PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
VENDA DOS BENS DA MASSA INSOLVENTE
VENDA DE IMÓVEL
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Sumário

I – A impugnação pauliana tem os seguintes requisitos: a) a realização pelo devedor de um ato que diminua a garantia patrimonial do crédito e não seja de natureza pessoal; b) que o crédito seja anterior ao ato ou, sendo posterior, ter sido ele realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; c) que o ato seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, ocorra má-fé tanto do alienante como do adquirente; d) que resulte do ato a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do crédito ou agravamento dessa impossibilidade.
II – A avaliação objetiva e subjetiva dos atos do administrador da insolvência é feita de acordo com a diligência exigível a um gestor “criterioso e ordenado” colocado nas circunstâncias concretas em que atuou e confrontado com as qualidades que revelou de acordo com o exigível.
III – Se no âmbito de um plano de insolvência, aprovado pelos credores e homologado pelo tribunal, se autorizou que a venda de um imóvel da sociedade insolvente fosse feita por esta, sob acompanhamento e supervisão da administradora da insolvência, com fixação do valor mínimo da venda em 700.000,00€, concretizando-se tal venda pelo valor de 701.000,00€, não se podem considerar verificados os pressupostos da impugnação pauliana.
IV – Tal como na atuação da administradora da insolvência que autoriza essa venda pelo referido valor de 701.000,00€ não é reconhecível qualquer falta de zelo ou diligência e que com essa autorização tivesse defraudado as expetativas dos credores.

Texto Integral

Proc. nº 3644/17.8 T8STS-U.P2

Comarca do Porto – Juízo do Comércio de Santo Tirso – Juiz 7

Apelação

Recorrentes: AA e BB

Recorridos: CC e “A..., Lda.”

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Anabela Andrade Miranda e Fernando Vilares Ferreira

    Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

    RELATÓRIO

   AA e BB, arrogando-se da qualidade, o primeiro, de credor reconhecido e ambos da qualidade de credores habilitados de DD, por sentença de 6.2.2022 proferida no processo principal de insolvência, vieram deduzir incidente de impugnação da venda do imóvel sito no Lugar ..., concelho da Póvoa de Varzim, freguesia ..., inscrito na matriz predial n.º ..., em Benefício da Massa Insolvente, por apenso ao processo de insolvência de “B..., SA”, contra a sociedade insolvente e a sociedade compradora “A..., Lda.”, formulando o seguinte pedido:

   - que seja julgado procedente o presente incidente de impugnação da venda declarando a nulidade do negócio de compra e venda, efetuado entre a sociedade insolvente e a sociedade “A..., Lda.”, devolvendo o bem ora objeto de impugnação à massa insolvente, para prosseguirem os demais termos dos autos;

   - se reconheça que assistia à sociedade “C..., Lda.”, o direito de preferência de compra do referido imóvel por ser a atual arrendatária do mesmo.

  - se reconheça que o negócio foi efetuado com claro prejuízo para os credores, já que existiam melhores propostas de compra do referido imóvel.

  - se reconheça que a Administradora não agiu com zelo e prudência e que com isso logrou as expectativas dos credores.

   - se reconheça a má-fé contratual, dando origem a um negócio simulado, em favor dos próprios e em desfavor dos credores.

   Alegam que o contrato de compra e venda celebrado entre a insolvente e a ré “A..., Lda.” padece de vícios e irregularidades, que importam a sua nulidade.

   Este contrato de compra e venda é prejudicial aos credores, tendo as partes intervenientes no negócio agido com má-fé, tratando-se de negócio simulado.

   Salientam que a Administradora da Insolvência não agiu com zelo e prudência, logrando as expectativas dos credores e invocam ainda que não foi respeitado o direito de preferência da sociedade agrícola arrendatária do terreno em questão.

    Foi admitida a intervenção principal provocada da sociedade “C..., Lda.” e da Sra. Administradora da Insolvência, por despacho de 9.2.2023.

   A sociedade adquirente “A..., Lda.” apresentou contestação, pugnando pela improcedência da ação e defendendo-se por impugnação.

   De igual forma, a sociedade insolvente “B..., S.A.” deduziu contestação, pugnando pela improcedência da ação e negando o contrato de arrendamento.

   A chamada “C... Lda.” fez seus os articulados dos autores, reiterando o contrato de arrendamento.

    A sociedade insolvente formulou pedido de litigância de má-fé da interveniente “C... Lda.”, por requerimento de 23.3.2023, considerando que a interveniente deduz pretensão cuja falta de fundamento não ignora.

   A interveniente Administradora da Insolvência, CC, deduziu contestação. Considera que deve ser absolvida da instância, por não existirem fundamentos para a admissão da sua intervenção principal provocada. Invoca, ainda, a exceção da ilegitimidade dos autores, alegando que os autores não são credores reconhecidos da ré insolvente e defende-se também por impugnação, pugnando pela improcedência da ação. Por último, invoca a exceção de caducidade do alegado direito de preferência.

   Também a sociedade “A..., Lda”, por requerimentos de 24.4.2023 e 12.6.2023, invoca que o conhecimento do contrato de arrendamento pela sociedade agrícola ocorreu a 29.4.2021, e apesar de tomar conhecimento naquela data de todos os elementos do negócio, deixaram correr o prazo para o exercício do suposto direito de preferência.

   Foi realizada audiência prévia em 1.6.2023, com prolação de despacho saneador, fixação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

    Realizou-se audiência de julgamento, com observância do legal formalismo, em 4.7.2023.

    Por fim, em 3.10.2023, foi proferida sentença que:

   - julgou verificada a exceção de caducidade do direito de preferência da sociedade interveniente principal, considerando-se que tal direito de preferência caducou pelo seu não exercício no prazo legal;

   - julgou a presente ação totalmente improcedente, absolvendo as sociedades rés e a interveniente principal/Administradora da Insolvência de todos os pedidos contra si formulados; e

  - julgou improcedentes os pedidos de litigância de má-fé formulados, absolvendo-se os autores e interveniente dos mesmos.

    Inconformados com o decidido, interpuseram recurso os autores, os quais finalizaram as suas alegações com as seguintes – e muito extensas – conclusões:

    O presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito

    C) Do recurso sobre a matéria de facto

    1. Os recorrentes consideram incorretamente julgados o ponto 15 dos factos provados, por não reproduzir o conteúdo e sentido do dispositivo da sentença a que se refere, bem assim as alíneas B), C), D), F) (no segmento final), K), L), M) (no segmento prejudicando os credores, impedindo-os de verem satisfeitos os seus créditos através da obtenção de um preço mais elevado na venda do terreno), e a alínea N) dos factos não provados, as quais, de acordo com a prova adiante especificada, se impunha que se dessem como provados.

   2. O ponto 15 dos factos provados não reflete o conteúdo e o sentido da sentença a que se refere o plano de recuperação homologado.

   3. Assim, em conformidade com aquela sentença, do ponto 15 dos factos provados deverá passar a constar: Concluída a votação presencial e por escrito, o plano de recuperação fora aprovado pela maioria [dos] credores, tendo sido homologado por sentença proferida a 13.07.2020, transitada em julgado a 10.08.2020, sem prejuízo da ineficácia do mesmo, na parte em que atinge os créditos fiscais da Fazenda Nacional e por contribuições à Segurança Social.

   4. O tribunal a quo referiu a total ausência de prova quanto à existência do processo a que alude a alínea C) e D), a saber o inquérito nº 1349/18.1T9VCD que corre os seus termos no DIAP de Vila do Conde.

  5. Sem prejuízo do tribunal a quo ter podido, como devia, a coberto do art.411º, do Código Processo Civil, requisitar a informação pertinente ao DIAP de Vila do Conde, a participação criminal da Sociedade D..., por crimes de burla qualificada, contra a aqui Sociedade Insolvente, quer o seu Administrador, onde foram constituídos arguidos, consta do apenso de Reclamação Créditos (Proc. nº 3644/17.8T8STS-A), tendo sido junta com a reclamação do seu crédito e Requerimento de Impugnação de 14-01-2019 (fls. 333 ss).

  6. Daí este crédito da D... e dos subsequentes cessionários AA e mulher ter sido inicialmente reconhecido sob condição [c) créditos com processos judiciais pendentes (com litígio)], conforme consta dos pontos 55º e 56º dos factos provados.

  7. De resto, nas declarações prestadas pelo Autor BB Diligencia_3644-17.8T8STS-U_2023-07-04_10-32-53, ao minuto 16´20, foi corroborada a apresentação dessa participação criminal.

  8. Não obstante, ao abrigo do princípio da descoberta da verdade, requerem, respeitosamente, a admissão aos presentes autos da decisão instrutória proferida no âmbito do processo n.º 1349/18.1T9VCD e respetivo acórdão, requerendo, ainda, que não sejam condenados em custas pela junção da prova documental ora requerida. – cfr. Docs. n.ºs 1 e 2 em anexo.

   9. Ora, foi após essa denúncia e o conhecimento da proposta antes apresentada pela Sociedade E..., conforme descrito em 16 e 22 dos factos assentes, que a sociedade insolvente, representada pelo seu administrador, ambos arguidos no referido inquérito nº1349/18.1T9VCD, congeminou, com o consentimento da Administradora de Insolvência, a venda do prédio à sociedade A..., Lda.

   10. Por conseguinte, a referida prova documental e declarativa impunha que se tivesse dado como provado, o que consta das alíneas C) e D) dos factos não provados, fielmente à verdade, o seguinte:

   C) - A Sociedade D... apresentou queixa por crimes de burla qualificada, correndo esta os seus termos no DIAP de Vila do Conde, sob o nº 1349/18.1T9VCD, onde, quer a aqui Sociedade Insolvente, quer o seu Administrador foram constituídos arguidos.

   D) - Após a sua constituição como arguida nesses autos criminais e o conhecimento, através da Administradora de Insolvência, do interesse e de uma proposta apresentada por outra sociedade para a compra do referido terreno, a Sociedade Insolvente, representada pelo seu administrador, EE, congeminou, com o consentimento da Administradora de Insolvência, a venda à Sociedade A..., Lda.

   11. Prosseguindo, deu-se como não provado:

   Sob alínea B) que a alienação do prédio rústico artigo matricial n.º ... foi realizada a um preço muito abaixo do valor de mercado,

   Sob alínea K) que a Administradora de insolvência sabia que o valor de mercado do prédio era muito superior a €701.000,00;

   Sob alínea N) que a Administradora de Insolvência, sociedade insolvente e sociedade adquirente sabiam que o terreno podia e devia ser vendido por preço muito superior.

   12. Ora, como consta dos pontos 6 e 7 dos factos provados, na ação instaurada pelo aqui A. AA e mulher contra a insolvente “B..., SA”, a qual correu termos sob o n.º 1128/17.3T8PVZ, com força de autoridade de caso julgado relativamente à questão do valor do imóvel em causa, o tribunal deu como provado, apesar do valor de €815.000,00 atribuído pelo perito da ora insolvente, que: “O valor de mercado do imóvel mencionado em 3) [artigo matricial ...] não é inferior a €814.516,73.”

   13. Os factos assentes sob pontos 6 e 7, baseados na sentença a que aludem, esta alicerçada na prova pericial sujeita a contraditório na ação nº1128/17.3T8PVZ, são os únicos elementos de que o tribunal a quo dispunha neste incidente, com segurança probatória, sobre o valor do imóvel.

  14. Contrariamente ao referido na motivação da sentença recorrida, ao caso é irrelevante se quase cinco anos antes da venda de 14 de abril de 2021 (ponto 31 dos factos provados), aqui impugnada, mais concretamente no dia 13.06.2016 (ponto 2 e 3 dos factos provados), o prédio foi vendido pelo Autor AA e mulher pelo preço de €607.000,00.

  15. Por um lado, foi normal a valorização de mercado de um imóvel, acompanhando a evolução do imobilizado a nível nacional, sobretudo quando está em causa um terreno com 32.500,00 metros quadrados, com capacidade de edificação industrial, a despertar o interesse económico de vários indivíduos ou sociedades, como foi o caso da sociedade E... e da sociedade A..., esta situada a cerca de 100 metros do terreno (ponto 25º dos factos provados), cujo interesse na aquisição foi explicado e confessado pelo seu gerente, o depoente FF, aliás, corroborado pela apresentação do pedido de informação prévia/ PIP na Câmara Municipal (ponto 27 dos factos provados), conforme afirmou GG, filho de FF.

   16. De resto, é o administrador da insolvente que confessa que a Ré A... estava muito interessada na compra do terreno, porque queria mudar para ali as suas instalações, o que foi confirmado pelo gerente da Ré A..., FF e pelo seu filho GG.

   17. Por outro lado, haverá aqui que contar com os sobreditos constrangimentos económicos que em 13.06.2016 determinaram o enfraquecimento da posição negocial dos vendedores particulares, AA e esposa DD, na venda do imóvel à construtora, ora insolvente, como resulta do teor da sentença e das peças processuais juntas da ação judicial n.º 1128/17.3T8PVZ, e foi esclarecido de forma convincente pelo Autor BB.

   18. Para desmerecer a credibilidade dos Autores, o tribunal a quo aponta, na motivação da sentença, para o preço da venda de 607.000€ em 2016, sem reparar que a Ré A... o comprou em 14 de abril de 2021 (ponto 31 dos factos provados), já pelo valor mínimo de €701.000,00, à sociedade insolvente, ou seja, mil euros acima do valor mínimo aprovado pela maioria dos credores.

   19. Seja como for, o próprio tribunal a quo afirma, na motivação da matéria de facto, aceitar que o valor do imóvel, à data da prolação da sentença na ação n.º 1128/17.3T8PVZ, não era inferior a €814.516,73.

   20. Ora, aceitando ser este o valor mínimo do imóvel, o tribunal a quo não podia, sem grave contradição, dar como não provado sob alínea B) que a alienação realizada por €701.000,00 o foi a um preço muito abaixo do valor de mercado.

   21. É absolutamente claro que o preço da venda do imóvel foi muito inferior ao valor de mercado que o próprio tribunal a quo aceita e diz atribuir.

   22. Disso sabiam o gerente da Ré A..., o administrador da insolvente e a Administradora de Insolvência, em face da prova supra especificada, conjugada com a factualidade assente e as regras da experiência comum, nos precisos termos e fundamentos sobreditos que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, não procedendo a argumentação do tribunal a quo para tentar descredibilizar a alegação dos Autores sobre o valor conhecido do imóvel.

   23. Nem se diga que a proposta de compra pela Ré A..., Lda, respeitou o modo e valor mínimo da venda aprovado pelos credores, quando, na realidade, não o foi pela totalidade dos credores designadamente a Fazenda Nacional e a Segurança social, nem tanto dispensava o administrador da massa insolvente, o devedor, de obter o melhor preço possível para satisfazer os créditos reconhecidos, nem a Administradora de Insolvência de cumprir com zelo e diligência o dever de o fiscalizar na consecução desse desiderato principal.

   24. Com efeito, não podia o tribunal a quo, como o fez na motivação da matéria de facto, afirmar, por um lado, que a Administradora de Insolvência tinha o dever de fiscalizar e autorizar a venda, mas logo de seguida esvaziar completamente essas funções, bastando-se com o cumprimento pelos mínimos do objetivo principal do processo de insolvência, qual seja a garantia patrimonial e satisfação dos créditos reconhecidos sobre a massa insolvente (art.1º, do CIRE), em violação do que lhe é imposto pelo art.12º, nº2, da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, do seu Estatuto.

   25. Interesses que o administrador da massa, no caso a insolvente, com a fiscalização da Administradora de Insolvência, deveriam ter priorizado por se tratar do dever legal de proceder com lealdade em relação aos credores e de forma criteriosa e ordenada na tomada de decisões razoáveis no exercício das funções de administração (art.64º, nº1, do C.S.C.) e fiscalização que lhes estavam atribuídas no procedimento negocial de venda deste ativo patrimonial, competindo nesse âmbito à Administradora de Insolvência agir com efetividade na maximização da satisfação dos interesses dos credores (art.12º, nº2, da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto do Administrador Judicial).

   26. A autorização de venda pela Administradora de Insolvência não devia ater-se ao valor mínimo, como descaradamente pretende fazer crer, antes respeitar a melhor ponderação de interesses da massa insolvente e sobretudo dos credores, atendendo às ofertas existentes no período de tempo aprovado para a venda.

   27. Os poderes atribuídos ao administrador da insolvente e Administradora de Insolvência na venda dos ativos não foram um salvo conduto para o arbítrio, consentindo na celebração de negócios pelos mínimos de valor, à margem do melhor interesse dos credores, mormente aqueles em relação aos quais o plano de recuperação era ineficaz.

   28. O preço da venda dos imóveis apreendidos para a massa falida deveria ser um preço justo de harmonia com as regras da oferta e da procura no mercado imobiliário e não uma venda por qualquer preço mínimo.

   29. No caso, a factualidade provada, em consonância com a prova, não só demonstrou que o imóvel podia ter sido vendido por um preço muito superior aos 701.000€, dadas as propostas que se seguiram à venda por parte da E..., como evidenciou que a devedora, enquanto administradora da massa, e a Administradora de Insolvência não cumpriram com o mais elementar dever de diligência e cuidado na venda do imóvel, pelo melhor preço possível.

