I - O instituto das declarações para memória futura tem como objetivo evitar a repetição da audição da vítima em julgamento, protegendo-a, assim, do perigo da vitimização secundária. A tomada de declarações antecipada pretende, além disso, assegurar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, e obstar a pressões ou manipulações prolongadas no tempo, prejudiciais à liberdade de declaração da vítima.
II - A norma especial contida no art.º 24.º, n.º 6, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4/9, expressamente prescreve que as vítimas não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a sua saúde física ou psíquica, tratando-se de pressupostos cumulativos.
III - A presença da vítima em julgamento deve ser, assim, assumida sempre como uma exceção, constituindo a regra a valoração da prova pré-constituída traduzida nas declarações prestadas para memória futura.
IV - A nulidade decorrente da omissão ou deficiente gravação da prova produzida na audiência de julgamento deve ser suscitada, no decurso da audiência de julgamento, se aí for detetada a ausência de documentação, nos termos do n.º 3, alínea a) do art.º 120.º do CPP, ou, finda a audiência, no prazo de 10 dias, após a entrega de cópia do suporte contendo a gravação da prova (cf. o art.º 105.º, n.º 1 do CPP), sob pena de dever considerar-se sanada.
V - A doutrina que atribui às crianças tendência para mentir ou para memórias falsas está já ultrapassada pela investigação científica. Com efeito, esta demonstra que as crianças não têm tendência a mentir e que revelam elevadas competências testemunhais e comunicacionais, assim como uma capacidade de discernimento superior à que lhes é frequentemente atribuída, percebendo a diferença entre a verdade e a mentira, geralmente, a partir dos 4 anos. Vários estudos demonstram também que as crianças, tendencialmente, não mentem sobre a ocorrência de situações de abuso, não fantasiam acerca de situações abusivas, nem fabricam esse tipo de acontecimentos.
VI - A proibição de provas obtidas mediante intromissão na vida privada é relativa, visto que admite a utilização mediante consentimento do respetivo titular.
VII - Não basta ao arguido lançar uma qualquer versão alternativa para que possa infundir dúvidas no processo da formação da convicção do julgador. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção.
VIII - A sociedade alimenta crispação, reclamando pena exacerbada contra o abusador sexual, não só para afirmação da eficácia da norma penal violada, enquanto prevenção geral positiva, mas ainda em nome da intimidação de potenciais delinquentes, enquanto prevenção geral negativa.
IX - O crime sexual representa na atualidade o «paradigma do mal o «paradigma do mal absoluto», sendo o seu autor um ser associal, portador de periculosidade por excelência.
I. Relatório
No âmbito do processo comum coletivo que, sob o nº 677/20.0JAVRL, corre termos pelo Juízo Central Criminal do Porto, foi submetido a julgamento o arguido AA, devidamente identificado nos autos, tendo a final sido proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
«Nos termos legais e factuais expostos, acordam os juízes que constituem o tribunal coletivo em:
1.Condenar o arguido AA, pela prática em autoria material e concurso real, de:
- 1(um) crime de abuso sexual de crianças, p.p. pelo art.º 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1. al. a), do C.P. na pena de 2 anos de prisão;
- 3 (três) crimes de sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, nºs 1 e 2 e 177º, n.º 1, al. a), do C.P., nas penas parcelares de 5, 6 e 6 anos de prisão
Em cúmulo jurídico das referidas penas condena-se o arguido AA na pena única de 9 anos de prisão.
Após trânsito:
- Remeta boletins à DSIC;
- Comunique o teor do presente acórdão ao diretor-geral da Administração da Justiça, para os fins da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto
- Emita mandados de detenção para cumprimento de pena.»
«1. Em grande parte da gravação dos depoimentos das duas testemunhas da acusação CC e DD, embora audíveis, por distorção do respetivo som, não é percetível o seu teor.
Por isso e porque o arguido se propunha impugnar a decisão da matéria de facto também com base nesses depoimentos, impõe-se decretar a nulidade do julgamento nessa parte e determinar-se a sua repetição.
2. Também por efeito da procedência do recurso já interposto do decidido em audiência, indeferindo a inquirição da menor, deverá o julgamento ser repetido para se proceder a essa inquirição.
3. Mesmo que assim se não entenda, sempre deverá decretar-se a nulidade do acórdão recorrido por não terem sido considerados quaisquer factos atinentes à matéria da defesa, tendo-se limitado a concluir nada dever ser tido em conta dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido, nomeadamente que durante os cerca de três anos em que alegadamente tudo se teria passado, não só nunca nada transpareceu de anormal no relacionamento entre a menor e o arguido, antes tudo tendo decorrido dentro da maior normalidade, especificamente, com a menor sempre próxima do avô e a reclamar a sua presença e assistência nas situações mais embaraçosas.
