PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
CASO JULGADO FORMAL
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
SUBSTITUIÇÃO
Sumário

I - Adquirindo, em regra, valor de caso julgado formal, as decisões de forma (art. 620º do CPC), que incidem sobre aspectos processuais (que, em qualquer momento do processo, apreciam e decidem questões que não sejam de mérito), são vinculativas no processo, adquirindo valor de imutabilidade, sendo no processo inadmissível (e por isso ineficaz – art. 625º, n.º 2 do CPC) decisão posterior sobre a mesma questão.
II - O caso julgado formal duma decisão obsta a que no processo seja tomada (pelo tribunal que a proferiu ou por qualquer outro) nova decisão (seja renovando, seja modificando a anterior) – e, assim, que uma ‘pretensão já decidida, em contexto meramente processual’ e não recorrida, seja objecto de repetida decisão.
III - Decidido no processo (depois do contraditório das partes a propósito), por decisão não impugnada, que, independentemente de justa causa, o administrador da insolvência nomeado pelo juiz pode ser substituído desde que assim seja deliberado em qualquer assembleia, não apenas a primeira realizada após a nomeação de tal administrador pelo tribunal (agendando-se, em consequência, a realização de assembleia para que aos credores fosse permitido deliberar a substituição da administradora judicial que então se encontrava em funções), não pode a questão voltar a ser suscitada em recurso da decisão que, ponderando o resultado das votações, determinou a substituição da administradora judicial (ainda que esta decisão, também descurando o caso julgado já existente sobre a matéria, tenha repetido a apreciação da questão, decidindo-a em sentido idêntico).

Texto Integral

Apelação nº 1747/20.0T8AMT-AC.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: João Diogo Rodrigues

                Alberto Taveira


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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Apelantes: A..., S.A., B..., S.A. e C..., S.A.

Insolvente: D..., Ld.ª.

Juízo de comércio de Amarante (lugar de provimento de Juiz 1) – Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este.


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No processo de insolvência em que foi declarada a insolvência da devedora D..., Ld.ª, vieram as sociedades E... Ld.ª e A. F..., S.A, invocando a sua qualidade de titulares de créditos reconhecidos sobre a devedora insolvente de valor bem superior a um quinto do total dos créditos não subordinados, requerer a convocação de nova Assembleia de Credores com a finalidade de substituir a Administradora de Insolvência que vinha desempenhando o cargo por outro (que indicam), inscrito na lista oficial dos Administradores Judiciais e que reputam de ‘profissional experiente, íntegro e com competência mais do que suficiente para administrar os interesses da Massa Insolvente.’

Pronunciaram-se sobre o assim requerido as credoras A..., S.A., B..., S.A. e C..., S.A., sustentando não poder a pretensão ser acolhida, argumentando que, baseando-se o pedido formulado no disposto no artigo 53º, nº 1, do CIRE, não se verificavam os requisitos exigidos no preceito (fosse porque o Administrador da Insolvência inicialmente nomeado já fora substituído, fosse porque também já tivera lugar a Assembleia subsequente a essa nomeação, em razão do que a destituição da Administradora de Insolvência em exercício, pois, só podia ser obtida por decisão exclusiva do juiz e mediante a alegação de justa causa, nada alegada as requerentes a esse propósito).

Em despacho de 30/06/2023 foi proferido despacho com o seguinte teor:

Pese embora os argumentos invocados na oposição apresentada pelos credores A..., S.A. e B..., S.A. e C..., S.A., a verdade é que à luz da atual redação do n.º 1 do artigo 53.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, permite-se que os credores substituam o administrador da insolvência em assembleia de credores que não seja a primeira assembleia realizada após a designação.

Assim, independentemente de justa causa, o administrador nomeado pelo Juiz pode ser substituído/destituído desde que assim seja deliberado em Assembleia, qualquer Assembleia e não apenas a primeira realizada após a nomeação desse Administrador de Insolvência pelo tribunal, neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.01.2016, Relator Exmo. Sr. Desembargador Fonte Ramos, in Jurisprudência.pt.