   30. A insolvente, enquanto administradora da massa, estava obrigada a empregar todos os meios que permitissem “maximizar” os interesses dos credores. E isso não aconteceu, não só por parte da insolvente, como a Administradora de Insolvência nada fez para o controlar, antes se limitou a consentir na venda à Ré adquirente, a qual omitiu do tribunal e dos credores até poucas horas antes da escritura que sabia agendada para o efeito, como adiante se verá.

   31. A devedora e a Administradora de Insolvência nada fizeram para conseguir a melhor oferta possível, quando era de esperar do dever funcional de ambos, no exercício dos poderes de administração e fiscalização que lhe foram confiados pela maioria dos credores, a realização das diligências razoáveis para o conseguir.

   32. Dizer que até à escritura não foi conhecida melhor proposta, como afirma o tribunal a quo, é distorcer e desviar o foco da questão central, pois de acordo com a prova especificada, a devedora e a Administradora de Insolvência não deram sequer tempo, oportunidade, nem realizaram diligências para o alcançar, designadamente com conhecimento atempado aos credores e à anterior proponente.

  33. Mais do que estranho, como assinalou a sentença na motivação da matéria de facto, o processo negocial da venda do imóvel à Ré adquirente foi envolto por parte da devedora e da Administradora de Insolvência num secretismo e falta de comunicação atempada aos principais interessados.

   34. Tudo aconteceu, não obstante a devedora e da Administradora de Insolvência saberem, nas circunstâncias concretas, que aquele prédio, de valor bastante elevado, tinha outro interessado na compra, o que potenciava – numa gestão criteriosa e ordenada à satisfação dos créditos sobre a massa insolvente – a obtenção de melhor oferta de preço, como se veio a comprovar.

   35. A prova especificada, quando conjugada com os restantes factos provados e as regras da experiência comum, nos termos e fundamentos sobreditos que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, coloca a descoberto que a sociedade insolvente e a sociedade adquirente agiram com a opacidade e a rapidez necessárias para evitar receber melhor preço para a venda, tudo com o silêncio e a inércia da Administradora de Insolvência que bem podia não se apressar a autorizar a venda, mas optou por nela consentir, com elevado prejuízo para os credores.

  36. Nem se diga com o tribunal a quo que à Administradora de Insolvência incumbia apenas fiscalizar ou supervisionar a venda quando na realidade, além de ter veiculado pelos credores e a insolvente as propostas da sociedade “E...”, foi ela quem autorizou ou consentiu na venda realizada no dia 14.04.2021 e prontamente denegou as propostas subsequentes daquela, de valor superior, sem observância do principal objetivo da venda e do dever fundamental do Administradora de Insolvência (a maior satisfação possível dos créditos reconhecidos), conforme o citado art.12º, nº2, do seu Estatuto.

  37. Alegar, como o faz o tribunal a quo e a Administradora de Insolvência, que não foram frustradas as expectativas dos credores, dado que a venda cobriu o valor mínimo aprovado pela maioria deles (que não a totalidade), quando se comprova que, por inércia da insolvente e Administradora de Insolvência, os credores deixaram de obter quase 100 mil euros, a mais, só na venda deste prédio, é não compreender que o processo de insolvência e o plano ali homologado tinham prioritariamente em vista a maior satisfação possível dos créditos sobre a massa insolvente.

   38. No cumprimento deste objetivo e dever competia à Administradora de Insolvência supervisionar e autorizar a proposta que melhor o realizasse, o que claramente aquela não fez, em concluiu com os outorgantes vendedor e comprador, conforme supra se refere e que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

   39. A coberto do valor mínimo aprovado pela maioria dos credores, a administradora insolvente e a Administradora de Insolvência apresentam-se totalmente descomprometidas com o principal objetivo do processo de insolvência, sentindo-se esta completamente desvinculada de acompanhar a lisura do processo negocial da venda para o conseguir.

   40. A venda feita pelos três, da noite para o dia, à luz das regras da experiência comum, deixa claríssimo o conluio do administrador da insolvente e da Administradora de Insolvência com a compradora final do imóvel, no sentido de a favorecer na venda deste, ignorando por completo, pela diferença mínima de 1.000€, o interesse de outra proponente ou alternativas de outros credores mais vantajosas, sendo naturalmente relevante na ponderação negocial destes a data agendada para a escritura e o conhecimento atempado de um novo proponente.

   41. De acordo com as regras da experiência, a intenção de favorecer deliberadamente aquele proponente implica, como disso estavam cientes, uma intenção reflexa ou derivada de prejudicar os credores.

   42. Atenta a sua conexão, a prova supra especificada sobre eles produzida, conjugada com a restante factualidade assente, impunha que se dessem como provados os factos descritos sob alíneas L) e N) da factualidade não provada, bem assim o segmento final da alínea M), dando-se aqui como provado que assim atuando a sociedade adquirente e a sociedade insolvente agiram com intenção de prejudicar os credores, impedindo-os de verem satisfeitos os seus créditos através da obtenção de um preço mais elevado na venda do terreno.

   43. Ao agirem da forma descrita, a Administradora de Insolvência, a sociedade insolvente e a sociedade adquirente sabiam e quiseram defraudar os credores e as hipóteses de ressarcimento creditório destes, factos constantes da alínea B) da fundamentação e cuja prova aqui especificada sobre eles produzida, conjugada com a restante factualidade assente, impunha que se dessem como provados.

  44. Pela mesma razão, atenta a prova aqui especificada e sobre eles produzida, conjugada com a restante factualidade assente, impunha-se que da alínea F) da fundamentação se desse como provado que: “Para a marcação da escritura pública no dia 14.04.2021, a Administradora de Insolvência, anuindo então ao negócio, fê-lo, propositadamente, sem dar conhecimento atempado aos outros credores”.

   45. É claro que, assim atuando, a Administradora de insolvência omitiu o seu dever de fiscalização e supervisão plasmado no plano de insolvência, bem sabendo que o valor de mercado do prédio era muito superior a €701.000,00, impondo a prova especificada sobre eles produzida, conjugada com a restante factualidade assente, que se desse como provada a factualidade descrita na alínea K) dos factos não provados.

   46. Dizer que a venda pelo preço inferior de €700.000 não tinha sido desautorizada anteriormente pelos credores, quando essa era a única proposta até então conhecida, é pretender iludir o que de mais relevante existia neste processo negocial, ou seja, a livre concorrência entre os vários interessados económicos como fator de valorização do imóvel a vender.

   47. Tivessem a Administradora de Insolvência e a sociedade insolvente, responsável pela administração e venda dos ativos da massa insolvente, a mais ligeira preocupação concorrencial na lógica da melhor oferta e o propósito de incrementar condições efetivas de uma sã e efetiva competição entre os proponentes para o conseguir, em vez de prontamente favorecer a participação da adquirente A..., melhor preço teria sido logrado para a venda e, assim, desencadeada melhor resposta para a satisfação dos créditos reconhecidos.

  48. Ao invés, os factos provados sobre o modo rápido e obscuro como decorreu o processo negocial da venda do imóvel à sociedade A..., Lda, quando o prazo de 18 meses aprovado pelos credores para a venda dos bens apenas terminava em 10.02.2022 (pontos 11 e 15 dos factos provados), evidenciam que a sociedade insolvente, com o consentimento da Administradora de Insolvência, desprezando por completo o objetivo de obter o melhor preço e satisfação dos créditos reconhecidos, encetaram exclusivamente com a adquirente um procedimento negocial fechado, à revelia absoluta dos credores, incluída a Fazenda Nacional e a segurança social em relação aos quais o plano homologado era ineficaz designadamente sobre o modo e preço da venda pela devedora.

  49. Repare-se que, nos termos dados como provados, após tomar conhecimento da proposta da sociedade “E...”, no valor de €700.000,00, a sociedade insolvente nada manifestou à Administradora de Insolvência sobre a intenção de realizar essa venda (ponto 22 dos factos provados).

  50. Contudo, negociando diretamente com a Ré A..., conforme consta dos pontos 23 e 26 dos factos provados, a devedora insolvente deu conhecimento no dia 6 de abril de 2021 à Administradora de Insolvência da obtenção da proposta daquela de compra do terreno pelo valor de 701.000€, informando-a que era sua intenção aceitar essa proposta e realizar a venda no dia 14 de abril de 2021 (ponto 28º dos factos provados).

  51. A Administradora de Insolvência levou oito dias para ver se a proposta da Ré A... cobria o valor mínimo de 700.000 euros, dando conhecimento da mesma aos credores apenas algumas horas antes da escritura, por volta da meia noite, sem os informar do agendamento desta para as 14 horas seguintes (ponto 30 dos factos provados).

  52. É óbvio que a insolvente e a Administradora de Insolvência assim atuaram porque não quiseram, nem tentaram obter melhor preço.

   53. Impondo os factos assentes e a prova supra especificada, de acordo com as regras da experiência, uma decisão diversa nos termos aqui propalados (art.662.º, n.º 1, do Código Processo Civil), deverá proceder a impugnação da decisão da matéria de facto nos seus precisos termos.

   D) Do recurso sobre a matéria de direito

   54. Conforme tem sido defendido pela jurisprudência superior é irrelevante a configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida pelo Autor, sendo lícito ao Tribunal convolar a qualificação jurídica da causa de pedir para outra diferente da formulada por aquele.

  55. Esta ideia é realçada – ainda com maior nitidez – no AUJ (STJ) nº3/2001, no sentido: “Tendo o autor, em ação de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do ato jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do ato em relação ao autor (nº1 do art. 616º do CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar a ineficácia, como permitido pelo art. 664º do Código Processo Civil”.

  56. Como referido na sentença, os Autores apresentam como causa de pedir, além do mais, a impugnação pauliana, invocando o artigo 612.º Código Civil.

   57. Tendo, no entanto, nesta configuração, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do ato jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do ato em relação ao autor (n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil), o tribunal deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 5.º n.º 3 do CPC.

   58. A procedência da ação pauliana tem como efeito o credor poder executar o bem no património do obrigado à restituição e praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei (art.616º, nº1, do Código Civil), neste caso com observância do disposto no nº3 do artigo 127º do CIRE.

  59. A procedência da ação judicial de impugnação pauliana depende da verificação, em concreto, dos seguintes requisitos:

  1) o direito de crédito do credor seja anterior ao ato prejudicial à garantia patrimonial;

  2) resulte do ato a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito ou, pelo menos, um agravamento dessa impossibilidade; e

  3) haja má fé por parte do devedor e do terceiro (requisito que apenas é exigido se estivermos perante um ato oneroso), ou seja, terá que demonstrar que tinham consciência do prejuízo que o ato causava ao credor (art.612º, nº1 e 2, do Código Civil).

  60. Nos negócios onerosos, a lei impõe a má fé bilateral, no sentido de exigir ao vendedor e ao comprador a consciência, ou, simplesmente, a representação da possibilidade do prejuízo que o ato causa ao credor, isto é, que produz, necessariamente, no sentido da causalidade adequada, o que determina a necessidade da sua previsão.

  61. A consciência ou a mera representação da possibilidade do prejuízo, é o que, necessariamente, envolve ou acarreta a diminuição da garantia patrimonial do crédito, em termos de, pelo menos, resultar dela o agravamento da impossibilidade da sua satisfação do mesmo.

  62. Revertendo ao caso em análise ficou provado que os Autores AA e BB viram reconhecido o crédito comum, no montante total de €417.787,25, sobre a massa insolvente.

  63. Provou-se ainda que o valor de mercado do imóvel cuja venda impugnaram [artigo matricial ...] não é inferior a €814.516,73 (pontos 7 e 62 dos factos provados reformulados) e foi vendido pela insolvente à Ré adquirente pelo preço de €701.000 (ponto 31 dos factos provados), ou seja, muito abaixo daquele, facto que era do conhecimento dos outorgantes e da Administradora de Insolvência.

   64. Tudo comprovadamente feito sem conhecimento atempado dos credores, designadamente aqueles em relação aos quais o plano de recuperação homologado era ineficaz (Fazenda Nacional e Segurança social), nem consulta da anterior proponente, a sociedade E... Unipessoal, Lda, que oferecera €700.000 pela compra do prédio.

   65. Ora, com o consentimento da Administradora de Insolvência que autorizou a alienação, sem dar conhecimento atempado aos credores, demitindo-se dos seus deveres de fiscalização e supervisão, o contrato de compra e venda celebrado entre a insolvente e a adquirente visou defraudar e defraudou os credores e as hipóteses de ressarcimento creditório destes, atuando os outorgantes da escritura conluiados com a primeira, sabendo do interesse efetivo da proponente E....

   66. Provado ficou que a sociedade adquirente e a sociedade insolvente agiram com intenção de prejudicar os credores, impedindo-os de verem satisfeitos os seus créditos através da obtenção de um preço mais elevado na venda do terreno.

   67. Ao agirem da forma descrita, a Administradora de Insolvência, a sociedade insolvente e a sociedade adquirente atuaram conluiados entre si e com consciência de que aquela venda prejudicava a garantia patrimonial dos credores, porquanto sabiam que o terreno podia e devia ser vendido por preço muito superior.

  68. Ora, provando-se que, aquando da outorga da escritura de compra e venda, as sociedades vendedora e compradora tinham perfeito conhecimento da existência da dívida daquela perante os credores da massa insolvente, bem como que se subtraíssem valor ao prédio objeto da venda, os credores em geral, aqui incluídos os Autores, ver-se-iam impossibilitados de obter a satisfação do seu crédito, pelo menos, integralmente, ou agravada essa impossibilidade, é insofismável a verificação do requisito da má fé comum a ambas as intervenientes no negócio aqui impugnado pelos autores, os quais – assim - viram agravadas as possibilidades de cobrança do seu crédito, senão mesmo impossibilitada essa chance.

   69. Posto isto, estão verificados todos os requisitos para a procedência da impugnação pauliana, previstos nos art.s 610º, 612º e 616º, nº1, do Código Civil.

  70. Assim não o entendendo, o tribunal a quo violou flagrantemente os art.s 610º, 612º e 616º, nº1, do Código Civil, que deveriam ter sido aplicados na correta subsunção dos factos ao direito aplicável, impondo-se a revogação da respectiva decisão e substituição por outra que declare, convolando a pretensão dos autores, a ineficácia em relação aos Autores do mencionado negócio de compra e venda efetuado entre a Sociedade Insolvente e a Sociedade A..., Lda, podendo os Autores executar o prédio vendido no património desta (adquirente) e praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, com observância do disposto no nº3 do artigo 127º do CIRE.

  71. Tudo o mais peticionado pelos Autores são pressupostos da ação pauliana, mormente decorrentes da factualidade assente, devendo o tribunal declarar simplesmente a sua verificação, nos termos do art.10º, nº 3, al. a), do Código Processo Civil, a partir do quadro factual provado, concretamente:

   - que o negócio foi efetuado com claro prejuízo para os credores;

   - que os outorgantes agiram com má-fé contratual, dando origem a um negócio, em favor dos próprios e em desfavor dos credores; e

   - que a Administradora de Insolvência não agiu com zelo e prudência e, com isso, “logrou” (violou) as expectativas dos credores.

  72. Justamente porque tinha o dever de fiscalizar e autorizar a venda, a Administradora de Insolvência não podia desprezar o objetivo principal do processo de insolvência, qual seja a maior garantia patrimonial e satisfação possível dos créditos reconhecidos sobre a massa insolvente (art.1º, do CIRE).

  73. Interesses que o administrador da massa, no caso a insolvente deveria ter priorizado, por ser esse o dever legal de proceder com lealdade em relação aos credores e de forma criteriosa e ordenada na tomada de decisões razoáveis no exercício das funções de administração (art. 64º, nº 1, do C.S.C.).

  74. À Administradora de Insolvência competia fiscalizar o cumprimento desse dever, como aliás lhe estava atribuído no procedimento negocial de venda deste ativo patrimonial, competindo-lhe nesse âmbito agir com efetividade na maximização da satisfação dos interesses dos credores (art.12º, nº2, da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro, que aprovou o Estatuto do Administrador Judicial).

  75. A autorização de venda pela Administradora de Insolvência não devia ater-se ao valor mínimo, antes respeitar a ponderação de interesses da massa insolvente e sobretudo dos credores, atendendo às ofertas existentes no período de tempo aprovado para a venda, com vista à obtenção do melhor preço possível.

  76. Os poderes atribuídos ao administrador da insolvente e Administradora de Insolvência na venda dos ativos não foram um salvo conduto para o arbítrio, consentindo na celebração de negócios pelos mínimos de valor, à margem do melhor interesse dos credores, mormente aqueles em relação aos quais o plano de recuperação era ineficaz.

  77. O preço da venda dos imóveis apreendidos para a massa falida deveria ser um preço justo de harmonia com as regras da oferta e da procura no mercado imobiliário e não uma venda por qualquer preço mínimo.

  78. No caso, a factualidade provada, em consonância com a prova, não só demonstrou que o imóvel podia ter sido vendido por um preço muito superior aos 701.000€, dadas as propostas que se seguiram à venda por parte da E... Unipessoal, Lda, como evidenciou que a devedora, enquanto administradora da massa, não cumpriu com o mais elementar dever de diligência e cuidado na venda do imóvel, pelo melhor preço possível.