4. Nessa conformidade, isso mesmo devia ter sido dado como provado porque assim foi confirmado pelos próprios pais da menor EE (v.mins 26.47 e 29.20) e FF (v.min. 13.40), assim como pela esposa do arguido e avó da ofendida, GG (v.mins. 2.36, 5.10, 6.04 e 10.12), pela tia da menor e irmã do arguido, HH (v.min. 2.09) e ainda pelas outras duas filhas do arguido, II (v.min.7.20) e JJ (v.min.5.02).
5. Mesmo a testemunha da acusação, CC, apesar de, como psicóloga da escola, acompanhar a menor precisamente desde quando tudo teria começado (desde o 5º ano), nunca se apercebeu de nada, nem a menor alguma vez lhe referiu algo relacionado com alguma situação destas.
6. Também a professora da menor, DD que foi a primeira pessoa a quem ela denunciou a situação, apenas disse que a ofendida lhe transmitiu que o avô abusava dela, mas sem concretizar qualquer ato.
7. Por outro lado, entende o arguido que, por ter resultado da prova da defesa, devia dar-se como provado que desde sempre, nomeadamente nos três anos em que são situados os factos em causa, nunca deixou de haver uma especial proximidade da menor com o avô.
Isso mesmo o confirmou a avó da menor e esposa do arguido, GG que, assegurando assim ter acontecido até dois ou três dias antes da denúncia, acrescentou que, num desses dias, ambos estiveram deitados na cama a ver tablet (v.mins 6.04, 15.07 e 16.50), o que até foi confirmado pelo pai da menor (v.min.15.00).
Nesse sentido, também credivelmente depuseram, tanto a irmã do arguido, como as outras duas filhas dele (v. depoimento da irmã, HH ao min. 3.40, da filha II aos mins. 5.10 e 6.07 e JJ ao min.4.10).
8. Se a matéria da acusação correspondesse à verdade, decerto que o arguido não teria chamado ninguém para aplicar a pomada nas partes intimas da menor (v. suas declarações aos mins. 1.14 e 2.47 na gravação após a reprodução da videochamada) e confirmado pela sua esposa, GG (v.mins. 6.30 e 7.48), assim como pela própria mãe da menor (v.min.16.00).
9. Além disso, também devia ter sido dado como provado pelo Tribunal que a personalidade e índole moral do arguido não eram compatíveis com a natureza dos factos em causa.
Tanto a irmã, como as outras duas filhas do arguido, depuseram claramente e de forma absolutamente credível nesse sentido (v. depoimento da primeira, HH, aos mins. 5.07 e 5.56, da filha II aos mins. 1.16, 3.10 e 4.50, que assegurou não ter qualquer receio, em confiar a sua filha ao pai (e da filha JJ aos mins. 4.10 e 5.02) todas assegurando que, conhecendo o arguido desde sempre, consideram absolutamente impossível ele ter praticado os factos em causa, muito menos com uma neta.
Por isso, justificando a maior estranheza que a mãe da menor, só por alegadamente ter ouvido a filha a falar em abuso e sem ser concretizado, logo tenha dado como certo ser abuso sexual, sem admitir qualquer conversa sobre o assunto, nem com os pais, nem com as outras duas irmãs.
10. Deve retirar-se dos factos provados o que consta do ponto 22 pois, apesar de se basear no relatório respeitante à personalidade do arguido, o mesmo se apresenta manifestamente tendencioso, disso mesmo nos parecendo constituir clara demonstração a afirmação de o arguido demonstrar ausência de remorsos ou sentimentos de culpa, o que só se justifica por se ter como certo e se ter partido do pressuposto de que o arguido tinha cometido os crimes que lhe eram imputados pois, como é evidente, tendo ele sempre negado os factos, ninguém pode sentir remorsos de algo que não fez.
11. A denúncia feita pela menor só se justifica pelas repreensões do avô (arguido) pelo uso excessivo dos dispositivos móveis em prejuízo dos estudos, ou para não ser obrigada a estudar tanto, como os pais lhe exigiam, ou por influência de alguém para se conseguir os 20.000€ que ela chegou a dizer ao avô que os pais precisavam para ficarem mais ou menos bem (v. declaração do arguido ao min.8.40).
12. Só por razões dessa natureza se compreende que a mãe da menor tenha dado imediato e total crédito à denúncia da filha, tomando como absolutamente certo que o pai tivesse abusado dela, sem o confrontar com isso, antes não atendendo a chamada que ele lhe fez (v. declarações do arguido ao min. 9.52) também não permitindo às irmãs falar do assunto (v. depoimento da irmã JJ ao min. 2.06 e da II ao min.1.16).
