ABUSO DE DIREITO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
Sumário

Actua com abuso de direito, no exercício do direito à resolução do contrato com fundamento em encerramento do arrendado, nos termos do disposto no art. 1083°, n° 2, alínea d), do Código Civil, o locador que ao longo de quase cinco anos, com o seu assentimento e conhecimento, aceita a manutenção pacífica de tal situação de incumprimento contratual, sendo que através de membros dos seus corpos sociais e de funcionários usa o arrendado para guardar ali os seus veículos, quando necessitavam, retirando proveito da não utilização do arrendado. E só quando o arrendatário pôs termo a essa não utilização é que decidiu exercer o direito à resolução do contrato.

Texto Integral

Processo n. 13699/19.5T8PRT.P1– Apelação

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Sumário:
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Clube ..., associação com sede na Rua ..., ... Porto, propôs contra A..., Lda., com sede na Praça ..., Porto, acção com processo comum, pedindo que seja decretada a nulidade do contrato de arrendamento referido no artigo 6º da petição inicial, com a imediata restituição do locado ao A. e com todas as demais consequências legais. Caso assim não se entenda, deve ser decretada a resolução do contrato de arrendamento sub judice e em consequência, ser a Ré condenada a entregar à Autora o locado, livre e desocupado de pessoas e bens, completamente limpo e asseado, com todas as portas, vidros e chaves e mais pertenças, em bom estado de funcionamento e sem deteriorações, com todas as legais e devidas consequências.
Alega para tanto, em síntese, que é proprietária de um prédio urbano, constituído por uma área de 1165 metros quadrados, sito na Praça .... ... Porto, No dia 1 de Novembro de 2014. Autora e Ré celebraram um contrato de arrendamento para fins não habitacionais da divisão com utilização independente 339AL do referido prédio urbano, afecta a estacionamento coberto fechado, pelo prazo de 30 anos, com início em 1 de Novembro de 2014 e termo em 31 de Outubro 2044 e pela renda anual de € 9.600, a ser paga em duodécimos de € até ao primeiro dia útil do mês anterior a que respeitasse. Mais ficou convencionado que a partir de 1 de Novembro de 2016. a renda anual relativa ao imóvel aumentaria para € 12.000 anuais, pagável em duodécimos de €. 1.000.00. Acordaram também que o locado destinar-se-ia ao "exercício de qualquer comércio, nomeadamente à área de hotelaria e restauração em geral e/ou indústrias com elas conexas ou similares, não lhe podendo ser dado outro fim ou uso, ser sublocado, no todo ou em parte, gratuita ou onerosamente, sem consentimento expresso e escrito da senhoria, sob pena de resolução contratual, prevendo a cláusula nona do referido contrato que "Ambos os contraentes sabem que o locado, presentemente, ainda não tem licença de utilização para o ramo de negócio objecto deste contrato, indo, por esta razão, ser intervencionado pela arrendatária e a expensas destas, com as obras necessárias para o dotar dos requisitos indispensáveis para a licença de utilização competente, cujo pedido será subscrito pela arrendatária, com a necessária e indispensável autorização da senhoria, a qual se compromete a assinar toda e qualquer documentação que venha a ser exigida pela Câmara Municipal ... ou por outra entidade, necessariamente intervenientes no processo de licenciamento". Volvidos quase cinco anos. a Ré continua a não ter licença de utilização para o ramo de negócio objeto do referido contrato, sendo que a R.. tem mantido o locado encerrado desde a celebração do contrato. Face à inexistência de licença de utilização para o negócio a que se destinaria o locado, mantendo-se em vigor a licença de utilização anterior, que não corresponde à finalidade do contrato de arrendamento celebrado em 1 de Novembro de 2014, o mesmo é nulo, nos termos conjugados dos artigos 2o. 4o e 5o do Decreto-Lei n° 160/2006. de 8 de Agosto. Ainda que se assim não se entenda, a Ré mantém o locado encenado há mais de um ano e sem que no locado tenha executado qualquer actividade, designadamente relacionada com o destino do arrendado, pelo que o autor tem direito à resolução do contrato de arrendamento ajuizado, nos termos conjugados dos artigos 1083° e 1084° do Código Civil.
