IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
Sumário

I – A livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que a motivação da decisão sobre a matéria de facto deve permitir compreender o iter cognoscitivo que conduziu àquela decisão, ou seja, deve mencionar os fundamentos que determinaram a convicção do Tribunal, para que, mediante as regras da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção e, desse modo, possibilitar a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto pelo Tribunal de 2.ª Instância.
II – Não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa e não se mostrando possível suprir tal deficiência por via do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova, cumpre determinar que o tribunal de 1.ª instância a fundamente, nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 2, al. d), do CPC.

Texto Integral

Processo n.º 856/19.3T8STS-O.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Por apenso aos autos em que foi declarada a insolvência de A..., Lda., vieram AA, BB, CC, DD e EE intentar diferentes acção para verificação ulterior de créditos contra a massa insolvente, os credores e a devedora.
Por despacho proferido em 23.04.2021 foi determinada a junção destas cinco acções, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º e 279.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC) – querendo, certamente, referir-se ao artigo 267.º, n.ºs 1 e 2, do CPC –, ex vi artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Depois de tramitadas conjuntamente estas cinco acções no presente apenso O, veio a ser proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, decido:
- julgo improcedentes as exceções invocadas pela massa insolvente de A... LDA - Litigância de Má fé - Relação Jurídica Laboral. Contrato Individual de Trabalho. Subordinação Jurídica, Direção e Autoridade. Inexistência de negócio em curso de contrato de trabalho. Créditos Emergentes por Cessação da Relação Laboral, Valores. Privilégios creditórios.
- julgo improcedente, por não provados, os créditos laborais referentes aos autores CC, DD e EE.
- julgo improcedente, por não provado, os créditos do autor BB, sem condição, no valor de € 55.139,60 (cinquenta e cinco mil, cento e trinta e nove euros e sessenta cêntimos).
- julgo verificados os créditos dos autores AA e BB, gozando os mesmos de privilégios creditórios imobiliário e mobiliário geral, nos seguintes montantes, acrescidos dos juros legais de mora vencidos e vincendos até integral pagamento daqueles:
a) AA - 18.544,17 € (dezoito mil, quinhentos e quarenta e quatro euros e dezassete cêntimos).
b) BB - 30.104,17 € (trinta mil, cento e quatro euros e dezassete cêntimos).»

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Inconformados, apelaram desta sentença os credores B... Company, EE, DD, CC (tendo este recurso sido rejeitado por despacho proferido em 29.11.2023) e C... Dac., tendo apresentado as respectivas alegações, que terminaram com as conclusões a seguir transcritas.
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Conclusões formuladas por B... Company:
«A. O douto tribunal julgou improcedentes as exceções invocadas pela massa insolvente de A... LDA - Litigância de Má fé - Relação Jurídica Laboral. Contrato Individual de Trabalho. Subordinação Jurídica, Direção e Autoridade. Inexistência de negócio em curso de contrato de trabalho. E Verificou os créditos laborais AA, BB, CC, DD e EE como privilegiados,
B. Razão pela qual, e salvo o devido respeito e devida vénia por opinião em sentido diverso, a ora Recorrente entende que o Tribunal a quo não poderia ter decidido da forma como o fez única e exclusivamente quanto a graduar os trabalhadores.
D. O privilégio imobiliário especial de que gozam os créditos dos trabalhadores, conferido pela alínea b) do nº 1 do artº 333º do CT não abrange os imóveis onde os trabalhadores prestaram trabalho destinados a transação, por não se poder considerar que integram o estabelecimento comercial do insolvente,
E. Apenas gozam desse privilégio os imóveis que integram o estabelecimento onde os trabalhadores exerceram a sua atividade.
F. Nunca foi efectuada qualquer prova que de relação entre as empresas D..., S.A. E... e F..., S.A., nem muito menos significa que todas detenham e pratiquem a mesma actividade comercial, o que implica que se a actividade é diferente, também os trabalhadores e repectivas especialidades laborais também o serão.
G. Ora vejamos a insolvente tem como objecto social importação e comercialização de metais.
H. Apenas sobre os imóveis que constituem fisicamente o suporte organizacional da actividade empresarial da falida e que contribuem de forma ordenada e permanente para a sua actividade de construção civil, pode incidir o privilégio imobiliário especial a que alude o art. 333º do CT e já não aqueles outros imóveis que lhe advêm como resultado da actividade de construção que lhe é própria ou que lhe pertencem mas estão afectos a outra actividade, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, 5049/11.5TBBRG-J.G1.
I. Aliás o Acórdão Supremo Tribunal de Justiça, em 20 de outubro de 2015 é claro nesta matéria: “O artº. 333.º n.º 1 do Código do Trabalho dispõe:
1 - Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios: a) Privilégio mobiliário geral; b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador, no qual o trabalhador presta a sua atividade.
Partindo do princípio que o legislador se sabe expressar, a letra do preceito não deixa a mínima dúvida de que os créditos dos trabalhadores só gozam de privilégio imobiliário especial sobre o imóvel do empregador no qual presta a sua atividade e não sobre a generalidade dos seus imóveis.”
L. Ora pelo auto de apreensão, o caso em apreciação parece claro, em que o insolvente possui várias unidades produtivas autónomas, sediadas em diversas localidades do nosso país.
M. Não nos parece possível defender que os trabalhadores que operam num armazém de possam exercer a sua atividade no imóvel onde está instalada armazém no outro armazém até porque os trabalhadores não trabalham para a insolvente.
N. Já para não falar que é ponto assente os trabalhadores não trabalhavam sobre o bem imóvel do empregador. Pois se foram cedidos às outras entidades, e se a insolvente não exercia a sua função naqueles armazéns, caso contrário é simplesmente ridículo, as duas empresas (insolvente e a restantes) trabalharem todas no mesmo local, em que a insolvente cede os trabalhadores, e com o mesmo gerente de empresas, nada mas apenas negociatas para fugir e prejudicar os credores hipotecários..
O. É assim condição sine qua non para a verificação da existência do privilégio imobiliário especial que o trabalhador alegue e demonstre que exercia a sua atividade profissional num imóvel específico, propriedade da entidade patronal, argumento que falha pois os trabalhadores não trabalhavam para a A....
P. Sendo as funções de trabalhador de apoio industrial e de trabalhador de apoio administrativo completamente diferentes, não se podendo concluir que o Autor trabalhava na sede da empresa, até porque de acordo com o contrato de trabalho junto, este auxiliava na venda de mercadorias, que não seria feita na sede da Insolvente
Q. Os privilégios imobiliários especiais têm por objetivo garantir através de concretos imóveis do devedor o pagamento de certos créditos, cuja fonte está em conexão direta com os imóveis sobre os quais incide o privilégio (art.ºs. 733.º, 738º a 742º, do Código Civil), e não foi efectuada prova por parte dos trabalhadores de que o seu local de trabalho era aquele.
R. Ora, perante esta situação, considerar-se que todos os trabalhadores da entidade patronal, que foi declarada insolvente, gozam de privilégio imobiliário especial sobre todos os bens imóveis desta, independentemente de exercerem ou não funções no imóvel apreendido para a massa insolvente, estar-se-ia a violar o princípio da segurança jurídica e da confiança, previsto no artigo 2.º da CRP. E já para não falar que no caso em concreto não eram trabalhadores da proprietário do imóvel pois foram cedidos a uma entidade sem qualquer relação com a insolvente.
S. Face ao exposto, deverá a sentença proferida ser alterada quanto à graduação dos trabalhadores pelo produto de venda dos imoveis, nos termos supra expostos, mantendo-se a sentença quanto a tudo o mais, ou seja, deverá a ora credora ser graduada em primeiro lugar (após pagamento das custas da massa insolvente) conjuntamente com os restantes credores da hipoteca sindicada no que respeita ao produto de venda das verbas».
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Conclusões formuladas por EE:
«a) Nos presentes autos o MM.º Juiz decidiu julgar improcedente, por não provados, os créditos laborais referentes ao aqui recorrente, no valor de € 13.680,00 (treze mil seiscentos e oitenta euros).
b) Por sua vez, o MM.ª Juiz decidiu julgar verificados os créditos dos co-autores AA e BB, gozando estes de privilégios creditórios imobiliário e mobiliário geral.
c) O MM.º Juiz julgou ainda como verificados os créditos dos demais autores nos apensos aos autos principais, de Verificação Ulterior de Créditos, designados sob as letras “F” e “R” que, tal como o aqui recorrente, se apresentaram nos repectivos apensos como trabalhadores reclamantes da sociedade insolvente A... Ld.ª.
d) Ora, o recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância, desde logo, pela clara violação do princípio da igualdade em face da prova documental existente nos autos, bem como pela violação do disposto nos artigos 12.º, 333.º e 366.º do Código do Trabalho.
e) Considerando terem sido verificados os créditos dos demais trabalhadores/autores, entende o recorrente que se impunha reconhecer igualmente os créditos por si reclamados e, consequentemente, julgar como provada toda a factualidade que resulta da alínea B), dos pontos 1 a 8, referentes ao aqui recorrente.
f) No que concerne à violação do princípio da igualdade, considera o recorrente que, tendo o Tribunal a quo julgado como verificados os créditos “condicionais” dos demais trabalhadores/autores – à excepção da CC e do DD – se impunha considerar também o recorrente como trabalhador da sociedade insolvente e, consequentemente, se impunha reconhecer os créditos por si reclamados, nos termos do disposto nos artigos 12.º, 333.º e 366.º do Código do Trabalho.
g) A prova dos factos que constam dos factos 1 a 7 da alínea B) da matéria de facto julgada como não provada resultam da prova documental existente nos autos, designadamente: informação da Segurança Social directa relativa à situação contributiva do recorrente, os recibos de vencimento do mesma, simulações de compensação por cessação de contrato de trabalho, detalhes dos vínculos dos trabalhadores, IES da sociedade insolvente, extrato da declaração das remunerações dos trabalhadores da sociedade insolvente, transferências bancárias, folhas de férias dos trabalhadores, plano de recuperação apresentado pelo Sr. Administrador Judicial Provisório, Dr. FF, no processo que correu termos sob o n.º 3529/17.8T8STS (fls. 9 e 10) e contrato de prestação de serviços celebrado a 29 de Agosto de 2014 entre a sociedade insolvente e a “D...”.
