EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DO INSOLVENTE A SER EXCLUÍDO DA CESSÃO AOS CREDORES
Sumário

I - A situação de insolvência implica uma gestão criteriosa e rigorosa do (novo) rendimento resultante da obrigatoriedade de cessão da quantia pecuniária, fixada pelo tribunal, aos credores, durante o período legal.
II - Considerando os princípios de adequação, proporcionalidade e equilíbrio entre os interesses contrapostos dos credores e do insolvente, norteados pela imperiosa exigência de se assegurar uma existência condigna, afigura-se adequada a fixação do valor correspondente a dois salários mínimos nacionais à insolvente cujo agregado familiar é constituído pelo marido, portador de incapacidade permanente global de 19,2%, e um filho de 13 anos de idade, e que, para além das despesas correntes, suporta despesas de saúde.

Texto Integral

Processo n.º 1184/23.5T8AMT.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunta: Maria Eiró

Adjunto: Fernando Vilares Ferreira


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO

AA, declarada insolvente em consequência de débitos contraídos com contratos de crédito e bancários, pediu a exoneração do passivo restante, invocando que preenche todos os requisitos e dispõe-se a observar todas as condições previstas nos artigos 236º nº 3 e 237º e seguintes do CIRE.

Nenhum credor se manifestou contra o pedido formulado pela insolvente.

A insolvência foi qualificada como fortuita.


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Proferiu-se decisão que fixou à insolvente como rendimento disponível, todo aquele que exceder o valor de 1 salário mínimo nacional, acrescido de ¼, a multiplicar por doze meses, com início após o trânsito do despacho de encerramento do processo.

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Inconformada com a decisão, a insolvente interpôs recurso finalizando com as seguintes

Conclusões

I - O presente recurso tem por objecto a douta decisão proferida nestes autos, em 09-11-2023, no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante requerido pela recorrente, concretamente, do segmento da sentença em que o tribunal recorrido decidiu que durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), considera-se cedido à Sr.ª Fiduciária, o rendimento disponível da recorrente, e limitou o rendimento disponível a apenas todo aquele que exceder o valor de 1 salário mínimo nacional, acrescido de 1/4, valores que serão multiplicados por doze meses, ao contrário do que havia sido peticionada pela recorrente que requereu lhe fosse fixado um rendimento disponível equivalente a € 1.878,39;

DA NULIDADE DA DECISÃO NOS TERMOS DO ARTIGO 615.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO C.P.C.

II - Muito embora a recorrente tenha alegado no seu requerimento de apresentação à insolvência as despesas atinentes à sua vida pessoal e familiar, bem como os rendimentos que auferia, a sentença em causa foi absolutamente omissa quanto a tal matéria, tendo fixado à insolvente como rendimento disponível o valor mínimo constante da sub alínea i) da alínea b) do art.º 239.º do CIRE, ainda que acrescido de 1/4, nos termos e com os limites já mencionados;

III - A sentença em recurso nada refere quanto à situação pessoal, familiar, social e laboral da recorrente, muito embora tenha sido em devido tempo alegada na petição inicial toda a factualidade atinente a essa matéria, não contestada por quem quer que fosse;

IV - A recorrente alegou e documentou na petição inicial em que formulou o pedido de exoneração do passivo restante, os seguintes factos que considerou pertinentes para a fixação do rendimento disponível pelo Tribunal:

15 - A requerente é uma cidadã de nacionalidade portuguesa, nasceu em ../../1991, na freguesia ..., concelho de Marco de Canaveses, sendo actualmente casada; [Cfr. certidão de assento de nascimento n.º ..., do ano de 2007, e certidão de assento de casamento n.º ..., do ano de 2009, que ora junta, documentos que, tal como os demais, aqui se dão por integrados e reproduzidos para todos os legais efeitos - Doc. n.ºs 1 e 2, infra] – art.º 1.º da P. I.;

- A requerente tem um filho, menor, a saber:

-BB, nascido no dia ../../2010 [Cfr. certidão de assento de nascimento n.º ..., do ano de 2010 - Doc. n.º 3, infra] – art.º 2.º da P. I.;