Concomitantemente, para a realização de assembleia de credores, a requerimento de dois credores cujos créditos representam um quinto do total dos créditos não subordinados, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 53.º, n.º 1, e 75.º, n.º 1, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, designo o dia 24 de julho de 2023, pelas 14,00horas com a seguinte Ordem de Trabalhos:

1. Permitir aos Credores deliberar a substituição/destituição da Sr.ª Administradora de Insolvência nomeada por sorteio, Sr.ª Dr.ª AA e, em seu lugar, eleger para exercer o cargo de administrador Judicial o Sr. Dr. BB, inscrito na lista oficial dos Administradores Judiciais sob o n.º de registo ..., com domicílio profissional na Avenida ....

Notificadas do assim decidido (e sendo certo que de tal despacho não foi interposto recurso), arguiram as credoras A..., S.A., B..., S.A. e C..., S.A., a nulidade da convocação da assembleia de credores, argumentando, no que releva:

(…)

9. Sobre a atual interpretação do Art. 53.º, nº.1, do CIRE, a mera supressão da expressão «na primeira assembleia realizada» continua a não permitir que os credores requeiram a substituição de um administrador de insolvência que não seja designado para o cargo pelo Tribunal.

10. E mediante as suas únicas conveniências e seus interesses.

11. No presente processo, e mediante decisão judicial, já houve substituição de administrador de insolvência, pelo que não está preenchida a condição de o administrador de insolvência a substituir ser aquele que foi inicialmente designado pelo tribunal.

12. No mesmo sentido se pronunciam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, no CIRE Anotado e em anotação ao Art. 53.º, quando referem: «em rigor este preceito trata apenas da escolha de um administrador judicial pelos credores para substituir o que inicialmente foi nomeado pelo juiz na sentença declaratória de insolvência».

13. Ou seja, o Art. 53º do CIRE não permite, nem poderia permitir, a barafunda processual de existir um processo de insolvência com vários administradores de insolvência sucessivos, mediante as conveniências e interesses de grupos de credores.

14. E quando, mais grave ainda, as decisões judiciais não lhes são favoráveis – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto – 2ª Secção, de 16/05/2023, proferido no apenso K e com a refª. Citius 16873589.

15. Numa interpretação sistemática do CIRE, não faria qualquer sentido a exigência de justa causa para destituição do administrador de insolvência, constante do Art.º 56.º, quando o Art.º 53.º já permitisse a sua substituição em qualquer altura.

16. Daqui resulta que, não estando a substituição limitada à primeira designação do  administrador de insolvência, mantém a lei que a substituição continua limitada a ser a primeira substituição após a primeira designação judicial do administrador de insolvência, quando, no caso concreto, se trata já da segunda designação.

17. Com efeito, o primeiro Administrador de Insolvência nomeado nos autos foi o Dr. CC, tendo a atual Administradora de Insolvência sido designada em sua substituição.

18. Logo, a manutenção da Assembleia de Credores para o dia 24/07/2023, está a fazer-se mediante a realização da uma diligência e de um ato que a lei não admite.

19. Mas, para além disso, outra nulidade efetiva existe.

20. Na verdade, é consequência do requerimento da credora E... ser requerida a realização da assembleia de singela substituição, quando, encapotadamente, o que esta credora pretende é destituir a administradora de insolvência que não satisfaz os seus interesses, não conseguindo invocar qualquer justa causa para o efeito.

21. E isto é claro quando, no ponto 2 do requerimento, diz que «…a Srª Administradora de Insolvência nomeada nestes autos, por motivos vários que não interessa aqui agora enunciar, não é a pessoa mais indicada para defender os interesses Massa Insolvente …».

22. Quer isto dizer que vem, capciosamente, referir que os interesses da insolvência são os interesses desta requerente, o que é um total absurdo, como também vem dizer que a Sra. Administradora de Insolvência, que sempre cumpriu as sentenças dos diversos apensos, não é a pessoa indicada para o cargo, sem informar razões concretas para tal.

23. Significa isto que o que está em causa, segundo o requerente da Assembleia, não é inexistirem razões de justa causa, mas sim a sua ocorrência.

24. Ora, a explicitação das razões de eventual justa causa não cabem na Assembleia do Art. 53º do CIRE, mas sim nas diligências estabelecidas no Art. 56º do mesmo Código, sobre a destituição judicial de administrador de insolvência.

25. Por isso, a designação de Assembleia do Art. 53ºdo CIRE, neste enquadramento, constitui uma efetiva violação de lei e fundamenta a segunda nulidade invocada.