13. Também assim nos parece orientar o facto de a menor só andar alterada e perturbada por não ver o caso devidamente tratado, tendo ficado normal quando os pais lhe disseram que já tinham contratado os advogados, tal como eles claramente confirmaram (v. depoimento da mãe aos mins. 36.20 e 36.40).
14. Os factos provados do acórdão correspondem "ipsis verbis" ao que consta do requerimento acusatório e a motivação da decisão baseia-se essencialmente nas declarações para memória futura da menor.
Por isso, impunha-se aos Mmos Julgadores fazer uma análise rigorosa e detalhada da coerência intrínseca das referidas declarações para memória futura, o que de todo não aconteceu.
15. Diversamente, o Tribunal limitou-se a afirmar ter acreditado na bondade desse depoimento e a valorá-lo como credível, branqueando e desvalorizando as muitas e relevantes contradições e inverosimilhanças que as inquinam designadamente:
- começa por nada dizer/responder sobre se se sentia desconfortável quando o avô lhe tocava para, logo a seguir, responder afirmativamente (v.min.4.47);
- quanto a toques no peito e nas pernas, no peito respondeu que sim enquanto que, contra o que é normal, relativamente a toques no interior das pernas, respondeu "acho que não" (v.min. 6.12);
- instada a dizer que coisas o avô começava a fazer, respondeu que " começou a tocar nas partes íntimas e a masturbar-se (v.min. 11.05);
Para além de se estranhar a designação correta do ato ("masturbar-se") também não se entende como o viu, uma vez que disse "desviar o olhar" (v.min.12.57).
Ainda quanto a esse ato, tanto disse que uma vez chegou a mostrar como, logo de seguida, já disse que não e que pôs as calças para cima, indo-se embora sem dizer nada" (v. min. 14.44)
- quanto a toques nas partes íntimas, tanto disse que era por fora, como por dentro da roupa e que, também contrariamente ao que seria normal, ao fazer alguma coisa com a mão, era só por fora da roupa ( v.mins 19.34, 20.02 e 2016)
Convenhamos que são contradições difíceis de entender e aceitar, principalmente tendo em conta que, na data em que as prestou, a menor já tinha 13 anos de idade.
16. Quanto às circunstâncias em que acontecia, nomeadamente quando o irmão estava presente, parece-nos pouco credível que o arguido trancasse (não se sabe como) o irmão no quarto e assim pudesse sentir-se à-vontade ( v.min.22.45).
17.E se assim nos parece justificar-se considerar em relação a tudo, por maioria de razão quanto ao ato mais grave (tentativa de penetração), para mais, tendo em conta que como referido pela menor, o mesmo teria ocorrido na sala (v.min. 49.41), apesar de estar em casa o irmão (v.min.41.11) que, por isso, a todo o momento, podia aparecer.
18. Do mesmo modo, não se entende que, quanto ao toque nas partes íntimas com a boca apesar de já ter dito antes que se tinha consumado, depois já disse que o afastou e só lhe tocou com as mãos (v.min.50.17 a 51.05).
Tudo isso nos parece bastante para, de forma alguma, se poder ter como certo que o arguido tenha tentado penetrar a menor e tocar-lhe com a boca nas partes íntimas.
19. Também pondo seriamente em causa a credibilidade das declarações em análise está o facto de ao prestá-las, conforme consta do respetivo auto, a menor por várias vezes se ter rido (v.mins 25.18, 29.56 e 32.43).
20. Assim se entende e justifica que o IML se tenha limitado a considerar as declarações da menor como "provavelmente credíveis".
Nessa medida e uma vez que a sentença se mostra baseada nesse relatório, forçoso é concluir que a decisão condenatória se bastou com a mera probabilidade de as mesmas declarações corresponderem à verdade, o que, de todo, não pode admitir-se, dado que a condenação tem que se basear na prova da verdade dos factos, "fora de qualquer dúvida razoável" e, portanto, de forma alguma se podendo bastar com a mera probabilidade da realidade dos factos integradores dos crimes imputados.
21. Por tudo isso, na pior das hipóteses para o arguido, o que se podia dar como provado é o que consta do ponto 4 dos factos provados, por só isso ser compatível com o facto de não só nunca (durante cerca de três anos) alguém se ter apercebido de algo de anormal, como toda a gente verificar precisamente o contrário, designadamente a menor sempre próxima do avô e a procurar a sua companhia e auxílio para tudo o que precisava, nomeadamente nas situações mais embaraçosas e/ou, no limite, por força do que a seguir se refere quanto ao que a menor contou ao pai sobre o que o avô lhe tinha feito (nada referindo sobre qualquer tentativa de penetração) pelo menos sempre deverá ser dada como não provada a matéria correspondente e que integra o ponto 15 dos factos provados.