- A requerente, marido e filho do casal, residem em casa do marido da requerente, CC, imóvel que foi adquirido por este antes do casamento, na Rua ..., n.º ..., 3.º Dt.º, ... e ..., ... ... e ..., Marco de Canaveses – art.º 3.º da P. I.;

- A requerente trabalhou como assalariada na área da restauração/ churrasqueira take away nos anos de 2019 e 2022, recebendo equivalência por prestação de desemprego até Dezembro de 2020, mas desde então é doméstica, apenas faz as lides de casa, não exercendo qualquer actividade remunerada, estando a receber Abono de Família para Crianças e Jovens, não recebendo outras pensões, subsídios, prestações ou complementos sociais [Cfr. Doc. 4, 5, 6 e 7, infra], e padece de várias doenças, incluindo depressão – art.º 4.º da P. I.;

- O marido da requerente exerce a actividade profissional de trolha da construção civil, por conta de outrem, sendo portador de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 19,2% [Cfr. Atestado Médico de Incapacidade Multiuso - Doc. 8, infra], encontrando-se na situação de baixa médica, por doença, desde Março de 2022 (V. infra), auferindo actualmente Equivalência por Prestação de Doença, do valor mensal, variável, de cerca de € 425,00 mensais [Cfr. Doc. 9, infra] – art.º 5.º da P. I.;

- O Abono de Família auferido pela requerente, referente ao filho, menor, e a Prestação de Doença auferida pelo marido da requerente constituem o único rendimento do agregado familiar [Cfr. Doc. 4 a 9, infra] – art.º 6.º da P. I.;

- A requerente e seu agregado, sobrevivem com o apoio dos seus amigos e familiares mais próximos, traduzindo-se tal apoio em fornecimento regular, inclusive em sua casa, de bens alimentares e das refeições, bem como, quando absolutamente necessário, na compra de vestuário, calçado e medicamentos, e ainda outras despesas do dia-a-dia – art.º 7.º da P. I.;

- A situação económica da requerente é insustentável, pois não consegue fazer face às necessidades mais elementares da sua vida – art.º 17.º da P. I.;

- E, consequentemente, não consegue liquidar qualquer quantia das dívidas contraídas, as quais foi tentando cumprir até onde lhe foi possível – art.º 18.º da P. I.;

16 - A requerente, assim que se apercebeu que não tinha possibilidades de fazer reverter a sua frágil situação económico-financeira, começou, de imediato, a procurar alternativas de trabalho mas, até ao presente momento, sem êxito, sempre na convicção de honrar as suas obrigações – art.º 19.º da P. I.;

- Pelas referidas circunstâncias, maxime pela falta de emprego que lhe proporcionasse um salário, e pela falta de saúde, viu-se impossibilitada de cumprir as respectivas despesas do dia a dia, vendo-se obrigada a incumprir as prestações dos contratos de crédito para aquisição de bens essenciais e dos cartões bancários e, por via disso, as obrigações para com os seus credores – art.º 20.º da P. I.;

- Algures em 2017, entrou numa grave depressão, o que a levou a faltar ao trabalho e a entrar de baixa médica, de forma intermitente, durante largos meses seguidos, com a consequente diminuição / corte abrupto do rendimento proveniente do seu trabalho – art.º 22.º da P. I.;

- Conforme alegado, a requerente, por último, trabalhou como assalariada na área da restauração / churrasqueira take away nos anos de 2019 e 2022, porém, por falta de saúde e de um trabalho condigno e adequado à sua situação particular de especial fragilidade, não lhe foi possível manter um trabalho regular, e desde então apenas faz as lides de casa, não exercendo qualquer actividade remunerada, e cuida do filho menor, de 13 anos de idade – art.º 23.º da P. I.;

- Devido à depressão, necessita de tratamentos, consultas e medicamentos constantes e bastante caros, para estabilização do seu estado de saúde, tendo de ser acompanhada regularmente, o que levou a um aumento das suas despesas – art.º 24.º da P. I.;