Com estes fundamentos invocam ‘a nulidade da convocação da Assembleia de Credores para o dia 24/07/2023, por violação do Art. 53.º, nº. 1, do CIRE, em relação à segunda substituição de administrador nestes autos, e do Art. 56º do mesmo Código, dado terem sido omitidos elementos de pretensa justa causa no pedido de convocação e impeditivos, também, da realização da assembleia.’

Apreciando tal arguição, foi em 21/07/2023 proferido o despacho que se transcreve:

A..., S.A., B..., S.A. e C..., S.A. credores notificadas do despacho com a referência 92482068, datado de 30/06/2023, vêm arguir a nulidade da convocação da Assembleia de Credores para o próximo dia 24/07/2023 e deduzir requerimento complementar.

Cumpre apreciar.

Como já foi mencionado nos autos, à luz da atual redação do n.º 1 do artigo 53.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, permite-se que os credores substituam o administrador da insolvência em assembleia de credores que não seja a primeira assembleia realizada após a designação. Assim, independentemente de justa causa, o administrador nomeado pelo Juiz pode ser substituído/destituído desde que assim seja deliberado em Assembleia, qualquer Assembleia e não apenas a primeira realizada após a nomeação desse Administrador de Insolvência pelo tribunal, neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.01.2016, Relator Exmo. Sr. Desembargador Fonte Ramos, in Jurisprudência.pt.

O facto de não poder ser na primeira assembleia deve-se ao facto de ainda não ter o Administrador de Insolvência praticado qualquer acto e assim não ter revelado ainda qualquer competência ou incompetência para o cargo a desempenhar.

O facto de se tratar já da segunda designação não obsta a que os credores continuem a solicitar a substituição do Administrador de Insolvência ao longo do processo sempre que o entendam e desde que invocando justa causa, sendo que em a assembleia essa justa causa

apreciado pelos credores levará à decisão que melhor acautela os interesses da massa, tomando a deliberação que aquela entende tomar.

Nestes termos improcedem as nulidades invocadas e mantém-se a Assembleia designada.

De tal despacho recorreram as credoras A..., S.A., B..., S.A. e C..., S.A., recurso que, subindo em separado (e dando lugar ao apenso Z), viria a ser julgado improcedente por acórdão de 24/10/2023.

Entretanto, depois de realizada nos autos, em 15/09/2023, a Assembleia de Credores, foi proferido em 10/10/2023 despacho com o seguinte teor:

Foi realizada Assembleia de Credores, em 15.09.2023, com um único ponto da ordem dos trabalhos, a saber: “deliberar a substituição/destituição da Sr.ª Administradora de Insolvência nomeada por sorteio, Dr.ª AA e, em seu lugar, eleger para exercer o cargo de administrador Judicial o Dr. BB”, tendo estado presentes 15 credores, representativos de 70,87% dos créditos reconhecidos com direito de voto, correspondendo a €1 805 213,36, pelo que existiu Quórum deliberativo.

Votaram a favor do único ponto da ordem de trabalhos, 7 credores, correspondendo a 942 212,19 euros, representativos de 52,19% do total dos créditos presentes.

Votaram contra o único ponto da ordem de trabalhos 7 credores, correspondendo a 731 853,36 euros, representativos de 40,54% do total dos créditos presentes.

Tendo-se abstido um credor, representativo de 7,27% dos créditos presentes.

Tal significa que a proposta apresentada a votação foi votada por mais de 2/3 do total dos créditos e foi votada favoravelmente por mais de 50% dos créditos votantes, considerando-se assim aprovada a proposta apresentada e que estava a votação.

Assim e porque previamente à votação, o Sr. Administrador de Insolvência indicado e aprovado pelos credores, Dr. BB, subscreveu o termo de aceitação junto aos autos em 28.06.2023, ao abrigo do disposto no artigo 53.º, n.ºs 1 e 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, impõe-se nomear como administrador da insolvência, para exercer funções no âmbito deste processo, o Exmo. Sr. Dr. BB em substituição da Sr.º Administradora que havia sido nomeada por sorteio pelo Juiz.

Com efeito, não se verificam no caso concreto fundamentos que sejam conhecidos do tribunal e que preencham alguma das hipóteses de recusa previstas no n.º 3 do artigo 53.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sendo que nos termos desta norma “o juiz só pode deixar de nomear como administrador da insolvência a pessoa eleita pelos credores, em substituição do administrador em funções, se considerar que a mesma não tem idoneidade ou aptidão para o exercício do cargo, que é manifestamente excessiva a retribuição aprovada pelos credores ou, quando se trate de pessoa não inscrita na lista oficial”, ora no caso sub judice nenhuma destas hipóteses se verifica.

