INVENTÁRIO NOTARIAL REMETIDO A TRIBUNAL
ATOS PROCESSUAIS PRATICADOS
Sumário

Tal como decorre do disposto no n.º 4 do artigo 13.º da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, remetido o inventário notarial ao tribunal, deve este, com base nos seus poderes de gestão processual e adequação formal, “conciliar o respeito pelos efeitos dos atos processuais já regularmente praticados”, ou seja, não há lugar à apreciação de questões que se mostrem anteriormente apreciadas sem impugnação ou que, não tendo sido suscitadas, precludiram.

Texto Integral

Processo n.º 459/20.0T8FLG-AP1

Recorrente – AA (com curador nomeado BB)

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Maria de Fátima Andrade e Miguel Baldaia de Morais.

Acordam na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
Conforme resulta documentado nos autos principais, relativamente aos quais o presente recurso subiu em separado, o Inventário teve início em Cartório Notarial, por requerimento de CC de 1.03.18, sendo inventariados DD e EE.

A requerente foi nomeada cabeça de casal e veio a prestar declarações a 25.09.18. De tais declarações resultou – sem oposição – serem interessados a própria declarante (filha), FF (filha), GG (cônjuge de HH, filho falecido), as filhas deste, II, JJ e AA (netas dos inventariados), sendo esta última menor de idade e ainda KK (filho).

Foi apresentada Relação de Bens e indicado curador à neta menor de idade (15.10.18), o qual, BB, foi nomeado a 22.10.18, citado (26.10.18) e prestou compromisso de honra (20.11.2018). A 14.02.2019, a cabeça de casal veio esclarecer que, relativamente a prédio expropriado, e em razão da expropriação, os inventariados já não seriam titulares do mesmo na sua totalidade, mas tal requerimento veio a ser indeferido (20.03.19), sendo retificada a Relação de Bens e notificados os interessados, incluindo o curador da menor AA (1.04.19).

As interessadas GG e as filhas desta (netas dos inventariados) II e JJ juntaram procuração e reclamaram da Relação de Bens (6.05.19), sustentando, em síntese que deviam ser excluídas da qualidade de devedoras, tal como a (menor de idade) AA, que devia haver avaliação das verbas 6 a 10 e que faltava relacionar um veículo, um trator e o prédio urbano correspondente à casa de habitação do interessado KK e mulher, doada a estes.

A 13.12.19, no pertinente despacho, em sede notarial, foi declarada como não apresentada aquela reclamação à Relação de Bens e declarados definitivos os bens a partilhar, e os interessados, bem como o curador da AA, foram notificados para a conferência preparatória e esta veio a ter lugar a 20.12.19, tendo sido aí requerida e deferida a sua suspensão, uma vez que estava em falta, com vista ao acordo dos interessados, a avaliação dos imóveis.

A 29.04.20 foi proferido despacho pela Sra. Notária a remeter os autos para o tribunal, ora recorrido, atento o disposto no artigo 12.º, n.º 1 da Lei 117/2019, remessa essa que ocorreu a 11.05.20.

No tribunal recorrido foi nomeado avaliador dos imóveis e o relatório respetivo foi junto a 20.10.20, e na mesma data notificado a todos os interessados; interessados e Ministério Público que vieram a ser notificados para a conferência de interessados, a qual (com a presença, além dos demais, do Ministério Público e do curador da AA) , a 13.01.21 foi suspensa a pedido dos interessados, com vista a eventual acordo. A 4.06.21 foi comunicado aos autos não ter sido possível o acordo, tendo sido designada, a 31.07.21, nova data para a conferência de interessados.

Entretanto, a 13.09.21, o curador da AA veio comunicar ao Ministério Público ter conhecimento de factos relevantes para o interesse da interessada menor. Junto aos autos tal comunicação, veio posteriormente o curador, a 14.12.21, dizer aos autos que existia um imóvel por partilhar, simuladamente vendido à mulher do interessado KK; que nada foi relacionado em relação ao processo de expropriação; que o veículo do inventariado EE “foi passado” para o nome de FF e, ainda, que existe um trator agrícola com alfaias que não foi relacionado, requerendo ao Ministério Público que “se digne apurar os factos relatados” .