   79. Nem o cidadão comum, o bonus pater famílias, quando pretende comprar ou vender uma casa ou um terreno deixa de consultar outros interessados, especialmente o anterior proponente, como seria o caso, para a consecução da melhor oferta.

   80. A insolvente, enquanto administradora da massa, estava obrigada a empregar todos os meios que permitissem “maximizar” os interesses dos credores. E isso não aconteceu, não só por parte da insolvente, como a Administradora de Insolvência nada fez para o controlar, antes consentiu na venda à Ré adquirente, a qual omitiu do tribunal e dos credores até poucas horas antes da escritura que sabia agendada para o efeito.

   81. A devedora e a Administradora de Insolvência nada fizeram para conseguir a melhor oferta possível, quando era de esperar do dever funcional de ambos, no exercício dos poderes de administração e fiscalização que lhe foram confiados pela maioria dos credores, a realização das diligências razoáveis para o conseguir.

  82. Dizer que até à escritura não foi conhecida melhor proposta, como afirma o tribunal a quo, é distorcer a realidade já que a devedora e a Administradora de Insolvência não deram sequer tempo, oportunidade, nem realizaram diligências para o alcançar, designadamente com conhecimento atempado aos credores e à anterior proponente.

  83. Na motivação da matéria de facto, o tribunal a quo concluiu ser estranho o administrador da insolvente não aceitar a proposta de €700.000,00 da sociedade “E...” apresentada em 20 de janeiro de 2021 e depois, no final de março seguinte, aceitar a proposta por mais mil euros, sem tentar renegociar com o anterior proponente, tentando obter um valor superior.

  84. Neste contexto, afirmar que a proponente E... não ofereceu melhor proposta do que os 700 mil euros, até ao momento da escritura de compra e venda, quando, na realidade, após a sua proposta inicial não mais foi ouvida, nem sequer contactada, é pretender iludir o dever que competia ao administrador da insolvente e à Administradora de Insolvência, no exercício das respetivas funções, de realizar as diligências tendentes a obter o melhor preço para a venda do terreno.

  85. O processo negocial da venda do imóvel à Ré adquirente foi envolto por parte da devedora e da Administradora de Insolvência num secretismo e falta de comunicação atempada aos principais interessados, não obstante aqueles saberem, nas circunstâncias concretas, que aquele prédio, de valor bastante elevado, tinha outro interessado na compra, o que potenciava – numa gestão criteriosa e ordenada à satisfação dos créditos sobre a massa insolvente - a existência de melhor oferta, como logo se veio a comprovar.

  86. Na versão displicente do administrador da insolvente e da Administradora de Insolvência bastava a venda pelo valor mínimo e os credores não tinham sequer que se pronunciar sobre a venda, tudo como se o plano de recuperação homologado servisse para cobrir as maiores arbitrariedades e ilegalidades da sua atuação intencionalmente danosa para os credores.

   87. Não se provou – é certo - que o administrador da massa tivesse recebido outras ofertas melhores, mas a factualidade assente também revela que a sociedade insolvente e a sociedade adquirente agiram com a opacidade e rapidez necessárias para evitar recebê-las, tudo com o silêncio e a inércia da Administradora de Insolvência que bem podia não se apressar a autorizar a venda, em vez de nela consentir acriticamente, como o fez, com elevadíssimo prejuízo para os credores.

  88. Nem se diga com o tribunal a quo que à Administradora de Insolvência incumbia apenas fiscalizar ou supervisionar a venda, quando, na realidade, além de ter veiculado pelos credores e a insolvente as propostas da E..., foi ela quem autorizou ou consentiu na venda realizada no dia 14.04.2021 e prontamente denegou as propostas subsequentes daquela, de valor superior, sem observância do principal objetivo da venda e do dever fundamental do Administradora de Insolvência (a maior satisfação possível dos créditos reconhecidos), conforme o citado art.12º, do seu Estatuto.

   89. Mais do que as expetativas, os credores viram violado, por atuação concertada fraudulenta dos outorgantes e da Administradora de Insolvência, o direito a obterem maior satisfação dos seus créditos, no caso em quase 100 mil euros, só na venda deste prédio, sendo que o plano de recuperação homologado tinha prioritariamente em vista a melhor satisfação possível dos créditos e não a venda pelo valor mínimo dos ativos.

   90. No cumprimento daquele objetivo e dever competia ao Administrador de Insolvência supervisionar e autorizar a proposta que melhor o realizasse, o que claramente aquela não fez, em conluio com os outorgantes vendedor e comprador.

   91. Repare-se que tendo recebido e tomado conhecimento da proposta inicial de 700.000€ da sociedade E..., a Administradora de Insolvência e a insolvente nada lhe comunicaram, senão em resposta ao email/proposta das 19H34 do dia 14.04.2021 (DOC 9), já depois da escritura realizada por volta das 14 horas desse dia.

   92. A coberto do valor mínimo aprovado pela maioria dos credores, a administradora insolvente e a Administradora de Insolvência apresentam-se totalmente descomprometidas com o principal objetivo do processo de insolvência, sentindo-se esta completamente desvinculada de acompanhar a lisura do processo negocial da venda para o conseguir.

   93. A venda feita pelos três, da noite para o dia, à luz das regras da experiência comum, deixa claríssimo o conluio do administrador da insolvente e da Administradora de Insolvência com a compradora final do imóvel, no sentido de a favorecer na compra e venda deste, ignorando por completo, pela diferença mínima de 1.000€, o interesse de outra proponente ou alternativas de outros credores mais vantajosas, sendo naturalmente relevante na decisão negocial destes a data agendada para a escritura e o conhecimento atempado de um novo proponente.

   94. A intenção de favorecer deliberadamente aquele proponente implica, como disso todos estavam cientes, uma intenção reflexa ou derivada de prejudicar os credores.

   95. Essa atuação conjunta tresanda à ilegalidade do negócio fraudulento realizado para servir censuravelmente os interesses de poucos, em sacrifício de muitos, os do costume, aqui credores da massa insolvente.

  96. Aos recorrentes, como credores, resta a confiança na coragem e honestidade deste tribunal de recurso para repor a verdade (…).

  Pretendem assim que seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que julgue procedentes os pedidos dos autores/recorrentes nos precisos termos sobreditos sobre a matéria de facto e de direito.

   A interveniente CC apresentou resposta, na qual se pronunciou pela confirmação do decidido.

   Formulou as seguintes conclusões:

   1ª. O recurso de apelação interposto pelos A.A. é totalmente infundado, devendo, por isso, improceder e ser-lhe negado provimento.

   2ª. Face à prova produzida e constante dos autos, quer a constante do presente Apenso quer a constante dos autos principais da insolvência e seus demais Apensos – cfr. despacho de 01.06.2023 constante da Ata de Audiência Prévia, da mesma data -, incluindo, sem exclusão de indicação, os depoimentos e declarações de parte e depoimentos das testemunhas, a reclamação apresentada pelos A.A. relativamente à matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida deve ser inteiramente indeferida e, em consequência, mantido o constante da sentença recorrida.

   3ª. Na ponderação do dever de procura da verdade material, o princípio do inquisitório, estabelecido no artº 411º do Cód. Proc. Civil, não deve, em regra, sobrepor-se aos deveres das partes na apresentação tempestiva nos autos de documentos que têm em seu poder.

   4ª. Como tal, não tendo os A.A. produzido prova – apesar de, nos termos, designadamente do artº. 342º, nº 1 do Cód. Civil, terem esse ónus – quanto à existência do proc. nº 1349/18.1T9VCD, não incumbia à Mma Juíza “a quo” fazer quaisquer diligências para o efeito.

   5ª. Os A.A., no artº 7º da p.i., ao alegarem que ”o negócio alienante do bem imóvel foi realizado pelo valor de 701.000,00 Euros … dentro dos parâmetros aprovados para a venda quanto ao valor.”, fazem uma confissão irretratável – cfr. artºs 352º e segts. do Cód. Civil.

   6ª Essa confissão constituiu o reconhecimento pelos A.A. de que o valor da venda, €701.000,00, estava dentro dos parâmetros fixado no Plano de Recuperação aprovado e homologado.

   7ª. O que, sob pena de violação da confissão e, assim, de nulidade, impede e afasta tudo quanto os A.A. alegam a respeito do valor de venda do prédio em causa nos autos, que, por isso, contrariando e violando os termos da confissão, não deve ser atendido nem considerado.

    8ª. Os A.A., em documento junto à petição inicial dos presentes autos, como nº 4, juntaram cópia de relatório pericial, de 19.04.2018, ao prédio dos autos efectuado no âmbito do processo nº 1128/17.3T8PVZ.

   9ª. A ora Apelada, administradora de insolvência da Insolvente, que não foi parte nesse processo, só teve conhecimento daquele relatório, quando citada, em 20.02.2023, para os termos da presente acção, ou seja muito posteriormente à celebração, em 14.04.2021, da escritura de compra e vendado prédio objecto dos autos foi celebrada, o que, sempre, impedia o conhecimento desse relatório por parte da mesma Apelada.

   10ª. No caso, o valor de mercado do imóvel – que, aliás, não foi apurado nos autos de insolvência nem nos seus Apensos, incluindo este – era inteiramente irrelevante, pois a sua venda devia – como foi - ser efectuada de acordo com o estabelecido no Plano de Recuperação ou de Insolvência aprovado e homologado – cfr. doc. nº 1 junto à contestação da aqui Apelada.

   11ª. O A.A. tinham, de resto, conhecimento do Plano de Recuperação ou Insolvência, votaram-no, como credor nº 564, na Assembleia de Credores realizada no dia 19.11.2019, tendo o seu voto sido de abstenção, como tudo consta, expressamente, da Ata dessa Assembleia de Credores – cfr. doc. nº 7 junto à contestação da aqui Apelada.

   12ª. Os A.A., de resto, não são credores da Insolvente B..., S.A., pois o seu nome e o seu alegado crédito não consta da lista de credores do Plano de Recuperação ou de Insolvência e não reclamaram da sua não inclusão da lista de credores nem da não inclusão aí do seu alegado crédito, não tendo, em consequência, os direitos que se arrogam nos presentes autos.

   13ª. A exclusão dos A.A. da lista de credores era permitida face ao disposto, designadamente, nos artºs 192º e 217º do CIRE.

   14ª. O preço mínimo pelo qual o prédio, nos termos do Plano de Recuperação aprovado e homologado, podia e devia ser vendido era aquele que constava do mesmo Plano, €700.000,00.

   15ª. No que se refere ao processo ou procedimento de venda, tendo, na Assembleia de Credores realizada no dia 15.11.2018, por deliberação dos credores sido aprovado que a administração da Insolvente ficasse a cargo da devedora e aprovada a apresentação de Plano de Insolvência por parte da devedora, a partir de então, a intervenção da aqui Apelada, como Administradora de Insolvência da Insolvente, ficou limitada ao estabelecido no artº 226º do CIRE.

   16ª. Pelo Plano de Recuperação ou de Insolvência, EE ficou constituído fiel depositário dos bens da Insolvente, com vista à sua guarda e venda, com autorização a proceder à venda dos bens referidos no Anexo com o título de “Inventário de Bens e Direitos do Devedor”, entre os quais constava o prédio dos autos, pelo valor mínimo da venda: €700.000,00, com acompanhamento e supervisão da Administradora de Insolvência, com a obrigação desta de dar conhecimento aos mandatários dos credores das propostas de compra recebidas e, havendo-os, dos relatórios das leiloeiras.

   17ª. Pelo que a aqui Apelada, relativamente a cada venda de bens integrantes do dito Anexo, com o título de “Inventário de Bens e Direitos do Devedor, ao Plano de Recuperação, incluindo o prédio dos autos não dispunha de legitimidade nem de quaisquer poderes para as fazer.

   18ª. Do processo de insolvência e seus Apensos, incluindo os presentes autos, não constava o valor comercial do prédio, mas apenas o valor patrimonial tributário, €20.000,00, e o valor indicado no Plano de Recuperação como mínimo para a sua venda, €700.000,00, pelo que nada obrigava ou determinava que este não fosse o considerado para a venda.

   19ª. Face ao disposto, designadamente, no nº 2 do artº 12º da Lei nº 22/2013, de 26 de fevereiro, no Plano de Recuperação ou de Insolvência e do artº 217ºdo CIRE, a Apelada não devia ter tido actuação distinta daquela que teve, não lhe sendo exigido nem exigível tudo quanto os A.A. alegam na p.i. e no recurso.

   20ª. A matéria de facto constante dos pontos 23., 24., 25., 26., 27., 28., 29., 30., 31., 32. e 33. dos Factos Provados da sentença recorrida – não impugnada pelos A.A. - mostra à saciedade que a venda do prédio dos autos foi feita por a compradora, a sociedade A..., Lda, ter tido efectivo e real interesse na sua compra e a vendedora, a Insolvente, ter, reciprocamente, tido vontade e interesse na venda e que a compra e venda foi feita de acordo com o estabelecido no Plano de Recuperação aprovado e homologado.

   21ª. Face a esses factos, sua análise e sua interpretação, as regras de direito aplicáveis não permitem a alteração da decisão proferida na sentença recorrida, que, contrariamente ao pretendido pelos A.A., deve ser mantida e confirmada.

   22ª. Não tem aplicação o Acórdão Uniformizador nº 3/2001 do STJ, não sendo a convolação em alegada impugnação pauliana.

   23ª. No dizer do Acórdão de 15.09.2022 do Tribunal da Relação do Porto, através da presente acção pretende-se “conhecer de um pedido de anulação da venda de um imóvel integrante da massa insolvente, por vícios de procedimento, e, simultaneamente, de um pedido de nulidade dessa mesma venda, com base em simulação negocial.”

   24ª. E foi também assim que foram deduzidas as diferentes defesas, incluindo as contestações, elaborado o despacho saneador, com fixação do “Objeto do Litígio” e “Temas de Prova” – cfr, Ata de Audiência Prévia de 01.06.2023 -, realizado o julgamento e proferida a sentença.

   25ª. Na petição inicial, não foram pelos A.A. alegados factos que inos requisitos de uma alegada impugnação, os quais, de resto, também não se provaram [sic]

   26ª. Pois, e desde logo, como se viu, na data da propositura da acção, face ao constante do Plano de Recuperação ou de Insolvência, não eram credores da Insolvente ou da massa insolvente desta.

   27ª. Depois, não alegaram qualquer facto que permitisse concluir que, da compra e venda efectuada, tivesse resultado a impossibilidade, para eles A.A. – na hipotética consideração como credores -, de obter a satisfação integral do seu crédito ou, pelo menos, um agravamento dessa impossibilidade.

   28ª. Já que, e desde logo, não alegaram o montante total dos créditos sobre a Insolvente, que, como se verifica da lista constante do Plano de Recuperação, montaram a €25.712.310,83, o que representa 0,03% destes.

   29ª. Os A.A. também não alegaram como é que o seu invocado crédito seria pago nos termos previstos e constantes do Plano de Recuperação ou Insolvência, já que, se o tivessem feito, resultaria que o seu invocado crédito em nada foi e ou poderia ser afectado pela venda do prédio objecto dos autos, como se verifica do ponto “3 - Fornecedores, Banca e O Credores - Credores Comuns" do Plano de Recuperação:

   30ª. E os A.A. também não alegaram o terceiro requisito, o da má fé por parte do devedor e do terceiro, consistente na actuação da Insolvente e da compradora com consciência, por parte de ambas, do prejuízo que a compra e venda causava aos A.A., o que, igualmente, não lograram provar.

   31ª. Pelo que não foram alegados e não se verificaram os requisitos da impugnação pauliana previstos e exigidos pelos artºs 610º e segts. do Cód. Civil, como, aliás, se reconheceu na sentença recorrida.

   32ª. De modo que, não tendo sido alegados pelos A.A., na p.i., factos integradores, como causa de pedir da acção, de impugnação judicial da venda do prédio em causa nos autos, jamais se poderia ou pode proceder à convolação da acção de nulidade da venda em acção de impugnação da venda.

   33ª. Aliás, na p.i., os A.A. são inteiramente precisos quanto aos pedidos que formulam na p.i..

   34ª. Assim, além de classificarem a compra e venda como um negócio simulado, em favor dos próprios e em desfavor dos credores – não deles A.A. em concreto – por má fé contratual, tudo a ser reconhecido, pedem a declaração de nulidade da compra e venda e a devolução do prédio dela objecto à massa insolvente.

   35ª. Ora, na impugnação pauliana, a compra e venda é válida, não sendo, consequentemente, anulada nem o bem dela objecto é restituído ao património da vendedora.

   A compra e venda apenas é ineficaz em relação ao credor prejudicado, que pode executar o bem no património do comprador e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, como resulta do disposto no artº 616º do Cód. Civil.

   36ª. Invocam os A.A. o nº 3 do artº 127º do CIRE, mas este preceito legal sempre é inaplicável, pois não estamos em presença de resolução em benefício da massa insolvente, capítulo onde se encontra integrado aquele preceito.

   37ª. E as pretensões dos A.A. constantes do recurso mais não constituem do que alterações da causa de pedir e do pedido, o que tudo é inadmissível por violação do disposto, designadamente, no artº 265º do Cód. Proc. Civil.