A tal não obsta o facto de a votação e deliberação de substituição do Administrador nomeado pelo Juiz não ter ocorrido na primeira assembleia realizada após a nomeação em causa nem o tempo que já decorreu desde tal nomeação ou o facto de não existir justa causa para a substituição da Sr.ª Administradora de Insolvência que havia sido nomeada, já que a destituição com justa causa também não poderia ser objeto de deliberação pelos credores, sendo da exclusiva competência do Juiz, ainda que a requerimento de algum credor.

Neste sentido pode ler-se no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26.01.2016, sendo Relator o Exmo. Sr. Desembargador Fonte Ramos: “Sob condição de que previamente à votação se junte aos autos a aceitação do proposto, os credores, reunidos em assembleia de credores, podem, após a designação do administrador de insolvência, eleger para exercer o cargo outra pessoa, inscrita ou não na lista oficial, e prover sobre a remuneração respetiva, por deliberação que obtenha a aprovação da maioria dos votantes e dos votos emitidos, não sendo consideradas as abstenções (…)”

Acrescentando aquele aresto: “Em face da atual redação do n.º 1 do art.º 53º, do CIRE, permite-se que os credores substituam o administrador da insolvência em assembleia de credores que não seja a primeira assembleia realizada após a designação.

(…) Nesta perspetiva das coisas, sabendo-se que os poderes do administrador da insolvência têm em vista a satisfação de interesses que não são próprios (envolvendo, apenas, o exercício de verdadeiros poderes funcionais), encontrando-se o mesmo, também na qualidade de profissional liberal, sujeito à (permanente) fiscalização da assembleia de credores e não podendo ver assim “garantida” a estabilidade e a continuidade da sua “ligação funcional” - como se de um “vínculo laboral” se tratasse… -, afigura-se, pois, sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, que a mencionada disposição (art.º 53º, n.º 1, do CIRE) não desrespeitará quaisquer preceitos ou princípios constitucionais, em razão, desde logo, da natural e justificada prevalência da posição (maioritária) dos credores na definição e conformação do interesse dos credores (do insolvente) no contexto do processo de insolvência, ainda que em eventual confronto/colisão com a posição e o interesse do administrador da insolvência, antolhando-se desnecessário ou inexigível qualquer esforço de concordância prática entre os (eventuais) valores ou interesses em presença.”

Face a esta posição que também acolhemos, mostram-se afastados os argumentos invocados pelos credores A..., S.A. e B..., S.A., que votaram desfavoravelmente a deliberação de substituição em causa.

Termos em que, face á deliberação tomada por maioria dos credores votantes presentes na assembleia realizada em 15.09.2023, substituo a Sr.ª Administradora de Insolvência, Dr.ª AA e, para exercer as funções de Administrador de Insolvência neste processo, nomeio em sua substituição, por deliberação maioritária dos credores, o Exmo. Sr. Dr. BB.

Deste despacho apelam as credoras A..., S.A., B..., S.A. e C..., S.A., pretendendo a sua revogação e substituição por outro que julgue procedentes as nulidades invocadas e, em consequência, determine a anulação da Assembleia de Credores de 15/09/2023, terminando as suas alegações formulando as seguintes conclusões:

I- Surgem as presentes alegações no âmbito despacho com a referência Citius 93159946, datado de 10/10/2023, em que foram consideradas improcedentes as nulidades invocadas pelas aqui Recorrentes na sequência de se manter a Assembleia de Credores designada para 24/07/2023, alterada depois para 15/09/2023, bem como da própria ata da assembleia de credores com a referência Citius 92955485, em que foram consideradas improcedentes as nulidades invocadas pelas aqui Recorrentes, quer a titulo de convocação da Assembleia, quer em função da deliberação tomada e correspondente execução, não se conformando as Recorrentes com tal decisão;

II- Por requerimento deduzido por E..., Lda. e outra com a referência Citius 45985962, datado de 28/06/2023, foi requerida a realização de Assembleia de Credores para efeitos de destituição da Administradora de Insolvência, nos termos singelos do Art. 53.º, nº.1, do CIRE, sugerindo a nomeação do administrador judicial Dr. BB, fazendo-o abusivamente e sem qualquer fundamento sólido, porquanto se basearam estritamente na nova redação do Art. 53.º do CIRE, estabelecida pela Lei e sem invocarem justa causa;