Citada a ré, contestou, no essencial dizendo que o sócio-gerente da Ré era também sócio-gerente da sociedade que explorava o estabelecimento contíguo, o café restaurante B..., do qual também é senhorio o aqui A. e tinha interesse, face a essa proximidade, em tomar também de arrendamento o espaço em discussão nestes autos, e pretendia alargar o âmbito das actividades a poder exercer nesse local à área de hotelaria e restauração em geral, que também era exercida no referido estabelecimento contíguo, com o que o A. concordou. Fizeram por isso constar do contrato um objecto muito amplo: "exercício de qualquer comércio, nomeadamente à área de hotelaria e restauração em geral e/ou indústrias com elas conexas ou similares, ...", devendo-se a referência expressa à restauração a ser essa a actividade que, à partida, mais interessaria à Ré, mas sem tal menção condicionar a Ré inquilina a essa específica actividade. Uma vez que o A. não quis ser ele a obter a licença de utilização para essa actividade de restauração, o A. permitia que a R. fosse ocupar o arrendado e se quisesse exercer a actividade de restauração teria depois de obter a respectiva licença. Por alguma hesitação quanto ao destino a dar ao arrendado, e também pelos atrasos na concessão das licenças para restauração, a Ré optou por manter a utilização que vinha de trás (estacionamento coberto fechado), com o acordo e assentimento do A., que disso beneficiava, pois quer membros dos seus corpos sociais quer funcionários passaram a guardar os seus veículos no arrendado, quando necessitavam, sendo normal deixarem as chaves dos veículos no referido estabelecimento comercial contíguo, para que os veículos pudessem ser movimentados quando fosse preciso. A Ré, com processo pendente e a aguardar a emissão do respectivo alvará, no início de 2019 optou por abrir no local um estabelecimento de comércio a retalho de bebidas em estabelecimento (garrafeira), que tem estado a exercer até ao presente. Em 7 de Junho de 2019, na sequência de queixa do A., foi enviada à Ré pela CM... a decisão com o seguinte teor: "Considerando que o estabelecimento em assunto possui Alvará de utilização n.° ...... para serviços, e registo de licenciamento Zero" n.° .., existe qualquer desconformidade no âmbito dos presentes serviços. Envia-se cópia do presente despacho ao requerente, arquivando-se o presente expediente de seguida", que tem um lapso de escrita manifesto - deveria constar "não existe qualquer desconformidade". Assim, a Ré estava e está a exercer no arrendado uma actividade para a qual tem licença, como a CM... confirmou. A actividade de restauração ainda não foi exercida no locado, nem tinha de o ser, não tendo o arrendado estado sem qualquer actividade, nem houve falta de licenciamento. De qualquer forma. sempre o comportamento do A. teria de ser considerado abuso de direito, ao permitir que a Ré continuasse a utilizar o local como estacionamento fechado, ao conviver e beneficiar dessa utilização colocando lá os veículos, para agora vir criticar essa utilização e com ela fundamentar a resolução do contrato. Conclui pela procedência das excepções e pela procedência da acção.
Foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador, que fixou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a ré do pedido.
Não se conformando com a sentença proferida, dela interpôs o autor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
I. A decisão recorrida assenta numa errada apreciação da prova produzida e padece, além do mais, de erro de julgamento, violando o disposto nos artigos 1072º n.º 1, 1083º e 1084º, todos do Código Civil, bem como a alínea e) do artigo 2º e artigo 4º, ambos do Decreto-Lei nº 160/2006, de 8 de agosto, dando origem a uma decisão que urge revogar.
A) Dos Concretos Pontos De Facto Que A Recorrente Considera Incorrectamente Julgados
II. Não deveriam ter sido dados como provados os factos constantes dos pontos 7 e 10 da Fundamentação de facto.
III. Deveria ter sido dado como provado que a recorrida manteve o locado encerrado por um período superior a um ano.
B) Os Concretos Meios Probatórios Constantes Do Processo Que Impunham Decisão Sobre Os Pontos Da Matéria De Facto Impugnados Diversa Da Recorrida
140. No que se refere ao ponto 7 o mesmo deve forçosamente ser alterado uma vez que a prova testemunhal produzida não foi convincente de modo a dar como provado que foi instalada, a partir de inícios de 2019, uma garrafeira no locado, sendo certo que da prova documental junta aos autos (os acima identificados extractos de consumos de água e electricidade, inexistência de contrato de comunicações e internet, IES e extractos das transacções realizadas e fotografias - (de fls..., remetidos ao processo pelas respectivas entidades e notificados às partes através da notificação com referência citius 430875021, de fls...., junto aos autos com o requerimento de 30/09/2020, com a ref citius 36650352 e de fls.. ..junto aos autos com o requerimento e de fls...., junto aos autos com o requerimento de 29/10/2020, com a ref citius 36958103, de fls..., remetidos ao processo pelas respectivas entidades e notificados às partes através da notificação com referência 436690349 e notificação de 23/03/2022 com referência 434834990 e), que demonstram que a actividade da recorrida nos anos 2018 e 2019 foi absolutamente residual, sendo certo que nunca esta teve quaisquer funcionários ao seu serviço.