h) Neste último documento o nome do aqui recorrente surge como trabalhador cedido pela sociedade insolvente à D...: “EE.............................960 horas a € 8,00/hora................€ 7.680,00”.
i) Assim como surgem os nomes dos demais trabalhadores/autores cujos créditos foram julgados como verificados.
j) De toda a referida documentação resulta que o aqui recorrente era trabalhador da sociedade insolvente.
k) Mais concretamente na página 9 do plano de recuperação junto pelo Dr. FF resulta que: “A sociedade devedora mantém 22 postos de trabalho” e na página 10 é indicado o nome do aqui recorrente como trabalhador da sociedade, à data, devedora, agora insolvente.
l) A 16 de Dezembro de 2022 foi também notificado o Dr. GG, na qualidade de Interveniente Acidental para proceder à junção, relativamente à insolvente A..., Ldª, NIPC 504122266e e às sociedades, D... S.A., NIPC ...; E... S.A., NIPC ... e F..., S.A., NIPC ..., G..., LDA, NIPC ..., H..., SA ..., apresentar/informar documentando, desde o ano de 2012 até à actualidade o seguinte: a) A identificação de quem realizava e realiza e desde quando a contabilidade da insolvente e das ante sociedades identificadas, desde o ano de 2008 à actualidade, b) os recibos de vencimento que detenha em seu sistema, suporte informático, referentes aos Autores e demais trabalhadores registados na segurança social como trabalhadores da insolvente, ainda de todos os movimentos, financeiros, bancários, documentos bancários, contas bancárias de origem e destino, dos seus pagamentos, se possível desde o ano de 2012 à atualidade, c) Documentos sobre pagamento e quem as pagou das contribuições e retenções referentes à emissão dos referidos recibos de remunerações, e d) Documentos do pagamento dos seguros, apólices de acidentes de trabalho e de quem os pagou.
m) Em resposta, o Dr. GG, Contabilista Certificado, juntou aos autos recibos de salários desde Junho de 2013 até Agosto de 2022.
n) De entre os vários recibos por aquele juntos resultam os recibos de vencimento do aqui recorrente, conforme resulta dos requerimentos juntos sob as referências 34212128, 34212150, 34212167, 34212174, 34212209, 34212301, 34212340, 34212354, 34212379, 34212364, 34212392, 34212421 e 34212407.
o) A própria Segurança Social, a 5 de Dezembro de 2022, sob a referência citius 34060028 juntou aos autos o extrato de remunerações do aqui recorrente desde Janeiro de 2000.
p) Do libelo inicial resulta que o recorrente foi admitido ao serviço da sociedade insolvente em Maio de 1999 e dos autos resultam extratos de remuneração desde Janeiro de 2000 pelo que, pelo menos desde esta data, ter-se-á que considerar a existência do vínculo laboral.
q) Pelo que, e s.m.o., existe nos autos prova documental bastante à concretização da relação laboral que existia entre o recorrente e a sociedade insolvente nos termos do disposto no artigo 12.º do Código de Trabalho.
r) À contrario do considerado pelo Tribunal a quo, a prova documental junta é bastante.
s) E a mesma prova documental que serviu para julgar provado e verificado o valor peticionado pelos demais co-autores nos presentes autos e nos demais apensos tem de servir para julgar como provado o crédito do aqui recorrente.
t) Não se trata apenas dos recibos de vencimento, mas também dos extratos de remuneração da SS, das folhas de férias dos trabalhadores, dos comprovativos de transferência da remuneração devida, dos recibos de vencimento, simulações de compensação por cessação de contrato de trabalho, detalhes dos vínculos dos trabalhadores, IES da sociedade insolvente, extrato da declaração das remunerações dos trabalhadores da sociedade insolvente, transferências bancárias, folhas de férias dos trabalhadores, vínculo laboral declarado no âmbito do PER que correu termos sob o n.º 3529/17.8T8STS no Juiz 3 do Juízo de Comércio de Santo Tirso e contrato de prestação de prestação de serviços com exclusividade celebrado a 29 de Agosto de 2014 entre a sociedade insolvente e a “D... Ld.ª”.
u) Ora, resultando da referida prova documental que o aqui recorrente era efectivamente trabalhador da sociedade insolvente desde, pelo menos, Janeiro de 2000 (conforme extrato de remunerações da SS), relação laboral que se mantinha à data da apresentação da acção de VUC e que, segundo recibos, extratos de remuneração e transferências, o recorrente auferia € 760,00 mensais, segundo o princípio da igualdade, ter-se-á que considerar o recorrente como trabalhador da sociedade insolvente.
v) Consequentemente, terá de julgar-se como provada a matéria de facto considerada pelo Tribunal a quo como não provada sob a alínea B), factos 1 a 7, rectificando-se o ponto 2 relativamente à data que passará a ser Janeiro de 2000, conforme extratos de remuneração da SS.
w) E, nos termos do disposto no artigo 366.º do Código do Trabalho, ter-se-á que julgar como provado que à data da apresentação da acção de verificação ulterior de créditos o recorrente é credor da insolvente no valor de € 13.680,00 – sendo que relativamente ao demais valor peticionado não existe efectivamente prova documental para além de uma declaração.
x) Mais ter-se-á que julgar provado que no âmbito da actividade desenvolvida pela sociedade insolvente o recorrente foi admitido ao seu serviço mediante contrato de trabalho em Janeiro de 2000 (e não Maio de 1999) – conforme extratos de remuneração juntos pela própria SS, recibos de vencimento e transferências juntas aos autos pelo Contabilista Certificado, Dr. GG.
y) Os mesmos documentos demonstram que o vínculo laboral se mantinha à data de apresentação da acção de verificação ulterior de créditos.
z) Os mesmos documentos demonstram que o recorrente auferia um vencimento de € 760,00 pelo que, nos termos do disposto no artigo 366.º do Código de Trabalho: é o mesmo credor do valor, a título de indemnização, de € 10.260,00, a este valor acrescem os proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal devidos no ano da cessação, calculados em € 1.900,00; e ainda, pela violação do aviso prévio legalmente previsto, o valor de € 1.520,00 – sublinhando que a nenhum trabalhador foi comunicada pelo Sr. Administrador de Insolvência a cessação do respectivo contrato de trabalho.
aa) Ora, a existência do contrato de trabalho presume-se desde que se verifiquem algumas das circunstâncias elencadas no nº 1, do artigo 12º, do Código de Trabalho de 2009.
bb) Presunção em benefício exclusivo do trabalhador, uma vez que, quem tem a seu favor a presunção legal, escusa de provar o facto a que ela conduz, por força do estatuído no nº 1 do artigo 350º, do Código Civil.
cc) E presunção que, s.m.o., não foi ilidida».
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Conclusões formuladas por DD:
«a) Nos presentes autos o MM.º Juiz decidiu julgar improcedente, por não provados, os créditos laborais referentes ao aqui recorrente, no valor de € 36.069,44 (trinta e seis mil, sessenta e nove euros e quarenta e quatro cêntimos).
b) Por sua vez, o MM.ª Juiz decidiu julgar verificados os créditos dos co-autores AA e BB, gozando estes de privilégios creditórios imobiliário e mobiliário geral.
c) O MM.º Juiz julgou ainda como verificados os créditos dos demais autores nos apensos aos autos principais, de Verificação Ulterior de Créditos, designados sob as letras “F” e “R” que, tal como o aqui recorrente, se apresentaram nos repectivos apensos como trabalhadores reclamantes da sociedade insolvente A... Ld.ª. d) Ora, o recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância, desde logo, pela clara violação do princípio da igualdade em face da prova documental existente nos autos, bem como pela violação do disposto nos artigos 12.º, 333.º e 366.º do Código do Trabalho.
e) Considerando terem sido verificados os créditos dos demais trabalhadores/autores, entende o recorrente que se impunha reconhecer igualmente os créditos por si reclamados e, consequentemente, julgar como provada toda a factualidade que resulta da alínea B), dos pontos 1 a 8, referentes ao aqui recorrente.
f) No que concerne à violação do princípio da igualdade, considera o recorrente que, tendo o Tribunal a quo julgado como verificados os créditos “condicionais” dos demais trabalhadores/autores – à excepção da CC e do EE – se impunha considerar também a recorrente como trabalhador da sociedade insolvente e, consequentemente, se impunha reconhecer os créditos por si reclamados, nos termos do disposto nos artigos 12.º, 333.º e 366.º do Código do Trabalho.
g) A prova dos factos que constam dos factos 1 a 8 da alínea B) da matéria de facto julgada como não provada resultam da prova documental existente nos autos, designadamente: informação da Segurança Social directa relativa à situação contributiva do recorrente, os recibos de vencimento do mesma, simulações de compensação por cessação de contrato de trabalho, detalhes dos vínculos dos trabalhadores, IES da sociedade insolvente, extrato da declaração das remunerações dos trabalhadores da sociedade insolvente, transferências bancárias, folhas de férias dos trabalhadores, plano de recuperação apresentado pelo Sr. Administrador Judicial Provisório, Dr. FF, no processo que correu termos sob o n.º 3529/17.8T8STS (fls. 9 e 10) e contrato de prestação de serviços celebrado a 29 de Agosto de 2014 entre a sociedade insolvente e a “D...”.
h) Neste último documento o nome do aqui recorrente surge como trabalhador cedido pela sociedade insolvente à D...: “DD .............................960 horas a € 19,60/hora................€ 18.816,00”.
i) Assim como surgem os nomes dos demais trabalhadores/autores cujos créditos foram julgados como verificados.
j) De toda a referida documentação resulta que o aqui recorrente era trabalhador da sociedade insolvente.
k) Mais concretamente na página 9 do plano de recuperação junto pelo Dr. FF resulta que: “A sociedade devedora mantém 22 postos de trabalho” e na página 10 é indicado o nome do aqui recorrente como trabalhador da sociedade, à data, devedora, agora insolvente.