III- No exercício do contraditório, vieram as aqui Recorrentes opor-se à realização da Assembleia de Credores, com base fundamentalmente no que dispõe o Art. 56.º, nº. 1, do CIRE, sobre a destituição do Administrador da Insolvência com justa causa e atento o disposto no Art. 59º do CIRE, quanto à responsabilidade do administrador perante os credores da insolvência, dentro da defesa da legalidade e das decisões judiciais, atuando como administrador criterioso e ordenado tendo sido ignorado tal posição pelo despacho recorrido;

IV- E a manutenção da data da assembleia teve por fundamento o facto de, no entendimento do despacho de 30/06/2023, reiterado na ata de realização da Assembleia de Credores de 15/09/2023, a redação atual posterior à alteração do Art. 53.º, nº. 1, do CIRE, estabelecida pela Lei 16/2012, de 20 de Abril, permitir aos credores substituir o Administrador de Insolvência em Assembleia de Credores que não fosse a primeira assembleia realizada após a designação;

V- Verifica-se, assim, que a realização da Assembleia de Credores para 15/09/2023 foi concretizada, não só à revelia de lei expressa, como também sem ter em conta os pressupostos da sua convocação, dela advindo nova e efetiva nulidade da realização da assembleia aqui referida;

VI- E por essa razão vieram as aqui Recorrentes em requerimento autónomo, entrado nos autos a 17/07/2023, arguir a nulidade de convocação de assembleia para o dia 24/07/2023, por violação do Art. 53.º, nº 1, do CIRE em relação à segunda substituição de administrador nestes autos e do Art. 56.º do mesmo Código dado terem sido omitidos elementos de pretensa justa causa essenciais ao pedido de convocação e, como tal impeditivos, também, da realização da Assembleia de Credores mantida;

VII- Em função de tal arguição das nulidades, veio a Assembleia de credores de 15/09/2023 a realizar-se normalmente, sem decisão sobre as nulidades e notificando a Sra. Administradora de Insolvência objeto de destituição no sentido de juntar aos autos mapa de votações no prazo de 5 dias, o que constitui nulidade ao abrigo do Art. 615.º, nº 1, alínea c), do C.P.Civil, aplicado por força do Art. 17.º do CIRE, porquanto a decisão sobre as nulidades está em contradição com o fundamento;

VIII- Nunca foi deduzida no pedido de Assembleia de Credores para substituição de Administrador de Insolvência e no requerimento das recorridas E... e Outra, qualquer fundamento de justa causa que sustentasse o pedido de substituição fora o do Art. 53.º do CIRE pelo que é a realização da assembleia claramente nula por, inexistindo no pedido da convocatória qualquer invocação de justa causa, vir manter uma assembleia cuja convocação não respeita os fundamentos que invoca, o que também fundamenta o presente recurso;

IX- Neste enquadramento, e apresentado o mapa de votação os credores ficaram na posse de todos os elementos para proceder à reclamação de acordo com o Art. 78.º, nº 1, do CIRE após ter sido entendido, no despacho recorrido, que a votação tinha sido favorável à substituição da Sra. Administradora de Insolvência, sendo julgada relevante a Assembleia de Credores realizada, que se colocam agora as questões relativas às nulidades decorrentes da concretização da Assembleia, de onde resulta a autonomia do presente recurso;

X- E é aqui que surge o presente recurso do despacho recorrido em que as Recorrentes, já não pondo em causa somente o ato da convocação da Assembleia, vêm deduzir recurso também do despacho que considerou a assembleia bem realizada, válida e eficaz com o consequente indeferimento de todas as nulidades invocadas pelas Recorrentes, o que constitui a matéria decisória do presente recurso;

XI- Precisamente porque o despacho em recurso é inovatório em relação à decisão sobre nulidades requeridas, decididas contra as Recorrentes que estas vieram interpor o presente recurso, dado que o despacho recorrido continua a manter que, ao abrigo do Art. 53.º, nº.s 1 e 3, do CIRE, podem ser nomeados tantos administradores quanto as partes requeiram a sua substituição, sendo o único critério para não nomeação a falta de idoneidade para o proposto;

