EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DO INSOLVENTE A SER EXCLUÍDO DA CESSÃO AOS CREDORES
Sumário

Na fixação do rendimento disponível deve o Tribunal proceder à análise das despesas imprescindíveis para o sustento digno do devedor e seu agregado.

Texto Integral

PROC. N.º[1] 2632/23.0T8STS.P1


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Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 3

RELAÇÃO N.º 109

Relator: Alberto Taveira

Adjuntos: Rui Moreira

               Ramos Lopes


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

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I - RELATÓRIO.

AS PARTES

               Insolvente: AA


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A)

AA apresentou-se à insolvência por requerimento de 15.09.2023, tendo a mesma sido declara insolvente por sentença de 19.09.2023.

A requerente deduziu pedido de exoneração do passivo restante, pedindo a fixação do rendimento disponível no valor correspondente a dois salários mínimos.

B)

A Administrador de Insolvência não de opôs ao pedido de exoneração do passivo restante.


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DA DECISÃO RECORRIDA

A 14.12.2023 é proferida a seguinte decisão:

Do pedido de exoneração do passivo:

A devedora requereu a exoneração do passivo restante.

O Exmo. Administrador da Insolvência formulou parecer no sentido de nada ter a opor a tal pedido.

Não foi deduzida qualquer oposição ao deferimento do pedido por qualquer um dos credores.


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Com interesse para a decisão a proferir, mostra-se já assente nestes autos que:

1 – A requerente apresentou-se à insolvência e, por sentença proferida nos autos declarou-se tal insolvência;

2 – A insolvente é casada, mas encontra-se separada de facto e sem qualquer contato com o marido desde Agosto de 2004.

3 - Atualmente vive em união de facto, sendo que o seu companheiro se encontra desempregado e sem qualquer subsídio.

4 - A insolvente tem três filhos, que consigo residem. Uma das filhas é menor de idade (7 anos) e dois filhos são maiores, tendo um 19 anos, o qual não estuda, nem trabalha. A outra filha maior tem 21 anos, já trabalha, mas encontra-se de baixa médica por doença autoimune e aufere cerca de 500,00 € mensais de subsídio por doença.

5 - A insolvente, atualmente exerce a função de rececionista, auferindo um salário base no montante de 760,00 €, acrescido do subsídio de alimentação e dos respectivos subsídios de férias e de natal.

6 - Vivem em habitação arrendada;

7 – Nunca foi condenada pela prática de crime a previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal.


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Motivação:


Os factos acima elencados resultam do teor do CRC junto aos autos, do teor do relatório apresentado pelo Exmo. AI e do teor dos documentos juntos aos autos com a p.i..

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O Direito:


O art. 235º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas dispõe que “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”.

“O pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado, se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio.” (cfr. art. 236º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

Acrescenta o n.º 3 do mesmo normativo que “do requerimento consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes”.

Tendo em conta que o devedor atestou preencher os requisitos de que depende o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, o Exmo. AI nada apurou que leve a que se indefira tal pedido e nenhum dos credores se opôs, sendo certo que dos autos não resultam quaisquer indícios que possam levar ao indeferimento liminar do pedido formulado, decide-se admitir liminarmente o pedido de exoneração de passivo restante formulado.

Quanto ao rendimento disponível a ceder:

O rendimento disponível do devedor objeto da cessão ao fiduciário, nos termos do art. 239º, nº 2 do C.I.R.E., é integrado por todos os rendimentos que ao devedor advenham, a qualquer título com exclusão, e no que à economia da presente decisão importa, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional (art. 239º, nº 3, b), i) do C.I.R.E.) e do que seja razoavelmente necessário para outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor (art. 239º, nº 3, b), iii) do C.I.R.E.).

No caso da devedora, sabemos que: A insolvente é casada, mas encontra-se separada de facto e sem qualquer contato com o marido desde Agosto de 2004. Atualmente vive em união de facto, sendo que o seu companheiro se encontra desempregado e sem qualquer subsídio. A insolvente tem três filhos, que consigo residem. Uma das filhas é menor de idade (7 anos) e dois filhos são maiores, tendo um 19 anos, o qual não estuda, nem trabalha. A outra filha maior tem 21 anos, já trabalha, mas encontra-se de baixa médica por doença autoimune e aufere cerca de 500,00 € mensais de subsídio por doença. A insolvente, atualmente exerce a função de rececionista, auferindo um salário base no montante de 760,00 €, acrescido do subsídio de alimentação e dos respetivos subsídios de férias e de natal.Vivem em habitação arrendada.