Os interessados foram notificados. A 2.02.22, a cabeça de casal respondeu, negando a falta de relacionação dos bens [“(...) O requerimento não tem qualquer fundamento e deverá improceder; O imóvel foi adquirido aos Autores da herança que receberam o preço e entregaram a posse à adquirente, tudo conforme escritura de aquisição, certidão predial, certidão matricial e documentos de pagamento bancários que se juntam ao presente requerimento; A expropriação da parcela referida no requerimento ocorreu, a entidade expropriante pagou o preço e os expropriados receberam o preço nada mais tendo a herança a receber; O automóvel ..-..-ZQ e trator agrícola com alfaias foram transmitidos, pelo que não pertencem à herança] e, diversamente, a 14.02.22, as interessadas GG e suas filhas maiores concordaram com o alegado pelo curador.

Foi proferido despacho (31.03.22) a determinar a junção da certidão de registo automóvel e certidão predial, o que sucedeu. Não obstante, o Ministério Público (16.05.22) promoveu, “1- Muito embora tenha sido junto pela cabeça-de-casal escritura, certidão predial e matricial do imóvel em causa, bem como documentos bancários comprovativos de constituição de hipotecas sobre o imóvel, não foram juntos aos autos, comprovativos do pagamento do preço da compra, pelo que se promove seja LL, para em 10 dias juntar tais comprovativos. 2- No que se refere à referida expropriação, resulta da certidão predial, a expropriação de uma parcela de terreno, parcela nº..., com a área de 358m2, para utilidade pública, correu termos no Tribunal Judicial de Felgueiras, 3.º Juízo - processo n.º 1956/08.0TBFLG, pelo que promovo se oficie a tal processo, certidão sobre tal expropriação, designadamente onde conste, o valor pago, a data de pagamento, a entidade pagadora e o meio de pagamento. 3 - No que se refere ao automóvel da marca Peugeot de matrícula ..-..-ZQ, promove-se notificação da Conservatória do Registo Automóvel para juntar aos autos, certidão do requerimento subscrito pelos intervenientes na aludida, compra e venda”, o que foi deferido por despacho de 25.05.22.

As interessadas GG e suas filhas maiores apresentaram requerimentos a 20.06.22 [1. A exposição não esclarece nada do que foi suscitado pelo tutor da menor e que as interessadas subscreveram. 2. A questão suscitada quanto ao imóvel é a seguinte: “de facto e como é do conhecimento de todos, sido foi simulada uma venda para o nome de LL, atual esposa de KK, interessado neste inventário.” 3. Continuando: “A prova evidente da simulação, é que o imóvel se manteve na posse dos falecidos, sendo falso que os estes tenham recebido qualquer valor pela venda fictícia, aliás requer a V. Exc.ª que a Sra. LL venha aos autos informar e juntar os meios de pagamento, bem assim como os extratos bancários dos quais constem os movimentos a débito e a crédito relativos ao alegado pagamento. Considerando o exposto, deverá a sobredita casa fazer parte da presente partilha.” 4. Notificada para o efeito, vem a requerente – interessada de facto – informar o óbvio, dizendo que o imóvel foi pago por intermédio de dois cheques. 5. Tal não responde às questões e dúvidas suscitadas, pois considerando a invocada simulação por intermédio do crédito bancário é, evidente que o banco creditou esse valor, 6. A questão reside em saber quem foi, de facto o beneficiário(s) desse dinheiro e não foram os inventariados, mas sim a própria LL e seu marido, interessado nesta partilha. 7. A invocação no requerimento de que o imóvel em causa é um bem próprio seu, é, em face do exposto, uma verdade de direito, mas não de facto, pois, conforme alegado, o imóvel nunca saiu da posse dos inventariados, nem estes receberam qualquer valor pela simulada venda. 8. Em face do exposto, requer a identificada LL seja notificada para vir aos autos informar em que conta os referidos cheques foram depositados, devendo posteriormente, ser a referida instituição bancária ser notificada para juntar aos autos, os extratos bancários referentes aos meses e anos imediatamente seguintes, por forma a apurar-se o «rasto do dinheiro»] e a 4.07.22 [1. Quanto ao automóvel: 2. Considerando a informação que o pedido de registo foi efetuado on-line, requer se digne notificar a Conservatória para vir aos autos informar quem foi que apresentou tal registo. 3. Além disso, deve a pseudo compradora FF ser notificada para juntar aos autos o comprovativo do pagamento. 4. Quanto à expropriação: resulta da notificação efetuada ter sido pago pela entidade expropriante 40.592,02€, pagamento esse concretizado em dezembro de 2015, ou seja, já depois da morte dos inventariados. 5. Resulta da nota de pagamento que o mesmo pago a KK. 6. Em face disso, deve o mesmo ser notificado para vir aos autos informar qual foi o destino de tal dinheiro, informando em que conta foi depositado. 7. Considerando que esse dinheiro era dos inventariados, deve o mesmo ser relacionado para partilha, o que, se verifica, não sucedeu.], requerimentos que o Ministério Público veio a acompanhar (25.07.22).