XII- Mantém-se a errada interpretação do Art. 53.º do CIRE no despacho recorrido uma vez que, sobre a atual interpretação de na primeira assembleia realizada credores requeiram a substituição de um administrador de insolvência que não seja designado para o cargo pelo Tribunal e mediante as suas únicas conveniências e seus interesses;

XIII- No presente processo, e mediante decisão judicial, já houve substituição de Administrador de Insolvência, pelo que não está preenchida a condição de o Administrador de Insolvência a substituir ser aquele que foi inicialmente designado pelo Tribunal, conforme posição de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, no CIRE anotado e em anotação ao Art. 53.º, já depois da entrada em vigor da Lei 16/2012, de 20 de Abril;

XIV- O Art. 53.º do CIRE não permite, nem poderia permitir, a barafunda processual de existir um processo de insolvência com vários Administradores de Insolvência sucessivos, mediante as conveniências e interesses de grupos de credores, tanto mais que, numa interpretação sistemática do CIRE não faria qualquer sentido a exigência de justa causa para destituição do Administrador de Insolvência, constante do Art. 56.º, quando o Art. 53.º do mesmo código já permitisse a sua substituição em qualquer altura;

XV- Daqui resulta que, não estando a substituição limitada à primeira designação do Administrador de Insolvência, mantém a lei que a substituição continua limitada a ser a primeira substituição após a primeira designação judicial do Administrador de Insolvência, quando, no caso concreto, se trata já da segunda designação e não houve qualquer invocação concreta de justa causa, pelo que a manutenção da Assembleia de Credores realizada a 15/09/2023, fez-se mediante a realização de uma diligência e de um ato que a lei não admite, subsistindo sempre a nulidade da deliberação da assembleia e da respetiva execução sem a alegação de justa causa;

XVI- Vêm, capciosamente, as requerentes da Assembleia de Credores referir que os interesses da insolvência são os interesses destas requerentes, o que é um total absurdo, como também vêm dizer que a Sra. Administradora de Insolvência, que sempre cumpriu as sentenças dos diversos apensos, não é a pessoa indicada para o cargo, sem informar razões concretas para tal, o que confirma a inexistência de justa causa;

XVII- A explicitação das razões de eventual justa causa não cabem na Assembleia de Credores do artigo 53º do CIRE, mas sim nas diligências estabelecidas no Art. 56.º do mesmo Código, sobre a destituição judicial de Administrador de Insolvência, o que significa que sem terem sido alegadas razões de justa causa, a manutenção da assembleia é inválida tanto mais que o despacho recorrido impõe que existam razões de justa causa constituindo a realização e execução de Assembleia do Art. 53.º do CIRE, neste enquadramento, uma efetiva violação de lei e fundamenta a segunda nulidade invocada;

XVIII- Nestes termos resulta do despacho recorrido, e sobre a separação que nele se faz entre a nulidade e execução da assembleia que:

a) É nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão;

b) Sobre a realização da Assembleia de Credores, existe uma clara violação dos Arts. 6.º, 195.º e 590.º do C.P.Civil, bem como dos Arts. 75.º e 78.º do CIRE;

c) Sobre a validade da deliberação e sua execução, existe também uma clara violação de lei e respetiva ilegalidade com violação dos Arts. 53.º e 56.º do CIRE;

d) Sobre a manutenção da execução da deliberação com a consequente substituição de Administrador Judicial, existe uma manifesta violação dos Arts. 130.º e 195.º do C.P.Civil designadamente por a deliberação tomada em assembleia constituir uma nulidade e conduzir à prática de um ato que a lei não admite.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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Delimitação do objecto do recurso.

Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida e a delimitação do objecto do recurso traçada pelas apelantes nas conclusões das suas alegações, cumpriria a este tribunal apreciar, tão só, se (ao contrário do decidido no despacho recorrido) se imporia determinar a anulação da Assembleia de Credores realizada nos autos em 15/09/2023 e a consequente deliberação de substituição do administrador da insolvência.

Todavia, o tribunal de recurso não está limitado pela iniciativa das partes relativamente a questões de oficioso conhecimento e assim, uma vez interposto recurso, é-lhe lícito (rectius, cumpre-lhe) conhecer delas – para a decisão do recurso pode o tribunal apreciar tais questões ex officio, ainda que sobre as mesmas não tenha existido anterior pronúncia ou que não tenham sido suscitadas pelo recorrente ou recorrido, embora deva acautelar o princípio do contraditório, a fim de evitar decisões surpresa[1].