22. No mesmo sentido e com reforçado significado relevando o facto de nem a própria psicóloga que acompanhava a menor desde que alegadamente tudo teria acontecido, também nunca se ter apercebido de nada, nem a menor lhe ter referido o que quer que fosse.
23. Outros dois fundamentos justificam e reforçam as muitas e insanáveis dúvidas e incertezas quanto à verdade da matéria da acusação.
O primeiro deles, reportado a toda essa matéria consiste na contradição dos depoimentos dos pais da menor pois, enquanto que o pai, FF disse que a menor contou a ele e à mãe o que o avô lhe tinha feito (v. min. 5.00 " - "transmitiu-nos o que se tinha passado"), a mãe, EE, disse que a filha só tinha contado ao marido (v. mins. 6.38 e 39.10).
O segundo respeita à matéria do já indicado ponto 15 dos factos provados do acórdão (tentativa de penetração) e consiste no facto de a mesma não ter sido incluída no que o pai da menor disse do que esta lhe transmitiu sobre o que o avô lhe fazia (v. mins. 3.45, 4.16, 5.00 e 5.36) e que, até por ser o mais grave, se realmente tivesse acontecido, nunca deixaria de referir.
24. Por sua vez a matéria do ponto 18 (pedido do arguido para não contar nada) deve ser completada com indicação de isso ter acontecido, porque não foi referido pela menor nas suas declarações, quando a menor fez a videochamada e com o acrescento de o arguido logo ter contraposto que não era nada verdade (v. depoimento da esposa do arguido ao min. 27.20).
25. Com base em todas as contradições, inverosimilhanças e inadequação com as regras da experiência comum, assim como pelo que em sentido contrário resultou da prova feita pela defesa e até da testemunha da acusação, CC (psicóloga da menor), deve dar-se como não provada toda a matéria dos pontos 4 a 18 dos factos provados do acórdão e, em consequência, a acusação ser julgada improcedente e também improcedente o pedido de indemnização ou, na pior das hipóteses para o arguido, apenas provada a matéria do ponto 4 dos mesmos factos provados do acórdão e o arguido condenado apenas pelo crime do artigo 171º, nº1 e 177º, nº1 al. a), na pena de dois anos de prisão necessariamente suspensa.
26. Mas, caso assim se não entenda, com base no depoimento do pai da menor e por, de acordo com o mesmo, do que lhe contou a filha, nada respeitar a qualquer "tentativa de penetração", no limite do pior que se admite como possível em relação ao arguido, sempre, pelo menos se imporia ser dada como não provada a matéria do ponto 15 dos factos provados, com a correspondente alteração da pena global para não mais de cinco anos de prisão e suspensa na sua execução.
27. Ainda que se mantenha a matéria de facto provada e se considere válida a decisão proferida como, por mera hipótese se admite, sempre essa mesma decisão deverá ser alterada com a redução da pena aplicada para não mais de 6 anos, tanto, pela pouca gravidade das consequências dos factos, como por todas as circunstâncias atenuantes, designadamente as que constam da sentença no ponto 22 dos factos provados e ainda a circunstância de o arguido ser delinquente primário e nada se lhe conhecer em seu desabono apesar de já contar mais de 63 anos de idade.
28. Quanto ao pedido de indemnização, mesmo com base na matéria dada como provada a tal respeito (dos pontos 23 e 24), a mesma não se reveste de gravidade tal que justifique o montante fixado, tanto por não ser indicado o período temporal da sua verificação, como porque a dada como provada "diminuição do rendimento escolar" não se traduziu em qualquer atraso ou retenção do percurso letivo da menor.
29. Acresce que a prova feita em julgamento não foi de molde a poder dar-se como demonstrada a indicada matéria.
Desde logo, porque pelo que foi dito pela própria mãe, o que perturbou a menor foi a forte vontade e ânsia de o assunto ser tratado nos Tribunais (v. mins. 18.33 e 36.20), ao ponto de ter sido esse o motivo da alegada automutilação (v. min. 29.20 ) tendo acrescentado que, precisamente "quando começou a ver as coisas a serem resolvidas "ela agora demonstra mais calma".