Na sequência foi proferido despacho a designar a audiência prévia, antecedendo a conferência de interessados [Atendendo a que, à presente data, encontram-se inúmeras questões que demandam apreciação previamente à realização da conferência de interessados e tendo em conta o tortuoso iter processual observado até ao momento, a fim de sanar tais questões, para a realização de audiência prévia, nos termos do disposto no art. 1109.º CPC, designo o próximo dia 09.11.2022, pelas 13.45 horas, e não antes por indisponibilidade (de agenda e sala) do tribunal], audiência prévia sucessivamente adiada (9 e 16.11.22 e 23.01.23), vindo a ter lugar a 13.02.23, e nos termos que a respetiva ata documenta.

Na aludida audiência prévia, com presença de todos os interessados e, bem assim, do curador da AA foi proferido o despacho que ora é objeto do presente recurso. O despacho tem o seguinte teor: “Considerando que:
1. - os presentes autos "nasceram" de um processo de Inventário Notarial; 2. - do elenco de interessados no âmbito dos mesmos, faz parte AA, à data menor de idade; 3. - na pendência do processo no Notário, e por despacho de fls. 47 destes autos, foi nomeado como Curador especial da mesma, BB, tio da menor, que, a 20.11.2018, prestou compromisso de honra a fls. 54 dos autos, diligência no âmbito da qual foi citado para todos os termos do inventário, tendo os subsequentes atos processuais sido ao mesmo notificados nessa qualidade (cfr. fls.48, 50, 95, 102, 146, 150); 4. - ainda no âmbito do Processo Notarial, tiveram lugar todas as fases processuais legalmente previstas, inexistindo qualquer reclamação à relação de bens então apreciada e conforme se extraí do despacho de fls. 136 dos autos, qualquer questão suscetível de influir na partilha, tendo, subsequentemente, sido o designado, para a realização da conferência preparatória, o dia 20-12-2019; 5. - conforme se retira de fls. 156 dos autos, em sede de conferência preparatória, foi determinada a avaliação dos imóveis, mais tendo sido referido pelo Curador da menor que não seria possível chegar a um acordo e, em consequência, foi determinada a avaliação dos imóveis encontrando-se o respetivo relatório junto aos autos; 6. - Após, foram os presentes autos remetidos a este Tribunal nos termos do artigo 12.º, n.º 1, da Lei 117/2019, de 13 de setembro; 7 - Por requerimentos de 13-09-2021 e 14-12-2021 o referido Curador da menor veio suscitar um conjunto de questões com eventual conexão e pertinência para determinação do acervo hereditário e, nessa medida, passíveis de influir na partilha; 8. - Não obstante e considerando a fase em que os presentes autos se encontram, por um lado, e considerando também os interesses que o referido Curador representa.
Este Tribunal julga que, nada obsta, e sendo vontade dos interessados, à obtenção de uma solução consensual que ponha termo a todas as questões suscitadas pelo aludido Curador. Não obstante, e inexistindo consenso dos interessados, a remessa do processo de inventário para o tribunal terá que respeitar os efeitos dos atos processuais já regularmente praticados pelo que as questões suscitadas pelo Curador, no momento em que o foram, sendo intempestivas, não podem ter o condão de fazer recuar os autos a uma fase que há muito se mostra ultrapassada (já se encontrava, aliás, mesmo antes da remessa dos autos, quanto estes ainda se encontravam no notário) – art.13.º n.º 3 e 4 do DL.117/2019 de 13.09. Em face do exposto, não tendo sido logrado qualquer acordo, ao Tribunal não resta senão determinar o prosseguimento dos autos nos exatos termos em que os mesmos se encontram e foram recebidos e o integral respeito pelo trânsito em julgado formal observado”.