l) A 16 de Dezembro de 2022 foi também notificado o Dr. GG, na qualidade de Interveniente Acidental para proceder à junção, relativamente à insolvente A..., Ldª, NIPC 504122266e e às sociedades, D... S.A., NIPC ...; E... S.A., NIPC ... e F..., S.A., NIPC ..., G..., LDA, NIPC ..., H..., SA ..., apresentar/informar documentando, desde o ano de 2012 até à actualidade o seguinte: a) A identificação de quem realizava e realiza e desde quando a contabilidade da insolvente e das ante sociedades identificadas, desde o ano de 2008 à actualidade, b) os recibos de vencimento que detenha em seu sistema, suporte informático, referentes aos Autores e demais trabalhadores registados na segurança social como trabalhadores da insolvente, ainda de todos os movimentos, financeiros, bancários, documentos bancários, contas bancárias de origem e destino, dos seus pagamentos, se possível desde o ano de 2012 à atualidade, c) Documentos sobre pagamento e quem as pagou das contribuições e retenções referentes à emissão dos referidos recibos de remunerações, e d) Documentos do pagamento dos seguros, apólices de acidentes de trabalho e de quem os pagou.
m) Em resposta, o Dr. GG, Contabilista Certificado, juntou aos autos recibos de salários desde Junho de 2013 até Agosto de 2022.
n) De entre os vários recibos por aquele juntos resultam os recibos de vencimento do aqui recorrente, conforme resulta dos requerimentos juntos sob as referências 34212128, 34212150, 34212167, 34212174, 34212209, 34212301, 34212340, 34212354, 34212379, 34212364, 34212392, 34212421 e 34212407.
o) A própria Segurança Social, a 5 de Dezembro de 2022, sob a referência citius 34060012 juntou aos autos o extrato de remunerações do aqui recorrente desde Fevereiro de 2001.
p) Do libelo inicial resulta que o recorrente foi admitido ao serviço da sociedade insolvente em Maio de 1998 e dos autos resultam extratos de remuneração desde Fevereiro de 2001 pelo que, pelo menos desde esta data, ter-se-á que considerar a existência do vínculo laboral.
q) Pelo que, e s.m.o., existe nos autos prova documental bastante à concretização da relação laboral que existia entre o recorrente e a sociedade insolvente nos termos do disposto no artigo 12.º do Código de Trabalho.
r) À contrario do considerado pelo Tribunal a quo, a prova documental junta é bastante.
s) E a mesma prova documental que serviu para julgar provado e verificado o valor peticionado pelos demais co-autores nos presentes autos e nos demais apensos tem de servir para julgar como provado o crédito do aqui recorrente.
t) Não se trata apenas dos recibos de vencimento, mas também dos extratos de remuneração da SS, das folhas de férias dos trabalhadores, dos comprovativos de transferência da remuneração devida, dos recibos de vencimento, simulações de compensação por cessação de contrato de trabalho, detalhes dos vínculos dos trabalhadores, IES da sociedade insolvente, extrato da declaração das remunerações dos trabalhadores da sociedade insolvente, transferências bancárias, folhas de férias dos trabalhadores, vínculo laboral declarado no âmbito do PER que correu termos sob o n.º 3529/17.8T8STS no Juiz 3 do Juízo de Comércio de Santo Tirso e contrato de prestação de prestação de serviços com exclusividade celebrado a 29 de Agosto de 2014 entre a sociedade insolvente e a “D... Ld.ª”.
u) Ora, resultando da referida prova documental que o aqui recorrente era efectivamente trabalhador da sociedade insolvente desde, pelo menos, Fevereiro de 2001 (conforme extrato de remunerações da SS), relação laboral que se mantinha à data da apresentação da acção de VUC e que, segundo recibos, extratos de remuneração e transferências, o recorrente auferia € 2.500,00 mensais, segundo o princípio da igualdade, ter-se-á que considerar o recorrente como trabalhador da sociedade insolvente.
v) Consequentemente, terá de julgar-se como provada a matéria de facto considerada pelo Tribunal a quo como não provada sob a alínea B), factos 1 a 8, rectificando-se o ponto 2 relativamente à data que passará a ser Fevereiro de 2001, conforme extratos de remuneração da SS.
w) E, nos termos do disposto no artigo 366.º do Código do Trabalho, ter-se-á que julgar como provado que à data da apresentação da acção de verificação ulterior de créditos o recorrente é credor da insolvente no valor de € 36.069,44 – sendo que relativamente ao demais valor peticionado não existe efectivamente prova documental para além de uma declaração.
x) Mais ter-se-á que julgar provado que no âmbito da actividade desenvolvida pela sociedade insolvente o recorrente foi admitido ao seu serviço mediante contrato de trabalho em Fevereiro de 2001 (e não Maio de 1998) – conforme extratos de remuneração juntos pela própria SS, recibos de vencimento e transferências juntas aos autos pelo Contabilista Certificado, Dr. GG.
y) Os mesmos documentos demonstram que o vínculo laboral se mantinha à data de apresentação da acção de verificação ulterior de créditos.
z) Os mesmos documentos demonstram que o recorrente auferia um vencimento de € 2.500,00 pelo que, nos termos do disposto no artigo 366.º do Código de Trabalho: é o mesmo credor do valor, a título de indemnização, de € 24.819,44, a este valor acrescem os proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal devidos no ano da cessação, calculados em € 6.250,00; e ainda, pela violação do aviso prévio legalmente previsto, o valor de € 5.000,00 – sublinhando que a nenhum trabalhador foi comunicada pelo Sr. Administrador de Insolvência a cessação do respectivo contrato de trabalho.
aa) Ora, a existência do contrato de trabalho presume-se desde que se verifiquem algumas das circunstâncias elencadas no nº 1, do artigo 12º, do Código de Trabalho de 2009.
bb) Presunção em benefício exclusivo do trabalhador, uma vez que, quem tem a seu favor a presunção legal, escusa de provar o facto a que ela conduz, por força do estatuído no nº 1 do artigo 350º, do Código Civil.
cc) E presunção que, s.m.o., não foi ilidida».
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Conclusões formuladas por C... Dac:
«I. Na sentença recorrida, o Tribunal a quo julgou verificados os créditos dos trabalhadores HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP e QQ, atribuindo-lhes o privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais os trabalhadores prestaram a sua atividade.
II. Salvo o devido respeito que nos merece, laborou em erro o Tribunal a quo ao proferir a douta decisão recorrida.
III. Desde logo importa referir que a sentença recorrida não é clara quando elenca os factos provados dos factos não provados, na medida em que elenca certos factos nos factos provados e nos não provados, o que configura desde logo uma causa de nulidade da sentença, ao abrigo do disposto na al. c) do art. 615.º do CPC.
IV. Por outro lado, a Tribunal a quo considerou os créditos dos autores como créditos laborais, quando, resulta dos autos e foi dado como provado que os mesmos trabalharam por conta e sob a direção de outras empresas, nomeadamente da D..., S.A. E..., S.A. e F..., S.A., situação perdura há mais de 7 anos.
V. Daqui resulta que esta situação extravasa completamente o regime da “cedência ocasional” prevista no art. 288.º e seguintes do Código do Trabalho, cuja licitude está dependente da verificação cumulativa de várias condições, nomeadamente, que o trabalhador concorde com a cedência e que a duração da cedência não exceda cinco anos – o que não sucede no caso em análise.
VI. Entendeu o Sr. Juiz do Tribunal a quo “no caso em apreço foi produzida prova cabal e segura de que os trabalhadores continuaram a trabalhar nas mesmas instalações da sociedade insolvente (imóveis - armazéns, descritos como Lote ..., em Lugar ..., Trofa, lote ..., Lugar ..., Trofa, e Lote ..., freguesia ...), recebendo ordens do mesmo “patrão” de sempre – Sr. RR”, pelo que não se percebe como podem os trabalhadores “cedidos” continuar a trabalhar nas mesmas instalações da cessionária – imóveis que, por seu turno, encontravam-se arrendados a outras sociedades – a receber vencimentos da insolvente.
VII. Recorde-se que os autores não reclamaram os seus créditos aquando da apresentação do PER da empresa.
XIII. Estas e muitas outras questões levam necessariamente a afastar o regime da cedência ocasional de trabalhadores, daí decorrendo a impossibilidade de serem verificados os créditos peticionados pelos autores.
XIV. Verifica-se, portanto, que a decisão proferida não vai de encontro à matéria dada como provada e, como tal, os créditos dos autores nunca poderiam ter sido verificados no âmbito da insolvência da A....
XV. No que se refere ao privilégio imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos nos autos atribuído aos credores, o artigo 333º, nº1, alínea b) do CT, é claro ao referir que este abrange todos os imóveis da entidade patronal que estejam afetos à sua atividade empresarial e, à qual, os trabalhadores estejam funcionalmente ligados, independentemente da localização do seu posto de trabalho.
XVI. No entanto, ficam afastados de tal privilégio todos os imóveis pertencentes ao empregador, que estejam arrendados e/ou que tenham sido afetados a quaisquer outros fins, diversos da sua específica atividade económico/empresarial.
XVII. Resulta de forma inequívoca, nos autos, que os imóveis apreendidos se encontravam arrendados a outras sociedades, pelo que, naturalmente, não estavam afetos à atividade da empresa, não podendo, portanto, ser reconhecido aos autos o privilégio imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos.
XVIII. Por outro lado, os autores, não lograram provar em que imóvel prestavam a sua atividade, sendo que podiam, inclusivamente nem sequer exercer a sua atividade num deles; pelo que não lhes poderá ser reconhecido, sem mais, um crédito beneficiando do privilégio imobiliário especial.
XIX. Para que tal privilégio imobiliário especial pudesse ser reconhecido, teria de resultar, dos contratos de trabalho juntos pelos autores, o concreto local em que os trabalhadores exerciam a sua atividade – cfr. n.° 1 do art. 342.° do CC, segundo o qual, cabe àquele que invocar um direito fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
XX. Para que o crédito do trabalhador goze de um privilégio imobiliário especial, aquele necessita, de alegar e demonstrar que exercia a sua atividade num determinado imóvel, pertencente ao Insolvente, o que não fizeram e não pode agora ser suprido.
XXI. Motivo pelo qual ao crédito dos autores não pode ser atribuído o privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333.° do Código do Trabalho.
XXII. A (errada) conclusão do Tribunal a quo esvazia completamente o princípio constitucional da segurança jurídica, permitindo que um credor garantido por hipoteca registada possa ver o seu crédito ceder perante terceiros (trabalhadores), que nada provaram, pelo que deve a decisão do Tribunal a quo ser revogada.»
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Não foram apresentadas respostas a estas alegações.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, são as seguintes:
1. Recurso interposto por B... Company: saber se os créditos dos autores AA e BB têm privilégio imobiliário geral sobre os imóveis apreendidos para a massa insolvente, por aí terem desempenhado a sua actividade;
2. Recursos interpostos por EE e DD: saber se ficou demonstrada a sua qualidade de trabalhadores da insolvente e se, por conseguinte, devem ser reconhecidos os créditos por si reclamados.
