ÁGUAS
BALDIOS
SERVIDÃO DE AQUEDUTO
Sumário

I - São do domínio público as águas que nasçam ou existam nos baldios.
II - Não é possível a existência legal de uma servidão de águas sem a existência simultânea do direito à água, de que a servidão é um simples acessório.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B................. e mulher C................... intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra D................. e marido E................ .

Pediram que os RR. sejam condenados a restituir a posse sobre servidão de aqueduto e acompanhamento, a retirar os arames que impossibilitam a passagem e, bem assim, a não impedir o acesso dos AA. às poças referidas na p.i..

Como fundamento, alegaram (na p.i. apresentada após convite de aperfeiçoamento), em síntese, que:
São comproprietários das águas de duas poças, de pedra e terra, situadas no prédio dos RR., que correspondem a nascentes aí existentes; uma dessas poças, a maior, serve também para recolha da “água do povo”, proveniente de terreno baldio. As águas dessas poças são encaminhadas para o prédio dos AA. por regos bem demarcados e permanentes, tendo adquirido direito a essas águas por usucapião e preocupação, respectivamente. Os RR. colocaram arames nas duas passagens que sempre existiram para acesso directo dos AA. às poças referidas, impedindo a entrada destes.

Os RR. apresentaram contestação (da primeira p.i.), defendendo-se por impugnação e por excepção, invocando a sua ilegitimidade.
Concluíram pela improcedência da acção.

Foi depois proferida decisão em que, após saneador tabelar, se julgou a acção improcedente, absolvendo-se os RR. do pedido, com esta fundamentação:
(...)
Tem-se como parcialmente assente o vertido em 17° da PI aperfeiçoada, ou seja, que a água de poças reivindicada é "água do povo", "nasce em baldio".
Não se provaram mais quaisquer factos com pertinência para a decisão.
A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto assentou na concatenação ponderada da confissão pelos próprios AA.
Cumpre decidir.
Nos termos da Lei nº 68/93 1993/09/04, lei dos baldios, “1 – são baldios (...).
Tratam-se de "bens comunitários", são bens "pertencentes a comunidades", distinguindo-se esses bens, também quanto à titularidade, dos bens "pertencentes a entidades públicas", designadamente às entidades públicas territoriais (desde o Estado à freguesia).
Cfr., neste sentido Jorge Miranda, Direito da Economia, lições policopiadas, Lisboa, 1982-1983, pp. 70 e segs.; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., vol. I, p. 426; J. Simões Patrício, Curso de Direito Económico, 2ª ed., Lisboa, 1981-1982, p. 289); Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 136/78, Diário da República, 2ª série, nº 259, de 10 de Novembro de 1978 e Acórdão nº 240/91 do Tribunal Constitucional proferido no Processo nº 280/91.
Quanto a quem tem legitimidade para propor acções relativamente a baldios - cfr. art. 93° da citada Lei: (...).
No que respeita à perturbação da posse, cumpre dizer que um baldio não é apropriável individualmente.
Cfr., neste sentido, v.g. Ac. RP de 81/01/27 (CJ, Ano VI, T. 1,141) - “As águas que brotam do baldio, como parte integrante que são dele, tem a mesma natureza jurídica, não podendo, por isso, ser objecto de posse exclusiva por parte de alguns moradores."
Ora, nestes autos, verifica-se desde logo que os AA. não alegam que sejam compartes.
E a água de poças em causa nestes autos brota de baldio, conforme expressamente confessado pelos AA.
E, mesmo que se entendesse haver sido feita implicitamente tal alegação pelos AA de que seriam compartes, cumpre ter em atenção o decidido no Ac. RC de 1989/02/15 (BMJ 384, 669), relativo a crime de furto em baldio por comparte, o qual refere que: "A qualidade de comparte num baldio não legitima, só por si, a apropriação do que existe no mesmo baldio".
À luz do exposto é manifesta a improcedência do pedido.
Termos em que, com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o pedido formulado pelos autores e dele se absolvem os réus.

Discordando desta decisão, dela interpuseram recurso os AA., de apelação, tendo apresentado as seguintes