II – Do Recurso
O curador da menor AA veio invocar a falta de cópia da decisão proferida em ata e, após (21.03.23) veio a entender que o Ministério Público deveria recorrer do despacho ora em causa, mas, à cautela, informou ter requerido o benefício do apoio judiciário e o patrocínio oficioso, o que determinou a interrupção do prazo de recurso. Nomeado patrono, a menor AA veio a apelar, em recurso que, após resposta da cabeça de casal, veio a ser recebido com efeito suspensivo.

Com o aludido recurso, a interessada pretende que seja revogado o despacho apelado e substituído “por outro que considere a factualidade alegada nos requerimentos apresentados nos autos pelo curador da menor recorrente no dia 13/9/2021 com referência citius 7337666 e 14/12/2021 com referência citius 7571999, e bem assim toda a prova produzida em consequência do despacho judicial de 19/1/2022 com referência citius 87435315; do despacho judicial de 31/03/2022 com referência citius 88332918; a promoção Magistrada MP de 16/04/2022 com referência citius 88679856 e sobre a qual recaiu o despacho judicial de 25/05/2022 com referência citius 88827048; e do despacho judicial de 7/9/2022 com referência citus 89498627, ordenando-se o prosseguimento dos autos para instrução da causa no atinente ao bens cuja falta foi acusada ou então que ordene a expressa citação do MP para apresentar reclamação à relação de bens, assim se adaptando o processado posterior do ponto de vista da prova já adquirida no processo”. E, para tanto, formula as seguintes Conclusões:
1 - É objeto do recurso o despacho proferido em audiência prévia de 13.02.2023, e constante da respetiva ata (...)
2 - O despacho contém uma incorreta valoração da matéria de facto e uma incorreta aplicação do Direito, devendo o mesmo ser revogado e alterado conforme infra melhor se explanará.
3 - Analisando o iter processual, concretamente o teor do despacho judicial de 19/1/2022 com referência citius 87435315; do despacho judicial de 31/03/2022 com referência citius 88332918; a promoção Magistrada MP de 16/04/2022 com referência citius 88679856 e sobre a qual recaiu o despacho judicial de 25/05/2022 com referência citius 88827048; e do despacho judicial de 7/9/2022 com referência citus 89498627,
4 - Resulta que o despacho, ao determinar «o prosseguimento dos autos nos exatos termos em que os mesmos se encontram e foram recebidos e o integral respeito pelo trânsito em julgado formal observado», tem como resultado a validação da prática de atos inúteis, proibidos pelo art. 130 do CPC, porquanto resulta claro que as diversas diligências probatórias preteritamente promovidas e deferidas judicialmente e toda a instrução processual verificada desde Janeiro de 2022 de nada valeram... e foram absolutamente inúteis!
5 - Ademais, essas diligências probatórias e toda a prova já carreada para os autos ao abrigo dos despachos acima referidos implicaram uma delonga processual de cerca de 1 ano, potenciando-se com o referido despacho novamente tal delonga com repercussão no atraso no desfecho do litígio, em clara violação do art. 2.º do CPC.
6 - O despacho viola ainda o dever de gestão processual prescrito no art. 6.º do CPC, n.º 1, aceitando e ordenando a prática de diligências probatórias que na verdade não pretende(ia) tomar em consideração, em violação do princípio da aquisição processual ou comunhão da prova que estabelece que, uma vez entregues as provas ao tribunal, elas passam a pertencer ao processo e torna-se irrelevante quem as forneceu – art. 436 CPC.
7 - O despacho proferido viola o caso julgado produzido pelos citados despachos que o precederam.
8 - O despacho impugnado decide em manifesta contradição com a posição judicial inserta nos citados anteriores despachos reproduzidos no corpo destas alegações, na medida em que, depois de deferir diligências de instrução e de atribuir ponderação aos factos requeridos pelo curador da menor, decide agora de modo contrário à posição processual antes espelhada nos anteriores despachos.
9 - Ademais, a decisão recorrida coloca em causa o princípio da cooperação e a boa-fé processual que impende sobre os magistrados ao nível da condução e da intervenção no processo judicial, proibindo-se comportamentos contraditórios, configurando a proibição do abuso do direito (art. 334 do CC).
10 - É vedado ao juiz a adoção de um comportamento diverso daquele adotado anteriormente, em verdadeira surpresa às partes, sendo evidente que se busca proteger com este princípio a confiança e a lealdade.
11- No caso, a Meritíssima Juíza, ao referir expressamente nos seus pretéritos despachos “atento o teor de ref. 7571999 e a posição assumida pela Digna Magistrado do Ministério Público em representação da interessada AA, e dado que as questões ali suscitadas – designadamente a falta de relacionação de bens/direitos – poderão influir da disciplina da diligência agendada” (despacho de 19/1/2022), “considerando as questões suscitadas pelo tutor da menor interessada nos autos” (despacho 31/3/2022), com consequente deferimento de diligências de instrução, criou nas partes a séria convicção e expetativa da consideração da factualidade alegada e requerida pelo curador da menor, sendo que todo o iter processual se desenvolveu com esse pressuposto, cujo revés conheceu no despacho em crise.
12 - Não obstante os presentes autos de processo sido remetidos do Cartório Notarial de MM em Felgueiras a este Juízo Local Cível por efeitos do disposto no art. 12, n.º 1 da Lei 117/2019, de 13 de setembro,
13 - Em face da posição assumida pelo MP nas suas promoções, o tribunal deveria ter ordenado a sua citação nos termos do disposto no art. 1104 do CPC, ou então a expressa (e não tácita) admissão dos requerimentos apresentados pelo curador.
14 - Tanto mais que nem o curador da menor nem o MP foram sequer notificados para impugnação da relação de bens definitiva apresentada pela cabeça de casal!
15 - Dada a fase processual e o estado do processo de inventário quando remetido a tribunal, não pode considerar-se definitivamente afastado o direito do Ministério Público a reclamar, em defesa dos interesses do então menor, logo que foi citado como parte principal para os termos do inventário.
16 - Desconsiderando as promoções do MP e o requerido pelo curador, violou o despacho impugnado o princípio da gestão processual e de adequação formal, verificando-se a nulidade do processado por omissão de citação do MP, que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos.