- A requerente, sem qualquer actividade laboral e muito doente, pelas razões referidas, encontra-se totalmente fragilizada e exaurida, sobrevivendo a própria, seu marido e filho, menor, com o apoio dos seus amigos e familiares mais próximos, traduzindo-se tal apoio em fornecimento mais ou menos regular, inclusive em sua casa, de bens alimentares e das refeições, bem como, quando absolutamente necessário, na compra de vestuário, calçado e medicamentos, e ainda outras despesas do dia-a-dia – art.º 25.º da P. I.;

- A requerente atribui a sua actual situação financeira às causas seguintes:

- Padecimento pela requerente de várias doenças, em que avulta uma depressão grave, que lhe foi diagnosticada cerca do ano 2017, maleitas que se vêm agravando nos últimos anos, obrigando a tratamentos, consultas e medicamentos constantes e bastante caros, para estabilização do seu estado de saúde, tendo de ser acompanhada regularmente, o que levou a um aumento das suas despesas, e impedindo-a de realizar qualquer actividade laboral remunerada, que não consegue obter de forma minimamente compatível com o seu estado de total fragilidade e exaustão físico-psíquica;

- Recurso a contratos de crédito e cartões bancários, para aquisição de bens essenciais, junto do Banco 1..., Banco 2... e A..., que não vieram a ser cumpridos, por manifesta incapacidade económico-financeira da requerente;

- Agiu sempre de boa fé e plena confiança perante as incidências e dificuldades da vida, e para com as pessoas com quem se relacionou, porém, sem que estas retribuíssem da mesma forma para com a requerente;

- Grave crise económica que assolou, e ainda assola, o País, e que se reflectiu no aumento do custo de vida, principalmente produtos alimentares e energia, com consequências na diminuição do orçamento da requerente [Cfr. Documento que, nos termos do artº 24º, nº 1, al. c), do CIRE, se junta como Anexo III, infra] – art.º 26.º da P. I.;

- A requerente não dispõe de quaisquer bens móveis, nem sequer os imprescindíveis à sua economia doméstica – art.º 27.º da P. I.;

- A Requerente não é titular de quaisquer veículos automóveis – art.º 28.º da P. I.;

- A requerente não é dona de quaisquer prédios rústicos ou urbanos [Cfr. Relação que, nos termos do artº 24º, nº 1, al. e), do CIRE, se junta como Anexo IV, infra] – art.º 29.º da P. I.;

- A requerente considera como necessárias e terá de suportar, com seu marido, em condições normais e de dignidade, ou seja, de forma a não viver na total dependência dos seus familiares, para a satisfação das suas necessidades mais elementares, de seu marido e do seu filho, menor, de 13 anos de idade, matriculado no 8.º na Escola Básica ..., e consigo conviventes, as seguintes despesas fixas mensais:

a) Alimentação da requerente, seu marido e filho menor, atendendo também às necessidades deste, em montante de cerca de € 600,00;

b) Prestação de “crédito hipotecário – aquisição habitação” pelo marido da requerente, antes do casamento – c) Empréstimo n.º ......, em montante de cerca de € 280,86;

d) Prestação de “crédito hipotecário – sem finalidade” – Empréstimo n.º ..., referente ao mesmo imóvel, em montante de cerca de € 45,86;

e) Seguro de casa, referente ao mesmo imóvel, em montante de cerca de € 17,18; f) Condomínio, referente ao mesmo imóvel, em montante de cerca de € 34,49;

g) Artigos de arranjo e higiene pessoal, da requerente, marido e filho, tais como sabão, sabonetes, champô, gel de banho, corte de cabelo, em montante de cerca de € 150,00;

h) Vestuário e calçado, da requerente, marido e filho, em montante de cerca de € 100,00;

i) Assistência médica e medicamentosa [consultas, respectivas deslocações e farmácia], da requerente, marido e filho, em valor mensal médio de € 150,00.

 j) Água: em valor mensal médio de € 40,00;

k) Electricidade, em valor mensal médio de € 80,00;

l) Gás, em valor mensal médio de € 40,00;

m) Transportes (transportes públicos), em valor mensal médio de € 120,00;     

n) Formação, Cultura e Lazer da requerente e seu marido, em valor mensal médio de € 40,00;

o) Educação e instrução escolares, Formação, Cultura e Lazer do filho da requerente, em valor mensal médio de € 90,00;

p) Despesas com telecomunicações e tv, no valor mensal médio de € 90,00; Total: € 1.878,39 [Cfr. Doc. 10 a 18, infra] – art.º 30.º da P. I.;