Na verdade, a regra que impede ao tribunal de recurso o conhecimento de questões novas não vale quanto às questões de oficioso conhecimento, que poderiam (deveriam) ter sido apreciadas pelo tribunal recorrido (arts. 663º, n.º 2 e 608º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

Assim, e cumprido que se mostra o contraditório quanto à questão (foi observado, a propósito, o disposto no art. 3º, nº  3 do CPC), importará também apreciar do caso julgado formal (art. 620º do CPC) do despacho de 30/06/2023 – se tal anterior decisão, transitada em julgado, vincula o tribunal (tanto o tribunal a quo, como a Relação) ao nela definido e impede nova pronúncia sobre a questão, no segmento (nele residirá a identidade de objectos - idênticos fundamentos e idêntica pretensão), concernente à possibilidade que se considerou ser pelo art. 53º, nº 1 do CIRE facultada aos credores de substituírem o ‘administrador da insolvência em assembleia de credores que não seja a primeira assembleia realizada após a designação’, independentemente de ocorrer ou não justa causa de destituição (ou seja, a possibilidade de deliberar tal substituição em ‘qualquer assembleia e não apenas a primeira realizada após a nomeação’ do administrador pelo tribunal).


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FUNDAMENTAÇÃO

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Fundamentação de facto

A matéria factual a ponderar é a que resulta exposta no relatório que precede.


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Fundamentação de direito

A. Do caso julgado formal do despacho de 30/06/2023.

O caso julgado consubstancia-se ‘na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário’, tornando indiscutível o conteúdo da decisão[2].

O caso julgado aporta à decisão um segundo nível estabilidade (de continuidade na emissão dos seus efeitos jurídicos) – constitui uma técnica de estabilização dos resultados do processo, que se integra numa linha gradual de estabilização: do esgotamento do poder jurisdicional (art. 613º do CPC), enquanto regra de proibição do livre arbítrio, resulta um primeiro nível de estabilidade da decisão judicial, ainda que interna ou restrita, relativa ao próprio autor da decisão; o trânsito em julgado permite à decisão alcançar um segundo nível de estabilidade alargada, vinculando o tribunal e as partes, dentro do processo (caso julgado formal - art. 602º do CPC), ou mesmo fora dele, perante outros tribunais (caso julgado material - art. 619º do CPC)[3].          

O ‘caso julgado formal, por oposição ao caso julgado material, restringe-se às decisões que apreciam matéria de direito adjectivo, produzindo efeitos limitados ao próprio processo’[4]; tem valor intraprocessual, vinculativo no próprio processo em que a decisão é proferida[5]

Adquirindo, em regra, valor de caso julgado formal[6], as decisões de forma (art. 620º do CPC), que incidem sobre aspectos processuais (que, em qualquer momento do processo, apreciam e decidem questões que não sejam de mérito[7]), são vinculativas no processo, produzindo efeitos processuais: enquanto efeito negativo, resulta da decisão transitada a insusceptibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que a proferiu, se voltar a pronunciar sobre ela; como efeito positivo, resulta da decisão transitada a vinculação do tribunal que a proferiu (e de outros) ao que nela foi definido ou estabelecido[8].

Assim que qualquer despacho proferido sobre questão processual (por exemplo, que decida de uma arguida nulidade ou sobre qualquer meio de prova – no fundo, todos os despachos que decidam questão que não seja de mérito), uma vez transitado em julgado, adquire valor de imutabilidade, sendo no processo inadmissível (e por isso ineficaz – art. 625º, n.º 2 do CPC) decisão posterior sobre a mesma questão que dele tenha sido objecto[9] – não sendo respeitados os efeitos processuais resultantes de decisão transitada em julgado, ocorrerá situação de contraditoriedade, a solucionar de acordo com a regra prescrita no art. 625º do CPC, valendo aquela que primeiro transitou em julgado (princípio da prioridade do trânsito em julgado que vale também para as decisões de natureza adjectiva proferidas no processo, como resulta do n.º 2 do art. 625º do CPC).

