EMBARGOS DE EXECUTADO
ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA
FORÇA PROBATÓRIA
ÓNUS E ENCARGOS
EXTINÇÃO DE HIPOTECA
Sumário

I – A força probatória plena do documento autêntico abrange apenas os actos que aí sejam referidos como praticados pela autoridade ou oficial público e os actos/factos que aí sejam referidos como atestados pela referida autoridade ou funcionário com base nas suas percepções; o documento em questão prova plenamente que, perante a referida autoridade ou oficial, foram produzidas determinadas declarações ou foram apresentados determinados documentos, mas não faz prova plena dos factos que são objecto dessas declarações (sejam aquelas que foram produzidas perante a autoridade, sejam aquelas que constam de documento que lhe foi exibido), não faz prova plena da validade ou eficácia jurídica dessas declarações, não faz prova plena da autenticidade e autoria dos documentos apresentados e não faz prova plena das apreciações ou juízos pessoais que a entidade documentadora retire dessas declarações ou de outras circunstâncias.
II – A escritura pública (documento autêntico) onde se diz que os outorgantes vendedores declararam vender aos outorgantes compradores um determinado imóvel “livre de ónus e encargos” prova plenamente a emissão dessa declaração, mas não faz prova plena dos factos nela contidos e, portanto, não prova plenamente que o imóvel estivesse, efectivamente, livre de ónus e encargos.
III – Uma escritura pública de compra e venda que não faz referência a qualquer declaração do titular de crédito garantido por hipoteca inscrita no registo predial (que não se encontrava presente) e que não faz qualquer menção à apresentação/exibição de qualquer documento que contivesse declaração de renúncia a tal hipoteca não faz qualquer prova – muito menos plena – da emissão de tal declaração e, consequentemente, da extinção dessa hipoteca.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... Stc S.A. instaurou execução contra AA, BB, CC, DD, EE e FF (todos melhor identificados nos autos), pedindo o pagamento da quantia global de 302.687,70€ correspondente ao valor em dívida (capital, juros e despesas) referente a um contrato de mútuo celebrado entre a Banco 1... e os Executados AA, BB, crédito que, entretanto, foi cedido à Exequente.

Alega que para garantia desse crédito foi constituída e registada hipoteca voluntária sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11, hipoteca essa que ainda se encontra activa em relação às frações B e F entretanto construídas naquele prédio.

Mais alega que a fracção B foi adquirida pelos Executados EE e FF e que a fracção F foi adquirida pelos Executados CC e DD, razão pela qual os mesmos são executados nesta execução.

Os Executados CC e DD vieram deduzir oposição à execução, mediante embargos, sustentando, além do mais e na parte que releva para o presente recurso, que a hipoteca invocada sobre a fracção F) – que adquiriram em 30/09/2002 e que está definitivamente registada a seu favor – não pode subsistir. Com efeito – dizem – essa hipoteca é anterior à sua aquisição e na respectiva escritura ficou consignado que a venda era feita livre de ónus ou encargos, o que impõe a conclusão de que foi exibido ao Notário que lavrou a escritura documento bastante para que o mesmo fizesse inscrever aquela declaração. Mais alegam ter adquirido o imóvel na convicção de que o mesmo estava livre e desonerado, o mesmo tendo acontecido com o Banco 2... SA que financiou a aquisição do bem imóvel por parte dos embargantes, que se fez representar na escritura e que, de outro modo, não teria concedido o crédito.

Nessas circunstâncias, alegando que a ausência de ónus foi certificada por notário e aludindo à força probatória dessa certificação na escritura pública, concluem que a hipoteca não pode subsistir e que, como tal, a execução não pode prosseguir em relação à fracção em causa (de sua propriedade).