Conclusões:
1. A classificação das águas vertida no art. 1385° do CC divide-as em públicas ou privadas.
2. Mesmo as águas originariamente públicas têm mecanismo que permitem a sua apropriação particular; desde logo a preocupação, cuja factualidade está vertida na p.i. dos AA. (arts. 23 a 26).
3. A imprescritibilidade dos baldios resultante do DL 40/76, de 19/1, não se aplica a situações já consolidadas - art. 12° do CC - A lei não tem eficácia retroactiva.
4. Os AA. alegam que esta situação já existe há mais de 150 anos, pelo que o vertido naquele diploma não se lhes pode aplicar sob pena de o mesmo vigorar para o passado e para o passado remoto.
5. Mas mais alegam os AA, nos arts 12° a 16° da sua p.i., que as poças dos autos servem para entancar, entre outras as águas das nascentes que ali, naquelas poças, existem.
6. Tais poças estão dentro de terrenos particulares pelo que são particulares.
7. A causa de pedir e o pedido não se baseiam exclusivamente em águas originariamente públicas, como algo superficialmente refere a douta sentença em crise, também trata de águas particulares.
8. Mas, mesmo que tratasse de águas originariamente publicas, teriam os AA de alegar e provar que as teriam adquirido por um dos títulos legalmente admissíveis.
9. No caso dos autos alegam e esperam provar, como já provaram na providência cautelar, que as adquiriram por preocupação.
Consideram se violados os arts. 668° do CPC, 12°, 1385° e 1386° do C. Civil e ainda o previsto no DL 40/76, de 19/1, bem como a lei das Águas.
Nestes termos, dando-se provimento ao presente recurso, deve alterar-se a decisão recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
Os AA. pediram na acção a restituição da posse da servidão de aqueduto para condução das águas que utilizam no seu prédio, com o inerente direito de acederem ao prédio onde se situam os aquedutos e as poças onde essas águas são represadas (e em parte nascem).
A questão que se discute agora no recurso, face à decisão proferida, é a de saber se os AA. alegaram a factualidade necessária ao reconhecimento do alegado direito sobre essas águas, direito que o pedido formulado pressupõe.

III.
Na sentença recorrida, como se referiu, foi considerado provado apenas este facto:
- a água de poças reivindicada é "água do povo", "nasce em baldio".

Acrescentou-se aí que não se provaram mais quaisquer factos com pertinência para a decisão.

IV.
A servidão de aqueduto pressupõe o direito à agua derivada; é sempre um acessório do direito à água [M. Tavarela Lobo, Manual do Direito de Águas, Vol. II, 359; ac. Rel. Porto de 11.4.78, CJ III, 3, 667].
Como afirmava Pires de Lima [RLJ 92º - 15], não é possível a existência legal duma servidão de águas, seja ela de presa, de aqueduto ou de escoamento, sem a existência simultânea do direito à água, de que a servidão é um simples acessório.

No caso, os AA. invocam a compropriedade sobre as águas das poças acima referidas, alegando que parte dessas águas – a da poça pequena e parte da água da poça maior – tem aí a sua nascente; a água restante da poça maior provém de terreno baldio.

As águas nascidas no prédio (particular) onde se situam as poças são particulares (art. 1386º nº 1 a) do CC), tendo os AA. alegado factos - cfr. arts. 12º 13º, 14º, 15º, 16º, 27º a 30º da p.i. - para demonstrar que adquiriram direito sobre as mesmas por prescrição aquisitiva ou usucapião - arts. 99º da Lei das Águas e 525º a 529º do CC de 1867; cfr. arts. 1390º nºs 1 e 2 e 1287º e segs. do CC actual.

Sobre as águas provenientes de terreno baldio:
Na sentença atribui-se-lhes a natureza que é reconhecida a estes terrenos – bens comunitários, insusceptíveis de apropriação individual, mesmo que por comparte, qualidade que, de qualquer modo, os AA. não teriam invocado.

No domínio da lei anterior aos DDLL 39/76 e 40/76, de 19/1, era dominante o entendimento de que os baldios eram alienáveis e prescritíveis, o que veio a ser confirmado pelo art. 388º § único do C. Administrativo, a que se atribuía carácter interpretativo [cfr. Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, II, 209 e Cunha Gonçalves, Tratado, III, 146; acs. da Rel. Coimbra de 3.3.64 e da Rel. Porto de 17.7.64, JR, 1964, 419 e 767].
Nos termos do art. 1º do DL 39/76, os baldios são terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas. E de harmonia com o art. 2º desse diploma, os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objecto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluindo a usucapião.
Os baldios são assim inalienáveis e imprescritíveis, natureza que mantêm com a lei actual - DL 68/93, de 4/9, com ressalva dos casos expressamente previstos nesse diploma legal.

Já se entendeu que as águas que brotam num baldio, como parte integrante dele, têm a mesma natureza jurídica (cfr. art. 1344º do CC) [Cfr. ac. Rel. Porto de 27.1.81, CJ VI,1,141].
Mas a imprescritibilidade dos baldios não poderia atingir situações jurídicas já consolidadas à sombra de leis anteriores, face ao disposto no art. 12º nº 1 do CC [Neste sentido, os acs. da Rel. Porto de 3.11.81 e de 18.4.91, CJ VI, 5, 244 e XVI, 2, 276].