É nosso entendimento, que na fixação do rendimento indisponível para cessão devemos em entrar em linha de conta com o montante fixado para o salário mínimo nacional, considerando-se esse valor como suficiente para permitir a um cidadão maior e que viva sozinho fazer face às despesas do quotidiano, mantendo um nível de vida minimamente condigno.

No caso concreto há, no entanto, que ponderar o facto da devedora ter um filho menor que se encontra a seu cargo.

Ponderando o custo de educação, sustento e formação de um filho menor em condições minimamente condignas, consideramos que o valor a ter por referência por cada filho dependente é de 0,5 SMN.

Quanto aos filhos maiores da devedora, verificamos que a filha de 21 anos, apesar de padecer de doença autoimune já recebe rendimento. Quanto ao filho de 19 anos, do relatório resulta que o mesmo não estuda, não fora demonstrado que o mesmo necessita ainda do auxílio da mãe, ou que o mesmo não esteja capaz de trabalhar. Ao filho maior apenas poderá ser considerado 0,5 SMN de rendimento indisponível da devedora, no caso de ainda se encontrar a estudar, e mediante a apresentação do comprovativo, o que não sucedeu no caso concreto. Assim, por ora, não pode ser atribuído esse valor para efeitos de cálculo de rendimento indisponível.

Nesta medida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 239º do CIRE, determina-se que o rendimento da devedora que ultrapasse o equivalente a uma vez e meia o salário mínimo nacional por mês, considerando os 12 meses do ano, seja cedido ao Exmo. AI que neste ato se nomeia para exercer as funções de fiduciário. Não existindo fundamentos para atribuir 2 SMN, conforme requerido pela devedora, porquanto não ficara demonstrada a efetiva necessidade de dependência dos filhos menores por parte da progenitora.

Dado que o processo de insolvência fora encerrado por insuficiência da massa, o período de cessão de rendimento disponível terá início com o trânsito em julgado do presente despacho.

O período de cessão é, agora, de três anos, nos termos do art. 235.º e 239.º, n.º 2, CIRE, na redação dada pela Lei n.º 9/2022, 11.01.


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Em face do exposto, o tribunal decide deferir liminarmente o requerido, proferindo despacho inicial de exoneração do passivo da insolvente, e determina:

1. Que durante os três anos subsequentes ao trânsito em julgado do presente despacho, o rendimento disponível que a devedora venha a auferir considera-se cedido ao fiduciário abaixo nomeado;

2. Que o rendimento disponível acima referido é integrado por todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno da devedora e do seu agregado familiar, não devendo exceder uma vez e meia o salário mínimo nacional (1,5 SMN)¸ considerando os 12 meses do ano;

O cálculo do rendimento disponível para cessão deve ponderar o rendimento global auferido pelo devedor no ano de cessão em análise, e dividir o valor global por 12 meses, verificando se fora ultrapassado o rendimento anual indisponível fixado.

3. Que durante aquele período a devedora fica obrigado a:

a) não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;

b) exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;

c) entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;

d) informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;

e) não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.

(…)“.


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DAS ALEGAÇÕES

A insolvente, vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se o despacho recorrido no sentido de atribuir 0,5 de SMN de rendimento indisponível à insolvente, para sustento do seu filho de 19 anos, fazendo-se dessa forma Justiça. “.


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A ora recorrente apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

1. Tem o presente recurso por fundamento a ilegalidade do despacho proferido a 20/12/2023, em que o Tribunal atribuiu à insolvente um salário mínimo e meio de rendimento indisponível.

2. Em primeiro lugar, quanto ao filho de 19 anos, o Tribunal, apesar de demonstrado que o mesmo não estuda nem trabalha, conclui que não ficara demonstrado que carece do auxílio da mãe ou que não esteja capaz de trabalhar.

3. Ora, se vive com a mãe, é porque necessariamente não tem meios de subsistência para viver sozinho, pagando renda, comida, água, luz, etc…, pois nesse caso o seu rendimento proviria do seu trabalho e seria tido em consideração nos presentes autos.

4. Por outro lado, constitui facto notório que não existem empregos em abundância e que actualmente não é fácil nem simples obter o primeiro emprego, atenta a crise económica que se faz sentir.