   38ª. Os demais pedidos cuja declaração os A.A. requerem também improcedem inteiramente, porquanto:

   - não resultou provado que a venda do prédio tivesse sido efectuada com qualquer prejuízo para os credores;

   - os A.A., em sede de p.i., não formularam contra os outorgantes da escritura de compra e venda qualquer pedido, o que impede o Tribunal – mesmo que fosse, que não é, verdade – de poder declarar que “agiram com má-fé contratual, dando origem a um negócio, em favor dos próprios e em desfavor dos credores;” e

   - também não resultou provado que a Administradora de Insolvência, a aqui Apelada, tivesse agido com falta de zelo e de prudência e que, com isso, tivesse logrado ou violado as expectativas dos credores.

   39ª. Com fins manifestamente ocultos, os A.A., de forma falsa, insidiosa e manifestamente ofensiva, pretendem a declaração pelo Tribunal de que “a Administradora de Insolvência (aqui Apelada) não agiu com zelo e prudência e, com isso, “logrou” (violou) as expectativas dos credores, isto quando bem sabem que tal não é verdadeiro.

    40ª. O procedimento exigível da Administradora de Insolvência, a aqui Apelada, era o fixado no Plano de Recuperação ou de Insolvência, que, como referido e também ficou dito e demonstrado na sentença recorrida, foi cumprido pela aqui Apelada, não lhe sendo exigível actuação distinta, e não o procedimento que os A.A., sem fundamento, pretendiam que fosse ou tivesse sido.

   41ª. É contrária ao Plano de Recuperação ou Insolvência, a pretensão dos A.A.de, no que se refere à ora Apelada, esta não dever ter aceite a proposta, de 30.03.2021, da R. Sociedade de A..., Lda de compra do prédio por €701.000,00, apesar de superior ao valor mínimo estabelecido no Plano de Insolvência, dada a existência de uma anterior proposta da sociedade E... UNIPESSOAL, LDA, por dever consultar esta, para ver se oferecia valor superior, antes de autorizar a venda.

   42ª. Pois, a ora Apelada, como administradora de insolvência da insolvente, não tinha poderes nem legitimidade para promover e ou negociar a venda, mas apenas autorizá-la se respeitasse o estabelecido no Plano de Recuperação ou de Insolvência.

   43ª. Foram os credores da Insolvente que, aprovando o Plano de Recuperação ou de Insolvência, fixaram o valor mínimo para a venda nele não estabelecendo a forma ou modo de a Insolvente proceder às vendas, mas apenas valores ou preços mínimos.

   44ª. E a sociedade E... UNIPESSOAL, LDA, como se verifica do Plano de Recuperação ou de Insolvência, não é credora da Insolvente e também não tinha quaisquer direitos relativamente à aquisição do prédio dos autos.

   45ª. Se, porventura, concederam quaisquer direitos à sociedade E... UNIPESSOAL, LDA, o certo é que os A.A. não tinham poderes nem legitimidade para o fazer e, em qualquer caso, não deram conhecimento à ora Apelada, que, por isso, os desconhece.

   46ª. E, como resulta da alegação e conclusões de recurso dos A.A., a presente acção e a apelação só existem pelo facto de o prédio não ter sido vendido à E... UNIPESSOAL, LDA, que era a pretensão encapotada dos A.A.

   47ª. O resto não passa de falsas justificações e indevidos clamores de coragem e honestidade.

   48ª. Na sentença recorrida não foram violados, antes, pelo contrário, foram correctamente interpretados os factos e aplicados e interpretados os preceitos legais aplicáveis.

   49ª. Deve, por conseguinte, ser negado provimento ao recurso, mantendo-se e confirmando-se a sentença recorrida.

  A ré “A..., Lda.” também apresentou resposta, pugnando pela confirmação do decidido em 1ª Instância.

   Formulou as seguintes conclusões:

  1 - O recurso sobre a matéria de facto deve ser rejeitado porquanto os recorrentes não cumpriram o ónus imposto pelo art.º 640 do C.P.C..

  2 - Os recorrentes limitam-se a transcrever alguns trechos dos depoimentos e daí extrair conclusões fácticas e jurídicas acerca do que o Tribunal deveria ter dado como provado.

  3 - Os recorrentes não indicam com objectividade e rigor as transcrições do depoimento das testemunhas que permita dar resposta diversa à que foi dada pelo Tribunal a quo.

   4 - Dos depoimentos transcritos, em lado algum se pode extrair sentido diverso do constante na sentença.

   5 - A versão trazida pelos recorrentes não foi sustentada nem confirmada por nenhuma das suas testemunhas quanto à matéria dada como não provada.

   6 - Quanto à questão de direito tratada nas alegações de recurso, o que os recorrentes pretendem, com a procedência da impugnação pauliana, é executar o suposto crédito de que são titulares no património da insolvente, arredando os restantes credores, o que é de todo intolerável e sem qualquer fundamento.

   O recurso foi admitido por despacho de 15.12.2023 como apelação, a subir nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.


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    APRECIAÇÃO DA RECLAMAÇÃO PARA CONFERÊNCIA APRESENTADA PELOS AUTORES/RECORRENTES AO ABRIGO DO ART. 652º, Nº 3 DO CPC.

   O efeito devolutivo do recurso foi mantido por despacho do presente relator de 23.1.2024, em que também se procedeu à inscrição em tabela dos presentes autos para a sessão de 20.2.2024 e se admitiu a junção ao processo dos documentos apresentados pelos autores/recorrentes.

   Sucede, porém, que os autores/recorrentes vieram reclamar para conferência deste despacho, nos termos do art. 652º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil, com os seguintes fundamentos:

    “1º Consta do despacho notificado o seguinte:

    “Recurso próprio, admitido na espécie e efeito corretos, nada obstando ao conhecimento do mérito.”.

    2º Ora, salvo o devido respeito, que é muito, não podem os ora reclamantes concordar e conformar-se com o efeito atribuído ao recurso interposto, porquanto, o efeito devolutivo do recurso tornará o mesmo inócuo.

    Senão vejamos,

    3º Quando se impugna uma decisão judicial por via de recurso, tem-se em vista um certo efeito útil, que se traduz, em primeira linha, na fiscalização da decisão pelo Tribunal superior e, em segunda, na modificação dela.

   4º Ora, sucede que, in casu, ao não ser atribuído efeito suspensivo ao recurso, o mesmo perde o seu efeito útil, porquanto, não ficando sustada a execução da decisão, a parte vencedora pode promover diligências que, a final, verificando-se a procedência do recurso interposto, serão dificilmente reversíveis e causaram sérios e graves prejuízos para os reclamantes.

   5º No que concerne aos efeitos do recurso, nas palavras do Exmo. Sr. Professor Alberto dos Reis in Código de Processo Civil anotado, vol. V, em anotação ao art.º 692 (atual 647º do CPC) pág. 399:

   “(…) os recursos podem ter dois efeitos, devolutivo e suspensivo. Têm sempre efeito devolutivo; podem além deste, ter efeito suspensivo. Diz-se que o recurso tem efeito meramente devolutivo, quando ao efeito devolutivo não acresce o efeito suspensivo.

   O efeito devolutivo consiste em devolver ou deferir ao tribunal superior o conhecimento da questão ou questões postas pelo recorrente e, secundariamente, pelo recorrido.

   O efeito suspensivo pode traduzir-se em duas manifestações:

   1ª O recurso susta a execução da decisão recorrida, obsta a que a decisão constitua título executivo enquanto não transitar em julgado (art. 47);

  2ª O recurso susta o andamento do processo em que foi proferida a decisão de que se recorre;”.

  6º Nos presentes autos, o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Relator através de despacho, aqui em crise, confirmou o efeito devolutivo atribuído ao recurso interposto, através do despacho datado de 15.12.2023, com a ref. 454880942.

  7º Ora, prevê o n.º 3, do art.º 652 do CPC o seguinte:

  “Salvo o disposto no n.º 6 do artigo 641.º, quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária.”.

  8º “I - Despacho de mero expediente é “aquele que se destina a (1) prover ao andamento regular do processo (2) sem interferir no conflito de interesses entre as partes” (n.º 4 do art.º 156º do Código Processo Civil) ou, no corrente entendimento jurisprudencial, aquele que, proferido pelo juiz, não decide qualquer questão de forma ou de fundo, e se destina principalmente a regular o andamento do processo.

    II – O despacho de mero expediente tem uma finalidade - prover ao andamento regular do processo - e um pressuposto - sem interferir no conflito de interesses entre as partes.

   III - O despacho que, a pretexto de dar andamento ao processo, o faz de forma não regular, não preenche tal conceito; neste caso, o despacho não é de mero expediente pois que o juiz não actua de forma livre mas no cumprimento de uma actuação vinculada que se traduz na obrigação de ter de dar andamento ao processo no estrito cumprimento das “regras” processuais.” – cfr. AC. do Tribunal da Relação do Porto, in Proc. n.º 12/12.1TXPRT-J.P1, de 21.01.2014, disponível para consulta integral em www.dgsi.pt.

  9º Ora, é manifesto que o despacho proferido necessariamente irá interferir no conflito de interesse das partes, porquanto, nada impede que a parte vencedora execute a sentença, colocando a parte contrária numa situação muito deficitária, sendo que, após prolação de acórdão, poderá verificar-se a procedência do recurso interposto, e os prejuízos causados aos ora reclamantes serão tão graves resultando irreparáveis.

  10º Pelo que, não obstante o despacho proferido promover o andamento regular do processo, ao não lhe reconhecer efeito suspensivo o mesmo influencia, de forma grave prejudicial e definitiva, os interesses em dissídio.

  11º Razão pela qual se reclama de tal despacho, requerendo-se que sobre o mesmo recaía acórdão e que, depois de ouvida a parte contrária, seja o caso submetido à conferência, tudo conforme previsto no n.º 3, do art.º 652º do CPC e dirimida a questão seja conferido efeito suspensivo ao recurso.”

   Pretendem assim que a reclamação seja julgada procedente e que seja atribuído efeito suspensivo ao recurso que interpuseram.

   Os recorridos, no prazo que lhes foi assinalado para o efeito, nada disseram sobre esta questão.

   Apreciando:

   No requerimento de interposição os autores/recorrentes pronunciaram-se pela atribuição ao recurso de efeito suspensivo, sem, porém, nada referirem, em termos de argumentação, nesse sentido.

   A Mmª Juíza “a quo” no respetivo despacho de admissão fixou ao recurso o efeito meramente devolutivo, acrescentando não existir fundamento legal para lhe ser atribuído efeito suspensivo.

  Efeito que foi mantido pelo presente relator no seu despacho de 23.1.2024 e que agora se mostra questionado na reclamação para conferência apresentada pelos autores/recorrentes ao abrigo do art. 652º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil.

   Vejamos.

  Conforme decorre do art. 647º, nºs 2 e 3 do Cód. de Proc. Civil a apelação tem efeito suspensivo da decisão quando é interposto nos seguintes casos:

  a) Da decisão que ponha termo ao processo em ações sobre o estado das pessoas;

  b) Da decisão que ponha termo ao processo em ação em que se aprecie a validade, subsistência ou cessação de contrato de arrendamento ou que respeitem à posse ou propriedade da casa de habitação;

  c) Da decisão de indeferimento de incidente processado por apenso;

  d) De despacho que indefira liminarmente ou que não ordene a providência cautelar;

  e) Das decisões que apliquem multas ou outras sanções processuais;

  f) Das decisões que tenham ordenado o cancelamento de qualquer registo;

  g) Das demais decisões em que a lei atribui expressamente ao recurso efeito suspensivo.   

   Para além destes casos, o nº 4 do art. 647º prevê ainda a possibilidade de o recorrente requerer que a apelação tenha efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e este se ofereça para prestar caução, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação de tal caução no prazo assinalado pelo tribunal. 

  Acontece que nenhuma destas situações previstas nos nºs 3 e 4 do art. 647º do Cód. de Proc. Civil se encontra verificada no caso do presente recurso, nem os autores/recorrentes ao reclamarem a atribuição de efeito suspensivo se referem, em qualquer momento, a este normativo.

  Reclamam essa fixação com base em considerações vagas e genéricas, onde realçam a inocuidade do recurso caso não lhe seja fixado efeito suspensivo, mas sem se respaldarem no seu argumentário em qualquer norma legal que possa servir de fundamento à sua pretensão, que, de resto, não existe.

  Assim, porque o recurso interposto pelos autores não se subsume a nenhuma das hipóteses referidas nos nºs 3 e 4 do art. 647º do Cód. de Proc. Civil, mantém-se, em conferência efetuada nos termos do art. 652º, nº 3 do mesmo diploma, o efeito meramente devolutivo que antes lhe foi atribuído.


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    APRECIAÇÃO DO RECURSO

   Passando agora à apreciação do recurso há a referir que o seu âmbito, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, se encontra delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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   As questões a decidir são as seguintes:

   I – A impugnação da matéria de facto;

   II – A verificação dos requisitos da impugnação pauliana;

   IIIA atuação da Administradora da Insolvência


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  É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:

  1. Em 22 de Novembro de 2012, a aqui Sociedade Insolvente, enquanto empreiteira, celebrou com a Sociedade D..., Lda, então dona da obra, representada por AA e BB, o contrato de empreitada junto como Doc 2 na PI, tendo por objeto a construção do Empreendimento Turístico ..., em ..., ...; contrato que veio a sofrer a adenda junta como Doc. 7 na PI.

  2. No dia 13.06.2016 fora outorgado entre AA e esposa DD (ali representada por AA e BB, ora autores), na qualidade de vendedores, e a ora sociedade insolvente B..., SA, na qualidade de compradora, o contrato de compra e venda e renúncia de hipoteca (Doc. 5 da PI), pelo qual os primeiros vendem à ora insolvente o prédio rústico artigo matricial n.º ..., livre de quaisquer ónus ou encargos, pelo preço de €607.000,00, e a compradora renuncia à hipoteca que tinha registado sobre o prédio a ser favor.

  3. Nesse mesmo dia, entre as mesmas partes fora celebrado o Pacto de Opção de Compra junto como Doc. 5 na PI daquele mesmo prédio rústico (ora objeto de impugnação), atribuindo-se a AA e esposa DD a opção de adquirir aquele prédio pelo preço de €630.000.00 até ao dia 31.12.2016.

  4. Após ter adquirido o terreno em 2016, a sociedade insolvente não tomou posse do referido terreno, deixando que ali circulassem cavalos da sociedade “C..., Lda.”, que também circulavam nos restantes terrenos ocupados por esta sociedade, desconhecendo, no entanto, a existência de contrato de arrendamento sobre aquele prédio.

  5. Correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto, juízo Central Cível da Povoa de Varzim – J6, sob o n.º 1128/17.3T8PVZ, ação instaurada pelo aqui A. AA e mulher contra a insolvente “B..., SA”, pedindo que “se declare nulo o contrato de compra e venda celebrado entre eles por meio da escritura pública outorgada em 13 de Julho de 2016”, ação que foi julgada improcedente.

  6. No âmbito daquele Processo n.º 1128/17.3T8PVZ, fora junto o Relatório Pericial junto a estes autos como Doc. 4 da PI, no qual é avaliado o prédio rústico em causa nos autos, ali constando que o prédio se encontra “livre de ocupação”, atribuindo os peritos ali nomeado pelo Tribunal e indicado pelo ali autor o valor unitário do terreno em €65,83, concluindo pelo valor global de €2.238.137,02. O Perito nomeado pelo ali réu conclui que o valor do imóvel ascendia a €815.000,00; tendo sido realizada outra perícia naqueles autos.

  7. No âmbito de tal processo judicial, foi proferida sentença, confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.07.2020, e transitada em julgado, que julgou a acção improcedente, sentença junta na contestação da ré insolvente, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, e na qual consta dos factos provados: “O valor de mercado do imóvel mencionado em 3) [artigo matricial ...] não é inferior a €814.516,73.”

   8. No parecer Técnico junto como Doc. 6 na PI é indicada a diferença entre os valores executados e faturados pela ora sociedade insolvente à então dona da obra sociedade “D...”, no montante de €417.787,25, montante esse que corresponde ao crédito reclamado pela sociedade “D...” à Sociedade Insolvente neste processo de insolvência.

  9. A interveniente CC fora nomeada administradora da insolvência da sociedade B..., SA na sentença de declaração de insolvência de 03.09.2018, através de sorteio e aplicação informática disponibilizada no CITIUS.

  10. Na Assembleia de Credores realizada no dia 15.11.2018, por deliberação dos credores fora aprovado que a administração da insolvente B..., S.A. ficasse a cargo da devedora e aprovada a apresentação de Plano de Insolvência por parte da Devedora.

  11. Consta do Plano de Insolvência/Recuperação aprovado pelos credores e homologado pelo Tribunal, além do mais o seguinte:

  - no ponto 1 “1 – ESTADO – Fazenda Pública:”

  - A Devedora pagará os créditos tributários no prazo máximo de dezoito meses a contar da data do trânsito em julgado da sentença homologatória deste plano de recuperação, através da venda dos ativos cuja lista se anexa e pelo preço mínimo dela constante sendo que, quanto aos imóveis, o valor mínimo a considerar será o valor patrimonial tributário respetivo.

  - O resultado de cada venda será, num prazo máximo de trinta dias, rateado pelos credores de acordo com as regras ínsitas no disposto nos artigos 172º a 177º do CIRE e na proporção do crédito que cada um deles dispõe.