No mesmo sentido foi o depoimento do pai (v. min. 11.10) o que tudo permite concluir que, mesmo que fosse verdade o alegadamente ocorrido entre a menor e o avô, não teria tido para ela consequências especiais ou de especial gravidade, tudo justificando, a nosso ver, que a indemnização nunca devesse ser fixada em montante superior a 5.000€.
30. Para o caso de não merecer acolhimento a ora propugnada alteração da decisão punitiva (com a total improcedência da acusação ou a sua procedência quanto ao crime correspondente à matéria do ponto 4 dos factos provados da sentença), deve decretar-se a nulidade do julgamento e sua consequente repetição em virtude de a decisão tomada se mostrar baseada, senão decisivamente pelo menos em medida muito relevante (v. último parágrafo de pags. 8 do acórdão) em meio de prova proibido (videochamada feita pela menor ao arguido) ou a repetição do julgamento para nova gravação dos depoimentos não percetíveis de duas testemunhas da acusação, CC e DD e inquirição da própria menor (recurso anterior), assim como para a sentença ser completada, com a devida análise critica e conjugada de toda a prova, tanto da acusação (que, mesmo essa, em nosso entender, não se mostra adequadamente analisada), como da defesa, que foi totalmente desconsiderada.
31. Assim não se tendo entendido e decidido considera o recorrente que o acórdão recorrido não fez a melhor e mais correta análise e valoração da prova produzida, designadamente em função das regras da experiência comum (art. 127º do C.P.Penal), também traduzindo incorreta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, nomeadamente dos arts. 77º do C.Penal e 187º, 340º e 374º, nº2, todos do C.P.P. e 496º, nº4 do C.Civil pelo que
Deve o presente recurso ser julgado procedente nos termos propugnados, assim nos parecendo resultar melhor aplicada e interpretada a lei e realizada a JUSTIÇA».
Procedeu-se a exame preliminar, tendo sido colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
1) Quanto ao recurso interlocutório: O despacho proferido na audiência de discussão e julgamento deve ser revogado e substituído por outro, determinando-se a comparência da menor a fim de aí ser inquirida?
2) Quanto ao recurso do acórdão:
a) Dois depoimentos prestados na audiência ficaram deficientemente gravados e são impercetíveis, tendo assim sido cometida uma nulidade, impondo-se a repetição parcial do julgamento com vista à sua sanação?
b) A decisão recorrida é nula por insuficiência de fundamentação e por omissão de pronúncia, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379.º, n.º 1, alíneas a) e c) e 374.º, n.º 2, do CPP?
c) Houve errada apreciação e valoração da prova produzida na audiência de julgamento, com a consequência de que foram incorretamente julgados os factos constantes dos pontos 4º a 20º, 22º, 23º e 24º, os quais deverão transitar para o elenco dos factos não provados, impondo-se a absolvição do recorrente?
d) No limite, o recorrente apenas poderá ser condenado, em face da factualidade constante do ponto 4º, por um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171º, nº1 e 177º, nº1 al. a), do CP, na pena de prisão fixada no acórdão recorrido (dois anos), necessariamente suspensa na respetiva execução?
e) Ainda que se mantenha inalterada a matéria de facto, a pena conjunta revela-se excessiva e desproporcionada, não devendo exceder 6 anos de prisão?
f) O quantum indemnizatório arbitrado pelo tribunal afigura-se excessivo e desproporcionado, devendo ser reduzido para montante não superior a € 5.000,00?
«II. Fundamentação
De facto
Factos provados
1. BB, nascida no ... ../../2008, é filha de FF e de EE.
2. O arguido AA é pai de EE e avô materno da menor BB.
3. No dia 28/11/2020, devido a uma cirurgia da mãe, a ofendida BB foi para casa dos seus avôs maternos, sita na Rua ..., ..., ..., em ..., juntamente com o seu irmão mais novo.
4. Em hora não concretamente apurada, quando BB se encontrava no quarto dos avós, foi surpreendida pelo arguido, seu avô, AA, que a deitou na cama e lhe tocou na vagina e mamas, por cima da sua roupa.
5. Momentos depois apareceu o seu irmão mais novo no quarto e o arguido começou a fazer-lhe cócegas, com o intuito de disfarçar toda aquela situação.
6. Todavia, o arguido desde os 9 anos de idade, altura em que BB ingressou no 5º ano de escolaridade, em diversas ocasiões, que perduraram durante o 6º ano letivo, apalpava o peito e a vagina da menor, inicialmente por cima da roupa e posteriormente introduziu as suas mãos por baixo das camisolas, calças e das cuecas que a mesma envergava, apalpando-a.