- Significa isto que, qualquer despesa extraordinária, nomeadamente de saúde, que surja na vida do agregado da requerente, não tem qualquer sustentabilidade – art.º 31.º da P. I.;

- Não fora a ajuda permanente de amigos e familiares, nomeadamente do irmão e filhos da requerente, e a requerente não teria capacidade financeira para suportar o custo das suas necessidades mais básicas – art.º 32.º da P. I.;

V - A recorrente juntou na P. I. suporte documental dos narrados encargos e despesas, assim como das doenças, suas e de seu marido, impeditivas do regular exercício de actividade remunerada;

VI - Também, no seu Relatório, a Sr.ª Administradora de insolvência exarou, além do mais, que “nos contactos estabelecidos no âmbito das funções de administradora judicial, pudemos confirmar os factos alegados”;

VII - Os factos acima descritos e alegados pela recorrente na sua P. I. não foram impugnados pelos credores, nem pelo Ministério Público, nem por quem quer que fosse, pelo que ficaram definitivamente assentes nos autos;

VIII - A senhora administradora de insolvência no relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE acolheu na integra os factos alegados pela recorrente quanto à sua situação patrimonial, doenças e encargos e despesas suportadas, tendo-os feito constar do referido relatório, que foi aprovado pelos credores da recorrente;

IX - A sentença em recurso nada refere quanto a estes factos, sendo absolutamente omissa quanto à sua fundamentação, quer de facto, quer de direito;

X - A livre apreciação da prova não contende com o dever/imposição de fundamentação/motivação das decisões judiciais – artigo 205.º da CRP;

XI - Tal omissão acarreta a nulidade da sentença recorrida – artigo 607.º, n.º 4, do Cód. P. Civil;

XII - Dispõe o art.º 154.º do CPC que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas;

XIII - E a alínea b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

XIV - É inequívoco que a sentença recorrida, omitindo, na integra, os factos alegados pela recorrente e assentes nos autos quanto à sua condição económica e encargos e despesas que suporta com a sua vida familiar e necessárias a um sustento minimamente digno, é nula por falta absoluta de fundamentação de facto e de direito;

XV - A sentença em recurso limitou-se a fixar o rendimento disponível da recorrente em apenas todo aquele que exceder o valor de 1 salário mínimo nacional, acrescido de ¼;

XVI - De acordo com o texto da Lei, a determinação do rendimento disponível envolve um juízo e ponderação casuística do juiz sobre o montante a fixar, o que, manifestamente, não sucedeu com a sentença em recurso;

XVII - Em conclusão, na fundamentação de facto da sentença recorrida, o Tribunal recorrido não efectuou o imperioso exame crítico das provas que lhe incumbia fazer, violou, assim, o disposto no artigo 607.º, n.º 4, do Cód. P. Civil;

XVIII - Padece, assim, a sentença recorrida de nulidade e/ou no mínimo de erro de julgamento, por violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Cód. P. Civil;

SEM PRESCINDIR: SE DEVE SER FIXADO À RECORRENTE UM RENDIMENTO DISPONÍVEL NO VALOR DE € 1.878,39

XIX - A decisão recorrida considerou que devem ser cedidos aos credores do insolvente todos os rendimentos que lhes advenham e que excedam a quantia correspondente a 1 salário mínimo nacional, acrescido de 1/4, valores que serão multiplicados por doze meses, montante que permitirá assegurar que se mantenha o agregado familiar a viver em condições de normalidade e subsistência e que permite, ainda que parcialmente dar alguma satisfação a este instituto da exoneração do passivo restante e às legítimas expetativas dos credores;

XX - A recorrente, pelo contrário, defende que necessita da quantia de € 1.878,39 para assegurar a subsistência do seu agregado familiar;

XXI - O artigo 239.º, n.º 2, estabelece: «o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhido pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência…»;

XXII - O n.º 3 do mesmo preceito refere que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão, na parte que aqui importa, do que seja razoavelmente necessário para «o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional» (alínea b), subalínea i));