5. Portanto, dado que não estuda nem trabalha, é por demais evidente que o filho da insolvente, apensar de maior, carece do auxílio da mesma para sobreviver, dado que é esta que desde sempre tem providenciado pela sua subsistência, até que este o consiga fazer.

6. O raciocínio do Tribunal é falacioso, dado que demonstrado que não estuda, nem trabalha, deverá o Tribunal considerar os 0,5 de SMN a acrescer ao rendimento indisponível da insolvente, de modo a possibilitar que esta continue a sustentar o seu filho até que logre ter um meio de subsistência.

7. Um filho de 19 anos que vive com a mãe, não estudando nem trabalhando, é patente que é sustentado por aquela. “.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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II-FUNDAMENTAÇÃO.


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, a questão a decidir, é a seguinte:

A) Fixação do rendimento disponível.


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OS FACTOS


Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório e da decisão em crise (supra transcrita), e que aqui se dão por reproduzidos.

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DE DIREITO.


A)

Fixação do rendimento disponível.

Em face do que está decidido nos autos, a única questão a decidir diz respeito a decidir que o rendimento indisponível serão o salário mínimo e meio nacionais considerando os 12 meses do ano ou dois salários e meio mínimos nacionais, ora pugnado pela recorrente/insolvente.

Vejamos.

Nos termos do artigo 239.º, n.º 2, “O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade (…)“.

Segundo a alínea b) do n.º 3 “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: (…)

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

É entendimento quase unânime nesta Relação de que o rendimento disponível deve ser entregue mensalmente. Citam-se as seguintes decisões deste Tribunal da Relação do Porto, 2410/16.2T8STS.P1, de 26.01.2021, relatado pelo Des VIEIRA E CUNHA, 8215/13.5TBVNG-F.P1, de 26.10.2020, relatado pelo Des JORGE SEABRA, 557/21.2T8OAZ.P1, de 20.09.2021, relatado pelo Des JORGE SEABRA, 8/22.5T8STS-B.P1, de 12.09.2022, relatado pela Des ANA PAULA AMORIM, 1544/18.3T8STS.P1, de 29.04.2021, relatado pela Des DEOLINDA VARÃO, 2718/18.2T8OAZ.P2, de 08.11.2021, relatado pelo Des MENDES COELHO, entre outros.

Na ausência de um critério matemático o legislador encarregou o julgador de caso a caso aferir de um montante que seja necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado.

Deste modo, na fixação do rendimento disponível deve o Tribunal proceder à análise das despesas imprescindíveis para o sustento digno do devedor e seu agregado. E aqui têm especial relevo aquelas despesas comuns do quotidiano e que a normalidade do “português” tem, ou é suposto ter, para ter um mínimo de dignidade.

O critério último deve estar alicerçado na dignidade humana em cada caso concreto.

Deve assim ser ponderado, em primeiro lugar, que se está perante uma situação transitória, durante a qual a insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas de maneira a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante e, em segundo lugar, atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana, assegurar as necessidades básicas do insolvente e do seu agregado familiar, neste sentido, Ac Tribunal da Relação de Lisboa 27138/11.6T2SNT-C.L1-2, relatado pela Des VAZ GOMES, in dsgi.pt.

No caso em apreço, a apelante dissente da decisão proferida, por entender que não foi valorizado devidamente a circunstância de ter a vive consigo um filho de 19 anos que não estuda e não trabalha.

A sentença valorou tal facto, tendo decidido que não ficou demonstrado que tal filho necessite do auxílio da mãe, insolvente, ou que esteja em situação de impossibilidade de trabalhar.

Por sua vez, a apelante entende que mera circunstância do filho viver com a mãe é demonstrativo dele carecer da assistência da mãe.

E é neste preciso ponto de discórdia, que tem este Tribunal que decidir.

Sopesando os critérios atrás fixados e a factualidade dada como provada, pois só a esta este Tribunal está limitado a valorar, decidimos que a decisão da M.ma Juíza não merece censura. Com efeito, dos factos não há evidência de que tal filho careça da assistência da insolvente/mãe ou que este esteja impossibilitado de suster a si próprio, tal como a sua irmã.

Tendo presente estes ensinamentos jurisprudências, tendo presente a efectiva situação da insolvente e descrita supra, improcede a pretensão da insolvente.


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III DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

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Porto, 20 de Fevereiro de 2024
Alberto Taveira
Rui Moreira
João Ramos Lopes
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.