3. Recurso interposto por C... Dac: saber os créditos reclamados pelos autores AA e BB devem ser julgados verificados, por se ter demonstrado a sua qualidade de trabalhadores da insolvente; no caso afirmativo, se esses créditos têm privilégio imobiliário geral sobre os imóveis apreendidos para a massa insolvente, por aí terem desempenhado a sua actividade os respectivos titulares.
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II. Fundamentação
A. Factos Provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1) A sociedade insolvente tem por objeto social a importação, exportação, transformação e comercialização de aços inoxidáveis.
2) A sociedade A... LDA foi declarada insolvente por sentença proferida em 05.06.2019 e, tendo apresentado embargos à insolvência, foram os mesmos considerados improcedentes por sentença proferida em 15.05.2020, decisões que se mostram transitadas em julgado.

Autora AA
1. À data da apresentação da presente verificação ulterior de créditos a Autora é credora da insolvente, sob condição, no valor de € 18.544,17 (dezoito mil, quinhentos e quarenta e quatro euros e dezassete cêntimos).
2. No âmbito da actividade desenvolvida pela insolvente, a Autora foi admitida ao seu serviço mediante contrato de trabalho verbal a 3 de setembro de 1999.
3. O referido contrato de trabalho mantém-se em vigor na presente data.
4. A Autora aufere um vencimento de € 1.050,00 (mil e cinquenta euros) e subsídio de alimentação no valor de € 7,63 (sete euros e sessenta e três cêntimos), sendo credora, sob condição e a título de indemnização, do valor de € 13.819,17 (treze mil, oitocentos e dezanove euros e dezassete cêntimos) – cfr. doc. n.º 1 e 2.
5. A este valor acrescerão os proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal devidos no ano da cessação, calculados em € 2.625,00 (dois mil, seiscentos e vinte e cinco euros).
6. Acrescerá ainda, em caso de violação do aviso prévio legalmente previsto, o pagamento do valor de € 2.100,00 (dois mil e cem euros).
7. A credora presta o seu serviço nos seguintes imóveis, descritos como Lote ..., em Lugar ..., Trofa, com a descrição predial ..., lote ..., Lugar ..., Trofa, com a descrição predial ... e ainda na fração autónoma designada pela letra “A” Lote ..., freguesia ..., concelho da Trofa, descrito na Conservatória de Registo Predial da Trofa sob o n.º ... da referida freguesia.

Autor BB
1. À data da apresentação da presente verificação ulterior de créditos o Autor é credor da insolvente, sob condição, no valor de € 30.104,17 (trinta mil, cento e quatro euros e dezassete cêntimos).
2. No âmbito da actividade desenvolvida pela insolvente, o Autor foi admitido ao seu serviço mediante contrato de trabalho verbal a 1 de abril de 1993.
3. O referido contrato de trabalho mantém-se em vigor na presente data.
4. O Autor aufere um vencimento de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros) e subsídio de alimentação no valor de € 7,63 (sete euros e sessenta e três cêntimos), sendo o mesmo credor, sob condição e a título de indemnização, do valor de € 24.479,17 (vinte e quatro mil, quatrocentos e setenta e nove euros e dezassete cêntimos) – cfr. doc. n.º 1.
5. A este valor acrescerão os proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal devidos no ano da cessação, calculados em € 3.125,00 (três mil, cento e vinte e cinco euros).
6. Acrescerá ainda, em caso de violação do aviso prévio legalmente previsto, o pagamento do valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
7. Pese embora a confissão de dívida expressa pela insolvente, esta nunca liquidou qualquer prestação a que se obrigou por documento escrito.
8. O credor presta o seu serviço nos seguintes imóveis, descritos como Lote ..., em Lugar ..., Trofa, com a descrição predial ..., lote ..., Lugar ..., Trofa, com a descrição predial ... e ainda na fração autónoma designada pela letra “A” Lote ..., freguesia ..., concelho da Trofa, descrito na Conservatória de Registo Predial da Trofa sob o n.º ... da referida freguesia.

Das contestações apresentadas pela massa insolvente de A... LDA
1. Os Autores estiveram a trabalhar para as seguintes sociedades comerciais, D..., S.A. E..., S.A. e F..., S.A., no âmbito da cedência de trabalhadores por parte da sociedade insolvente.
2. Em que o Sr. RR, que se mantém como gerente/administrador de facto, quer da insolvente A... LDA, quer de D..., S.A., E..., S.A e F..., S.A. é pessoa diferente daquelas entidades e não é ele que é a entidade empregadora é a empresa;
3. Desde a constituição da D..., S.A. em 24-07-2014, que esta entidade se substituiu à insolvente A... LDA, adquirindo máquinas e materiais, ficando com os trabalhadores da insolvente, no âmbito da cedência de trabalhadores por parte da sociedade insolvente, manufaturando, vendendo produtos e faturando em nome da D..., S.A., pagando as remunerações aos trabalhadores,
4. E onde o Sr. RR sempre foi o gerente de facto, assim como surge como gerente registado daquela entidade, situação que sucessivamente veio a ocorrer com E..., S.A. e ultimamente com F..., S.A. e, que perdura há mais de 7 (sete) anos.

Das contestações da credora B... Company
1. Os Autores não cuidaram de reclamar os créditos nos dois PER que correram termos relativamente à sociedade Devedora.
2. Tais créditos não se encontram contabilizados nas contas da sociedade insolvente.
3. Nenhum dos créditos laborais peticionados pelos Autores foi reclamado no âmbito dos dois PER da sociedade insolvente.
4. As declarações de dívida e acordos de pagamento foram assinadas apenas 5 dias depois de a sociedade insolvente ter recebido a carta de interpelação, enviada pela credora B... Company, nos termos do artigo 219.º do CIRE, na qual dava conta do incumprimento do 2.º PER.
5. O Autor BB alega ter sido inicialmente trabalhador da sociedade comercial G..., Lda., desde o dia 01.04.1993, tendo alegadamente celebrado um contrato de trabalho verbal, que segundo a mesma, se mantém em vigor na presente data.
6. No processo de insolvência da G..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Santo Tirso, o Autor não consta do mapa de rateio, pelo que apenas se pode concluir que nem sequer reclamou os seus créditos nos referidos autos.
7. A Autora CC alega ter sido contratada para prestar serviços na Insolvente, mediante contrato de trabalho a 3 de dezembro de 2015.
8. Referindo também que o contrato de trabalho se iniciou em 3 de setembro de 1999, a mesma não consta da lista de 22 trabalhadores que a sociedade insolvente apresentou no Processo Especial de Revitalização, processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 3, sob o n.º de processo 3529/17.8T8STS.
9. A Autora sendo esposa do legal representante da Insolvente, RR, os créditos devem ser considerados subordinados, por se tratar de pessoa especialmente relacionada com a sociedade devedora.
10. A declaração de dívida e acordo de pagamento assinado entre a sociedade insolvente e o Autor DD foi assinada apenas 5 dias depois de a sociedade Insolvente ter recebido a carta de interpelação, enviada pela Credora, nos termos do artigo 219.º do CIRE, na qual dava conta do incumprimento do 2.º PER.
11. Existindo uma relação familiar que o liga ao gerente da Insolvente, RR, deverão os créditos ser considerados subordinados, por se tratar de pessoa especialmente relacionada com a sociedade devedora.
12. Tendo sido o Autor o credor que assinou a declaração inicial para permitir a admissão do PER iniciado por RR e pela esposa, CC, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão – Juiz 1, sob o n.º de processo 1381/21.8T8VNF.
13. Os próprios Devedores RR e CC indicaram o nome do Autor como um dos principais credores, com um alegado crédito de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).
14. O Autor não reclamou os seus créditos (e, portanto, não foram reconhecidos pelo Sr. Administrador Judicial Provisório), como não impugnou sequer a lista provisória de credores apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência.
15. Conforme resulta da certidão do registo comercial junta pela Credora na petição inicial, verifica-se que o Credor adquiriu quotas da sociedade devedora.
16. Também por esta via o crédito reclamado pelo Autor, a ser reconhecido, deverá sê-lo como crédito subordinado, não beneficiando de qualquer privilégio.
17. O Autor EE tem uma relação familiar que o liga ao gerente da Insolvente, RR, partilhando inclusivamente apelidos com a esposa de RR, também ela Autora no âmbito dos presentes autos – CC.
18. Também por esta via o crédito reclamado pelo Autor, a ser reconhecido, deverá sê-lo como crédito subordinado, não beneficiando de qualquer privilégio.
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B. Factos Não Provados
O Tribunal de primeira instância julgou não provados os seguintes os factos:

Autor BB
À data da apresentação da presente verificação ulterior de créditos o Autor é credor da insolvente, e, sem condição, no valor de € 55.139,60 (cinquenta e cinco mil, cento e trinta e nove euros e sessenta cêntimos).

Autora CC
1. À data da apresentação da presente verificação ulterior de créditos a Autora é credora da insolvente, sob condição, no valor de € 4.105,63 (quatro mil, cento e cinco euros e sessenta e três cêntimos).
2. No âmbito da actividade desenvolvida pela insolvente, a Autora foi admitida ao seu serviço mediante contrato de trabalho a 3 de dezembro de 2015.
3. O referido contrato de trabalho mantém-se em vigor na presente data.
4. A Autora aufere um vencimento de € 635,00 (seiscentos e trinta e cinco euros) sendo a mesma credora, sob condição e a título de indemnização, do valor de € 1.248,13 (mil, duzentos e quarenta e oito euros e treze cêntimos), nos termos do disposto no artigo 366.º do Código do Trabalho – cfr. doc. n.º 1.
5. A este valor acrescerão os proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal devidos no ano da cessação, calculados em € 1.587,50 (mil, quinhentos e oitenta e sete euros e cinquenta euros).
6. Acrescerá ainda, em caso de violação do aviso prévio legalmente previsto, o pagamento do valor de € 1.270,00 (mil, duzentos e setenta euros).
7. A credora presta o seu serviço nos seguintes imóveis, descritos como Lote ..., em Lugar ..., Trofa, com a descrição predial ..., lota 44, Lugar ..., Trofa, com a descrição predial ... e ainda na fração autónoma designada pela letra “A” Lote ..., freguesia ..., concelho da Trofa, descrito na Conservatória de Registo Predial da Trofa sob o n.º ... da referida freguesia.