A Exequente apresentou contestação onde pugnou pela improcedência dos embargos, alegando, no que toca à hipoteca, que ela se mantém activa em relação à fracção aqui em causa (F), sendo certo que nunca foi emitido pelo respectivo credor qualquer documento de distrate ou cancelamento dessa hipoteca. Assim – diz – embora desconheça o negócio de compra e venda e os termos em que ele foi realizado, é certo que, caso tenha sido aí exibido qualquer documento para que o notário fizesse inscrever a declaração de que a venda era feita livre de ónus ou encargos, esse documento é falso. Conclui invocando a falsidade da escritura de compra e venda por mencionar factos que são falsos e não têm correspondência com a realidade, pois, não existindo distrate para cancelamento da hipoteca da Banco 1..., nunca podia a venda ser feita livre de ónus e encargos, realidade que se encontra reflectida no registo predial.

Foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedentes os embargos e determinou o prosseguimento da execução.

Inconformados com essa decisão, os Embargantes vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1 - Os embargantes adquiriram a Fracção “F”, correspondente à moradia nº... de rés-do-chão e 1º andar destinada a habitação do Tipo T 3, descrito na Conservatória do Registo Predial ... na ficha ...20..., por escritura de compra e venda outorgada em 30.09.2022, no Cartório de GG, AA e BB;

2 - Encontra-se registada hipoteca voluntária sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 da freguesia ..., e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...96, hipoteca que se encontra registada na referida Conservatória do Registo Predial através da Ap. ...2 de 08/06/2000 que abrange a fracção referida na conclusão anterior;

3 - Na escritura de compra venda ficou consignado que os vendedores declararam vender aos Embargantes/Executados a fracção livre de ónus ou encargos;

4 - Os embargantes adquiriram o imóvel (fracção F) na convicção de que o mesmo estava livre e desonerado;

5 - A Notária fez inscrever na escritura de compra e venda que a mesma era feita livre de ónus e encargos porque lhe foi exibido documento bastante para o efeito, inexistindo obrigação legal de guardar cópia do documento em causa, bastando a exibição do mesmo, apesar do mesmo nunca ter sido sujeito a registo;

6 - A função notarial destina-se a dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais;

7 - O contrato de compra venda de imóveis só era válido, à data, se fosse celebrado por escritura pública e, actualmente, por documento particular autenticado;

8 - É o Notário que, pela função pública que exerce, tem competência legal para atribuir fé pública aos documentos e que, por isso, lhes confere autenticidade;

9 - Tratando-se de documento lavrado por Notário, com as formalidades legais, a escritura de compra e venda que os embargantes outorgaram para adquirir a fracção tem de considerar-se documento autêntico;

10 - Sendo a escritura um documento autêntico a força probatória que a lei lhe confere é plena e, por consequência, quanto à força probatória material (que respeita ao conteúdo documento), ficam plenamente provados na escritura os factos que o Notário diz ter praticado e os que ele se certificou;

11 - Tendo a Notária feito incluir na escritura que o prédio era transmitido livre de ónus ou encargos deve ter-se por provado tal facto;

12 - A sentença recorrida, ao desconsiderar o teor da escritura pública de compra e venda quanto à sua força probatória plena, violou o disposto no nº1 do artigo 371.º do Código Civil;

13 - A douta sentença, ao julgar improcedentes os embargos à execução, fez errada apreciação e aplicação do direito.

Nos termos sobreditos, deve ser dado provimento ao recurso interposto, revogando-se em conformidade a douta sentença recorrida, e substituída por outra que julgue os embargos procedentes, ordenando-se o cancelamento da penhora sobre a fracção a que se refere o ponto 11. Dos factos provados.

Não houve resposta ao recurso.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se a escritura pública junta aos autos (por via da qual os Embargantes/Apelantes adquiriram o imóvel em causa nos autos) prova plenamente que, à data, o imóvel em causa estava livre de ónus e encargos e, mais concretamente, da hipoteca aqui invocada pela Exequente/Embargada.


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III.

Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. No exercício da sua actividade creditícia, a Banco 1..., celebrou com os Executados AA e BB, a escritura que serve de título à presente Execução, no montante de 85.000.000,00 escudos, correspondente a 423.978,21€, junta com o requerimento executivo.