O caso julgado formal duma decisão obsta a que no processo seja tomada (pelo tribunal que a proferiu ou por qualquer outro) nova decisão (seja renovando, seja modificando a anterior) – e, assim, que uma ‘pretensão já decidida, em contexto meramente processual’, e não recorrida, seja objecto de repetida decisão (se tal acontecer, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão)[10].

Apurar se uma pretensão – ao nível da relação meramente processual (alheia ao estrito mérito da causa) – constitui a renovação ou repetição (esse o pressuposto nuclear do instituto) duma anteriormente decidida remete-nos para o âmbito objectivo do caso julgado, isto é, para a determinação do seu objecto, para a ‘determinação do quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal’[11] na decisão transitada – os efeitos processuais do trânsito em julgado, aportando valor de imutabilidade ao decidido, circunscrevem-se a esse apreciado e decidido objecto (a proibição de reapreciação e a vinculação ao apreciado reportam-se à questão já decidida, protegendo a continuidade na emissão dos seus efeitos jurídicos).

Tais limites objectivos respeitam, no caso julgado formal, à questão processual concretamente (veja-se o art. 595º, n.º 3 do CPC) apreciada e decidida.

Na situação trazida em apelação constata-se que a questão repete a decidida no despacho de 30/06/2023, não impugnado e transitado em julgado, qual seja a de determinar se podia ou não, em assembleia de credores, ser deliberada pelos credores da insolvente a substituição do administrador da insolvência – naquele despacho, apreciando requerimento de credores da insolvente, que mereceu oposição das credoras agora apelantes, ponderou-se e considerou-se que, independentemente de justa causa, o administrador da insolvência nomeado pelo juiz pode ser substituído desde que assim seja deliberado em assembleia, ‘qualquer Assembleia e não apenas a primeira realizada após a nomeação’ de tal administrador pelo tribunal, determinando, em consequência, a realização de assembleia (que se agendou) para que aos credores fosse permitido deliberar a substituição da administradora judicial que então se encontrava em funções.

Essa concreta questão, ali apreciada, conhecida e decidida é novamente suscitada no presente recurso, interposto da decisão que, ponderando o resultado das votações, determinou a substituição da administradora judicial, tendo (também descurando o caso julgado já existente sobre a matéria) ademais repetido e renovado decisão no sentido de que a substituição poderia ser deliberada pelos credores em assembleia de credores que não a primeira realizada após a nomeação do administrador pelo tribunal, independentemente de justa causa de destituição.

Pretendem, pois, as apelantes com o presente recurso obter decisão que contrarie e modifique uma anterior decisão cujo conteúdo se tornou indiscutível no processo e que a todos (partes e tribunal – não só o tribunal que a proferiu, mas qualquer outro) vincula e que, por isso, projecta os seus efeitos processuais dentro do processo: por um lado, nenhum tribunal (seja o tribunal a quo, que a proferiu, seja esta Relação) pode voltar a pronunciar-se sobre tal apreciada e decida questão (efeito negativo); por outro, está o tribunal (quer o que a proferiu, quer outro) vinculado ao que nela foi definido ou estabelecido, impossibilitado de discutir e modificar a decisão.

Improcede, assim, em razão do caso julgado formal do despacho de 30/06/2023, a apelação – a decisão apelada vem impugnada apenas com fundamento em razões já apreciadas e decididas naquele transitado despacho.

B. Do exposto resulta a improcedência da apelação, com a consequente manutenção da decisão apelada (que apesar de repetir a apreciação da questão já decidida no despacho de 30/06/2023, concluiu nos mesmos termos), podendo sintetizar-se a argumentação decisória (em cumprimento do n.º 7 do art. 663º do CPC) nos seguintes termos:

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em manter a decisão apelada, que procedeu à substituição do administrador.

Custas pelas apelantes.


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Porto, 20/02/2024
João Ramos Lopes
João Diogo Rodrigues
Alberto Taveira

(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, 2018, p. 120.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2ª edição, 1997, p. 567.
[3] Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, revista Julgar Online, Novembro de 2018, pp. 2/3 (acedido em Fevereiro de 2024).
[4] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 745.
[5] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos (…), p. 569.
[6] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos (…), pp. 569/570.
[7] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, p. 753.
[8] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos (…), p. 572.
[9] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), pp. 752/753.
[10] Acórdão do STJ de 8/03/2018 (Fonseca Ramos), no sítio www.dgsi.pt.
[11] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos (…), p. 572.