Autor DD
1. À data da apresentação da presente verificação ulterior de créditos o Autor é credor da insolvente, sob condição, no valor de € 36.069,44 (trinta e seis mil, sessenta e nove euros e quarenta e quatro cêntimos) e, sem condição, no valor de € 271.292,34 (duzentos e setenta e um mil, duzentos e noventa e dois euros e trinta e quatro cêntimos).
2. No âmbito da actividade desenvolvida pela insolvente, o Autor foi admitido ao seu serviço mediante contrato de trabalho verbal a 28 de maio de 1998.
3. O referido contrato de trabalho mantém-se em vigor na presente data.
4. O Autor aufere um vencimento de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) e subsídio de alimentação no valor de € 7,63 (sete euros e sessenta e três cêntimos), sendo o mesmo credor, sob condição e a título de indemnização, do valor de € 36.069,44 (trinta e seis mil, sessenta e nove euros e quarenta e quatro cêntimos) – cfr. doc. n.º 1.
5. A este valor acrescerão os proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal devidos no ano da cessação, calculados em € 6.250,00 (seis mil duzentos e cinquenta euros).
6. Acrescerá ainda, em caso de violação do aviso prévio legalmente previsto, o pagamento do valor de € 5.000,00 (cinco mil euros).
7. Pese embora a confissão de dívida expressa pela insolvente, esta nunca liquidou qualquer prestação a que se obrigou por documento escrito.
8. O credor presta o seu serviço nos seguintes imóveis, descritos como Lote ..., em Lugar ..., Trofa, com a descrição predial ..., lota 44, Lugar ..., Trofa, com a descrição predial ... e ainda na fração autónoma designada pela letra “A” Lote ..., freguesia ..., concelho da Trofa, descrito na Conservatória de Registo Predial da Trofa sob o n.º ... da referida freguesia.

Autor EE
1. À data da apresentação da presente verificação ulterior de créditos o Autor é credor da insolvente, sob condição, no valor de € 13.680,00 (treze mil, seiscentos e oitenta euros) e, sem condição, no valor de € 58.441,98 (cinquenta e oito mil, quatrocentos e quarenta e um euros e noventa e oito cêntimos).
2. No âmbito da actividade desenvolvida pela insolvente, o Autor foi admitido ao seu serviço mediante contrato de trabalho verbal a 1 de maio de 1999.
3. O referido contrato de trabalho mantém-se em vigor na presente data.
4. O Autor aufere um vencimento de € 760,00 (setecentos e sessenta euros) e subsídio de alimentação no valor de € 7,63 (sete euros e sessenta e três cêntimos), sendo o mesmo credor, sob condição e a título de indemnização, do valor de € 10.260,00 (dez mil, duzentos e sessenta euros) – cfr. doc. n.º 1.
5. A este valor acrescerão os proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal devidos no ano da cessação, calculados em € 1.900,00 (mil e novecentos euros).
6. Acrescerá ainda, em caso de violação do aviso prévio legalmente previsto, o pagamento do valor de € 1.520,00 (mil quinhentos e vinte euros).
7. Pese embora a confissão de dívida expressa pela insolvente, esta nunca liquidou qualquer prestação a que se obrigou por documento escrito.
8. O credor presta o seu serviço nos seguintes imóveis, descritos como Lote ..., em Lugar ..., Trofa, com a descrição predial ..., lota 44, Lugar ..., Trofa, com a descrição predial ... e ainda na fração autónoma designada pela letra “A” Lote ..., freguesia ..., concelho da Trofa, descrito na Conservatória de Registo Predial da Trofa sob o n.º ... da referida freguesia.

Das contestações apresentadas pela massa insolvente de A... LDA
Os Autores estiveram a trabalhar sob a direção, autoridade, organização desde a constituição das seguintes sociedades comerciais, D..., S.A. E..., S.A. e F..., S.A.
Os Autores, se trabalharam foram em local determinado por estas empresas, com equipamentos e instrumentos de trabalho que a A... LDA, declara terem sido vendidos a D..., S.A., depois desconhecendo-se, se os mesmos, foram alienados aquelas outras, entidades estas que determinam os horários de trabalho e ainda são estas entidades que pagam as remunerações, como contrapartida do trabalho prestado, pelo que o Autor comparticipa, sem o Autor as empresas identificadas no § 4 das questões prévias não produziam, sabendo o Autor desta fraude, se manteve a cooperar.
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C. Fundamentação de Direito
1. Apelação interposta por B... Company
A recorrente B... Company veio insurgir-se contra a graduação dos créditos reclamados por AA e BB como dotados de privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333.º, n.º 1, do CT, alegando, em essência, que tal privilégio abrange apenas o estabelecimento onde os trabalhadores exerceram a sua actividade, não se estendendo a outros, designadamente «os imóveis onde os trabalhadores prestaram trabalho destinados a transação», que competia aos trabalhadores alegar e demonstrar que exerciam a sua actvividade profissional num imóvel específico pertencente à entidade patronal, para que pudesse ser verificada a existência do referido privilégio imobiliário, e que os referidos autores não fizeram essa prova, até porque não trabalhavam para a insolvente A..., por força da sua cedência a outras entidades empresariais.
Contudo, resulta da matéria de facto julgada provada, designadamente do ponto 7 relativo à autora AA e do ponto 8 relativo ao autor BB, que estes credores prestam o seu serviço nos três imóveis apreendidos para a massa insolvente, sem que a recorrente tenha impugnado esta ou qualquer outra factualidade em termos processualmente válidos e eficazes, nos termos previstos no artigo 640.º do CPC.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está expressamente consagrada e regulada em diversas disposições do Código de Processo Civil actualmente vigente, nomeadamente nos seus artigos 640.º, n.º 1, e 662.º. n.º 1. Resulta do primeiro destes preceitos que o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No caso concreto, ainda que admitíssemos que a recorrente quis impugnar a decisão sobre a matéria de facto – o que suscita sérias dúvidas, sendo certo que, não sendo essa pretensão manifestada de forma inequívoca, não cabe ao Tribunal ad quem substituir-se ao recorrente – e que especificou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, maxime os acima referidos, sempre teríamos de concluir que não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, bem como a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Nestes termos, sempre se imporia a rejeição de tal impugnação da decisão da matéria de facto.
Assim, é bom de ver que a factualidade julgada provada faz cair pela base toda a argumentação expendida pela recorrente, pois os recorridos efectivamente lograram provar, como lhes competia, que exerciam a sua actividade laboral nos três imóveis apreendidos para a massa involvente, razão pela qual os seus créditos beneficiam de privilégio imobiliário sobre esses imóveis, nos termos do artigo 333.º, n.º 1, do CT.
Para além deste, nenhum outro argumento foi aduzido pela recorrente que importe analisar. Poderia apenas equacionar-se se a recorrente pretendeu impugnar que os recorridos sejam ou tivessem sido trabalhadores da sociedade insolvente e, por essa via, impugnar a própria existência dos créditos reclamados, nomeadamente quando afirma, na sua alegação, que aqueles credores não trabalhavam para a insolvente A..., por força da sua cedência a outras entidades empresariais. Cremos que esta alegação não visou questionar a manutenção do vínculo laboral entre os reclamantes e a insolvente, mas apenas que aqueles não exerciam a sua actividade em qualquer estabelecimento desta. Em todo o caso, uma tal impugnação do vínculo laboral sempre estaria votada ao fracasso, tendo em conta a matéria de facto julgada provada, designadamente a constante dos pontos 2 e 3 relativos à autora AA e dos pontos 2 e 3 relativos ao autor BB (dos quais decorre que estes foram admitidos ao serviço da sociedade insolvente em 03.09.1999 e 01.04.1993, respectivamente, e que tais contratos se mantêm em vigor), e a falta de impugnação processualmente válida e eficaz da decisão sobre a matéria de facto, conforme já foi referido.
Pelo exposto, é manifesta a improcedência do recurso interposto por B... Company, pelo que esta deverá esta suportar as respectivas custas, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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2. Apelação interposta por C... Dac
a. A propósito deste recurso, uma questão prévia se impõe analisar.
C... Dac dirigiu o requerimento em que interpõe o recurso ao presente apenso O. Contudo, a alegação que juntou com esse requerimento vem dirigidas ao apenso F e aí são identificados como recorridos HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP e QQ, os quais têm a posição de autores nesse apendo F, não tendo qualquer intervenção no presente apenso O. Igual identificação consta das conclusões sintetizadas que apresentou posteriormente a convite do Tribunal, embora estas venham dirigidas ao O.
Não obstante, e ainda que a alegação apresentada neste apenso reproduza toda a argumentação aduzida no recurso anteriormente apresentado no apenso F, como se pode confirmar pela consulta deste, é manifesto que a recorrente quis deduzir ambos os recursos, com a mesma argumentação, devendo-se a mero lapso – a que não terá sido alheio o uso de meios informáticos – a indicação do nome dos recorridos do apenso F na alegação apresentada neste apenso O.
Nos termos do artigo 249.º do CC «[o] simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação deste».
A jurisprudência, com o apoio da doutrina, tem entendido que esta disposição legal consagra um princípio geral, aplicável, a todos os actos judiciais ou das partes. Como se diz no Ac. STJ de 8/6/78 (publicado e anotado por Vaz Serra na RLJ, Ano 111, n.º 3633, p. 382) «Pode assentar-se (...) com relativa segurança, que essa disciplina jurídica se aplica não só aos erros de escrita cometidos em declarações negociais, como aos que se verifiquem em declarações enunciativas, como são as que as partes produzem no decurso do processo ...».
A razão de ser deste entendimento radica no seguinte: o erro ostensivo numa declaração negocial não implica a sua anulação, mas apenas a sua rectificação, pois esse erro e o modo de o corrigir, revelando-se no próprio contexto da declaração ou pelas circunstâncias em que ela é feita, é facilmente detectado pelo declaratário. Mas se assim é, a solução legal deve aplicar-se a todos os casos em que se verifiquem os seus pressupostos. Cfr. Vaz Serra, na anotação ao acórdão supra citado.
Este era já o entendimento pacífico na vigência do artigo 665.º do CC de 1867, não obstante a sua redacção mais lacónica.