XXIII - A insolvente está desempregada, vive com o filho, de 13 anos de idade, estudante, e seu marido, em casa que é propriedade única deste, por ter sido adquirida antes do casamento, contribuindo/ devendo contribuir para o pagamento das Prestações de “crédito hipotecário-aquisição habitação”, “crédito hipotecário – sem finalidade”, Seguro de casa e Condomínio; 20 XXIV - Seu marido é portador de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 19,2%, o qual actualmente se encontra de baixa médica, situação que se verifica há já algum tempo;

XXV - A insolvente suporta mensalmente valores médios com eletricidade, água, gás e, ainda, o valor necessário à sua sobrevivência, designadamente com alimentação, saúde, vestuário e calçado;

XXVI - Além disso, necessita de tratamentos, consultas e medicamentos constantes e bastante caros, devido a depressão de que padece desde 2017 e outras doenças várias;

XXVII - Ora, a quantia correspondente a um salário mínimo nacional, acrescida de 1/4, fixada na decisão recorrida (cerca de € 950,00) seria insuficiente para cobrir as despesas consideradas provadas e, nesse sentido, também inferior ao razoavelmente necessário para o sustento da insolvente – alínea i) do n.º 3 do citado artigo 239.º do CIRE;

XXVIII - Ao decidir fixar como rendimento disponível da requerente apenas e tão só o acima dito, não levando em consideração a actual condição pessoal da recorrente e das despesas que, em devido tempo, alegou e documentou, o tribunal recorrido violou a norma contida na sub alínea i) da alínea b) do art.º 239.º do CIRE;

XXIX - Por isso, sem prejuízo da nulidade da sentença por omissão de fundamentação, o Tribunal recorrido fez uma errada interpretação da norma supra citada, para além de que violou o principio constitucional da Dignidade Humana contida no Principio do Estado de Direito, afirmado no art.º 1.º da Constituição da Republica Portuguesa e também na aliena a) do n.º 1 do art.º 59.º da CRP, que exige que se salvaguarde aos devedores o mínimo indispensável a uma existência condigna; XXX - Deste modo, a sentença recorrida é ilegal, por violação das normas supra citadas, pelo que deve ser substituída por uma outra que contemple um rendimento mínimo disponível que garanta o sustento minimamente digno da recorrente e do seu agregado familiar, equivalente ao valor de € 1.878,39, ou outro, julgado adequado ao caso dos autos, nos termos acima expostos;

XXXI - Sem prescindir, ainda que se considere que a quantia de que a insolvente e agregado necessitam para o seu sustento não deverá ser fixada no valor peticionado, no que não se concede, deverá então fixar-se outro, que seja julgado adequado, mas em qualquer caso razoavelmente superior ao fixado pelo Meritíssimo Tribunal “a quo”;

XXXII - Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, designadamente, o disposto nos artigos 154.º, 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1, alínea b), do Cód. P. Civil, 235.º e 239.º, n.ºs 2 e 3, alínea b), subalínea i) do CIRE, 1.º e 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição.


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II—Delimitação do Objecto do Recurso

A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, para além da nulidade apontada à sentença, consiste em determinar o montante indisponível do rendimento da insolvente.


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Da nulidade

A Recorrente sustenta que a decisão é nula por falta de fundamentação uma vez que, apesar de ter alegado factos que espelham as despesas que tem de suportar, nenhuma menção foi feita sobre as mesmas.

As causas de nulidade da sentença estão elencadas no artigo 615.º, n.º 1 nas alíneas a) a e) do C.P.Civil.

A sentença, após identificar as partes, o objecto do litígio e enunciar as questões que cumpre solucionar, expõe os fundamentos, ou seja, discrimina os factos que considera provados e não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras da experiência (cfr. n.ºs 2 a 4 do art. 607.º do C.P.Civil).

Como se sabe, a fundamentação da decisão permite aos destinatários a compreensão do sentido da decisão e a reapreciação da causa, em caso de recurso.

É nula a sentença quando nomeadamente não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão—cfr. artigo 615.º, n.º 1, al.b) do C.P.Civil.