  - Fica como fiel depositário de todos os bens da firma o Administrador da mesma, EE, não podendo o mesmo alienar tais bens sem o consentimento da Sra. Administradora da Insolvência;

  - no ponto 3 “3 - Fornecedores, Banca e O. Credores - Credores Comuns”:

   - Adicionalmente, durante os 18 meses seguintes à homologação do presente plano e com vista à obtenção de meios para pagamento dos presentes créditos, a Devedora fica autorizada a proceder à venda dos bens referidos no Anexo com o título de “Inventário de Bens e Direitos do Devedor”, com acompanhamento e supervisão da Sra. Administradora de Insolvência;

   - A Sra. Administradora de Insolvência dará conhecimento aos mandatários dos credores das propostas de compra recebidas e dos relatórios das leiloeiras, e enviará previamente àqueles os mapas com os valores a ratear pelos credores privilegiados;

   - O Administrador da Devedora, EE, ficará como fiel depositário dos bens em causa, com vista à sua guarda e venda;

   - A devedora não poderá onerar, por qualquer forma, os bens referidos no Anexo com o título de Inventário de Bens e Direitos do Devedor, bem como não poderá utilizar o produto da venda desses bens para outro fim que não o de pagamento aos credores nos termos previstos neste plano.

   - O valor da venda dos ativos será rateado entre todos os credores de acordo com a sua categoria, na proporção do crédito que cada um dispõe e de acordo com o montante que lhes foi reconhecido pelo Sr. Administrador Judicial na lista de credores a que alude o artigo 129º do CIRE e de acordo com a Sentença de verificação e graduação de créditos a elaborar na presente lide.

   - Findos que estejam os dezoito meses para a venda dos respetivos bens, a Comissão de Credores definirá, quanto aos não alienados, o valor base de venda respetivo.

   12. Consta da pag. 79 do plano de recuperação homologado o seguinte:

   “são derrogados todos os artigos do CIRE que preceituam que à declaração de insolvência se segue a apreensão, liquidação e partilha dos bens que integram a massa insolvente.”

   13. Consta na pag. 95 do plano, mais propriamente em “V -Anexos”, “INVENTÁRIO DOS BENS E DIREITOS do DEVEDOR”, o Prédio Rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de Povoa do Varzim sob o nº ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o nº ..., concelho de Póvoa do varzim, freguesia ..., Lugar ..., correspondente à verba n.º 21 (Auto de apreensão de bens Imóveis elaborado pelo Sr. Administrador Judicial Provisório), valor mínimo da venda: €700.000,00.

   14. A 19.11.2019 fora realizada a assembleia de credores de aprovação do plano.

   15. Concluída a votação presencial e por escrito, o plano de recuperação fora aprovado pelos credores, tendo sido homologado por sentença proferida a 13.07.2020, transitada em julgado a 10.08.2020.

   16. No dia 20 de janeiro de 2021, a Sociedade E... UNIPESSOAL. LDA, através de advogada, dirigiu à AI o e-mail junto como Doc. 8 da PI, no qual informa que está interessada na compra do prédio n.º ... pelo preço de €700.000,00, solicitando que dê conhecimento da venda aos credores e aos proprietários confinantes.

   17. Por requerimento de 08.02.2021 dos autos principais, a sociedade “E... UNIPESSOAL LDA.” dá conta da apresentação dessa proposta dirigida por e-mail à AI, solicitando “que dê conhecimento da venda aos credores e aos proprietários dos prédios confinantes para efeitos de exercício de direito de preferência.”

   18. Este requerimento fora notificado entre mandatários aos credores e devedora.

   19. Por requerimento de 17.02.2021 dos autos principais, 51 credores trabalhadores ali identificados e “tendo tido conhecimento da proposta apresentada pela sociedade E... Unipessoal, Lda para aquisição do prédio rústico nº ... do auto de apreensão pelo valor de 700.000,00€ (setecentos mil euros), vêm manifestar aos autos concordarem com a aceitação da mesma, entendendo estar o valor proposto adequado ao teor do plano de recuperação aprovado nos autos.”

   20. Por requerimento de 31.03.2021, o credor HH, a propósito da proposta de aquisição pela sociedade “E...” do prédio n.º ..., pelo valor de €700.000,00, refere que “entende que a proposta apresentada é ajustada ao valor comercial do referido imóvel e atento ao estabelecido no plano da insolvência deve ser a proposta de aceite e proceder-se à imediata venda do imóvel em causa.” e requer “a notificação da Sra. Administradora da Insolvência a fim de confirmar o teor da proposta e informar das diligências no sentido de proceder à venda do referido imóvel.”

  21. Não fora apresentada oposição pelos credores à aceitação daquela proposta da sociedade “E...” de €700.000,00 para aquisição do prédio n.º ....

  22. A sociedade insolvente B..., S.A., após tomar conhecimento da proposta da sociedade “E...” no valor de €700.000,00, não manifestou à AI a intenção de realizar a venda pelo valor da proposta apresentada pela sociedade “E...”.

  23. A Sociedade A..., Lda (A...) apresentou uma proposta de aquisição do prédio pelo valor de €701.000,00 diretamente à sociedade insolvente, na pessoa do seu administrador, encontrando-se a proposta datada de 30.03.2021, e estava disponível para outorgar a escritura pública, no dia, local e hora a indicar pela insolvente, não tendo dirigido a proposta diretamente à AI ou ao processo, tendo negociado diretamente com a sociedade B..., SA.

   24. A Ré A... é uma empresa que se dedica à indústria da construção civil e investimento imobiliário, tem a sua sede na Rua ..., ... ..., Póvoa de Varzim.

   25. O terreno/prédio nº ... fica a cerca de 100 metros da sede da sociedade contestante.

   26. Aquela proposta de aquisição fora precedida de reunião e negociação entre o filho dos sócios da Ré A..., GG, e o Presidente do Conselho de Administração da sociedade insolvente.

   27. No dia 6 de abril de 2021, a ré A... deu entrada de um pedido de informação prévia (PIP) para o terreno em questão.

   28. No dia 6 de abril, através de e-mail, a sociedade insolvente deu conta à Administradora da Insolvência que tinha obtido uma proposta de uma Sociedade para compra daquele terreno no valor de €701,000.00, informando verbalmente a AI que era sua intenção aceitar essa proposta e realizar a venda no dia 14 de abril.

   29. Analisada a proposta, por ser superior ao valor mínimo da venda fixado no plano para aquele prédio, a Administradora da Insolvência decidiu autorizar a venda.

   30. Nessa sequência, pelas 23h52 do dia 13 de abril e pelas 00h07 do dia 14 de abril, através da plataforma CITIUS (“Requerimento” dirigido ao Tribunal e formulário “Outros – Comunicação aos Credores” dirigido aos credores, respetivamente), a Sra. AI dá a conhecer, respetivamente, ao Tribunal e aos credores aquela proposta para aquisição do imóvel inscrito sob o n.º ... pelo valor de €701.000,00, anexando a proposta apresentada por “A..., Lda.” e informa que “a mesma respeita o valor atribuído no Plano”, não indicando a data já agendada para a escritura para o dia 14 de abril.

   31. A 14 de abril de 2021, a Sociedade Insolvente B..., SA outorgou contrato de compra e venda do prédio rústico, sito no Lugar ..., em Concelho da Póvoa de Varzim, freguesia ..., inscrito na matriz predial n.º ..., com o valor patrimonial tributário de €20.000,00 e com 32.500,00 metros quadrados, com a Sociedade A..., Lda., pelo preço de 701.000,00 Euros.

   32. No negócio foi também interveniente a Dra. CC, na qualidade de Administradora de Insolvência nomeada nestes autos de insolvência, ali declarando que autoriza a sociedade insolvente à realização do referido negócio.

   33. O preço da venda do prédio rústico n.º ... respeitou o valor mínimo de venda daquele prédio fixado no plano de insolvência aprovado pelos credores e homologado pelo Tribunal.

   34. Não fora celebrado contrato-promessa entre a sociedade compradora (A...) e a sociedade insolvente, tendo antes sido agendada a escritura de forma célere para o dia 14.04.2021 e tendo a AI se deslocado ao Porto para outorga da escritura, sem prévio adiantamento de preço do negócio ou sinal.

   35. Já após a celebração dessa escritura, e após conhecimento da outorga da escritura, nesse mesmo dia 14.04.2021, pelas 19H34, a Drª II (em representação da sociedade E... Unipessoal, Lda) enviou e-mail à AI e credores, remetendo proposta para aquisição do prédio n.º ... pelo valor de €705.000,00, dando conhecimento ao processo dessa proposta nesse mesmo dia 14 de abril, pelas 20h58.

   36. Por requerimento 20.04.2021, a sociedade “E...” apresenta uma proposta de €800.000,00 para aquisição daquele mesmo prédio n.º ....

   37. Por e-mail de 20.04.2021 (Doc. 10 da contestação da AI), a Sra. AI respondeu à Drª II, e dando conhecimento aos autos.

   38. Em 1 de julho de 2008 fora celebrado o contrato de arrendamento rural junto à PI entre AA e DD, na qualidade de senhorios e sociedade “C..., Lda.”, na qualidade de arrendatária, incidindo esse arrendamento sobre sete prédios rústicos, entre os quais o prédio n.º ....

   39. De acordo com o clausulado no contrato de arrendamento rural, o contrato teve início a 1.07.2008 e é válido por dez anos, renovável por igual período se não houver denúncia do mesmo por qualquer das partes.

   40. A sociedade “C...” vem usando aquele terreno (prédio ...), bem como os demais terrenos objeto do contrato de arrendamento rural no prosseguimento da sua atividade.

    41. A 23.10.2020, a sociedade “C..., Lda.” dá conhecimento à AI que sobre o prédio ... incide contrato de arrendamento rural, solicitando que lhe disponibilizasse a forma de como pagar o valor do arrendamento.

   42. Não fora efetuada qualquer comunicação à sociedade “C..., Lda.” para eventual exercício de direito de preferência.

   43. A Sociedade C... Lda é uma sociedade que se dedica à exploração agrícola, sendo que o referido imóvel integra a exploração agrícola, constando como integrante dessa exploração no documento de 27/01/2010 do Ministério da Agricultura e junto à PI.

   44. O prédio n.º ... faz parte da área onde diariamente é ocupado por pastagem e durante todo o dia, por cavalos daquela ....

   45. A Sociedade Insolvente e a Sociedade Adquirente, através dos seus legais representantes, sempre viram cavalos a circular naquele terreno livremente.

   46. A sociedade C..., Lda e a sociedade “D..., lda.” têm como sócios os aqui autores.

   47. A sociedade “C..., Lda” tomou conhecimento desta venda do prédio ... a “A...” a 29.04.2021 e, até ao presente momento, não intentou ação para exercício do direito de preferência.

   48. Em 22.11.2021, a D..., Lda, sociedade igualmente pertença dos A.A. deduziu incidente de impugnação desta Venda, em Benefício da Massa Insolvente, que deu lugar ao Apenso T; incidente que, por despacho de 12.02.2022, transitado em julgado, foi liminarmente indeferido.

   49. Após a outorga do contrato de compra e venda, a Sociedade Adquirente do imóvel “A..., Lda” tentou tomar a posse do referido bem imóvel, cortando vedações, irrompendo pelo terreno, com máquina pesadas, camiões, e múltiplas pessoas.

   50. Após tentativa de tomada de posse do terreno pela sociedade “A...”, e chamada a G.N.R. ao local e depois de telefonemas efetuados pelos Srs Agentes para o DIAP da Póvoa de Varzim, foi reposta a vedação e a Ré A... viu-se impedida de ficar investida na posse plena do terreno adquirido.

   51. Disso deu conta no presente processo de insolvência à firma em liquidação B..., S.A. e à Sra Administradora da insolvência Dra CC para procederem à entrega do prédio por si adquirido livre de quaisquer ónus ou encargos.

   52. Acordado o dia 21 de julho de 2021 para o efeito, dirigiu-se para o local o Sr. EE, administrador da B... em liquidação, acompanhado da respetiva mandatária e o colaborador da ré A..., GG, para procederem à vedação do terreno, tendo mobilizado diversos camiões para o efeito.

   53. Compareceu no local o Sr. BB e logo de seguida o pai AA, aqui AA., e mais uma vez não foi possível investir a Ré A... na posse do terreno.

   54. Na Lista de Créditos anexa ao Plano de Insolvência consta no lugar do credor n.º 570, um crédito de “D..., Lda.”, de natureza comum, no montante total de €417.787,25.

   55. Na Lista do art. 129.º CIRE apresentada pela AI a 28.12.2018 consta como crédito n. 564: o crédito de AA e DD (Cessão de créditos D..., Lda.), de natureza comum no montante de €417.787,25, Sob Condição, Reclamado contrato de empreitada (Cessão de créditos D..., Lda.), constando a nota no que respeita à condição: “C) Créditos com processos judiciais pendentes (com litígio)”.

   56. Fora apresentado requerimento de impugnação à Lista do art. 129.º CIRE, por requerimento de 14.01.2019 (Ref. 21216552) no apenso A, pelo credor Nº da Lista 564 – AA e DD (D... Ld.ª), requerendo alteração/retificação do seu crédito que foi reconhecido com a qualificação do crédito de natureza comum sob condição [c) créditos com processos judiciais pendentes (com litígio)], requerendo que seja qualificado como crédito de natureza comum sem qualquer condição, impugnação que não foi objeto de resposta.

   57. Por despacho de 27.10.2020 fora determinado o seguinte: “declaro procedentes as impugnações apresentadas pelos credores F..., S.A. e AA e DD (D... Ldª) e, em consequência, considero reconhecidos e verificados os respetivos créditos, nos exatos termos que constam das respetivas impugnações.”

   58. Prosseguiu o apenso de reclamação de créditos para apreciação de impugnações dos credores trabalhadores, tendo sido homologada transação quanto a tais impugnações, determinando-se a junção de Lista atualizada pela AI.

   59. Da Lista de Créditos atualizada junta a 05.12.2022 no apenso A de reclamação de créditos não consta qualquer crédito de “D..., Lda.” ou dos autores, nada se referindo quanto ao crédito reconhecido aos autores por despacho de 27.10.2020.

  60. No âmbito do apenso A, fora aquela Lista atualizada homologada por sentença proferida em 21.12.2022.

  61. Por despacho de 06.02.2022 proferido no processo principal de insolvência fora julgado AA e BB habilitados como únicos e universais herdeiros da referida credora DD, de quem são marido e filho, respetivamente, com eles prosseguindo a presente acção os seus termos.


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   Foram dados como não provados os seguintes factos:

  A - A venda do prédio rústico artigo matricial n.º ... não foi realizada no prazo de 18 meses previsto no plano de insolvência.

  B - A alienação do prédio rústico artigo matricial n.º ... foi realizada a um preço muito abaixo do valor de mercado, e visou apenas defraudar os credores e as hipóteses de ressarcimento creditório destes.

  C - A Sociedade D... apresentou queixa por crimes de burla qualificada, correndo esta os seus termos no DIAP de Vila do Conde, sob o nº 1349/18.1T9VCD, onde, quer a aqui Sociedade Insolvente, quer o seu Administrador foram constituídos arguidos.

  D - Foi após a sua constituição como arguida nesses autos criminais que, o Presidente do Conselho de Administração da Sociedade Insolvente e após ter conhecimento por parte da Administradora de Insolvência do interesse e de uma proposta apresentada por outra sociedade para a compra do referido terreno, congeminou ou congeminaram uma venda à Sociedade A..., Lda.

  E - A Sociedade A..., Lda nunca demonstrou qualquer interesse na compra do referido bem imóvel, nem nunca formulou qualquer proposta de aquisição.

   F - Para a marcação da escritura pública no dia 14.04.2021, a Administradora de Insolvência, anuindo a então pseudo negócio, desfez-se em recursos e fê-lo, propositadamente e sem dar conhecimento aos outros credores.

    G - Antes de outorgar a escritura a 14.04.2021, a Administradora de Insolvência recebeu e tomou conhecimento de outras duas propostas por parte da Sociedade E... UNIPESSOAL. LDA, designadamente da proposta de aquisição pelo valor de €800.000,00, pelo que devia ter confrontado o administrador da insolvente de que estava a outorgar escritura por valor inferior a propostas já recebidas.

   H - A sociedade insolvente, desde 2016, tinha conhecimento que o terreno se encontrava arrendado à sociedade Agrícola.

   I - O prédio n.º ... é essencial para o prosseguimento da atividade da sociedade Agrícola, sendo imprescindível na sustentabilidade dos animais que fazem parte do efectivo animal da ....

   J - A Sociedade Insolvente e a Sociedade Adquirente sabiam da existência do contrato de arrendamento rural e que a circulação dos cavalos naquele prédio ... era efetuada, não por mera tolerância do dono do terreno, mas por existir esse mesmo contrato de arrendamento.

   K - A Administradora de insolvência omitiu deveres plasmados no plano de insolvência, bem sabendo que o valor de mercado do prédio era muito superior a €701.000,00.

   L - Este negócio de compra e venda não é mais do que um negócio de conluio entre as duas sociedades, que perante o interesse efetivo de uma outra sociedade (E... UNIPESSOAL. LDA) engendraram este negócio.