Assim, o erro de escrita ou de cálculo não terá outras consequências além da sua rectificação. Essencial é, como vimos, que o erro seja manifesto, ostensivo ou, nos termos da lei, resulte do próprio contexto da declaração ou das circunstâncias em que esta é feita.
À mesma solução chegaríamos através do artigo 295º do CC. Aí se diz que «[a]os actos jurídicos que não sejam negócios jurídicos são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente», o capítulo dedicado, precisamente, ao negócio jurídico. Ora, os actos processuais praticados pelas partes são, indubitavelmente, actos jurídicos.
Com a revisão do CPC de 2013, a possibilidade de rectificação de erros de cálculo ou de escrita das peças processuais apresentadas pelas partes passou a estar expressamente consagrada no artigo 146.º que, sob a epígrafe «Suprimento de deficiências formais de atos das partes», dispõe assim:
«1 - É admissível a retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada.
2 - Deve ainda o juiz admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa.»
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, em anotação a esta norma, realçam que se trata «de um preceito novo pautado, como outros do CPC de 2013 (v.g. arts. 6.º, n.º 2, e 193.º, n.º 3), pelo objectivo de evitar, tanto quanto possível, que aspectos meramente técnicos ou formais possam impedir ou condicionar a apreciação do mérito da causa e a justa composição do litígio». Logo a seguir acrescentam os mesmos autores que «[o] n.º 1 veio consagrar expressamente a solução (sustentada numa jurisprudência constante) que já vinha sendo aplicada por referência ao disposto no art. 249.º do CC, sendo critério fundamental que o erro de cálculo ou de escrita se revele no contexto da peça processual, seja pelo seu próprio teor, seja pelo teor de peças ou documentos com que tenha conexão» (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º, Coimbra 2019, p. 175).
Nestes termos, importa rectificar o lapso supra apontado, considerando dirigidas a este apenso, em que foram julgados verificados os créditos dos autores AA e BB, a alegação e as conclusões a ele juntas.
b. A recorrente começou por arguir a nulidade da decisão da sentença recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 615.º, al. c), do CPC, alegando que a mesma «não é clara quando elenca os factos provados dos factos não provados, na medida em que elenca certos factos nos factos provados e nos não provados».
Nos termos daquela norma, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. No caso dos autos, a recorrente parece basear-se nesta segunda hipótese. Porém, não esclarece quais são os factos que, no seu entender, foram simultaneamente julgados provados e não provados.
De todo modo, e ainda que a decisão recorrida não prima pela clareza, não vislumbramos aí qualquer contradição susceptível de a tornar ininteligível ou justificativa da sua anulação ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, o que este Tribunal sempre poderia determinar ex officio.
Admite-se que a recorrente pudesse querer apontar alguma contradição entre os pontos 1 e 3 dos factos julgados provados a respeito das contestações apresentadas pela massa insolvente e os factos julgados não provados a respeito das mesmas contestações. Mas tal contradição é apenas aparente.
Recordemos esses factos.
Na decisão recorrida foi julgado provado que:
1. Os Autores estiveram a trabalhar para as seguintes sociedades comerciais, D..., S.A. E..., S.A. e F..., S.A., no âmbito da cedência de trabalhadores por parte da sociedade insolvente.
3. Desde a constituição da D..., S.A. em 24-07-2014, que esta entidade se substituiu à insolvente A... LDA, adquirindo máquinas e materiais, ficando com os trabalhadores da insolvente, no âmbito da cedência de trabalhadores por parte da sociedade insolvente, manufaturando, vendendo produtos e faturando em nome da D..., S.A., pagando as remunerações aos trabalhadores.
Na mesma decisão foi julgado não provado que:
Os Autores estiveram a trabalhar sob a direção, autoridade, organização desde a constituição das seguintes sociedades comerciais, D..., S.A. E..., S.A. e F..., S.A.
Os Autores, se trabalharam foram em local determinado por estas empresas, com equipamentos e instrumentos de trabalho que a A... LDA, declara terem sido vendidos a D..., S.A., depois desconhecendo-se, se os mesmos, foram alienados aquelas outras, entidades estas que determinam os horários de trabalho e ainda são estas entidades que pagam as remunerações, como contrapartida do trabalho prestado, pelo que o Autor comparticipa, sem o Autor as empresas identificadas no § 4 das questões prévias não produziam, sabendo o Autor desta fraude, se manteve a cooperar.
Afirmar que os Autores estiveram a trabalhar para as sociedades D..., E... e F... não é o mesmo que afirmar que o fizeram sob a direcção, autoridade e organização destas. E foi, precisamente, esta distinção que o Tribunal a quo pretendeu evidenciar, como é corroborado pela motivação da decisão da matéria de facto, o que justifica que a mesma seja aqui generosamente extractada:
«A nuance entre os factos dados como provados e não provados no que concerne à contestação apresentada pela Ré massa insolvente, prende-se com a questão da cedência de trabalhadores no âmbito do contrato de prestação de serviços que desenvolveremos mais à frente.
(…)
Ultrapassado este primeiro grupo de factos, restava a vexata quaestio (que perpassou por toda a tramitação dos autos e pelo julgamento), a qual se prendia com o facto de os autores AA e BB terem passado ou estado a trabalhar sob a direção, autoridade, organização desde a constituição das seguintes sociedades comerciais, D..., S.A. E..., S.A. e F..., S.A.
Cabendo o ónus de prova desta alegação à Ré massa insolvente, quanto a tal matéria, para além de toda a prova testemunhal (o depoimento da Sra. AI SS e dos Srs. AI, dos contabilistas certificados e ROCs não foram concludentes neste âmbito) e por declarações de parte prestados (estes unânimes no sentido contrário), há assim que ponderar, de forma objetiva, o contrato de prestação de serviços com exclusividade entre a “D..., Lda” e a insolvente, celebrado em 29.08.2014 – junto em audiência de 23.03.2023 pela testemunha GG.
Analisado tal contrato de prestação de serviços, o mesmo pressupunha (abrangia) a cedência dos trabalhadores da sociedade insolvente à D..., Lda”. Tal cedência de trabalhadores, consiste na disponibilização temporária de trabalhador, pelo empregador, para prestar trabalho a outra entidade, a cujo poder de direção aquele fica sujeito, mantendo-se o vínculo contratual inicial.
Para tal cedência ser válida, é necessário:
a) O trabalhador esteja vinculado ao empregador cedente por contrato de trabalho sem termo;
b) A cedência ocorra entre sociedades coligadas, em relação societária de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, ou entre empregadores que tenham estruturas organizativas comuns;
c) O trabalhador concorde com a cedência;
d) A duração da cedência não exceda um ano, renovável por iguais períodos até ao máximo de cinco anos.
Ora, se foi feita prova de que o contrato existe, foi assinado pelas duas sociedades e que os autores passaram a trabalhar para a sociedade em causa, outrossim, não foi feita prova que os trabalhadores tenham tido efetivo conhecimento do contrato e aceite tal cedência.
(…)
Note-se que no caso em apreço, como vimos, foi produzida prova cabal e segura de que os trabalhadores AA e BB continuaram a trabalhar nas mesmas instalações nas mesmas instalações da sociedade insolvente (imóveis - armazéns, descritos como Lote ..., em Lugar ..., Trofa, lote ..., Lugar ..., Trofa, e Lote ..., freguesia ...), recebendo ordens do mesmo “patrão” de sempre – Sr. RR, mantiveram e recebiam os recibos de vencimento em nome da sociedade insolvente e mantiveram ao longo de todo o percurso profissional em causa (…) o vínculo à Segurança Social perante a sociedade insolvente.
Nessa medida, e aceitando o Tribunal que tal “cedência” – na aceção empírica e não na aceção jurídica - fosse do conhecimento dos autores (como acabaram por admitir em sede de declarações de parte), o Tribunal não pode deixar de constatar que o vínculo jurídico subordinado se manteve em relação à sociedade insolvente.
No mais, o Tribunal não olvida que parte dos vencimentos foram pagos por outras entidades e até mesmo por familiares do Sr. RR (vd. transferências bancárias juntas aos autos) que não a sociedade insolvente e que tal facto era do conhecimento dos autores, conforme indicado em audiência, mas tal situação, dissociada de outros elementos probatórios, não equivale à perda do vinculo laboral com a entidade patronal – sociedade insolvente.
(…)
Atentas as relações de grupo e dos gerentes de direito e de facto nas diferentes sociedades, é prática corrente, como sucedeu no caso em presença, que os trabalhadores AA (esta embora trabalhando nos serviços administrativos, não foi feita prova que tivesse participado na decisão da cedência ou tivesse concordado com ela) e BB tivessem conhecimento que algo se passava, até porque nas instalações em causa, surgiram outras empresas, com os respetivos logos nas instalações (armazéns onde exerciam funções) - D..., S.A. E..., S.A. e F..., S.A. – tanto mais que as encomendas e obras passaram a ser feitas e faturadas por tais empresas, utilizando a mão de obra dos autores, mas tais factos, face ao apurado – os recibos de vencimento em nome da sociedade insolvente, o vínculo à Segurança Social perante a sociedade insolvente e as ordens emanadas da mesma entidade patronal – Sr. RR – não significam que os autores estivessem a trabalhar sob a direção e autoridade das empresas terceiras.
Por outro lado, também não ficou provado que os autores AA e BB estivessem em conluio com a entidade patronal, mormente com o Sr. RR, e que por essa via, tenham de ser “arrastados” para a constituição das novas sociedades, mesmo que criadas para fazer face às dificuldades económicas – em concreto às penhoras as contas bancárias da sociedade insolvente que ocorreram a partir de 2009.
Mesmo aceitando que tenham ocorrido vencimentos dos autores pagos por outras entidades e familiares dos gerentes que não a sociedade insolvente e que agora seja a massa insolvente (designadamente o seu património) a ter de responder perante os créditos laborais, tal não equivale à perda do vinculo laboral com a entidade patronal – sociedade insolvente.
(…)
A preocupação principal por parte dos gerentes da sociedade insolvente e das sociedades constituídas foi sempre manter os postos de trabalho, pois só dessa forma, se podiam manter em atividade.
Acresce que os autores AA e BB, apelando às regras da experiência comum, tiveram a preocupação de manter os postos de trabalho até ao fim, obedecendo às ordens da gerência de facto da sociedade insolvente que coincidia com a gerência de todas as sociedades que vieram a ser, entretanto, constituídas (Sr. RR).