2. Para garantia das obrigações assumidas, foi constituída hipoteca voluntária sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 da freguesia ..., e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...96, hipoteca que se encontra registada na referida Conservatória do Registo Predial através da Ap. ...2 de 08/06/2000.

3. A referida hipoteca encontra-se activa quanto às frações B e F do Prédio descrito em 2).

4. Os Mutuários faltaram ao pagamento contratado e devido ao mutuante, em 28/05/2006.

5. Os Embargantes não são parte no contrato de mútuo, não tendo nele intervindo.

6. Para cobrança do crédito descrito no requerimento executivo, foi instaurada pela Banco 1..., em 13/10/2007, a acção executiva n.º 1792/07...., que correu termos no Juiz ... do Juízo de Execução ... da Comarca ....

7. O processo extinguiu-se, por decisão notificada em 27/02/2017, o que motivou a instauração da presente execução, em 12/06/2017.

8. A hipoteca registada a favor da Banco 1..., sob a Ap. ...2 de 08/06/2000, foi transmitida para a ora Exequente, através da Ap. ...51, de 31/05/2016, em virtude da cessão de créditos operada.

9. A Banco 1... (e a ora Exequente) nunca emitiram qualquer documento, distrate ou termo de cancelamento da hipoteca que onera a fracção em causa.

10. A ter sido exibido documento bastante para que o notário fizesse inscrever a declaração de que a venda era feita livre de ónus ou encargos, o mesmo não correspondia à realidade.

11. Os Embargantes adquiriram a Fracção “F”, correspondente à moradia nº ... de rés-do-chão e 1º andar destinada a habitação do Tipo T 3, descrito na Conservatória do Registo Predial ... na ficha ...20..., por escritura de compra e venda outorgada em 30.09.2002[1], no Cartório de GG, AA e BB.

12 .Desde pelo menos a data descrita em 11) que os Embargantes residem na dita fracção, foi lá que fixaram o centro da sua vida, aí comem, dormem recebem amigos e familiares.

13. Por dizeres exarados na escritura de compra e venda descrita em 11), os vendedores declararam vender aos Embargantes/Executados o prédio identificado em 11) livre de ónus ou encargos, afirmando que: “pelo preço já recebido de noventa e um mil trinta euros e sessenta dois cêntimos, vendem ao segundo outorgante livre de ónus ou encargos,”.

14. Os Embargantes adquiriram o imóvel (fracção F) na convicção de que o mesmo estava livre e desonerado.

15. No negócio de compra e venda, esteve sempre HH agente imobiliário e gerente da imobiliária B..., sociedade de mediação imobiliária, Lda, o qual com os Embargantes, subscreveu contrato promessa em que prometeu vender-lhes a fracção em causa.

16. Foi o referido HH que obteve toda a documentação necessária e fez os contactos quer com o Banco, quer com os vendedores (executados), que os Embargantes nem sequer conheciam.

16. Todo o processo conducente à aquisição e obtenção do crédito bancário foi conduzido através do balcão do então Banco 3... (actual Banco 4...).

17. A Banco 1... e a ora Exequente não conhecem o negócio, nele não participaram, nem intervieram, não sabendo que documentos foram apresentados ao notário para a realização da escritura, se o mesmo fez uma (in)correta análise dos ónus existentes, ou se a menção que fez de a venda realizar-se livre de ónus e encargos se baseou apenas nas declarações das partes outorgantes na escritura e às quais a Banco 1... e a Exequente são alheias.

18. Desconhece-se qual seja o teor do documento apresentado à Notária em 10) que permitiu que tenha ficado ali inscrito “livre de ónus e encargos”.