   M - A Sociedade A... Lda não tem, nem nunca teve, qualquer interesse naquele bem imóvel, servindo apenas de “mão abonatória” à Sociedade Insolvente para assegurar um bem, que aparentemente terá pago, para depois, mais tarde o venderem por valor mais elevado, acertando as suas contas e assim prejudicando os credores, impedindo-os de verem satisfeitos os seus créditos através da obtenção de um preço mais elevado na venda do terreno.

   N - AI, sociedade insolvente e sociedade adquirente atuaram conluiados entre si e com consciência de que aquela venda prejudicava a garantia patrimonial dos credores, porquanto sabiam que o terreno podia e devia ser vendido por preço muito superior.


*

    Passemos à apreciação do mérito do recurso.

    I – A impugnação da matéria de facto

   1. Os autores, no primeiro segmento do seu recurso, insurgem-se contra a factualidade provada e não provada, mais concretamente no que concerne ao nº 15 (provado) e às alíneas B), C), D), F), K), L), M) e N) (não provadas).

   Quanto ao nº 15 [Concluída a votação presencial e por escrito, o plano de recuperação fora aprovado pelos credores, tendo sido homologado por sentença proferida a 13.07.2020, transitada em julgado a 10.08.2020] pretendem que a sua redação passa a ser a seguinte:

    - Concluída a votação presencial e por escrito, o plano de recuperação fora aprovado pela maioria dos credores, tendo sido homologado por sentença proferida a 13.07.2020, transitada em julgado a 10.08.2020, sem prejuízo da ineficácia do mesmo, na parte em que atinge os créditos fiscais da Fazenda Nacional e por contribuições à Segurança Social.

    Nesse sentido indicam a sentença proferida no processo principal – nº 3644/17.8 T8STS.

   Quanto aos factos não provados C) e D) [C - A Sociedade D... apresentou queixa por crimes de burla qualificada, correndo esta os seus termos no DIAP de Vila do Conde, sob o nº 1349/18.1T9VCD, onde, quer a aqui Sociedade Insolvente, quer o seu Administrador foram constituídos arguidos; D - Foi após a sua constituição como arguida nesses autos criminais que, o Presidente do Conselho de Administração da Sociedade Insolvente e após ter conhecimento por parte da Administradora de Insolvência do interesse e de uma proposta apresentada por outra sociedade para a compra do referido terreno, congeminou ou congeminaram uma venda à Sociedade A..., Lda.] entendem que deverão transitar para o elenco dos factos provados, com base nos documentos juntos com as alegações de recurso e em excertos das declarações prestadas pelo autor BB.

   No tocante aos factos não provados B), K), L) e N) [B - A alienação do prédio rústico artigo matricial n.º ... foi realizada a um preço muito abaixo do valor de mercado, e visou apenas defraudar os credores e as hipóteses de ressarcimento creditório destes; K - A Administradora de insolvência omitiu deveres plasmados no plano de insolvência, bem sabendo que o valor de mercado do prédio era muito superior a €701.000,00; L - Este negócio de compra e venda não é mais do que um negócio de conluio entre as duas sociedades, que perante o interesse efetivo de uma outra sociedade (E... UNIPESSOAL. LDA) engendraram este negócio; N - AI, sociedade insolvente e sociedade adquirente atuaram conluiados entre si e com consciência de que aquela venda prejudicava a garantia patrimonial dos credores, porquanto sabiam que o terreno podia e devia ser vendido por preço muito superior] consideram que devem ser tidos como provados.

  Quanto ao facto não provado F [Para a marcação da escritura pública no dia 14.04.2021, a Administradora de Insolvência, anuindo a então pseudo negócio, desfez-se em recursos e fê-lo, propositadamente e sem dar conhecimento aos outros credores] entendem que deve ser suprimido o seu segmento final e no que se refere ao facto não provado M [A Sociedade A... Lda não tem, nem nunca teve, qualquer interesse naquele bem imóvel, servindo apenas de “mão abonatória” à Sociedade Insolvente para assegurar um bem, que aparentemente terá pago, para depois, mais tarde o venderem por valor mais elevado, acertando as suas contas e assim prejudicando os credores, impedindo-os de verem satisfeitos os seus créditos através da obtenção de um preço mais elevado na venda do terreno] pugnam pela eliminação do segmento “prejudicando os credores, impedindo-os de verem satisfeitos os seus créditos através da obtenção de um preço mais elevado na venda do terreno”.

   No sentido das alterações relativas à factualidade não provada indicam os factos assentes sob os nºs 6 e 7 e excertos das declarações e depoimentos prestadas por FF, pelo administrador da insolvente EE, pelo autor BB, pela Administradora da Insolvência CC e também pela testemunha GG.

   Entendem, em suma, que devem ser aditados à factualidade provada os seguintes pontos:

   "61. A alienação do prédio rústico artigo matricial n.º ... foi realizada a um preço muito abaixo do valor de mercado, este não inferior a €814.516,73, e visou defraudar os credores e as hipóteses de ressarcimento creditório destes (ex-alínea B).

    62. A Sociedade D... apresentou queixa por crimes de burla qualificada, correndo esta os seus termos no DIAP de Vila do Conde, sob o nº 1349/18.1T9VCD, onde, quer a aqui Sociedade Insolvente, quer o seu Administrador foram constituídos arguidos (ex-alínea C).

    63. Após a sua constituição como arguida nesses autos criminais e o conhecimento, através da Administradora de Insolvência, do interesse e de uma proposta apresentada por outra sociedade para a compra do referido terreno, a Sociedade Insolvente, representada pelo seu administrador, EE, congeminou, com o consentimento da Administradora de Insolvência, a venda à Sociedade A... Lda (ex-alínea D).

   64. Para a marcação da escritura pública no dia 14.04.2021, a Administradora de Insolvência anuiu então ao negócio, e fê-lo, propositadamente, sem dar conhecimento atempado aos credores (ex-alínea F).

    65. A Administradora de insolvência omitiu o dever de fiscalização e supervisão plasmado no plano de insolvência, bem sabendo que o valor de mercado do prédio era muito superior a €701.000,00 (ex-alínea K).

   66. Este negócio de compra e venda não é mais do que um negócio de conluio entre as duas sociedades, que perante o interesse efetivo de uma outra sociedade (E... UNIPESSOAL. LDA) engendraram este negócio (ex-alínea L).

   67. Assim atuando a sociedade adquirente e a sociedade insolvente agiram com intenção de prejudicar os credores, impedindo-os de verem satisfeitos os seus créditos através da obtenção de um preço mais elevado na venda do terreno (ex-alínea M – segmento final).

   68. Ao agirem da forma descrita, a Administradora de Insolvência, a sociedade insolvente e a sociedade adquirente atuaram conluiados entre si e com consciência de que aquela venda prejudicava a garantia patrimonial dos credores, porquanto sabiam que o terreno podia e devia ser vendido por preço muito superior (ex-alínea N)." 

   Uma vez que se mostram devidamente observados os ónus previstos no art. 640º do Cód. de Proc. Civil, ao invés do que sustenta a ré/recorrida “A..., Lda.”, ir-se-á proceder à reapreciação da matéria de facto nos termos requeridos pelos autores/recorrentes.   

    2. Principiaremos pelo nº 15 da factualidade provada.

    Da sentença proferida no processo principal em 13.7.2020 resulta o seguinte em termos de factualidade documentalmente comprovada:

     “4. Em 10-04-2019, a insolvente apresentou nova proposta de plano de insolvência, o qual consta de fls. 1135 e segs. dos presentes autos, cujo teor se dá por reproduzido;

      5. Verificando-se uma maioria de votantes favorável à realização de uma nova assembleia de credores destinada à discussão e votação da nova proposta de plano de insolvência, tal como decorre do despacho proferido em 10-10-2019, a referida assembleia veio a realizar-se em 19-11-2019, encontrando-se presentes ou representados credores representando mais de um terço dos créditos com direito de voto;

      6. Concluída a votação presencial e por escrito, apurou-se que a proposta contida no novo plano foi aprovada, em conformidade com o resultado da votação apresentado pela Sr.ª Administradora da Insolvência (AI) em 10-03-2020, cujo teor se dá por reproduzido.”

    O resultado da votação apresentado pela Sr.ª Administradora da Insolvência, em 10.3.2020, reportava 73,16% de votos favoráveis e 26,84% de votos desfavoráveis ao plano da insolvência.

    Por seu turno, a parte decisória da sentença de 13.7.2020 tem o seguinte texto:

    “(…) homologo por sentença, nos termos dos artigos 214º e 215º do CIRE, a deliberação da Assembleia de Credores realizada em 19-11-2019 que aprovou, nos seus precisos termos, o plano de recuperação contendo providências com incidência no passivo da devedora B..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ..., em Vila do Conde, sem prejuízo da ineficácia do mesmo, na parte em que atinge os créditos fiscais da Fazenda Nacional e por contribuições à Segurança Social.”

    Deste modo, em consonância com esta sentença e de forma a melhor a compatibilizar com o seu conteúdo, alterar-se-á a redação do nº 15 da factualidade assente que passará a ser a seguinte:

    - Concluída a votação presencial e por escrito, o plano de recuperação fora aprovado pela maioria dos credores, tendo sido homologado por sentença proferida a 13.07.2020, transitada em julgado a 10.08.2020, sem prejuízo da ineficácia do mesmo, na parte em que atinge os créditos fiscais da Fazenda Nacional e por contribuições à Segurança Social.

      Alteração que, desde já, se regista não ter qualquer influência na decisão do pleito.

    3. Quanto às alíneas C) e D) da matéria de facto não provada há que ter em atenção os documentos juntos às alegações pelos autores/recorrentes relacionados com o processo nº 1349/18.1 T9VCD - decisão instrutória de não pronúncia datada de 22.9.2023 proferida no processo nº 3471/22.0 T8MTS e acórdão também de não pronúncia proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 18.1.2023 no dito processo nº 1349/18.1 T9VCD –, cuja junção foi admitida por despacho do presente relator proferido em 23.1.2024.

     Desta documentação processual decorre que a sociedade “D...” apresentou queixa por crimes de burla qualificada contra a sociedade “B..., S.A.” e EE, que foram constituídos como arguidos, a qual deu origem ao inquérito com o nº 1349/18.1 T9VCD.

     Impõe-se, assim, que a alínea C) transite para o elenco dos factos provados com a seguinte redação:

     - A sociedade “D...” apresentou queixa por crimes de burla qualificada, a qual deu origem ao inquérito nº 1349/18.1T9VCD, onde, quer a sociedade insolvente “B..., S.A.”, quer o seu Administrador EE foram constituídos arguidos.

     Já quanto à alínea D) esta será apreciada em conjunto com as demais alíneas dos factos não provados que se mostram impugnadas – B), F), K), L), M) e N) – e para as quais foi convocada, pelos recorrentes, a audição de diversos excertos das declarações e depoimentos prestados em audiência.

    4. Procedemos pois à audição, na íntegra, das declarações e depoimentos que foram indicados pelos autores/recorrentes como fundamento da sua impugnação fáctica. 

    BB é autor, tendo sido ouvido em declarações/depoimento de parte. É também legal representante da sociedade “C..., Lda.”. Referiu estar de relações cortadas com EE e também com o legal representante da sociedade “A..., Lda.”. Disse relativamente à venda efetuada em 2016 que o propósito desta foi resolver um problema de “imparidades” que tinha a sociedade insolvente, acrescentando também que esta sociedade faturou mais do que aquilo que construiu e que, por esse motivo, apresentaram uma denúncia por burla no Min. Público de Vila do Conde, a qual foi arquivada. Afirmou não ser normal a forma como foi feita a venda à sociedade “A..., Lda.”, realçando a rapidez como se concretizou esse negócio. Tal como achou desnecessária a forma violenta como esta sociedade entrou no “campo”. Salientou ainda que a venda não salvaguardou os interesses dos credores.

   FF é legal representante da ré “A..., Lda.” e foi ouvido em depoimento de parte. Disse que o terreno que adquiriu fica próximo do seu armazém, a cerca de 100 metros, esclarecendo que tudo foi tratado pelo seu filho. O terreno interessava-lhes para poderem alargar as suas instalações, adiantando depois que ali o valor por metro quadrado anda entre os 20 e os 25 euros, no que se baseou na compra que efetuou de um outro terreno situado nas proximidades. A compra também foi realizada rapidamente porque tinham dinheiro disponível para pagar o preço de imediato.

   EE, administrador da sociedade insolvente, foi ouvido em depoimento de parte. Disse estar de relações cortadas com os autores. Referiu ter havido uma primeira proposta – da E... – por 700.000,00€, que não foi aceite porque queria vender por mais. Queria rentabilizar ao máximo a venda do terreno. Entretanto, apareceu um amigo comum que o pôs em contacto com as “A..., Lda.”. Fizeram uma reunião e esta sociedade apresentou uma proposta de aquisição por 701.000,00€, mas com a escritura a ser feita de imediato. Como entretanto não tinha recebido mais nenhuma proposta, comunicou esta à Administradora da Insolvência por mail. Aceitou-se a proposta, isto porque entretanto não tinha surgido nenhuma outra de valor superior [havia propostas verbais de valores inferiores] e também porque o pagamento era de imediato. A sua intenção era realizar dinheiro de acordo com o que está no plano de insolvência. Nunca negociou diretamente com a E.... As “A..., Lda.”, segundo lhe foi dito, queriam aquele terreno para mudarem para ali as suas instalações.

   A interveniente principal CC é a administradora da insolvência da sociedade “B..., S.A.” e foi ouvida em depoimento de parte. Disse que a venda foi efetuada no âmbito do plano de insolvência. Em 6.4.2021 chegou-lhe um mail com uma proposta das “A...” pelo valor de 701.000,00€. Anteriormente tinha-lhe sido enviado um mail, em 20.1.2021, com uma proposta da “E...” por 700.000,00€. Sublinhou que, face ao teor do plano de insolvência, não lhe cabia intervir no processo negocial, incumbindo-lhe apenas fiscalizar e autorizar a venda. Esclareceu que deu conhecimento da proposta da “E...” ao Sr. EE, tendo este entendido não a aceitar, razão pela qual se ficou a aguardar a apresentação de mais propostas. Quanto à proposta de 701.000,00€ das “A...” salientou que esta se encontrava dentro do valor fixado no plano, razão pela qual podia autorizar a venda. Mais referiu que apenas tinha que comunicar a proposta de aquisição aos credores, o que fez, não tendo os credores que se pronunciar sobre tal proposta. Disse também que várias horas depois da escritura surgiu uma proposta da “E...” por 705.000,00€. Salientou ainda que não houve qualquer frustração das expetativas dos credores, pois o negócio foi realizado por valor autorizado no plano.   

   A testemunha GG, filho de FF, é funcionário da sociedade “A..., Lda.”. Disse que nunca tiveram relações próximas com a sociedade insolvente. Ao ver o anúncio da venda do terreno, tendo interesse neste, conseguiu, através de um amigo comum, fazer uma reunião com o Sr. EE. Este disse-lhe que o valor base para a venda eram 700.000,00€ e que teria de apresentar uma proposta por escrito. Respondeu-lhe que tinha de falar com o pai até porque ia preparado para fazer uma oferta inferior, na casa dos 650.000,00€, embora tivesse logo referido que tinham dinheiro disponível e podiam fazer a escritura de imediato. Entretanto, fizeram um pedido de informação prévia na Câmara Municipal, porque a sua intenção era a de instalarem no terreno a futura sede da empresa e apresentaram, por escrito, a sua proposta ao Sr. EE pelo valor de 701.000,00€.

   Procedeu-se ainda à audição dos depoimentos produzidos pela testemunha JJ, legal representante da sociedade “E... Unipessoal, Lda.” e também pelo autor AA, o que nos é permitido ao abrigo do art. 640º, nº 1, al. b) – 1ª parte – do Cód. de Proc. Civil.

   JJ disse que fez uma proposta de aquisição do terreno ao Sr. EE pelo valor de 700.000,00€, tendo-se falado inicialmente em escriturar a venda por 600.000,00€, sendo dados por fora mais 100.000,00€, em notas. Como tal não foi possível, apresentou a proposta de 700.000,00€ à Administradora da Insolvência, não tendo recebido desta qualquer resposta. Também não voltou a ter contactos com o Sr. EE. Depois da venda fizeram propostas por 705.000,00€ e 800.000,00€.

  AA é legal representante da sociedade “C..., Lda.” e está de relações cortadas com EE e também com o legal representante da sociedade “A..., Lda.”. Disse que ficou surpreendido e magoado com a venda do terreno à sociedade “A..., S.A.” por ser amigo de FF e este não lhe ter dito nada previamente. Não tem conhecimento dos trâmites da venda embora saiba que foi um negócio feito de um dia para o outro. Foi rapidíssimo. Disseram-lhe que houve propostas anteriores em valor superior a 701.000,00€, mas não soube concretizá-las.   