IV. A redacção do ponto 10 deveria também ser diferente, uma vez que o locado, anteriormente à celebração do contrato em causa nos autos, não era usado como estacionamento fechado mas sim como terminal de autocarros, tal como resultou dos depoimentos da testemunha AA, (sessão de julgamento de 13/06/2022, ficheiro áudio 20220613105238_15488806_2871493.wma) entre os minutos 00:04:12 e 00:04:30 e entre os minutos 00:20:32 e 00:20:49, da testemunha BB (sessão de julgamento de 29/06/2022, ficheiro áudio 20220629100621_15488806_2871493.wma) entre os minutos 00:04:12 e 00:04:34 e da testemunha CC (sessão de julgamento de 13/06/2022; (ficheiro áudio 20220613102343_15488806_2871493.wma) entre os minutos 00:03:48 e 00:04:11.
V. A recorrida não se limitou a manter a utilização do locado que já "vinha de trás", antes passou a tê-lo encerrado ao público, deixando de ali desenvolver qualquer actividade comercial.
VI. A prova testemunhal produzida quanto ao suposto assentimento do recorrente quanto à utilização que era feita do espaço, nomeadamente por os corpos sociais e funcionários ali estacionarem as suas viaturas, está pejada de contradições entre os vários depoimentos, que encerraram declarações falsas e que por isso não deveriam ter sido levados em conta.
VII. A grande movimentação de carros a que algumas testemunhas aludiram era afinal no largo em frente à garagem (espaço público) e não para entrar e sair da mesma, como foi explicado pelo legal representante da recorrente (sessão de julgamento do dia 29/06/2022, ficheiro áudio 20220629102117_15488806_2871493.wma) entre os minutos 00:09:44 e 00:13:54 e corroborada por aquilo que as testemunhas foram sem querer admitindo, como é o caso da testemunha AA (sessão de julgamento de 13/06/2022 ficheiro áudio 20220613105238_15488806_2871493.wma) entre os minutos 00:07:28 e 00:08:15 e entre os minutos 00:20:50 e 00:22:23.
VIII. Quando questionadas sobre alguns pormenores da utilização da garagem, os depoimentos das testemunhas foram incongruentes, pelo que não deveriam ter sido considerados, sendo exemplo disso as declarações da testemunha AA sessão de julgamento de 13/06/2022 ficheiro áudio 20220613105238_15488806_2871493.wma), em confronto com as declarações da testemunha DD (sessão de julgamento de 13/06/2023 (ficheiro áudio 20220613111815_15488806_2871493.wma) entre os minutos 00:17:08 e 00:17:59, da testemunha EE (sessão de julgamento de 13/06/2022 (ficheiro áudio 20220613143812_15488806_2871493.wma) entre os minutos 00:11:26 e 00:53 e da testemunha FF (sessão de julgamento de 13/06/2023 (ficheiro áudio 20220613145106_15488806_2871493.wma) entre os minutos 00:13:30 e 00:14:08.
IX. Desde a celebração do contrato de arrendamento, o locado permaneceu encerrado, tal como confirmaram a testemunha BB (sessão de julgamento do dia 29/06/2022, ficheiro áudio 20220629100621_15488806_2871493.wma) entre os minutos 00:04:37 e 00:05:33 e os minutos 00:06:22 e 00:07:12 a testemunha GG (sessão de julgamento de 13/06/2022, ficheiro áudio 20220613101130_15488806_2871493.wma.) entre os minutos 00:06:19 e 00:07:15 e a testemunha CC (sessão de julgamento de 13/06/2022, ficheiro áudio 20220613102343_15488806_2871493.wma) entre os minutos 00:04:19 e 00:05:19, bem como o legal representante do recorrente nas suas declarações de parte, entre os minutos 00:07:02 e 00:08:48 e 00:09:07 e 00:09:51.