Importa todavia ter presente que a Lei das Águas (Decreto nº 5787 IIII, de 10.5.1919) classificou as águas em duas categorias – públicas e particulares – extinguindo assim a categoria de águas comuns (cfr. art. 381º nº 2 do CC de 1867).
No seu art. 1º, entre as águas do domínio público, inclui as nascentes que brotem nos terrenos baldios e de logradouro comum e as águas subterrâneas que nos mesmos existam.
O Cód. Civil actual manteve essa classificação entre águas públicas e particulares, passando a regular o regime destas, continuando a Lei das Águas e respectivas alterações posteriores a regulamentar as águas públicas.
Neste sentido, referem Pires de Lima e Antunes Varela [C.C. anotado, III, 289; no mesmo sentido o Ac. da Rel. Coimbra de 19.10.93 - CJ XVIII, 4, 62] que o Decreto nº 5787 IIII pôs termo à categoria das águas comuns, reduzindo as águas às duas modalidades a que o art. 1385º do Cód. Civil se refere.
Tendo como base a referida classificação, no citado Acórdão da Relação do Porto de 3.11.81 afirma-se peremptoriamente que são do domínio público as águas que nasçam ou existam nos baldios. No mesmo sentido se pronuncia o M. Tavarela Lobo [Ob. Cit., Vol. I, 62; também os Acs. da Rel. do Porto de 10.7.95, CJ XX, 4, 176 e do STJ de 5.6.96, CJ STJ IV, 2, 114].
Refira-se ainda que o art. 1º do Decreto nº 5787 IIII foi expressamente ressalvado da derrogação prevista no art. 91º do DL 46/94, de 22/2, que estabelece o regime de utilização do domínio hídrico. Este diploma, na linha dos anteriores, estabelece, no seu art. 2º nº 2, que o domínio hídrico compreende o domínio público hídrico previsto no art. 1º do Decreto nº 5787 IIII e o domínio hídrico privado, estabelecido nos arts. 1385º e segs. do CC.

Como bens do domínio público, eram na vigência da Lei das Águas imprescritíveis (art. 372º e 479º do CC de 1867) continuando a sê-lo com o Cód. Civil actual (art. 202º nº 2).
Porém, nos termos do nº 1 d) do art. 1386º do CC, são particulares as águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até 21.3.1868 por preocupação ...
A preocupação consistia na ocupação, para qualquer fim (designadamente para fins agrícolas ou industriais), de águas públicas ou comuns por meio de obras permanentes de represamento ou derivação... Realizados os actos de preocupação, as águas convertiam-se em particulares, entrando na propriedade do preocupante logo que ingressassem na levada ou obras de derivação que as conduziriam ao prédio ou local onde seriam aproveitadas [Henrique Mesquita, Direitos Reais, 198 e 199. Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. Cit., 293 e M. Tavarela Lobo, Ob. Cit., 295; Cândido de Pinho, As Águas no Código Civil, 33 e segs.. Cfr. também os acs. desta Relação de 27.7.78, de 29.4.91 e de 2.3.2000, CJ III, 3, 1226, XVI, 2, 280 e XXV, 2, 181].
No citado preceito legal ressalvam-se assim os direitos adquiridos no domínio do direito antigo que permitia a aquisição por ocupação de quaisquer águas públicas.
Essas águas só poderiam ter sido adquiridas por preocupação, título de aquisição que os AA. também invocaram em relação às águas provenientes do terreno baldio (arts. 12º, 14º, 15º e 17º a 26 da p.i.).

Decorre do exposto, que os AA. alegaram, como forma de aquisição das águas referidas na acção, a usucapião, no que respeita às águas nascidas no prédio particular onde se situam as poças, e a preocupação, relativamente às águas provenientes do terreno baldio.
Na sentença recorrida, não se apreciou nem se fez alusão a qualquer desses títulos de aquisição, analisando-se a questão numa perspectiva que, com o devido respeito, é incompleta (é omissa quanto à água nascida no prédio particular) e, no que toca à água do baldio, claramente não foi invocada.

Os factos alegados pelos AA. para fundamentarem o seu direito sobre as aludidas águas, servidão de aqueduto e violação desta por parte dos RR., são controvertidos.
Daí que os autos devam prosseguir para apuramento da matéria de facto relevante, impondo-se a revogação do saneador-sentença recorrido.

Procedem, por conseguinte, as conclusões do recurso.

V.
Em face do exposto, julga-se a apelação procedente, revogando-se o saneador-sentença recorrido, devendo os autos prosseguir os adequados termos.
Custas pelos apelados.

Porto, 8 de Julho de 2004
Fernando Manuel Pinto de Almeida
João Carlos da Silva Vaz
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo