2016, tendo sido transferida, nesta data, para a Unidade de Cirurgia Bariátrica do Hospital de S. Sebastião do Centro Hospitalar Entre-o-Douro e Vouga, E.P.E,, por fístula da anastomose esofasogástrica, persistente, com “drenagem purulenta vestigial por dreno abdominal”, “marcadores elevados de infeção e episódios febris”. Neste Hospital, realizou TC toracoabdominopélvica que não revelou, segundo o processo, extravasamento de contraste oral, pneumoperitoneu u coleções organizadas intra-abdominais, tendo sido descrito solução de continuidade na parede abdominal anterior.
(xix) No dia 31 de maio de 2016, “ao posicionar a doente para a realização de toracocentese diagnóstica, período de braquicárdia extrema: sincope vagal. Sem resposta à atropina. Diagnosticada PCR em DEM. Reversão ao fim de 6 mim. Após este episódio foi necessário “suporte vasopressor durante dois dias” e uma TC cerebral de contraste revelou enfartes extensos em ambos os hemisférios, talâmicos bilaterais e centro-mesencefálico, interpretado no contexto de “hipoperfusão”.
(xx) No dia 2 de junho de 2016, a avaliação por neurologista indicava que prognóstico por neurologista indicava “que prognóstico funcional é assumidamente mau”.
(xxi) No dia 3 de junho de 2016, face ao quadro apresentado, foi decidido que “pela situação clínica global, pelo novo episódio de PCR com AESP, rapidamente revertida mas em doente com baixa reserva e novo agravamento neurológico, pela ausência de indicação cirúrgica/sem condições/risco para cirurgia, institui-se limitação terapêutica conforme discutido em grupo, bem como com Cirurgia Geral.
(xxi) No dia 7 de junho de 2016, foi removido o dreno abdominal.
A doente regressou ao Hospital de Faro (UCIP e UCISU), tendo sido transferida para o Serviço de Medicina em 27 de setembro de 2016, com diagnóstico de “lesão cerebral anóxica e polineuropatia do doente em estado crítico.
Entretanto, em 22 de junho de 2016, foi colocada sonda nasojejunal por estase gástrica.
(xxii) O relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal do Gabinete Médico Legal e Forense do Sotavento Algarvio, em 20 de setembro de 2017, refere que a doente apresentava-se consciente, não orientada, cumpre ordens simples, caquética ECG 9”. (…) Não efetua marcha. (…) Acamada. Redução da mobilidade ativa. Mobilidade ativa com espasticidade. (…) Traqueostomia.”
(xxiii) A doente faleceu no dia 26 de julho de 2017, no Serviço de Medicina do Hospital de Faro.
(xxiv) do certificado de óbito consta, como causa de morte, encefalopatia anóxica, status pos-cirurgia bariátrica complicado, dependência total e cistites de repetição.
No decurso do internamento hospitalar da doente verificaram-se várias infeções associadas aos cuidados de saúde, por microrganismos multirresistentes.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes desta 2.ª Subsecção do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência,
a) revogar a decisão instrutória recorrida, a qual deve ser substituída por outra em que se mostrem supridas as apontadas irregularidades;
b) manter, no mais, a decisão recorrida.
Sem tributação.

Évora, 19 de março de 2024
Ana Bacelar
Carlos de Campos Lobo
Maria Perquilhas

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[1] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[3] ] Lições de Processo Penal, Volume I, página 269.