X. Mesmo que alguns veículos fossem estacionados na garagem, tal não é o mesmo que ter uma actividade comercial a ser desenvolvida no locado.
XI. Deveria ter sido considerado PROVADO que a autora desde a data referida em 4., até inícios de 2019 manteve o imóvel encerrado, sem qualquer actividade comercial, sendo certo que a actividade de restauração não foi exercida.
XII. Deveria ser considerado NÃO PROVADO que "No período de tempo referido em 7., a ré manteve a utilização do espaço que vinha de trás - estacionamento coberto fechado - o que fez com o assentimento da autora e conhecimento, sendo que a autora, quer através de membros dos seus corpos sociais quer funcionários passaram a guardar ali os seus veículos, quando necessitavam, sendo habitual que as chaves ficassem no estabelecimento comercial referido em 8., para que os veículos pudessem ser movimentados se fosse preciso"
XIII. Deveria ser acrescentado um novo facto ao elenco dos factos provados, dando como PROVADO que a Ré manteve o locado encerrado por um período superior a um ano.
141. Deveria ter sido considerado NÃO PROVADO que "após inícios do ano 2019 a ré instalou no locado um comércio para venda a retalho de bebidas garrafeira)".
C. Da Aplicação Do Direito Aos Factos
i. Da nulidade do contrato de arrendamento por falta de licença de utilização
XIV. O contrato em causa nos autos foi celebrado em Novembro de 2014 com a finalidade de comércio, tendo ficado previsto que as partes não poderiam dar outro uso o locado.
XV. Estando demonstrado que o locado esteve encerrado ao público pelo menos entre 2014 e 2019, não tem razão o Tribunal quando diz que o locado possuía licença para a actividade que lá estava a ser exercida, porquanto nenhuma actividade estava a ser efectivamente exercida.
142. O contrato tem de ser lido e interpretado no seu conjunto e as partes fizeram constar que "o locado, presentemente, não possui licença de utilização para o ramo de negócio objecto deste contrato, indo por esta razão ser intervencionado pela arrendatária e a expensas destas, com as obras necessárias para o dotar dos requisitos indispensáveis para a emissão de licença de utilização competente, cujo pedido será subscrito pela arrendatária (...)", de onde decorre que a sua vontade era que o locado fosse destinado à restauração.
ii. Da resolução do contrato de arrendamento por não uso do locado por período superior a um ano
XVI. O senhorio não age em abuso de direito ao pretender resolver o contrato com fundamento no não uso do locado por mais de um ano, tanto mais que no caso concreto estamos perante uma associação e o facto de não ter sido operada a resolução pelas anteriores direcções de forma alguma cria a aparência de que esta jamais será feita, uma vez que o facto de uma direcção ter cometido erros jamais vincula as que se lhe seguem a prosseguir no mesmo erro.
XVII. Foi opção do legislador prever que a resolução do contrato por não uso, sendo este um facto duradouro, pode ser operada no prazo de um ano a contar da cessação do facto (não uso).
XVIII. Considerar abuso de direito a conduta do recorrente só porque este não resolveu o contrato anteriormente, seria colocar em causa o próprio instituto da caducidade: não se pode considerar abuso de direito o exercício de um direito dentro do prazo que a lei para tal confere.
XIX. O locado esteve encerrado ao público e não foi usado para o fim contratual entre, pelo menos, 2014 a 2019;
XX. O contrato não autoriza que o locado permaneça encerrado e, como tal, a recorrida violou o artigo 1072º n.º 1 do Código Civil, sendo fundamento de resolução nos termos do artigo 1083º e 1084º do mesmo diploma.

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A ré apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.ºs 5.º, 635.º n.º 3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), as questões a resolver no presente recurso consistem na reapreciação da prova, na nulidade do contrato de arrendamento e na ausência ou não de abuso de direito, e, e por essa via, em saber se a acção deve ser julgada procedente nos termos peticionados pelo recorrente.
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A 1.ª instância considerou provados e não provados os seguintes factos:
a) factos provados:
1. O autor é uma associação cultural e recreativa, sem fins lucrativos, com estatuto de utilidade pública.
2. Encontra-se descrito na CRP do Porto, sob o n.º ... um prédio urbano correspondente a uma casa de três pavimentos com loja e duas sobrelojas, no rés- do-chão, primeiro andar, segundo e torreão e a uma casa de dois pavimentos com a área coberta de 400 m2, rés-do-chão e andar e pátio com a área de 40 m2, o qual se encontra inscrito a favor do autor mediante a inscrição Ap. ... de 1930/ 10/28.