7. Do mesmo modo, o arguido introduzia os dedos na vagina da menor,
8.Tendo, em data não apurada das férias de verão de 2020, efetuado sexo oral à menor quando ambos estavam no sofá da sala da casa dos avôs em ....
9. A primeira situação aconteceu em finais de agosto, princípios de setembro, em momento anterior ao início do 5º ano letivo e de seguida, aos fins de semana ou férias.
10. Nessas ocasiões, o arguido aproximava-se da menor que que se encontrava na sala, ora no quarto, sentada ou deitada.
11. Além disso, o arguido masturbava-se à frente da menor depois de despir as suas calças e a roupa interior.
12. Para o efeito, o arguido fechava o irmão mais novo num outro quarto e deste modo ter mais privacidade e aproveita a ausência da avó.
13. Ainda durante 6º ano letivo, em duas ocasiões, o arguido tocou com a sua boca e lábios na vulva da BB.
14. Ademais, em data não concretamente apurada, entre o 6º e o 7º ano, durante as férias, quando a menor se encontrava na sala da residência, em ..., o arguido aproximou-se da menor e após tirar a sua roupa e da menor, colocou os seus lábios na vagina da menor.
15. De seguida, pegou no pénis e em cima da menor, tentou introduzi-lo na vagina daquela, o que não logrou, pois esta conseguiu afastá-lo, empurrando-o e fugindo do local.
16. Estas situações ocorreram maioritariamente na casa do arguido em ... e menos vezes, em ..., uma vez que estes possuem uma casa nessa localidade que se encontrava a ser remodelada.
17. Como consequência das aludidas condutas a BB baixou o seu rendimento escolar e começou a isolar-se dos outros.
18. O arguido solicitou à menor BB para não contar a ninguém senão ia preso.
19. O arguido conhecedor da idade da BB agiu livre, deliberada e conscientemente com o propósito e desejo, conseguido, de satisfazer os seus instintos libidinosos, aproveitando-se da inocência e inexperiência da menor sabendo que atuando da forma descrita atentava contra o desenvolvimento sexual da criança, visto que a sua idade não lhe permitia sequer avaliar os atos sexuais levados a cabo pelo arguido.
20. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
O arguido é detentor de atestado multiusos com 60% invalidez, devido a doença oncológica prolongada, sendo pensionista por invalidez da ..., auferindo 1400€ de pensão. No período em que permaneceu em ..., o cônjuge trabalhava como empregada de limpeza numa clínica, auferindo o salário mínimo nacional.
O agregado familiar do arguido residia num apartamento de tipologia 3, adquirido através de empréstimo bancário, inserido em meio urbano, sem problemáticas sociais de relevo. Apresentava como despesas fixas o crédito de habitação no valor de 350€/mensais, e despesas de água, luz e gás como valor médio de 200€/mensais.
AA descreve a sua relação familiar marcada por fortes laços vinculativos e boa relação quer entre o casal, quer com as filhas. Como pai, AA, é descrito pela esposa e filhas II e JJ, como carinhoso, disponível e preocupado, talvez em exagero devido à sua profissão, já que trabalhou no Núcleo de Investigação Criminal da ..., limitando a autonomia das suas descendentes. EE, filha do arguido e mãe da ofendida, distancia-se da descrição da mãe e das irmãs, considerando o pai como austero e agressor para com esta e sua mãe, o que precipitou a sua saída de casa assim que atingiu a maioridade.
À data dos factos, por ter maior disponibilidade de tempo, era o arguido quem prestava apoio às filhas, EE e JJ, nos cuidados dos netos, essencialmente nos períodos de férias escolares.
Presentemente, o arguido reside com a sua esposa em ..., já que esta por questões de saúde deixou de exercer atividade profissional. A residência do agregado familiar está situada na morada acima identificada, trata-se de uma moradia unifamiliar, de tipologia 2, herança de família, inserida em meio semiurbano, que o casal decidiu reconstruir.
Em termos de rendimentos são referidos os valores de 1400€ líquidos mensais correspondente à pensão de invalidez de AA. O agregado familiar apresenta despesas fixas respeitantes a consumo de água, luz e gás, no valor de cerca de 115,00€ mensais.
AA ocupa o seu tempo livre nas obras de recuperação da sua habitação e no convívio com familiares. Não são referenciados sinais de rejeição à presença do arguido, descrito no meio como cordial e reservado, projetando uma imagem positiva na comunidade, inexistindo registo de ocorrência relativas ao arguido.
22. Da avaliação da personalidade do arguido resulta grande alienação na relação com os outros, ausência de remorsos e ou sentimentos de culpa, dificuldade na regulação emocional.