Tem sido entendido, de forma reiterada e unânime pela doutrina e jurisprudência, que este vício (falta de fundamentação) só existe no caso de se verificar uma absoluta e total falta de fundamentação, quer ao nível do quadro factual apurado quer no que respeita ao respectivo enquadramento legal.

Assim, a sentença que contenha uma deficiente, incompleta ou não convincente fundamentação não enferma deste vício.

Trata-se, portanto, de um vício de natureza meramente formal (omissão total da discriminação dos factos e/ou das normas jurídicas aplicáveis) e não substancial.

Apesar de se reconhecer que foram omitidos muitos dos factos alegados pela Recorrente, a verdade é que não se pode considerar que a decisão é nula por total falta de fundamentação.

A insuficiência manifesta do quadro factual, face ao que foi alegado pela Recorrente, será sanada por este Tribunal ad quem.


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III—FUNDAMENTAÇÃO

Atento o disposto no artigo 607.º (declaração dos factos provados e não provados) aplicável por força do art. 663.º, n.º 2, ambos do C.P.Civil, importa enunciar todos os factos relevantes para a decisão que se encontram documentalmente assentes nos autos:

FACTOS PROVADOS

- A requerente é uma cidadã de nacionalidade portuguesa, nasceu em ../../1991, na freguesia ..., concelho de Marco de Canaveses, sendo actualmente casada;

- A requerente tem um filho, BB, nascido no dia ../../2010;

- A requerente, marido e filho do casal, residem em casa do marido da requerente, CC, imóvel que foi adquirido por este antes do casamento, na Rua ..., n.º ..., 3.º Dt.º, ... e ..., ... ... e ..., Marco de Canaveses, estando a pagar de prestação as quantias de €280,86 e €45,86;

- A requerente trabalhou como assalariada na área da restauração/ churrasqueira take away nos anos de 2019 e 2022, recebendo equivalência por prestação de desemprego até Dezembro de 2020, mas desde então é doméstica, apenas faz as lides de casa, não exercendo qualquer actividade remunerada, estando a receber Abono de Família para Crianças e Jovens, não recebendo outras pensões, subsídios, prestações ou complementos sociais e padece de depressão;

- O marido da requerente exerce a actividade profissional de trolha da construção civil, por conta de outrem, sendo portador de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 19,2%, encontrando-se na situação de baixa médica, por doença, desde Março de 2022, auferindo actualmente equivalência por Prestação de Doença, do valor mensal, variável, de cerca de € 425,00 mensais;

- O Abono de Família auferido pela requerente, referente ao filho, menor, e a Prestação de Doença auferida pelo marido da requerente constituem o único rendimento do agregado familiar;

-Pagam de condomínio a quota mensal de € 34,49, de água uma média de € 40,00, de electricidade €48,66 (em 17/04/2023), de gás €30,31 (Fev./2023), telecomunicações no valor de €90,00.

Não se provaram, por falta de documentos:

-Despesas mensais genéricas de saúde no valor de €150,00, transportes de €120,00, instrução e educação escolar no valor de €90,00 e de alimentação no total de €600,00.


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IV-DIREITO

Fixados os factos relevantes para a decisão, cumpre analisá-los à luz do direito e decidir a questão principal suscitada no recurso que consiste em saber se o valor correspondente a 1,4 do salário mínimo nacional, fixado na decisão, assegura a subsistência da Insolvente com um mínimo de dignidade.

A Recorrente discordou do valor fixado na decisão impugnada defendendo, em resumo, que o montante necessário à digna sobrevivência sempre seria, no mínimo, correspondente à quantia de € 1.878.39 que é o somatório de todas as despesas alegadas.

A lei permite ao insolvente, pessoa singular, requerer que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante que consiste na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste (cfr. art. 235.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas –CIRE).

Trata-se de uma medida especial de protecção do devedor pessoa singular que não representa grande prejuízo para os credores uma vez que os créditos já representavam um valor insignificante, dada a situação económica do devedor.[1]

Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial a determinar que, no referido período de três anos de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade designada por fiduciário (cfr. art. 239.º, n.º 2 do CIRE).

E segundo o n.º 3, al. b) i) deste preceito legal, integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com exclusão, além do mais, do sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.