3. Tal prédio é composto por nove divisões de utilização independente entre as quais o rés-do-chão correspondente ao n.º ... da Praça ..., com o art.º matricial ..., fracção ... e, em 15/2/2019, descrito na AT como estando afecto a estacionamento coberto e fechado.
4. Por acordo celebrado em 1/11/2014, o autor, representado por HH e II, respectivamente seu presidente e tesoureiro, declarou dar de arrendamento à ré, representada por AA, seu sócio e gerente, declarou aceitar %..) a loja com entrada pelo n.° ..., sita na Praça ..., desta cidade do Porto, a qual faz parte do prédio urbano sito à Praça ... (...)', pelo prazo de 30 anos, com início em 1/11/2014 e termo em 31/10/2044, renovável por períodos de 10 anos, mediante a entrega mensal da quantia de 800,00 euros e a partir de 1/ 11/2016 de 1.000,00 euros.
5. Mais acordaram que:
- "O local arrendado destina-se ao exercício de qualquer comércio, nomeadamente à área de hotelaria e restauração em geral e/ou industrias com elas conexas ou similares, não lhe podendo ser dado outro fim ou uso
- "A locadora autoriza, desde já, que a arrendatária proceda à realização de obras de adaptação do local aqui arrendado, com vista ao melhor exercício das actividades previstas no objecto social compatível com o estipulado na cláusula antecedente, incluindo as necessárias à instalação de equipamento de exaustão e ar condicionado (...)"
- "Ambos os contraentes sabem que o locado, presentemente, não tem licença de utilização para o ramo de negócio objecto deste contrato, indo por esta razão ser intervencionado pela arrendatária e a expensas destas, com as obras necessárias para o dotar dos requisitos indispensáveis para a emissão de licença de utilização competente, cujo pedido será subscrito pela arrendatária, com a necessária e indispensável autorização da senhoria, a qual se compromete a assinar toda e qualquer documentação que venha a ser exigida pela Câmara Municipal ... ou por outra entidade, necessariamente intervenientes no processo de licenciamento. "
6. No referido acordo intervieram JJ, KK, AA e LL que, em nome próprio, declararam que "como fiadores e principais pagadores declaram aceitar o presente contrato nos precisos termos em que é celebrado e assumem, solidariamente com a arrendatária, a obrigação pelo total e pontual cumprimento da renda e demais obrigações decorrentes do presente contrato suas prorrogações e, bem assim, declaram renunciar ao benefício de excussão prévia dos bens da afiançada responsabilizando-se ainda e também quando ocorra actualização de rendas."
7. A autora desde a data referida em 4., até inícios do ano de 2019 manteve o imóvel encerrado, sem qualquer actividade comercial e após essa data instalou um comércio para venda a retalho de bebidas (garrafeira) que tem vindo a exercer a sua actividade de um modo intermitente, sendo certo que a actividade de restauração não foi exercida.
8. O sócio gerente da ré era também o sócio gerente da sociedade C..., Lda que explorava o estabelecimento contíguo, o café restaurante B..., do qual o autor é senhorio.
9. Para além disso, por si e enquanto sócio gerente de outras sociedades explora outros estabelecimentos no mesmo correr de edifícios pertencentes ao autor: D..., Lda. explora o estabelecimento de restauração denominado E..., sito na Praça ...; e AA explora o estabelecimento de restauração sito na Rua ...
10. No período de tempo referido em 7., a ré manteve a utilização do espaço que vinha de trás - estacionamento coberto fechado - o que fez com o assentimento da autora e conhecimento, sendo que a autora, quer através de membros dos seus corpos sociais quer funcionários passaram a guardar ali os seus veículos, quando necessitavam, sendo habitual que as chaves ficassem no estabelecimento comercial referido em 8., para que os veículos pudessem ser movimentados se fosse preciso.
11. Em 16/4/2019, o autor apresentou junto da CM... e da ASAE uma queixa por más condições de salubridade do estabelecimento comercial referido em 7, tendo a CM... procedido à sua inspecção em 11/6/2019 e, em 13/6/2019 sido emitida proposta de extinção do procedimento por não terem sido "visualizados riscos para a segurança e saúde das pessoas.", a qual se tornou definitiva e comunicada à ré por ofício datado de 24/9/2019.