  Pretendem ainda os autores/recorrentes que sejam tidos em atenção os factos dados como provados sob os nºs 6 e 7 [6. No âmbito daquele Processo n.º 1128/17.3T8PVZ, fora junto o Relatório Pericial junto a estes autos como Doc. 4 da PI, no qual é avaliado o prédio rústico em causa nos autos, ali constando que o prédio se encontra “livre de ocupação”, atribuindo os peritos ali nomeado pelo Tribunal e indicado pelo ali autor o valor unitário do terreno em €65,83, concluindo pelo valor global de €2.238.137,02. O Perito nomeado pelo ali réu conclui que o valor do imóvel ascendia a €815.000,00; tendo sido realizada outra perícia naqueles autos; 7. No âmbito de tal processo judicial, foi proferida sentença, confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.07.2020, e transitada em julgado, que julgou a acção improcedente, sentença junta na contestação da ré insolvente, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, e na qual consta dos factos provados: “O valor de mercado do imóvel mencionado em 3) [artigo matricial ...] não é inferior a €814.516,73.”].

    5. A intenção dos autores/recorrentes, com a sua impugnação fáctica, vai no sentido de, em primeiro lugar, se dar como provado que o contrato de compra e venda relativo ao prédio rústico com o nº ... da freguesia ... celebrado, no dia 14.4.2021, entre a sociedade insolvente “B..., S.A.” e a sociedade adquirente “A..., Lda.”, pelo valor de 701.000,00€, resultou de um conluio entre estas duas sociedades visando prejudicar os credores da insolvente, isto porque ambas as sociedades sabiam que aquele prédio podia e devia ter sido vendido por um preço muito superior.

    Em segundo lugar, entendem também que se deve dar como provado no tocante à atuação da Sr.ª Administradora de Insolvência que esta omitiu deveres decorrentes do plano de insolvência, pois sabia que o valor de mercado do prédio era muito superior a €701.000,00 e, por isso, ao consentir na venda surge igualmente em conluio com aquelas duas sociedades.

    Ora, desde já se diga que depois de ouvida a prova não se vislumbram razões para dissentir da convicção formada pela Mmª Juíza “a quo”.

    Esta, em sede de motivação da matéria de facto, que se mostra detalhada e convincente, a propósito do depoimento produzido pelo autor BB, escreve que este procurou em tribunal fazer vingar a sua tese, “…lançando suspeitas sobre o contrato de compra e venda em causa nos autos, mas não apresentando factos objetivos, nem revelando conhecimento direto de factos objetivos, que importem a invalidade da venda, seja o conluio entre insolvente e adquirente, seja a existência e concretização de efetivas propostas superiores para aquisição daquele prédio (propostas necessariamente anteriores à escritura, pois só essas podem relevar). Repare-se que o autor sustenta a sua posição em meras dúvidas quanto ao negócio, justificando logo as suas dúvidas e suspeitas, no facto de a sociedade insolvente já ter efetuado duplicação de faturação à sociedade “D...” (mas tal não permite afirmar com segurança que neste negócio fora efetuado algum estratagema para enganar os credores ou obter algum ganho indevido). Sustenta também essas dúvidas na realização apressada do negócio, a proposta fora comunicada à meia noite pela AI, sem indicar a data da escritura e no dia seguinte à tarde é realizada a venda, mas essa pressa também não é suficiente para afirmar e provar a existência de simulação de negócio ou que o mesmo fora prejudicial aos credores. De notar, que no plano apenas fora estipulada a obrigação da AI dar conhecimento das propostas e não fora estipulado que tinha que comunicar a data agendada para a venda com uma determinada antecedência, sendo que os credores já haviam autorizado a venda no plano por aquele valor. Quanto à alegada venda por valor inferior ao valor do prédio, o certo é que não foram concretizadas nem documentadas concretas propostas superiores apresentadas em datas anterior à escritura, e esse valor mínimo de €700.000,00 já havia passado pelo crivo dos credores ao aprovarem o plano.”

   Depois, reportando-se ao depoimento da testemunha JJ, legal representante da “E..., Lda.”, a Mmª Juíza “a quo” escreve o seguinte:

   “A testemunha relatou a existência de negociações verbais com EE, anteriores à proposta formal endereçada ao processo, no sentido de a venda ser escriturada por €600.000,00 e daria por fora mais €100.000,00. Acrescenta que, como tal não foi possível, resolveu apresentar a proposta formal de €700.000,00. Ainda que seja verdade este facto (do qual não temos evidência de prova segura, mas apenas as declarações desta testemunha, interessada no desfecho da ação, dado que apresentara proposta para aquisição do prédio), tal não permite afirmar com a segurança necessária que ocorreu um conluio ou simulação de preço entre a insolvente e adquirente (aliás, pelos autores nem sequer fora alegada uma simulação de preço e recebimento de parte do preço “por fora”, desviando-o dos credores).”

   E prossegue:

   “Mais uma vez as dúvidas e suspeitas quanto ao negócio são sustentadas em alegações vagas e genéricas: na pressa na sua realização e no facto de não ter sido abordado para subir a sua anterior proposta de €700.000,00, uma vez que a proposta que fora aceite era apenas superior em €1.000,00, considerando que deveriam ter sido seguidos outros trâmites. Não podemos deixar de considerar que eticamente seria desejável que o administrador da insolvente (quem era responsável pela administração da sociedade e pela negociação da venda no âmbito do plano) tentasse negociar com o anterior proponente a subida da anterior proposta, para assim obter uma melhor proposta e com isso promover o interesse dos credores; ou mesmo, que seria desejável que a AI não tivesse embarcado nesta pressa exagerada na realização do negócio e tivesse confrontado o administrador da insolvente com a possibilidade de renegociar com os dois proponentes para melhorarem as suas propostas.

   Porém, não podemos esquecer que esta venda não é efetuada no âmbito da liquidação no processo de insolvência, antes se tratando de uma venda sujeita às regras do plano de recuperação e às regras gerais do direito civil. No plano de recuperação não é fixada a modalidade da venda, não é fixado que a venda tem que ser por leilão ou por negociação particular, nem sequer sujeita a realização da venda a prévia autorização dos credores ou prévia comunicação da data da escritura, pois que os credores já autorizaram a venda pelo valor mínimo fixado no plano, e esse valor fora respeitado. Assim, o facto de o administrador da insolvente não ter abordado o anterior proponente, por si só, não permite afirmar o conluio de vendedora e compradora e o intuito de prejudicar os credores.”

  Mais adiante, já no que concerne à atuação da Sr.ª Administradora da Insolvência, a Mmª Juíza “a quo” escreve o seguinte:

  “(…) não é possível afirmar com segurança que o valor de mercado do prédio é efetivamente superior àquele valor que os próprios credores autorizaram a venda no Plano, sendo que outra sociedade (E...) anteriormente já tinha apresentado proposta, à qual não fora apresentada oposição pelos credores, e nem sequer pelos próprios autores.

     Ainda que o prédio tivesse um valor de mercado superior, também não se vislumbra como se pode exigir à AI que pudesse ter conhecimento desse facto, atenta a extensão dos prédios em causa, o facto de as suas funções nos autos apenas se limitarem às funções de fiscalização, não lhe incumbido a liquidação dos bens (como sucede num processo de insolvência que prosseguiu para a fase de liquidação), sendo que não consta dos autos principais de insolvência avaliação realizada ao prédio, o valor patrimonial tributário do prédio é de € 20.000,00 (conforme consta na escritura de compra e venda), e sobretudo porque o valor do negócio respeita aquilo que fora deliberado pelos credores e que se encontra previsto no Plano de Recuperação aprovado e homologado no processo de insolvência. Não se pode considerar que a AI violou um dever de zelo ou diligência ao outorgar a escritura de compra e venda, cujo preço respeitava o Plano e fora autorizado pelos credores a venda do prédio por aquele valor. Dado que não incumbia as diligências de negociação de venda à AI, nem havia sido fixada uma concreta modalidade de venda (venda com abertura de propostas em carta fechada ou venda através de leilão) não era exigível à AI que impusesse ao administrador da insolvente a realização de novas negociações com o anterior proponente “E...” ou que impedisse e obstasse à venda do prédio por um valor que respeitava o plano e já havia sido autorizado pelos credores.”

   Neste contexto, face à valoração que fazemos dos depoimentos e declarações produzidos em audiência de julgamento, que acima sintetizámos, consideramos que não foi feita prova que permitisse dar como assente a existência de um conluio entre a sociedade insolvente e a sociedade adquirente “A..., S.A.” que visasse prejudicar os interesses dos credores da insolvente com a aquisição do imóvel pelo valor de 701.000,00€.

   Quanto à atuação da Administradora da Insolvência há também que ter em atenção o teor do plano de insolvência, que foi homologado por sentença proferida em 13.7.2020, e que na parte relevante se encontra vertido nos nºs 11, 12 e 13 da factualidade assente.

   Resulta deste que durante os 18 meses seguintes à sua homologação, e com vista à obtenção de meios para pagamento dos créditos, a devedora fica autorizada a proceder à venda dos bens referidos no Anexo com o título de “Inventário de Bens e Direitos do Devedor”, com acompanhamento e supervisão da Sra. Administradora de Insolvência.

   Esta, por seu turno, dará conhecimento aos mandatários dos credores das propostas de compra recebidas e o administrador da devedora, EE, ficará como fiel depositário dos bens em causa, com vista à sua guarda e venda.

   Do respetivo inventário consta o prédio dos autos, tendo-se consignado relativamente a ele o valor mínimo da venda de 700.000,00€.

   Decorre ainda do plano de insolvência que são derrogados todos os artigos do CIRE que preceituam que à declaração de insolvência se segue a apreensão, liquidação e partilha dos bens que integram a massa insolvente.

   Ora, daqui flui que à Sr. Administradora da Insolvência, no âmbito do respetivo plano, apenas cabia o acompanhamento e supervisão das operações de venda levadas a cabo pela insolvente, através do seu administrador, tendo sempre em conta que o valor mínimo da venda do imóvel em causa nos presentes autos se cingia a 700.000,00€.

   Por isso, conexionando o que resulta do plano de insolvência com a prova produzida na audiência de julgamento e sublinhando que a venda se concretizou por 701.000,00€, não há elementos que permitam dar como assente que a Administradora da Insolvência incumpriu os deveres de fiscalização e supervisão que sobre ela recaíam.

   De qualquer modo, quanto ao valor de mercado do imóvel há que ter em conta que no processo com o nº 1128/17.3 T8PVZ, onde foi proferida sentença confirmada por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.7.2020 e, por isso, transitada em julgado, se deu como assente que o valor de mercado do imóvel não é inferior a 814.516,73€ - cfr. nºs 6 e 7 -, daí decorrendo que este, ao ser transacionado por 701.000,00€, o foi por valor inferior ao de mercado considerado neste processo.

   Como tal, entendemos que deverá ser aditado à factualidade provada um ponto com a seguinte redação: 

   - A alienação do prédio rústico com o artigo matricial n.º ... foi realizada a um preço abaixo do valor de mercado dado como assente no âmbito do processo com o nº 1128/17.3 T8PVZ.

     Em conclusão:

   A impugnação factual efetuada pelos autores obterá assim parcial procedência sendo aditados os seguintes pontos factuais com os nºs 62 e 63:

  - 62 - A alienação do prédio rústico com o artigo matricial n.º ... foi realizada a um preço abaixo do valor de mercado dado como assente no âmbito do processo com o nº 1128/17.3 T8PVZ;

  - 63 - A sociedade “D...” apresentou queixa por crimes de burla qualificada, a qual deu origem ao inquérito nº 1349/18.1T9VCD, onde, quer a sociedade insolvente “B..., S.A.”, quer o seu Administrador EE foram constituídos arguidos.

   Simultaneamente a redação do nº 15 será alterada passando a ser a seguinte:

  - 15 - Concluída a votação presencial e por escrito, o plano de recuperação fora aprovado pela maioria dos credores, tendo sido homologado por sentença proferida a 13.07.2020, transitada em julgado a 10.08.2020, sem prejuízo da ineficácia do mesmo, na parte em que atinge os créditos fiscais da Fazenda Nacional e por contribuições à Segurança Social.[1]


*

   IIA verificação dos requisitos da impugnação pauliana

  1. Nas suas alegações de recurso, os autores vêm sustentar que se encontram reunidos os requisitos da impugnação pauliana nos termos dos arts. 610º e 612º do Cód. Civil e que a circunstância de ter sido peticionada a declaração de nulidade da compra e venda impugnada e não a sua declaração de ineficácia, em consonância com o art. 616º, nº 1 do Cód. Civil, não impede o juiz de poder declarar essa ineficácia.

  Chamam em apoio desta posição o AUJ (STJ) nº 3/2001, de 23.1.2001, publicado no DR-I série, de 9.2.2001 (relator MOURA CRUZ), no qual se uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

   “Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664.º do Código de Processo Civil[2]   

   Independentemente desta questão de natureza processual, a que primeiramente há a abordar é a que se relaciona com o preenchimento “in casu” dos requisitos da impugnação pauliana e que a 1ª Instância decidiu em sentido negativo.

   2. Dispõe o art. 610º do Cód. Civil que «os atos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor se concorrerem as circunstâncias seguintes: a) ser o crédito anterior ao ato ou, sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; b) resultar do ato a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.»

   Depois no art. 612º, nº 1 do mesmo diploma estabelece-se que «o ato oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé.» Sendo o ato gratuito «a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé.»

   A impugnação pauliana tem assim os seguintes requisitos:

   a) a realização pelo devedor de um ato que diminua a garantia patrimonial do crédito e não seja de natureza pessoal;

   b) que o crédito seja anterior ao ato ou, sendo posterior, ter sido ele realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

   c) que o ato seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, ocorra má-fé tanto do alienante como do adquirente;

   d) que resulte do ato a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do crédito ou agravamento dessa impossibilidade.

   Por má-fé entende-se «a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor.» - cfr. art. 612º, nº 2 do Cód. Civil.

   No âmbito do Cód. Civil de 1867 (art. 1036º) considerava-se de má-fé o que tivesse conhecimento da insolvência do devedor, ao passo que, de acordo com o art. 612º, nº 2 do Cód. Civil actual, atrás citado, está de má-fé aquele que tem consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.

   Portanto, conforme assinalam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[3], o conceito de má-fé deixou de ser puramente psicológico, tendo-se passado a exigir algo mais. Com efeito, o mero conhecimento da insolvência não deve justificar, só por si, a procedência da impugnação pauliana, pois não se pode ignorar que um ato oneroso nunca poderá conduzir à insolvência, uma vez que ao valor saído do património do devedor há-de corresponder o mesmo valor entrado.

   Esse algo mais que então será de exigir é precisamente a consciência do prejuízo, isto é, a consciência de que o ato de alienação e o subsequente esbanjamento do preço recebido prejudicam o credor.

   Não se exige, porém, que haja com o ato a intenção de prejudicar o credor.

   Não é necessário tanto, bastando, como se vem referindo, a consciência do prejuízo que o ato causa aos credores.

   Pode assim dizer-se, citando-se novamente PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[4] que “o conceito adoptado representa uma solução intermédia entre o antigo conceito psicológico do conhecimento da insolvência e o requisito bem mais apertado da intenção de prejudicar (“animus nocendi”) os credores”.

   Consistindo a má-fé na consciência do prejuízo causado, exige-se que os outorgantes do ato lesivo representem que esse ato afetará a satisfação do direito do credor, que tenham consciência dessa repercussão negativa.

   Acresce que a má-fé, face à redação do art. 612º, nº 1 do Cód. Civil, tem de existir tanto na atuação dos vendedores como na dos compradores. Isto é, ambas as partes têm de preencher este requisito subjetivo, sem que isso signifique a necessidade de qualquer conluio ou concertação entre elas. Ambas podem ter consciência do prejuízo que causam aos credores do vendedor com o ato praticado, sem que essa representação seja objeto de comunicação ou perceção entre eles.[5]

   A consciência do prejuízo surge pois como um processo psicológico pertencente ao domínio da representação ou ideação, assumindo uma natureza intelectiva. Nesta operação, o devedor e o terceiro adquirente devem não só ter a perceção da situação patrimonial do primeiro e dos efeitos do ato que vão praticar, mas também aperceberem-se que estes podem impossibilitar os credores do devedor de obter a satisfação integral dos seus créditos. Não é, porém, necessário que essa consciência se traduza num juízo de certeza sobre a verificação futura desta consequência, bastando-se com um juízo de possibilidade. É suficiente para que os autores do ato tenham consciência das suas consequências danosas que as prevejam como possíveis, tendo-as presentes no seu espírito.[6]  

   Uma vez que a má-fé implica a necessidade de um juízo de censura, terá que se correlacionar este conceito com as figuras do dolo e da negligência, nas suas diversas modalidades.

   Não pode caber qualquer dúvida de que a consciência do prejuízo abrangerá todas as situações de dolo, o que se verifica quando, além do conhecimento prévio do prejuízo causado, também ocorre a vontade de o causar – elemento volitivo.

   Tal vontade pode envolver dolo direto, quando os outorgantes do ato agem exatamente com o propósito de inviabilizar a satisfação integral do crédito, dolo necessário, quando aqueles têm consciência de que este resultado é uma consequência secundária, mas inevitável da finalidade por eles visada com a prática do ato, e dolo eventual, quando representam como possível a lesão da garantia patrimonial do credor e atuam sem confiar que ela não se produza.

   Nesta última situação, os autores do ato não têm a certeza sobre as suas consequências relativamente aos interesses dos credores, admitindo como simplesmente possível a ocorrência de danos na garantia patrimonial dos direitos de crédito destes. E atuam conformando-se com essa possibilidade ou não tomando posição.