19. Nos autos descritos em 6) e 7) resulta que foi efetuado registo de penhora nas fracções autónomas designada pelas letras "B" e "F" do prédio urbano sito na freguesia e concelho ..., ... sob o nº...20. Que os titulares inscritos, foram citados nos termos do disposto no art. 119º, n.º 1 do C. Registo Predial em 28-12-2011, 20-09-2012 e 29-09-2012; tendo os mesmos declarado por requerimento de 06-01-2012 e 26-10-2012 que os mesmos que o bem lhes pertence; que foram proferidos despacho judiciais a remeter os interessados para os meios comuns em 21-03-2012 e 21-01-2016, os quais foram devidamente notificados às partes em 27-03-2012 e 25-01-2016, tendo os mesmos transitado em julgado em 18-04-2021 e 08-02-2016. E de que por requerimento do exequente de 9/02/2017, refª 2485565, entrada 3567576, o mesmo desistiu da instância, tendo o agente de execução procedido à extinção em 27/02/2017.


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IV.

Está em causa no presente recurso uma hipoteca que onera um imóvel (fracção F do prédio identificado nos autos) adquirido pelos Embargantes por escritura de pública de compra e venda de 30/09/2002. Tal hipoteca havia sido constituída e registada, em momento anterior à aquisição dos Embargantes, para garantia da obrigação que está a ser exigida na presente execução e que havia sido assumida pelos anteriores proprietários (os Executados AA e BB) em relação à Banco 1....

Em desacordo com a decisão que julgou os embargos improcedentes, sustentam os Embargantes (CC e DD) que, ao contrário do que se decidiu, aquela hipoteca já não subsiste, apelando, para o efeito (e essa é a única questão suscitada no recurso), à força probatória plena da escritura pública de compra e venda (por via da qual adquiriram o imóvel) onde se fez constar que o prédio era transmitido livre de ónus e encargos. Segundo os Apelantes, estando em causa um documento autêntico e tendo a Notária feito inscrever nesse documento (escritura) que a venda era feita livre de ónus ou encargos, deve considerar-se provado que assim era efectivamente e que, como tal, já não subsistia a hipoteca anteriormente constituída e registada, concluindo, em consequência, que ao decidir de outro modo – julgando os embargos improcedentes – a sentença recorrida desconsiderou a força probatória plena desse documento e violou o disposto no art.º 371.º, n.º 1, do CC.

Salvo o devido respeito, não assiste razão aos Apelantes, uma vez que, ao contrário do que sustentam, a escritura em causa não faz prova plena do referido facto, ou seja, não faz prova plena de que o imóvel estava, de facto, livre de ónus e encargos e, designadamente, da hipoteca anteriormente constituída e registada.

Expliquemos. 

É indiscutível que o documento em questão é uma escritura pública exarada pelo Notário e, portanto, estamos – como dizem os Apelantes – perante um documento autêntico (cfr. artigo 363º, nº 2, do CC).

Em relação à força probatória desses documentos, dispõe o artigo 371º, nº 1, do CC que – “…fazem plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.

Mas a força probatória plena do documento termina aí e, portanto, ela apenas abrange os actos que aí sejam referidos como praticados pela autoridade ou oficial público e os actos/factos que aí sejam referidos como atestados pela referida autoridade ou funcionário com base nas suas percepções; essa força probatória não abrange, no entanto, os factos compreendidos em quaisquer declarações que aí tenham sido proferidas perante a autoridade ou oficial público nem a validade e eficácia dessas declarações. O documento provará plenamente que, perante a referida autoridade ou oficial, foram produzidas determinadas declarações ou foram apresentados determinados documentos, mas não faz prova plena dos factos que são objecto dessas declarações (sejam aquelas que foram produzidas perante a autoridade, sejam aquelas que constam de documento que lhe foi exibido), não faz prova plena da validade ou eficácia jurídica dessas declarações, não faz prova plena da autenticidade e autoria dos documentos apresentados e não faz prova plena das apreciações ou juízos pessoais que a entidade documentadora retire dessas declarações ou de outras circunstâncias[2].

Vejam-se, a propósito, as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela[3]: “O valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou se contém no documento, mas somente aos factos que se referem praticados pela autoridade ou oficial público respectivo (ex: procedi a este ou àquele exame), e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas percepções da entidade documentadora. Se, no documento, o notário afirma que perante ele, o outorgante disse isto aquilo fica plenamente provado que o outorgante disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coação, ou que o acto não seja simulado”.