12. Em 4/6/2019 a CM... havia já decidido que "Através de email registado pelo n.º (...) a ASAE dá conhecimento da reclamação apresentada naqueles serviços referente ao estabelecimento sito na Praça ....
Considerando que o estabelecimento em assunto possui alvará de autorização de utilização n.° ...... para serviços e registo de "licenciamento zero" n.° .., existe qualquer desconformidade no âmbito dos presentes serviços."
13. A ré no ano de 2018 apresentou na CM... um pedido de licenciamento de obras a executar no imóvel descrito em 3., a qual foi atribuído o n.º ......, tendo sido notificada, por ofício datado de 26/1/2021, da aprovação do projecto de arquitectura e do prazo de 6 meses para a apresentação dos projectos de especialidades correspondentes.
14. O P/172455/18/CMP foi suspenso, com a citação, em 30/3/2021, do Município ... para os termos do procedimento cautelar instaurado pelo autor de suspensão da eficácia do ato administrativo praticado pelo Vereador do Pelouro do Urbanismo em 21/1/2021 que aprovou o projecto de arquitectura, o qual veio a ser indeferido por decisão proferida em 31/5/2021.
15. No âmbito do processo P/172455/18/CMP a CM..., em 9/6/2022, atestou que ainda não havia sido promovida a audiência prévia da ré relativamente à intenção de caducidade do ato de aprovação do projecto de arquitectura por falta de apresentação dos projectos de especialidades e que tinha sido apresentado um requerimento ...... - com um pedido de suspensão do processo até decisão final destes autos.
16. O autor propôs outras acções de despejo e procedimentos cautelares que tiveram por objecto arrendamentos nos quais são inquilinos sociedades geridas pelo sócio gerente da ré e o próprio sócio gerente em nome próprio.
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b) Factos não provados.
1. Os factos alegados nos art.ºs 19.º (quanto à data), 20.º, 21.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 43.º e 44.º da contestação.
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A presente apelação tem como primeiro escopo a alteração da decisão sobre matéria de facto, invertendo-se para não provada a matéria dos pontos 7) – no segmento “após essa data instalou um comércio para venda a retalho de bebidas (garrafeira) que tem vindo a exercer a sua actividade de um modo intermitente, sendo certo que a actividade de restauração não foi exercida” – e 10) dos factos considerados provados. Dando-se como provado o inverso, ou seja, que a recorrida manteve o locado encerrado por um período superior a um ano. O recorrente cumpre os pressupostos de ordem formal para se proceder à reapreciação da decisão da matéria de facto, tendo transcrito os excertos que, no seu entender, apoiam a sua tese. Em conformidade, e nos termos do art. 662º, n.º 1 CPC, a Relação reaprecia a prova, tendo, para tal, procedido à audição integral dos registos fonográficos.
As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (artigo 341.º do CCivil). A prova em processo comum não pressupõe uma certeza absoluta ou ontológica, mas, por outro lado, também não se pode quedar na mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, p. 191). A livre apreciação da prova, consagrada no art.º 396.º do C. Civil, é uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves, da «liberdade para a objectividade» (Rev. Min. Pub. 19º, 40).
Importa liminarmente deixar claro que não constitui obstáculo à valoração de quaisquer depoimentos de testemunhas a circunstância de uma parte ter contra elas apresentado queixa-crime por falsidade, ou anunciado vir a fazê-lo, mesmo juntando cópia da respectiva denúncia. Na hipótese, estatisticamente pouco frequente, de semelhante queixa surtir efeito, dando lugar a uma condenação, pode haver lugar a recurso extraordinário de revisão, nos termos do artigo 696.º do CPC. Até então, deve o tribunal valorar a prova testemunhal pelo valor intrínseco que patenteia e segundo o seu prudente critério.
A Mma. Juíza fundamentou a sua convicção a respeito do período em questão nos depoimentos das testemunhas MM, que foi funcionário do autor entre Setembro de 2012 e Junho de 2017, JJ, filho do sócio gerente da ré e também sócio, DD, que desde o início de 2015 até finais de 2018 utilizou semanalmente o locado como garagem quando se deslocava à F... que funciona numa parte das instalações do autor, bem como FF, EE, empregado de mesa do café restaurante B... contíguo, e NN, dirigente do autor até 2014. O recorrente não põe em crise a razão de ciência destes depoimentos, mas sustenta terem sido prestadas declarações falsas. Baseando-se, no essencial, no conjunto de documentos juntos, a saber extractos de consumos de água e electricidade, ausência de contrato de comunicações e internet, IES e extractos das transacções realizadas e fotografias, com referências citius 430875021, 36650352, 36958103, que na sua perspectiva demonstram que a actividade da recorrida nos anos 2018 e 2019 foi absolutamente residual, e, por outro lado, em contradições e incongruências entre os depoimentos das testemunhas AA, DD, EE e FF.
Afigura-se não existirem elementos da prova documental que definitivamente invalidem o acerto da convicção formada pela Mma. Juíza. Quanto aos consumos de água, não se razão para que um estabelecimento de venda a retalho de bebidas, ou garrafeira, tivesse necessariamente que consumir uma quantidade elevada de metros cúbicos de água, mormente existindo um estabelecimento comercial ao lado pertencente a um sócio da ré, cujas instalações sanitárias podiam ser ocasionalmente usadas pelos funcionários em serviço no arrendado. Idêntica ordem de razões vale para os consumos de electricidade, desconhecendo-se se haveria necessidade de gastos elevados que ultrapassassem o estritamente necessário à iluminação do local. Tão pouco o serviço de internet e telefone fixo era estritamente necessário ao funcionamento do estabelecimento, que poderiam ser substituídos pelo telemóvel, sem considerar a possibilidade de utilização da rede sem fios do estabelecimento contíguo.
Quanto às testemunhas a que o recorrente pretende retirar crédito, se exceptuarmos JJ a sua relação com o objecto da causa não evidencia interesses pessoais reveladores de falta de isenção e susceptíveis de enviesar a veracidade dos seus depoimentos. Os relatos que fazem são coerentes entre si, ressalvadas uma ou outra diferenças de pormenor, pouco significativas, e lapsos de memória explicáveis pelo decurso do tempo. Deve ainda registar-se que, para além dos depoimentos referenciados pela Mma. Juíza, também os depoimentos das GG e de CC, absolutamente neutras relativamente às partes, tal como MM, confirmam expressivamente a matéria dos pontos 7) e 10) sob impugnação, que vão assim confirmados, mantendo-se inalterada a factualidade considerada pela 1.ª instância.
Em face de tal matéria, cumpre apreciar as questões de direito suscitadas pelo recorrente, começando pela invocada nulidade do contrato por falta de licença para a actividade que para que foi celebrado. Sustenta o recorrente que, tendo as partes feito constar que "o locado, presentemente, não possui licença de utilização para o ramo de negócio objecto deste contrato, indo por esta razão ser intervencionado pela arrendatária e a expensas destas, com as obras necessárias para o dotar dos requisitos indispensáveis para a emissão de licença de utilização competente, cujo pedido será subscrito pela arrendatária (...)",a sua vontade era que o locado fosse destinado à restauração, conduzindo à nulidade do mesmo a falta dos requisitos indispensáveis ao exercício de tal actividade. A douta sentença recorrida considerou que “O locado possuiu e possuía licença de utilização para o comércio/serviços, como o confirmou a CM...; já não possui licença de utilização para a exploração da actividade de hotelaria e restauração em geral. Contudo, não foi essa a única actividade para o exercício da qual o contrato foi celebrado, não foi essa a finalidade exclusiva do contrato, pois se fosse as partes não teriam previsto que o locado se destinava "ao exercício de qualquer comércio", sendo que o uso do advérbio "nomeadamente", usado para acrescentar, destacar, especificar ou pormenorizar informação, não é sinónimo de exclusividade ou do advérbio «exclusivamente", mas de "designadamente", por exemplo. Nomeadamente significa sobretudo; principalmente; mormente, mas não exclusivamente. E tudo isto para concluirmos pela não verificação da nulidade apontada pelo autor, pois que o imóvel possuía e possui licença de utilização e possui licença de utilização para o fim que lhe está a ser dado, o qual também está incluído no previsto pelas partes no contrato de arrendamento celebrado. Afigura-se irrecusável o acerto de tais considerações. As cláusula quarta e quinta em que o recorrente sustenta a sua arguição não se limitam a descrever a situação à época, prevendo as partes a necessidade do específico licenciamento do local para a sua utilização no âmbito da actividade de restauração, e prevendo alternativas a essa utilização. Tendo a recorrida, face a não obtenção daquele licenciamento, exercido no arrendado outra actividade, a falta de licença para aquela actividade não torna o contrato nulo, inexistindo a invocada nulidade.
Vejamos agora se ocorre o abuso direito por parte do recorrente, como concluiu a sentença. Nos termos do actual art. 1083°, n° 2, alínea d), do Código Civil, é fundamento de resolução do contrato por parte do senhorio «O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no artigo n.º 2 do artigo 1072.º». Esta alínea corresponde no essencial, ao que vinha previsto. nas alíneas h) e I) do n.º 1 do artigo 64.º do RAU. A lei anterior distinguia entre o não uso do locado para fins não habitacionais e a falta de habitação ou residência permanente, em qualquer dos casos, por mais de um ano. No caso vertente, porém, entendeu a Mma. Juíza que a resolução do contrato com tal fundamento na não utilização do locado por mais de 1 ano não pode ser atendida, porquanto, “se é verdade que desde 2014 até ao início do ano de 2019 a ré na instalou no locado qualquer actividade comercial, utilizando-o como garagem em seu benefício, não menos verdade é que ficou demonstrado que o autor tinha conhecimento de tal facto, assentindo nele, não manifestando qualquer tipo de oposição e até utilizando o espaço para os membros da sua direcção e funcionários, também, aparcarem os seus veículos. Ora, esta conduta passiva do autor durante cerca de 5 anos e agora a intenção da resolução do contrato com fundamento na não utilização do locado reconduz-se à figura jurídica do abuso de direito na modalidade venire contra factum proprium”. A posição acolhida é de sufragar aqui, tendo já sido sufragada em hipótese com alguma afinidade com a presente, por Ac. desta Relação e Secção de 23/10/2012 (Rel. Des. Cecília Agante, Processo 437/10.7TVPRT.P2, www.dgsi.pt). Aí se entendeu, baseando-se na doutrina de Vaz Serra, in B.M.J. 85, pág. 305, Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, vol. I, pág. 204) e Baptista Machado, (“Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, pág. 394), que o não exercício prolongado do direito de invocar a nulidade de contrato de arrendamento comercial pode estar na base da situação de confiança, tornando-se relevante se os elementos circundantes permitirem a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que o titular do direito não mais o exercerá. “É esse investimento de confiança que justifica que o beneficiário não seja desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis”. Ora, o exercício do direito à resolução do contrato nas circunstâncias vertentes excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, devendo o Tribunal, ao invés de decretar a resolução, paralisá-la, considerando que o exercício do direito ofende, no caso concreto, manifesta, clamorosa e intoleravelmente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico e social do direito. Como vem provado, ao longo de quase cinco anos, desde 1/11/2014 até inícios do ano de 2019 a ré manteve o imóvel encerrado, sem qualquer actividade comercial. Tal sucedeu com o assentimento e conhecimento do autor, sendo que o autor, quer através de membros dos seus corpos sociais, quer através de funcionários, usou o arrendado para guardar ali os seus veículos, quando necessitavam, sendo habitual que as chaves ficassem no estabelecimento comercial contíguo para que os veículos pudessem ser movimentados se fosse preciso. Ou seja, o recorrente retirou proveito da não utilização do arrendado, e só quando a recorrida pôs termo a essa não utilização é que decidiu exercer o direito à resolução do contrato.
No caso em apreço, a manutenção pacífica de tal situação de incumprimento contratual por um período tão dilatado, e no contexto descrito, é susceptível de criar no outro contraente a convicção de que as relações contratuais assim vão subsistir, não obstante a inobservância do disposto no art. 1083°, n° 2, alínea d), do Código Civil. A frustração de tal expectativa, para satisfação de interesses estranhos àqueles que ditaram o fundamento legal da resolução, põe em causa a boa fé negocial e a tutela da confiança. Ocorrendo, como ocorre, abuso de direito, tudo se passa como se tal fundamento não existisse, com a consequente manutenção da relação contratual.
Improcede, pois, em conclusão, a apelação, confirmando-se na íntegra a sentença recorrida.

Decisão.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, em função do que confirmam a sentença recorrida.
Custas em ambas as instâncias pela apelante.

Porto, 20/2/2024
João Proença
Alberto Taveira
Anabela Dias da Silva