Outrossim, os autores AA e BB não podem nem devem ser responsabilizados pelo surgimento, a partir de 2009, das sociedades D..., S.A. E..., S.A. e F..., S.A., pois mesmo que fossem tendo conhecimento das mesmas, e tal perpassou pelo julgamento - eram constituídas de forma alheia à vontade dos trabalhadores.
O mesmo sucede com todas as questões relacionadas com a insolvência e com a manutenção da atividade da sociedade insolvente, todas alheias à vontade dos trabalhadores.
Acresce que os factos dados como provados das contestações das Rés não beliscam os vínculos laborais dos autores com a sociedade insolvente.
Na verdade, o que resulta da contestação da Ré massa insolvente prende-se com a constituição das novas sociedades, com a presença permanente do gerente RR.
Já o que resulta da contestação da Ré B... são considerações/constatações sobre os documentos juntos aos autos, analisados numa perspetiva que não belisca o essencial do demandado pelos autores AA e BB.
(…)
Tudo devidamente sopesado, e atenta a prova produzida, os autores AA e BB conseguiram fazer prova da existência dos respetivos contratos de trabalho, na aceção pela qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas – respetivas datas de admissão à sociedade insolvente, categorias profissionais, vencimentos e antiguidades e, em consequência, dos créditos laborais peticionados».
Independentemente do mérito desta apreciação, de que não cumpre conhecer neste momento, a mesma corrobora não haver contradição entre os factos julgados provados e não provados.
Tal contradição também não existe no que respeita aos pagamentos das remunerações. Do ponto 3 dos factos provados decorre, para alem do mais, que a sociedade D... adquiriu máquinas e materiais da insolvente, ficou com os trabalhadores desta e pagou as remunerações desses trabalhadores. Por sua vez, da matéria de facto não provada acima transcrita – cuja redacção se mostra confusa e descontextualizada do articulado de onde foi extraída – resulta, tendo em conta o referido contexto, que se pretendeu julgar não provado que os referidos bens tenham sido alienados às sociedades E... e F... e que estas entidades paguem as remunerações dos trabalhadores.
Mais uma vez, independentemente do acerto da decisão quanto à matéria de facto, a mesma não padece de qualquer contradição de cujo suprimento dependa o conhecimento do objecto deste recurso.
c. A recorrente entende que a decisão de verificação dos créditos reclamados pelos autores não encontra sustentação na matéria de facto julgada provada, pois desta não resulta uma mera cedência ocasional dos trabalhadores da insolvente, nos termos previstos nos artigos 288.º e seguintes do CT, visto não terem ficado demonstradas as condições cumulativas de que a lei faz depender essa cedência, nomeadamente a anuência do trabalhador e o limite temporal da cedência. Mais afirma não se entender como podem os trabalhadores “cedidos” continuar a trabalhar nas instalações da cessionária (que se encontravam arrendados a outras sociedades), não compreendendo igualmente que, tratando-se de uma cedência ocasional, seja o utilizador a pagar vencimentos, estranhando ainda que os trabalhadores não tenham reclamado os seus créditos no PER da agora insolvente.
A recorrente parece querer, assim, afirmar que os factos provados demonstram que autores, maxime os aqui recorridos, não são trabalhadores da sociedade insolvente, mas sim das sociedades a quem foram “cedidos”.
Sucede que, à semelhança do que fez a apelante B... Company, C... Dac também não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, estando o objecto do recurso por si interposto cingido à apreciação das questões de direito.
Ora, já vimos que dos pontos 2 e 3 relativos à autora AA e dos pontos 2 e 3 relativos ao autor BB decorre que estes foram admitidos ao serviço da sociedade insolvente em 03.09.1999 e 01.04.1993, respectivamente, e que tais contratos se mantêm em vigor, resultando ainda dos pontos 4 e 5 relativos a cada um destes autores o vencimento, o subsídio de alimentação, o subsídio de férias e o subsídio de natal auferidos por cada um deles.
Também já vimos que resulta dos pontos 7 relativos a cada um daqueles autores que os mesmos prestam os seus serviços nos três imóveis apreendidos para a massa insolvente.
Vimos igualmente que, embora se tenha provado que os autores estiveram a trabalhar para as sociedades comerciais D..., E... e F..., no âmbito da cedência de trabalhadores por parte da insolvente a estas sociedades, tendo a primeira pago remunerações a estes trabalhadores, não se provou que os referidos autores estivessem sob a direcção, autoridade e organização das sociedades cessionárias.
Perante esta factualidade, não vemos como negar a existência de um vínculo laboral entre os aqui recorridos e a devedora insolvente, o que é corroborado pelas presunções estabelecidas no artigo 12.º, n.º 1, alíneas a) e d) do CT, mostrando-se totalmente irrelevantes a circunstância de os autores não terem reclamado os seus créditos no PER relativo à ora insolvente, bem como a circunstância de uma das empresas cessionárias ter pago remunerações devidas aos autores, pois estes factos, por si só, não infirmam a existência daqueles vínculos laborais nem dos créditos daí decorrentes.
Igualmente irrelevante se mostra a circunstância de os factos provados não revelarem o preenchimento dos pressupostos de que a lei faz depender a cedência ocasional de trabalhadores, nomeadamente a anuência destes. De resto, já vimos que não ficou, sequer, provada a transferência do poder de direcção da insolvente para as sociedades D..., E... e F..., o que, por si só, afasta a existência de uma cedência ocasional, pois esta implica, por definição, tal transferência do poder de direcção, como decorre da noção constante do artigo 288.º do CT.
A não verificação dos pressupostos da admissibilidade legal da cedência ocasional de trabalhadores, tal como a não verificação dos próprios elementos definidores dessa cedência ocasional, não transformam a cedência efectivamente ocorrida (cfr. ponto 1 dos factos provados relativos às contestações apresentadas pela massa insolvente) numa cedência definitiva, ou melhor, não têm necessariamente como consequência a extinção do vínculo laboral existente entre a insolvente “cedente” e os trabalhadores “cedidos” e a criação de um novo vínculo laboral entre estes e as sociedade “cessionárias”. E é manifesto que tal não sucedeu no caso concreto, pois foi julgado provado que o vínculo inicial se mantém.
Em suma, ao contrário do que é afirmado pela recorrente, os factos provados demonstram a qualidade que os recorridos invocaram de trabalhadores da insolente, pelo que nada obstava ao reconhecimento dos seus créditos.
d. No que concerne à segunda questão a decidir no âmbito deste recurso (se os créditos dos autores têm privilégio imobiliário geral sobre os imóveis apreendidos para a massa insolvente, porque aqueles aí desempenharam a sua actividade), a apelante C... Dac acompanhou de perto a argumentação esgrimida pela apelante B... Company.
Acrescentou apenas que os imóveis apreendidos se encontravam arrendados a outras sociedades comerciais, pelo que não estavam afectos à actividade da insolvente. Mas esta alegação não encontra qualquer sustentação na fundamentação de facto da sentença recorrida, a qual, como vimos, não foi devidamente impugnada.
Nestes termos, é aqui inteiramente aplicável a análise que fizemos da questão decidenda a propósito do recurso interposto pela referida B... Company, análise que aqui damos por reproduzida e que nos conduz à mesma conclusão: a factualidade julgada provada faz cair pela base a argumentação expendida pela recorrente, pois os recorridos efectivamente lograram provar, como lhes competia, que exerciam a sua actividade laboral nos três imóveis apreendidos para a massa involvente, razão pela qual os seus créditos beneficiam de privilégio imobiliário sobre esses imóveis, nos termos do artigo 333.º, n.º 1, do CT.
Pelas razões expostas, improcede também o recurso interposto por C... Dac, pelo que esta deverá esta suportar as respectivas custas, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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3. Apelações interpostas por EE e DD
Da impugnação da matéria de facto
Vieram ambos os recorrentes impugnar a decisão sobre a matéria de facto, mais concretamente no que concerne aos factos demonstrativos dos créditos de que se arrogam titulares.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está expressamente consagrada e regulada em diversas disposições do Código de Processo Civil actualmente vigente, nomeadamente nos seus artigos 640.º, n.º 1, e 662.º. n.º 1.
Resulta do primeiro destes preceitos que o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No caso vertente, consideramos cumpridos estes ónus, visto que ambos os recorrentes indicaram de forma expressa e discriminada, tanto na motivação como nas conclusões da sua alegação, os pontos de facto que consideram incorretamente julgados (pontos 1 a 8 dos factos julgados não provados a respeito de cada um deles), fundamentou esta discordância nos concretos meios de prova documental que descrevem e analisam nas respectivas alegações e concluem indicando a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre aqueles pontos (julgando-os integralmente provados).
Dispõe, por sua vez, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do CC, designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».
Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
No caso vertente, como vimos, os recorrentes pugnaram pela alteração da decisão no que respeita aos pontos 1 a 8 dos factos julgados não provados a respeito de cada um deles, afirmando que tais factos são demonstrados pela prova documental existente nos autos, designadamente s seguinte: informação da Segurança Social directa relativa à situação contributiva dos recorrentes, recibos de vencimento dos mesmos, simulações de compensação por cessação dos contratos de trabalho, detalhes dos vínculos dos trabalhadores, IES da sociedade insolvente, extrato da declaração das remunerações dos trabalhadores da sociedade insolvente, transferências bancárias e folhas de férias dos trabalhadores.
Mais invocaram, no mesmo sentido, os documentos relativos ao processo n.º 3529/17.8T8STS, do Juiz 3, do Juízo de Comércio de Santo Tirso, designadamente os seguintes: sentença de nomeação e petição inicial, da qual consta a lista de trabalhadores da sociedade A... como documento n.º 7, lista provisória de credores como documento n.º 8, balancete analítico reportado à data de 31 de Dezembro de 2017 como documento n.º 9, plano de recuperação como documento n.º 10.
Invocaram ainda os documentos juntos aos autos por GG em 20.12.2022, na sequência da notificação de 16.12.2022, e o contrato de prestação de serviços com exclusividade celebrado a 29 de Agosto de 2014 entre a “D... Ld.ª” e a sociedade insolvente, junto na audiência de julgamento.
Os recorrentes apelam também à análise probatória levada a efeito pelo Tribunal a quo a respeito dos factos alegados pelos trabalhadores cujos créditos foram judicialmente verificados, tanto neste como nos outros apensos de verificação ulterior de créditos, afirmando que a mesma análise probatória se deverá fazer a respeito dos factos por si alegados, dado o paralelismo factual e probatório existente, sob pena de violação do princípio da igualdade.
Pugnaram ainda pela irrelevância, em termos probatórios, da circunstância de terem prescindido das declarações de parte.
Na motivação da decisão sobre a matéria de facto, para além de fazer um elenco da prova analisada, aí incluindo a prova documental agora invocada pelos recorrentes, o Tribunal a quo afirmou o seguinte:
«Quanto aos factos relacionados com os autores, face à prova produzida, há que distinguir, desde logo as situações.
Assim, quanto aos autores CC, DD e EE (como vimos, mulher, irmão e primo respetivamente, do Sr. RR), não tendo comparecido em Tribunal, terem prescindido das declarações de parte respetivas e não tendo ocorrido produção de prova testemunhal quanto a tais factos, não sendo a prova documental junta bastante – em concreto – Recibos de vencimento de CC, Recibos de vencimento de DD, Declaração de divida e acordo de pagamento celebrado em 15.01.2019 entre a sociedade insolvente e DD e Declaração de divida e acordo de pagamento celebrado em 15.01.2019 entre a sociedade insolvente e EE –, dissociados de outros elementos probatórios, para provar os factos por si alegados, tem os mesmos de improceder.
O mesmo se passa com os créditos do autor BB, sem condição, no valor de € 55.139,60 (cinquenta e cinco mil, cento e trinta e nove euros e sessenta cêntimos), por ausência total de prova.
Já quanto aos autores AA e BB, em suma, os factos provados resultaram da análise da prova documental supra mencionada e da conjugação das declarações de parte prestadas e os depoimentos prestados e da prova testemunhal.
Os factos não provados resultaram da ausência de prova séria, razoável e cabal e concreta sobre os mesmos.
(…)
Com efeito, atenta a prova documental analisada, as declarações de parte prestadas e os depoimentos das testemunhas prestados, não restaram quaisquer dúvidas de que os autores AA e BB eram trabalhadores da sociedade insolvente.
Cabendo o ónus de prova aos autores AA e BB, nesta sede, foram atendidos os contratos de trabalho, as declarações do ISS, IP, os recibos de vencimento juntos aos autos e a vasta prova testemunhal e por declarações de parte (ouvidos quanto aos outros autores) prestados em audiência.
Em detalhe foram atendidos quanto à prova documental:
(…).
Nessa medida, e atenta a prova produzida, os autores AA e BB conseguiram fazer prova da existência dos respetivos contratos de trabalho, na aceção pela qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas – respetivas datas de admissão à sociedade insolvente, categorias profissionais, vencimentos e antiguidades.
O mesmo sucedeu com a prova produzida, de forma clara e unânime de que os autores AA e BB não tiveram a formação profissional a que tinham direito durante o percurso profissional junto da sociedade insolvente (vd. todas as declarações de parte), não tendo sido produzido qualquer meio probatório em seguinte contrário.
Finalmente também se produziu prova cabal e segura de que os autores AA e BB prestaram o seu serviço nos seguintes imóveis, descritos como Lote ..., em Lugar ..., Trofa, lote ..., Lugar ..., Trofa, e ainda na fração autónoma designada pela letra “A” Lote ..., freguesia ..., concelho da Trofa».
Desta fundamentação parece resultar que, quanto aos factos alegados pelos ora recorrentes DD e EE, o Tribunal a quo apenas ponderou os documentos juntos com as respetivas petições iniciais: os recibos de vencimento juntos por DD, relativos aos meses de Dezembro de 2020 e de Janeiro e Fevereiro de 2021 (e já não os recibos de vencimento juntos por EE, certamente porque estes se referem a RR), e as declarações de dívida e acordo de pagamento juntos por DD e EE. Mas, como decorre das alegações dos recorrentes e do próprio elenco constante da decisão recorrida, a prova documental relacionada com aqueles factos é muito mais abundante, a eles respeitando, designadamente, os documentos juntos com as contestações apresentadas pelo credor B... e pela massa insolvente, com os requerimentos apresentados em 08.07.2021, 06.12.2022, 09.12.2022 e 20.12.2022 e na própria audiência de julgamento. Contudo, na fundamentação em apreço não é feita qualquer análise desta prova, pelo menos de forma explícita.
No que concerne à prova testemunhal, afirma-se na motivação da decisão sobre a matéria de facto que não ocorreu qualquer produção de prova testemunhal quanto aos factos alegados pelos ora recorrente. Todavia, ouvida oficiosamente toda a prova gravada, verifica-se que as testemunhas TT (que foi funcionário da insolvente) e GG (que foi contabilista certificado da insolvente) se pronunciaram sobre tais factos. A primeira destas testemunhas, confrontada com os nomes dos autores das cinco acções decididas na sentença recorrida, entre eles os ora recorrentes DD e EE, afirmou que eram todos trabalhadores da A..., constando da respectiva contabilidade e sendo pagos como tal. Por sua vez, a segunda daquelas testemunhas referiu conhecer o aqui recorrente EE e a autora AA, confirmando que ambos eram trabalhadores da sociedade insolvente, tendo sido esta testemunha quem forneceu ao tribunal a cópia do correio electrónico que foi junto aos autos em audiência de julgamento, no qual os aqui recorrentes são mencionados como trabalhadores da insolvente e ao qual está anexo o “contrato de prestação de serviços com exclusividade” invocado pelos recorrentes e aludido na motivação que vimos analisando. Contudo, na fundamentação em apreço também não é feita qualquer análise desta prova testemunhal.
Quanto à demais prova gravada, verifica-se que as testemunhas que se pronunciaram sobre os vínculos laborais estabelecidos entre as pessoas que figuram como credores reclamantes nos apensos F, O e R, por um lado, e a insolvente e/ou as sociedades D..., E... e F..., por outro lado, não fizeram qualquer distinção entre aqueles vínculos, tendo apenas a testemunha SS, que chegou a exercer funções com administradora da insolvência nestes autos, distinguido a situação dos credores que reclamaram créditos (e foram pagos pelo Fundo de Garantia Salarial) no âmbito processo da sociedade G... e os que não reclamaram ali os créditos. Em todo o caso, no que a estes autos respeita, não se divisa que alguma testemunha tenha distinguido a situação dos autores AA e BB da situação dos demais autores, maxime os recorrentes DD e EE.
Tal distinção também não foi feita nas declarações de parte prestadas por AA e BB, tendo a primeira afirmado que, com excepção dos Srs. UU e RR, não havia nenhum funcionário que não fosse da A.... Mais afirmou a referida AA que após a declaração da insolvência, perante a inércia do AI, dirigiu-se à ACT, para conseguir obter o subsídio de desemprego, juntamente com os demais funcionários da insolvente, com excepção do DD e do EE (acrescentando depois o nome CC), mas sem nunca afirmar que estes não fossem igualmente funcionários da insolvente.
Mais uma vez, a fundamentação em apreço também faz qualquer análise desta prova.
Ficou, assim, por esclarecer qual a razão que levou o tribunal a quo a fazer a distinção entre a situação dos recorrentes e dos demais autores.
Perscrutada a motivação da decisão sobre a matéria de facto, apenas verificamos uma alusão às suas relações familiares com RR, gerente/administrador da insolvente e das sociedades D..., E... e F..., como resulta da factualidade provada, e à circunstância de não terem comparecido na audiência de julgamento e terem prescindido das declarações de parte.
Mas em parte alguma se esclarece se e em que medida aquelas relações familiares indiciam a inexistência do vínculo laboral para que aponta a prova documental.
Do mesmo modo, também não se esclarece em que medida a ausência de declarações de parte dos ora recorrentes foi determinante na formação da convicção subjacente à decisão de julgar não provados os factos por si alegados nos articulados, tanto mais que esta não foi a única prova requerida sobre esses factos (tal como não se esclarece em que medida as declarações de parte prestadas pelos autores AA e BB foram determinantes na convicção subjacente à decisão de julgar provados os factos alegados por estes autores).
Em suma, a fundamentação esgrimida pelo tribunal a quo, não nos permite conhecer o iter cognoscitivo que conduziu ao não reconhecimento dos vínculos laborais alegados pelos autores DD e EE, em especial no seu confronto com o reconhecimento dos vínculos laborais alegados pelos autores AA e BB, ou seja, não nos permite conhecer o iter cognoscitivo que levou o tribunal a quo a distinguir estas duas situações.
Todavia, o conhecimento desse caminho é essencial para nos pronunciarmos sobre a impugnação da decisão sobre matéria de facto deduzida pelos referidos recorrentes.
Como já foi referido supra, não sendo a livre apreciação da prova um exercício de arbitrariedade, a motivação da decisão sobre a matéria de facto deve permitir compreender o iter cognoscitivo que conduziu àquela decisão, ou seja, deve mencionar os fundamentos que determinaram a convicção do Tribunal, para que, mediante as regras da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção e, desse modo, possibilitar a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto pelo Tribunal de 2.ª Instância.
Está, assim, justificado o recurso ao mecanismo (rectius, dever) previsto no artigo 662.º, n.º 2, al. d), do CPC, nos termos do qual a Relação deve, mesmo oficiosamente, determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
A respeito desta faculdade, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa afirmam que «[q]uando estiver em causa a deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto, a devolução do processo deve ser guardada para os casos em que, além de serem efectivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova». É, precisamente, esta a situação em apreço, pelas razões antes expostas.
Em suma, no que concerne aos dois recursos em apreço, afigura-se indispensável que o tribunal de primeira instância supra as deficiências da fundamentação da matéria de facto acima apontadas, para habilitar este tribunal ad quem a apreciar e decidir as impugnações da decisão da matéria de facto deduzidas pelos recorrentes DD e EE.
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IV. Decisão
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação do Porto:
1. Julgam totalmente improcedentes as apelações interpostas por B... Company e C... Dac e confirmam a decisão recorrida na parte em que julgou verificados os créditos dos autores AA e BB e decidiu que os mesmos gozam de privilégios creditórios imobiliário e mobiliário geral.
2. Condenam aquelas apelantes nas custas dos respectivos recursos.
3. Quanto às apelações interpostas por EE e DD, determinam que o Tribunal de primeira instância complete a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, suprindo as deficiências supra apontadas, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. d), do CPC.
Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 20 de Fevereiro de 2024

Artur Dionísio Oliveira
Maria da Luz Seabra
Fernando Vilares Ferreira