   Contudo, se os autores do ato apenas admitem como possível a lesão dos interesses dos credores, mas não se conformam com a concretização dessa possibilidade, acreditando, levianamente, que a consequência prevista não se irá verificar, já não nos encontramos no domínio do dolo, mas sim perante um caso de negligência consciente. Conforme sucede no dolo eventual, também na negligência consciente o elemento intelectual está presente, uma vez que os autores do ato têm consciência da possibilidade do dano atingir os credores. Ora, estando presente este elemento terá que se considerar que o acto é praticado de má-fé, pois o devedor e o terceiro adquirente tiveram oportunidade de o evitar, perante a representação do prejuízo que efetuaram e, censuravelmente, não o fizeram.

     É assim de concluir que o conceito de má-fé, para efeitos de impugnação pauliana, abrange tanto os casos de dolo como de negligência consciente em relação à verificação do prejuízo.

     Ficarão apenas excluídas deste conceito as situações de negligência inconsciente[7], em que as partes celebram o negócio sem ter consciência da possibilidade de lesar o credor, quando poderiam, se atuassem diligentemente, ter adquirido essa consciência. Ou seja, as partes, por manifesta falta de cuidado, não chegam sequer a representar a possibilidade de lesarem a garantia patrimonial dos credores.[8]         

   De assinalar ainda que a consciência do prejuízo deve existir no momento da prática do ato, sendo, por isso, irrelevante o seu conhecimento posterior.

   3. Ora, uma vez feitas estas considerações gerais e regressando à factualidade apurada nos presentes autos, terá de se concluir, desde logo, que não é possível considerar reunidos neste caso os requisitos da impugnação pauliana, no que se concorda com a sentença recorrida.

   Com efeito, não se pode ignorar que a sociedade vendedora se encontra sujeita a um plano de insolvência, homologado por sentença proferida em 13.7.2020, e que a venda impugnada, ocorrida em 14.4.2021, foi feita em execução desse plano, aprovado pelos credores, e com respeito pelo valor mínimo fixado no plano para esse efeito – 700.000,00€.    

   Assim, neste contexto, tal como salienta a Mmª Juíza “a quo”, não se vê como se possa defender que a sociedade adquirente se aproveitou da situação de insolvência para comprar o prédio por um preço inferior ao seu valor de mercado, isto quando foram os próprios credores a aprovarem, em votação maioritária, a venda pelo valor mínimo de 700.000,00€.

   E não pode deixar de se observar que na escritura de compra e venda com renúncia de hipoteca que foi celebrada em 13.6.2016 pelos aqui autores AA e BB, o primeiro por si e os dois também em representação da mulher e mãe DD, estes declararam vender à sociedade “B... S.A.” o prédio aqui em causa, livre de quaisquer ónus ou encargos, pelo preço de 607.000,00€, sendo que nesse mesmo dia foi celebrado entre estas partes um pacto de opção, vigente até 31.12.2016 em que atribuíram ao prédio o valor de 630.000,00€ - cfr. nºs 2 e 3.

   Ou seja, em ambos os casos fora considerado para o prédio um valor inferior ao que viria a ser fixado como valor mínimo para a venda a efetuar no âmbito do plano de insolvência.  

   É certo que no processo nº 1128/17.3T8PVZ se deu como assente que o valor de mercado do imóvel não é inferior a €814.516,73, mas mesmo admitindo-se que esse possa ser o seu efetivo valor de mercado, terá sempre que se sublinhar que o valor mínimo de 700.000,00€ foi aprovado pelos credores e que estes autorizaram a venda por essa importância.

   De referir ainda, em sintonia com a sentença recorrida, não ter ficado provado que até à celebração da escritura de compra e venda de 14.4.2021 tenham sido apresentadas propostas, para a aquisição do prédio, por valores superiores a 701.000,00€, sendo certo que apenas poderiam ser tomadas em consideração as propostas surgidas até esse momento.

   E o que resulta dos autos é que as propostas de aquisição por 705.000,00€ e 800.000,00€ foram apresentadas pela “E...” já depois de celebrada aquela escritura, a qual até era do conhecimento desta proponente – cfr. nºs 30, 35 e 36.   

   Por conseguinte, salvo melhor entendimento, é, a nosso ver, manifesto que, perante as especificidades da compra e venda aqui impugnada, ocorrida em 14.4.2021 no âmbito de um plano de insolvência aprovado pelos próprios credores, não é possível configurar na atuação da sociedade insolvente e da sociedade adquirente qualquer má-fé, quando nesta venda se respeitou o preço mínimo de venda definido pelos próprios credores, que não pode, até por esse motivo, ser havida como prejudicial para estes.

   Como tal, não se podendo considerar preenchidos os requisitos da impugnação pauliana, improcede, nesta parte, o recurso interposto pelos autores.[9]


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    III - A atuação da Administradora da Insolvência

   1. No seu recurso, os autores/recorrentes põem também em causa a atuação da Sr.ª Administradora da Insolvência, entendendo que esta não agiu com o zelo e a prudência que lhe eram exigíveis, com o que logrou as expetativas dos credores.

   Mais concretamente salientam que a Sr.ª Administradora da Insolvência, na venda realizada, ignorou o conhecimento que tinha dos interesses manifestados pela sociedade que apresentara a primeira proposta de aquisição do imóvel – a “E... Unipessoal, Lda.”, assim omitindo cuidados e formalidades que deveria ter cumprido.

   2. Do art. 59º, nº 1 do CIRE[10], respeitante à responsabilidade do administrador da insolvência, decorre que a sua culpa é apreciada pela diligência normalmente utilizada por um administrador de insolvência criterioso e ordenado.

   Esta redação aproxima-se da utilizada no art. 64º, nº 1, al. a) do Cód. das Sociedades Comerciais para os gerentes ou administradores de uma sociedade e onde se estatui que estes devem observar deveres de cuidado, relevando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado.

    Estamos, pois, perante, um padrão de diligência especialmente reforçado, donde decorrerá que o administrador “criterioso e ordenado” será, em primeira linha, o que se mostre qualificado e medianamente disponível, competente tecnicamente e conhecedor da atividade, mediado pelas circunstâncias em que uma certa decisão foi tomada. Tal significa que a avaliação objetiva e subjetiva do ato do administrador é feita de acordo com a diligência exigível a um gestor “criterioso e ordenado” colocado nas circunstâncias concretas em que atuou e confrontado com as qualidades que revelou de acordo com o exigível.[11]

   Acresce ainda que de acordo com o art. 12º, nº 2 do Estatuto do Administrador Judicial [EAT][12] o administrador da insolvência deverá orientar a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores.     

   3. Regressando ao caso concreto, a fim de apurar se o administrador da insolvência atuou – ou não – de acordo com o padrão de diligência de um gestor criterioso e ordenado, teremos, antes de mais, de sublinhar que nessa apreciação se deverão ter em conta as particularidades da situação “sub judice”, tal como se fez na sentença da 1ª Instância.

   Importa, desde logo, referir que nos termos do plano de insolvência não é à Administradora da Insolvência que cabe levar a cabo a negociação com vista à venda dos prédios constantes do respetivo anexo.

   Deste modo, se a devedora manifesta a intenção de aceitar uma proposta de aquisição pelo valor de 701.000,00€, sendo certo que já vários credores se haviam manifestado expressamente no sentido de ser aceite uma outra proposta no valor de 700.000,00€ - nºs 19, 20 e 21 – e, se esta proposta respeita o valor mínimo indicado no plano, já aprovado e aceite pelos credores, não era exigível que a Administradora da Insolvência abrisse algo como que uma licitação entre os dois proponentes, ou que tivesse colocado entraves à escritura que a insolvente pretendia realizar por aquele preço de 701.000,00€.

   Observa com pertinência a Mmª Juíza “a quo” “que seria desejável que não tivesse ocorrido esta pressa exagerada na realização da escritura do prédio, e dessa forma se permitisse que a outra sociedade que havia apresentado proposta em janeiro de 700.000,00€ apresentasse uma nova proposta superior.

   Porém, esta realização apressada da escritura não permite, por si só, considerar que a venda violou algum preceito legal ou violou uma regra prevista no plano e que tal importe a sua invalidade; ou mesmo que as partes atuaram em conluio e com má fé.”

   Com efeito, no plano não foi fixada uma concreta modalidade da venda, deixando-se em aberto a possibilidade da venda se fazer por negociação particular da sociedade insolvente, desde que respeitados os valores mínimos estabelecidos no plano.

   Assim, não estamos perante uma venda efetuada em liquidação nos termos dos arts. 158º e segs. do CIRE, mas sim perante um ato de venda realizado pela própria sociedade insolvente no âmbito de plano de insolvência visando a sua recuperação, venda essa autorizada por esse plano que foi objeto de aprovação pelos credores e de posterior homologação pelo tribunal.    

   Quanto à comunicação aos credores da proposta de aquisição do imóvel por 701.000,00€ é certo que a Administradora da Insolvência a efetuou embora sem indicar logo a data da escritura – cfr. nº 30 -, mas também é certo que o plano de insolvência apenas impunha, de forma expressa, à Administradora de Insolvência a comunicação das propostas recebidas e não a comunicação prévia da data das escrituras de compra e venda - cfr. nº 11.

   4. Aliás, com relevância para a atuação da Sr.ª Administradora da Insolvência, o que consta do Plano é o seguinte:

   - Adicionalmente, durante os 18 meses seguintes à homologação do presente plano e com vista à obtenção de meios para pagamento dos presentes créditos, a Devedora fica autorizada a proceder à venda dos bens referidos no Anexo com o título de “Inventário de Bens e Direitos do Devedor”, com acompanhamento e supervisão da Sra. Administradora de Insolvência;

   - A Sra. Administradora de Insolvência dará conhecimento aos mandatários dos credores das propostas de compra recebidas e dos relatórios das leiloeiras, e enviará previamente àqueles os mapas com os valores a ratear pelos credores privilegiados;

   E no Anexo ao Plano fora atribuído ao prédio n.º ... o valor mínimo de 700.000,00€.

   Assim, seguindo-se a sentença recorrida resulta da leitura do plano que a venda do imóvel fora autorizada pelos credores, desde que se concretizasse pelo valor mínimo de 700.000,00€ e dentro do prazo de 18 meses.

   “Não podem agora os credores vir alegar que aquele negócio é prejudicial à massa insolvente e aos credores, alegando que o valor de mercado do bem é superior àquele valor, já que fora autorizado pelo plano a venda por aquele valor.

   Do plano não resulta a necessidade de nova autorização para a venda pelos credores, apenas a obrigação da AI acompanhar e supervisionar a venda e dar conhecimento das propostas de compra recebidas.

   Repare-se que no plano é dito que a AI informa os credores das propostas apresentadas, mas não refere a obrigação de ser concedido prazo para os credores se pronunciarem sobre essas propostas.

   Quanto à obrigação de enviar “previamente àqueles os mapas com os valores a ratear pelos credores privilegiados”, afigura-se-nos que tal significa que antes de serem efetuados os pagamentos devem ser enviados aos credores privilegiados mapa com os valores a ratear. E tal percebe-se, porque poderá haver lugar a reclamações a esses mapas de rateio. Daquela cláusula do plano não se pode retirar que antes de ser efetuada a venda dos bens (já autorizada no plano) têm que ser enviados os mapas de rateio aos credores. Até porque não faria sentido, sempre que fosse apresentada uma proposta ser elaborado mapa de rateio, quando a proposta poderia não ser aceite e [estar-se-ia] a realizar um trabalho inútil com um mapa de rateio inexistente, por ausência de venda e valor recebido com a venda.

   Nada no plano nos conduz à conclusão de necessidade de nova apreciação da venda pelos credores, uma vez que já fora fixado no Plano os valores mínimos da venda.”

   Por conseguinte, tal como afirma a Mmª Juíza “a quo”, tendo sido aprovado pelos credores e constando do plano homologado pelo tribunal os valores mínimos da venda dos bens, sendo que no caso concreto fora fixado o valor mínimo de 700.000,00€ para a venda do prédio em causa nos autos, não se nos afigura que fosse exigível à administradora da insolvência realizar diligências no sentido de avaliar o concreto valor de mercado do imóvel.

   Ao cabo e ao resto, de acordo com o próprio plano (ponto 3) as funções da administradora da insolvência limitam-se ao acompanhamento e supervisão das vendas a realizar.

  Já quanto aos pontos 1 e 2 do Plano, relativos aos créditos da Administração Tributária e da Segurança Social, onde se diz que “[F]ica como fiel depositário de todos os bens da firma o Administrador da mesma, EE, não podendo o mesmo alienar tais bens sem o consentimento da Sra. Administradora da Insolvência”, importa referir que este consentimento tem que ser entendido no sentido de que as diligências de venda cabem à insolvente e não à Administradora da Insolvência, pelo que os poderes de fiscalização, acompanhamento e autorização que cabem a esta não se podem confundir com as diligências de venda a realizar pela administradora da insolvência no âmbito do apenso de liquidação, as quais obedecem às regras previstas nos arts. 156º e segs. do CIRE.

   Aliás, sempre se deverá salientar que o plano de insolvência pode derrogar as normas previstas no CIRE, tal como decorre do art. 192º, nºs 1 e 2 do CIRE, o que se verificou no presente caso.

   Prosseguindo, em sintonia com a sentença recorrida:

   “De acordo com o plano aprovado e homologado, é à sociedade insolvente que cabe procurar interessados para aquisição dos bens previstos no Anexo ao plano, cabendo apenas à AI supervisionar essa atividade, verificando se as vendas que a sociedade insolvente pretende efetuar estão de acordo com o previsto no plano, e designadamente se respeitam o valor mínimo ali fixado, aprovado pelos credores, dando a conhecer essas propostas de aquisição, e também dando conhecimento aos credores dos mapas a ratear com o produto dessas vendas.

   Quanto ao valor base de venda até fora estipulado no plano, para a eventualidade de não serem vendidos os bens no prazo de 18 meses que: “- Findos que estejam os dezoito meses para a venda dos respetivos bens, a Comissão de Credores definirá, quanto aos não alienados, o valor base de venda respetivo.”

   Nos precisos termos do Plano de Insolvência, à AI não incumbia, nem tinha legitimidade para efetuar a venda do prédio em causa nos autos. Por exemplo, não podia a AI por [motu proprio] inserir anúncio da venda numa plataforma de leilão eletrónico. Pois, nos precisos termos do Plano de Insolvência era à Devedora, a R. B..., S.A., através do seu administrador, EE, a quem incumbia e tinha legitimidade para efetuar as vendas. À AI incumbia apenas supervisionar, acompanhar e autorizar.

   Sublinha-se que as duas propostas da E... Unipessoal, Lda. superiores a €701.000,00 foram apresentadas em momento posterior à outorga da escritura de compra e venda, pelo que com base nessas propostas não podemos afirmar que existiu a violação de um dever de zelo e diligência da AI; tão pouco é possível afirmar, com base nessas propostas posteriores à venda, o alegado conluio entre sociedade insolvente, compradora e AI.”

   Neste contexto, e realçando sempre as especificidades do presente caso decorrentes do plano de insolvência aprovado pelos credores e homologado pelo tribunal, terá naturalmente de se concluir que na atuação da Sr.ª Administradora da Insolvência não é reconhecível qualquer falta de zelo e de diligência e que com esta tenha defraudado as expetativas dos credores, tanto mais que estas expetativas se circunscreviam à venda do imóvel pelo valor mínimo de 700.000,00€

   Como tal, o recurso interposto improcederá ainda neste segmento, o que importará a confirmação da sentença recorrida.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):

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    DECISÃO

   Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos autores AA e BB e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

    Custas, pelo seu decaimento, a cargo dos autores/recorrentes.

Porto, 20.2.2024
Rodrigues Pires
Anabela Miranda
Fernando Vilares Ferreira
__________________
[1] Alterações factuais que, conforme se irá expor seguidamente, não terão repercussão na solução do litígio.
[2] O art. 664º do anterior Cód. de Proc. Civil corresponde ao art. 5º, nº 3 do actual Cód. de Proc. Civil onde se estatui que «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.»
[3] In “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 629.
[4] Ob. e loc. cit.
[5] Cfr. JOÃO CURA MARIANO, “Impugnação Pauliana”, 4ª ed., págs. 171/3; Ac. STJ de 18.6.2009, p. 152/09.4 YFLSB (ALBERTO SOBRINHO), disponível in www.dgsi.pt.
[6] Cfr. JOÃO CURA MARIANO, ob. cit., págs. 176/7.
[7] Cfr., por ex., Ac. Rel. Porto de 20.9.2010, p. 470/08.9 TBVFR.P1 (SAMPAIO GOMES), disponível in www.dgsi.pt. e Ac. STJ de 13.12.2005, CJ STJ, ano XIII, tomo III, págs. 162/5 (MOREIRA CAMILO).
[8] Cfr. JOÃO CURA MARIANO, ob. cit., págs. 177/200; MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações”, vol. II, 6ª ed., pág. 307.
[9] O que torna desnecessária a apreciação da aplicabilidade no presente caso da jurisprudência uniformizada resultante do AUJ (STJ) nº 3/2001.
[10] É a seguinte a redação deste preceito: «O administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado.»
[11] Cfr. RICARDO COSTA, “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, Vol. I IDET, Almedina, págs. 735/636.
[12] Lei nº 22/2013, de 16.5.