Foi também nesse sentido (que pensamos não ser controvertido) que se pronunciaram, entre outros, os seguintes Acórdãos do STJ[4]:

O Acórdão do STJ de 11/07/2023 (processo n.º 176/14.0T8OAZ-A.P1.S1), em cujo sumário se lê: “O artigo 371º, n.º 1, do Código Civil abrange, em termos de força probatória plena, o que foi percepcionado pelo oficial público que presidiu à escritura e aquilo que os outorgantes perante ele formalmente declararam (conteúdo extrínseco das declarações), não cobrindo, não obstante, a veracidade, sinceridade ou autenticidade do afirmado, bem como toda a restante realidade que subjaz à concretização do negócio (conteúdo intrínseco das declarações)”;

O Acórdão do STJ de 20/04/2022 (processo n.º 549/19.1T8PVZ.P1.S1), onde se lê: “No que respeita às declarações proferidas pelas partes perante o oficial público, o documento prova plenamente que a apresentante disse perante o Tesoureiro da Fazenda Pública que os aludidos prédios foram inscritos na matriz anteriormente ao ano de 1951, mas não prova, nem pode provar, que tal facto corresponde à realidade, isto é. que o conteúdo da declaração é verdadeiro, sendo que, do teor do documento, de natureza meramente narrativa, nada permite concluir no sentido propugnado pelo recorrente, de que tal facto foi atestado ou percecionado diretamente pelo oficial público)”;

O Acórdão do STJ de 11/12/2018 (processo n.º 342/15.0T8VPA.G1.S1), em cujo sumário se lê: “A força probatória material dos documentos autênticos restringe-se, nos termos do art. 371.º, n.º 1, do CC, aos factos, praticados ou percepcionados pela autoridade ou oficial público, que emanam dos documentos, já não abarcando, porém, a veracidade e eficácia jurídica das declarações que deles constam”.

Ora, à luz do que foi dito, pensamos ser claro que, ao contrário do que sustentam os Apelantes, o documento em questão (a escritura pública de compra e venda) não prova plenamente que a fracção em questão estivesse livre de ónus e encargos e, designadamente, da hipoteca aqui em causa.

Refira-se, desde logo, que não encontramos na referida escritura qualquer referência ao facto de a Sr.ª Notária ter referido, declarado ou atestado de qualquer modo, com base nas suas percepções (designadamente, com base em documentos que lhe tivessem sido exibidos), que a fracção em causa estava livre de ónus e encargos. Tão pouco consta da referida escritura que tivesse sido exibido qualquer documento (declaração do credor em benefício de quem estava constituída a hipoteca) com base no qual a Sr.ª Notária pudesse ter atestado – ou sequer declarado ou sugerido – que não existia qualquer ónus (designadamente a referida hipoteca), importando notar que, conforme resulta do disposto no art.º 46.º do Código do Notariado, qualquer documento que tivesse sido exibido tinha que ser mencionado na escritura. Não é verdade, portanto – ao contrário do que dizem os Apelantes – que a Notária tenha feito inscrever na escritura de compra e venda que a mesma era feita livre de ónus e encargos porque lhe foi exibido documento bastante para o efeito; não consta da escritura qualquer declaração ou certificação da Notária sobre essa matéria, tal como dela não consta que tenha sido exibido qualquer documento que justificasse essa declaração.

O que consta da escritura sobre essa matéria é apenas que os primeiros outorgantes ali disseram/declararam vender a referida fracção ao segundo outorgante “livre de ónus e encargos”, ou seja, quem afirmou e declarou que a fracção estava livre de ónus e encargos não foi a Notária, mas sim os outorgantes vendedores.

Nessas circunstâncias, aquilo que está plenamente provado pela referida escritura é que os referidos outorgantes disseram/declararam que a fracção estava livre de ónus e encargos; tal escritura não prova, no entanto, que essa declaração seja verdadeira e que, como tal, não existissem, efectivamente, quaisquer ónus ou encargos.