A cabeça de casal respondeu ao recurso, sustentando a sua improcedência.

O recurso, nesta Relação, foi mantido nos termos e com o efeito com que havia sido recebido no tribunal recorrido e os autos correram Vistos. Nada observamos que obste ao conhecimento do mérito da apelação, cujo objeto, atentas as conclusões da recorrente, consiste em saber se o despacho deve ser revogado e prosseguirem os autos com a apreciação material da reclamação apresentada pelo curador da interessada menor.

III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de facto
Os factos que resultam do relatório antecedente mostram-se bastantes à apreciação do mérito do recurso.

III.II – Fundamentação de Direito
Como é sabido, os processos de inventário que hajam sido instaurados na vigência da Lei n.º 23/2013, de 5 de março (RJPI) e que se encontrem pendentes em 1.01.20 (data em que entrou em vigor a Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro), ficam sujeitos ao regime transitório previsto nos artigo 11.º a 13.º desta Lei e, de acordo com o n.º 1 do seu artigo 12.º (aqui relevante) são obrigatoriamente remetidos a tribunal quando “sejam interessados diretos menores, maiores acompanhados e ausentes”.

De acordo com o n.º 4 do artigo 13.º da mesma Lei n.º 117/2019, o tribunal há de, com base nos seus poderes de gestão processual e adequação formal, “conciliar o respeito pelos efeitos dos atos processuais já regularmente praticados no inventário notarial com o ulterior processamento do inventário judicial”.