Esta exclusão, segundo Luís Carvalho Fernandes e João Labareda,[2] refere-se ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar e radica na protecção constitucional da dignidade humana.

A omissão do legislador no que respeita ao limite mínimo deste conceito amplo, permite que seja avaliado e ponderado, em cada caso em concreto, as reais necessidades do insolvente e do respectivo agregado familiar.

A jurisprudência maioritária tem optado por atender, nesta matéria, a critérios objectivos adjuvantes do juízo a formular: salário mínimo nacional ou rendimento social de inserção.[3]

A referência ao salário mínimo nacional fundamenta-se no entendimento que o Tribunal Constitucional tem explanado no sentido de que constitui uma remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades decorrentes da sobrevivência digna do trabalhador.

No entanto, a jurisprudência alerta para que, na decisão a proferir, impere o equilíbrio entre o interesse do credor à prestação e o interesse do devedor consistente no direito à manutenção de um nível de subsistência digno.[4]

Reportando ao caso concreto, está assente nos autos que a Insolvente encontra-se desempregada e padece de depressão, o marido é portador de incapacidade profissional e têm um filho de 13 anos de idade a seu cargo.  O Abono de Família auferido pela requerente, referente ao filho menor, e a prestação de doença auferida pelo marido da requerente constituem o único rendimento do agregado familiar.

No que concerne especificamente sobre a questão das despesas de lazer e outras consideradas supérfluas, a jurisprudência maioritária tem perfilhado o entendimento no sentido de que o devedor insolvente terá de ajustar o seu nível de vida à nova situação, ou seja, terá de compatibilizar as despesas com as condições económicas resultantes da necessidade de satisfação dos créditos.

Com se refere no Acórdão da Relação de Lisboa, de 27/09/2018,[5] na linha argumentativa de outros arestos, “…devendo o montante não abrangido pela cessão do rendimento disponível ser fixado casuisticamente, tendo em conta o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não tem ele, necessariamente, que coincidir com um valor que lhe possibilite continuar a manter o nível de vida que vinha desfrutando, continuando a gozar do mesmo status económico e social que detinha , antes deve ser fixado tão só um montante que permita que o devedor mantenha padrões de vida minimamente dignos.”

Por conseguinte, as despesas que não contendem com a digna sobrevivência da Recorrente, devem ser reduzidas ao máximo possível em conformidade com o princípio de responsabilização perante os credores.

Importa ter sempre presente que, nos termos do art.º 8.º, n.º 3 do C.Civil, o julgador, nas decisões que proferir, terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniforme do direito.

Assim, considerando as decisões proferidas em situações similares com a imprescindível ponderação dos factos específicos deste caso, e norteados pelos princípios de adequação, proporcionalidade, tratamento igualitário e de equilíbrio entre os mencionados interesses contrapostos, sem esquecer o princípio da dignidade humana e o valor actual do salário mínimo nacional[6], entendemos que o valor equivalente a dois salários mínimos nacionais do rendimento da Insolvente a ser excluído da cessão aos credores, no período legal, assegura o mínimo necessário a uma sobrevivência condigna na hipótese de uma empregabilidade futura.

Perante os motivos aduzidos, procede parcialmente o recurso.


*

V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso e consequentemente, alteram a decisão referente ao rendimento indisponível para o valor correspondente a dois salários mínimos nacionais, mantendo o mais decidido.

Custas pela Recorrente na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário.

Notifique.


Porto, 20/2/2024
Anabela Miranda
Maria Eiró
Fernando Vilares Ferreira
___________________
[1] Cfr. Luis Manuel Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2015, Almedina, pág. 305.
[2] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 788, Quid Juris.
[3] v. a título de exemplo, deste Tribunal da Relação de Guimarães os Acs. de 15.05.2014 e 07.08.2014 e os Acs. de 12.06.2012, 12.05.2014 e 16.09.2014 do Trib. Relação do Porto disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Acórdão do Trib. Rel. Guimarães de 07.08.2014, disponível na base acima referida.
[5] Disponível em www.dgsi.pt.
[6] Actualizado em 2024 para 820 euros pelo Dec.-Lei n.º 107/2023 de 17.11.