Refira-se que, ainda que a Sr.ª Notária tivesse declarado ou atestado que o imóvel estava livre de ónus e encargos – o que não aconteceu –, tal afirmação não seria abrangida pelo valor probatório pleno atribuído à escritura pública enquanto documento autêntico. Tal afirmação traduziria um juízo/conclusão da Sr.ª Notária que, necessariamente, teria que resultar da apreciação de declarações perante ela produzidas ou de documentos que lhe tivessem sido apresentados. Mas, nessa situação, aquilo que resultaria plenamente provado é que haviam sido produzidas essas declarações ou que haviam sido apresentados esses documentos com determinado conteúdo ou contendo determinada declaração; os factos compreendidos nessas declarações ou documentos não ficariam abrangidos pela força probatória plena da escritura (documento autêntico) e apenas resultariam provados em função do valor probatório atribuído a tais declarações (por força, designadamente, de eventual confissão que elas contivessem) ou aos referidos documentos. Refere, a propósito, José Lebre de Freitas[5]: “...os factos que sejam objecto de declaração constante de documento cuja apresentação e teor tenham sido atestados são abrangidos pela força probatória que tiver esse outro documento e o documento autêntico que o atesta deverá, para os fins exclusivos do acto que documenta, como que assimilar essa força probatória e, conforme os casos, estabelecer a prova dos factos em causa como o faria uma certidão ou uma pública-forma (C. Civil. arts. 383.º a 386.º), sem prejuízo da possibilidade de arguição da falsidade do documento apresentado”. A Sr.ª Notária poderia atestar – com base em certidão do registo predial que lhe fosse exibida – que nenhum ónus ou encargo estava inscrito no registo, nos mesmos termos em que poderia atestar que o titular da hipoteca registada havia declarado na sua presença renunciar a tal garantia ou que lhe havia sido exibido um documento atribuído a esse credor onde este emitisse essa declaração de renúncia, mas já não poderia atestar a autenticidade/genuinidade deste documento, nem a veracidade, validade e eficácia dessas declarações (feitas presencialmente ou em documento que lhe fosse exibido). Nessas circunstâncias, ficaria plenamente provado: que havia sido apresentada certidão do registo predial onde não constava a inscrição de qualquer ónus ou encargos; que havia sido feita, na sua presença, aquela declaração ou que lhe havia sido apresentado documento contendo tal declaração. Mas nada mais do que isso; tudo o mais, apenas ficaria abrangido pela força probatória legalmente atribuída às declarações ali produzidas ou aos documentos ali apresentados.

Certo é que, no caso em análise, o documento em causa (escritura pública) não faz menção a qualquer declaração de renúncia à hipoteca que tivesse sido produzida/emitida perante a Sr.ª Notária (o credor em causa nem sequer se encontrava presente) e também não é feita qualquer menção à apresentação e exibição de qualquer documento que contivesse essa declaração e, portanto, é certo que a referida escritura não faz qualquer prova (muito menos plena) da emissão de qualquer declaração de renúncia à hipoteca; muito menos poderá ter essa força probatória em relação ao facto de a hipoteca se encontrar extinta e o imóvel estar “livre de ónus e encargos”.

Dizem os Apelantes que a Sr.ª Notária fez inscrever na escritura que a venda era feita livre de ónus e encargos porque lhe foi exibido documento a atestar esse facto.