23. Em consequência da conduta do arguido BB passou a fechar-se no quarto e a irritar-se com o irmão com mais facilidade; diminuiu o rendimento escolar, teve dificuldades em dormir; chegando a mutilar-se.
24. Atualmente sente tristeza e necessita de apoio psicológico.
Dos factos descritos na acusação, no pedido de indemnização civil e na contestação, com relevo para a decisão a proferir, não ficaram por provar quaisquer outros.
O Tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, que valorou livremente, fazendo apelo a regras da experiência comum e normalidade do acontecer.
É sabido que em matéria de “crimes sexuais” as declarações do/a ofendido/a têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais. Por outro lado, sabemos que ao arguido fica a árdua tarefa de infirmar aquelas declarações.
Por esta razão ao julgador cabe especial cuidado na análise do referido meio de prova.
O caso concreto não fugiu a esta realidade probatória, a menor descreveu a factualidade dada como provada e o arguido refutou-a veementemente, o que significa que o tribunal valorou positivamente as declarações desta.
Tais declarações, prestadas perante Juiz de Instrução e sujeitas a contraditório, mereceram inteira credibilidade do tribunal.
Em primeiro lugar porque, como por todos foi afirmado, a menina tinha uma especial relação de afeto e proximidade com o avô, fundamentada também na confiança que os progenitores depositavam neste familiar e mulher, a quem entregavam os filhos durante dias, inexistindo, por essa razão, motivos para a menina imputar ao avô factos tão sórdidos. É aqui de ter em conta que a professora, e posteriormente o avô, mas já depois do conhecimento dos factos pelos progenitores, a alertou para a gravidade do que estava a afirmar, devendo pensar muito bem pois o avô podia ser preso, o que não demoveu a menina de o denunciar.
A forma envergonhada, mas séria, com que o menor revelou os episódios supra descritos – ainda que com frequentes pausas no discurso e ainda que em relação a algumas situações não tenha tido a iniciativa de as narrar limitando-se a responder que sim (ou que não) ou a descrever as ocorrências na sequência de perguntas muito concretas – levou o Tribunal a acreditar plenamente na bondade do depoimento e a valorá-lo como credível.
Neste depoimento é relevante a pormenorização da conduta sexual que só é compatível com uma vivência efetiva, designadamente quando a menor descreve a tentativa de penetração “…ele pegou no órgão íntimo dele…”; é também relevante, em nosso entendimento, quando à pergunta “porque não contaste” a menina responde: “(…) Eu tive medo; Eu não sei. Eu ainda não sabia o que era isso”. Isto vem ao encontro daquilo que é normal no desenvolvimento de uma criança com aquela idade e insere-se na relação familiar e de afeto que a menina mantinha com o avô. Com efeito, em inúmeros casos de abuso sexual de crianças o abusador é uma pessoa em quem a criança confia, conhece e muitos vezes ama. Nos casos de abuso sexual intrafamiliar pode ocorrer uma ambivalência de sentimentos do menor relativamente ao ofensor que sem saber como valorar a conduta pode apreendê-la como uma especial fonte de atenção e afeto.
Neste contexto faz sentido que a menor tenha contado os factos na sequência da aula a que assistiu sobre as diversas formas de amor e sobre eventuais abusos, foi aí que ela teve uma resposta para aquilo que já a vinha a incomodar e a que não sabia dar nome.
Estranha o arguido e demais família - cônjuge e filhas – que, no período em que ocorreram os factos, a menina continuasse a procurar a companhia deste.
Este comportamento insere-se no que supra expusemos sobre a dualidade de sentimentos que se instala no menor abusado: por um lado julga-se beneficiada com um especial carinho do familiar que lhe é próximo e querido e por outro teme que o comportamento seja errado e que a sua denúncia o afaste daquela pessoa. A tudo acresce o facto de não apreender o conteúdo valorativo dos comportamentos a que é sujeito/a.
Fundamentaram as conclusões do tribunal, no que à credibilidade deste testemunho diz respeito, a avaliação psicológica vertida no relatório do IML, onde se lê: “Apesar do desconforto que evidenciou, BB conseguiu relatar o alegado abuso sexual que motiva o presente processo de avaliação pericial. A entrevista foi conduzida de modo a obter um relato livre, sem questões diretivas, sugestivas ou indutoras, seguindo os procedimentos da entrevista forense.