Como decorre do normativo acabado de citar – e bem se entende que assim seja, porquanto estamos perante o mesmo inventário, remetido a tribunal, e não perante um novo inventário – os atos anteriores que hajam sido regularmente praticados, não tendo sido invocada qualquer irregularidade dos mesmos, ou seja, que não hajam sido impugnados nem o sejam imediatamente após a remessa (13.º n.º 2 do mesmo diploma legal) produziram os seus efeitos.

É essa realidade processual que os autos revelam e de que a recorrente não pode discordar e, embora afirme na sua 14.ª conclusão que o curador não terá sido notificado da nova relação de bens, trata-se de alegação que não corresponde à realidade dos autos.

No entanto, e verdadeiramente, o que a recorrente sustenta é que o tribunal devia ter atendido a “reclamação” do curador, apresentada mais de ano e meio depois da remessa dos autos a tribunal e nunca apresentada em sede notarial, onde a respetiva fase processual se encontrava já em sede de conferência de interessados, apenas estando pendente – por acordo de todos os interessados – a prévia avaliação dos bens imóveis relacionados. Note-se, aliás, e tal como resulta do supra relatado, que as interessadas GG e suas filhas maiores (mas invocando igualmente, pelo menos quanto à irresponsabilidade pelas dívidas, a situação semelhante da menor de idade AA) haviam reclamado da Relação de Bens, em termos semelhantes ao que veio a reclamar o curador, já perante o tribunal judicial, e aquela reclamação foi expressamente declarada como não apresentada, fixando-se, então, na mesma ocasião, os bens a partilhar.

E, dizíamos, devia tê-la atendido, entende a apelante, porquanto fez diligências instrutórias (notificação para junção de certidões) e ouviu os interessados, daí resultando – sustenta – que, atento o depois decidido, praticou atos inúteis e desrespeitou o caso julgado que formou ou agiu em abuso do direito.

Salvo o devido respeito, improcedem manifestamente as razões invocadas. O tribunal recorrido podia/devia ter decidido imediatamente o que veio a decidir, é certo, e, nesse sentido, há efetivamente atos inúteis praticados. Mas são inúteis por isso mesmo, ou seja, porque, salvo melhor saber, é acertada a decisão sob recurso. O entendimento inicial do tribunal não se veio a demonstrar acertado. Simplesmente, não nasce qualquer direito à apelante com a prática de atos inúteis; não há qualquer caso julgado, decorrente das diligências feitas, pois nada de novo veio a ser efetivamente apreciado e, manifestamente, não vemos como o tribunal possa agir/decidir em abuso do direito.

A questão relevante é que a pretensão do curador, ou da menor AA, através do curador, estava precludida: estamos perante uma preclusão, não perante um caso julgado, sequer formal. E, precludida a pretensão reclamatória, a eventual existência de outros bens que venha a importar partilhar, há de resolver-se em sede de partilha adicional, não na admissão de sucessivas reclamações, à medida que tais novos bens viessem a ser reclamados.

A recorrente invoca também o desrespeito ou inutilidade da posição ou promoções do Ministério Público, mas parece olvidar que o Ministério Público não impugnou o despacho sob recurso ou acompanhou a posição recursória da apelante.

Em suma, o indeferimento da pretensão formulada, tardiamente, através do curador da menor de idade AA, não ocorrendo no momento inicial em que o podia ter sido, não faz nascer qualquer direito – sequer à apreciação dessa pretensão, por ter sido decidida mais tarde.

Como se disse anteriormente, citando a lei (13.º, n.º 4 da Lei 117/2019), a conciliação dos atos praticados em sede notarial com o ulterior processamento do inventário, agora em tribunal tem que respeitar os efeitos anteriormente produzidos, seja, no caso, o indeferimento da reclamação então apresentada, seja a preclusão decorrente da sua não apresentação tempestiva.

Em conclusão, o recurso revela-se improcedente.

As custas são devidas pela apelante, atento o decaimento, mas sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

IV – Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, confirma-se, em consequência, o despacho recorrido.

Custas pela apelante.

Porto, 5.02.2024
José Eusébio Almeida
Fátima Andrade
Miguel Baldaia de Morais