Em primeiro lugar, não é correcto afirmar – como se disse supra – que a Sr.ª Notária tenha declarado tal (de facto, não declarou), embora se admita que, perante a declaração dos vendedores (segundo a qual vendiam a fracção “livre de ónus e encargos”), tivesse chamado a atenção para a hipoteca caso tivesse tido a percepção da sua existência. É certo, por outro lado, como também já se disse, que a escritura não faz menção à apresentação de qualquer documento e, portanto, ela não prova – muito menos plenamente – que tal tenha acontecido. Mas ainda que a escritura mencionasse a apresentação do referido documento, apenas ficaria plenamente provado que ele havia sido apresentado e que tinha o conteúdo que aí fosse relatado, mas já não ficaria plenamente provada a genuinidade ou autoria desse documento. E tal significa que o credor (a Embargada) sempre seria admitido a provar por qualquer meio que o documento em questão não era da sua autoria, como, de facto, aconteceu, uma vez que resultou provado que o referido credor nunca emitiu qualquer declaração por via da qual tivesse renunciado à hipoteca.

É certo, portanto, que, se algum documento foi exibido (e – reafirma-se – a escritura não faz prova desse facto porque não faz menção a tal documento), ele não seria verdadeiro (cfr. ponto 10. da matéria de facto), ou seja, não provinha da pessoa que tinha legitimidade para renunciar à hipoteca. Em todo o caso, é, no mínimo, estranho que, caso tivesse sido apresentado algum documento, ele não tivesse sido mencionado na escritura (como impunha o art.º 46.º do Código do Notariado) e mais estranho se torna quando é certo que tal documento (ainda que falso) nunca apareceu nos autos. Teoricamente, esse documento – a ter sido apresentado – estaria em poder dos Embargantes ou em poder da instituição bancária que lhes concedeu crédito, sendo certo que eram os interessados em promover o registo do cancelamento da hipoteca, sendo certo, no entanto, que tal documento nunca foi junto aos autos.

 Concluimos, portanto, em face do exposto, que, ao contrário do que sustentam os Apelantes, a escritura em questão não prova plenamente que o imóvel estivesse livre de ónus e encargos e, mais concretamente, que estivesse livre da hipoteca que estava inscrita no registo.

Ora, não existindo – conforme se referiu – prova plena da extinção da hipoteca, o que resultou provado é que o ónus em causa ainda subsistia, porquanto a Banco 1... nunca emitiu qualquer documento por via do qual tivesse renunciado à hipoteca. A inexistência desse documento torna-se, aliás, evidente. Em primeiro lugar, porque o crédito não foi pago (está a ser exigido nesta execução e, ao que nos é dado ver, não foi aqui invocado o respectivo pagamento) e seria improvável, ou mesmo inviável, que a credora tivesse renunciado à garantia sem obter a satisfação do crédito; em segundo lugar, porque, se tal documento existisse, seguramente que os interessados já teriam promovido (com sucesso) o registo do cancelamento da hipoteca, o que, até hoje, não aconteceu.

É certo – como se julgou provado (cfr. ponto 14) – que os Embargantes adquiriram o imóvel na convicção de que o mesmo estava livre e desonerado e admitimos que a instituição bancária que lhes concedeu o mútuo com vista a tal aquisição – e até a própria Notária – tivessem idêntica convicção. Desconhecemos as razões que fundaram essa convicção; não sabemos se isso resultou apenas da confiança que depositaram na declaração dos vendedores ou se assentou em qualquer documento que lhes tivesse sido exibido. Mas, seja como for, esse facto não era verdadeiro (a hipoteca subsistia), podendo, assim, afirmar-se que os Embargantes incorreram em erro quando adquiriram o imóvel. Mas esse erro dos Embargantes – embora possa afectar a validade do negócio que celebraram (compra e venda) e legitimar o exercício (contra os vendedores) dos direitos estabelecidos nos artigos 905.º e segs. do CC – não poderá afectar ou prejudicar o direito legítimo do credor cujo crédito está garantido pela hipoteca e que não teve qualquer intervenção no negócio em causa nem qualquer responsabilidade pelo erro em que os Embargantes incorreram.

Improcede, portanto, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                   (Maria João Areias)

                                                     (Arlindo Oliveira) 


[1] Na decisão recorrida mencionou-se, por lapso, 2022.
[2] Cfr. José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, 1984, paginas 35 a 40.
[3] Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição revista e actualizada, pág. 326.
[4] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[5] Ob. cit., pág. 40.