Foi feita a análise de conteúdo baseada em critérios que a literatura aponta como indicadores associados a relatos de factos vivenciados, credíveis. Do ponto de vista geral, o seu relato apresenta estrutura lógica, com suficiente coerência nas descrições, uma produção pouco estruturada no que diz respeito à sequência da narrativa, com informações dispersas, mas não inconsistentes e com descrição de detalhes que permitem compreender a situação e as circunstâncias em que alegadamente ocorreu. (sublinhado nosso). (…) Não se observaram alterações emotivas ou cognitivas que comprometessem a recolha de informação durante entrevista. BB utilizou uma linguagem e nível de conhecimentos de acordo com o esperado para a sua idade e experiência sugerindo ausência de influência ou sugestão por parte de terceiros.
Não se apuraram ganhos secundários relativos à denúncia. Todo o relato é efetuado com um humor ajustado ao discurso. O relato foi consistente com outras declarações (análise das peças processuais).
A análise qualitativa do relato de BB permite-nos concluir que se trata de um relato provavelmente credível. Da avaliação realizada conclui-se ainda que BB apresenta capacidade para prestar depoimento.”
Por não ter qualquer relação com os sujeitos processuais e/ou o objeto em discussão, foram especialmente relevantes as declarações da testemunha, DD, professora a quem a menor contou em primeiro lugar o que estava a vivenciar, que confirmou o conteúdo da aula que ministrou, no termo da qual a menina “desabafou”. Esta testemunha alertou a menor para a gravidade do que descrevia e das consequências adversas que daí poderiam resultar para o arguido, impondo-lhe que contasse aos progenitores, se fosse verdade, pois caso o não fizesse ela tomaria essa iniciativa.
Toda esta envolvência foi descrita pela menor e pelos seus progenitores FF e EE.
Claro que os progenitores não assistiram aos factos e destes pouco lhes foi relatado pela menor que se “fechou” na expressão “o avô abusa de mim”. Foi na sequência da “notícia” dada pela menor que os progenitores a mandaram efetuar o contacto telefónico cujo conteúdo e imagem se encontra junto aos autos, reproduzido em audiência de discussão e julgamento, a pedido do arguido. E se dúvidas houvessem relativamente à veracidade do relato efetuado pela menor, a conversa telefónica com o avô, quer pelo conteúdo quer pela emoção percetível na voz do arguido, de medo e aflição, sanou-as por completo.
Sobre as disfuncionalidades da personalidade do arguido é relevante o relatório pericial à sua personalidade, junto aos autos (ref.ª 35567570) onde se concluiu: “A ausência de remorsos ou sentimentos de culpa sugere défice empático face à criança, em concreto sobre o impacto do seu comportamento (cuidados à neta que excediam o necessário dada a sua idade e capacidade de autonomia), associado a distorções cognitivas (“como se fosse um enfermeiro ou um médico”).
Sublinha-se que apesar do examinando negar desvio sexual, mas não é possível confirmar ou excluir a sua presença considerando a elevada desejabilidade social e ausência de informação sobre o tema.
No que respeita a perigosidade, da avaliação realizada identificaram-se fatores de risco tais como: crenças distorcidas de legitimação de comportamentos abusivos (“levantei-lhe os peitos para esfregar”; “como se fosse um enfermeiro”); fracas competências sociais (de acordo com os resultados no Mini Mult); dificuldades na regulação emocional e presença de sintomatologia psicopatológica de relevo; consumos etílicos potencialmente abusivos (descreve “um copito a mais”, quando em família); as limitações ao nível do controlo comportamental (pontuado parcialmente na PCL R). Como fatores protetores destaca-se o passado de adequada inserção profissional; a estabilidade relacional; a existência de apoio pessoal (familiares).”
A testemunha CC, psicóloga na escola e que seguiu a menina na sequência da diminuição de aproveitamento escolar, confirmou a sintomatologia alegada em sede de pedido de indemnização civil quanto ao isolamento a que a menina se votou e o decréscimo do rendimento escolar.
A matéria relativa ao pedido de indemnização civil foi relatada pelos progenitores que, também aqui mereceram a credibilidade do tribunal. De notar que a mãe se mostrou destroçada pelo que julgamos ser, também, culpa por não ter obstado à factualidade provada. Tal matéria de facto vai, ademais, ao encontro das regras da experiência comum.
As demais testemunhas trazidas pela defesa – cônjuges e filhas- em nada esclareceram o Tribunal pois não assistiram aos factos. De resto confirmaram a ligação emocional da menina ao avô e vice-versa, cuja valoração foi por nós abordada supra, e tentaram alijar os eventuais abusos sobre terceiros.
Por último, foi valorado o termo de consentimento de fls. 22, o auto de apreensão de fls. 23, o assento de nascimento de fls. 49, o teor do relatório social e do CRC do arguido; os relatórios periciais médico legais de fls. 62 a 74, do Vol. fls. 108, do apenso físico.»
As questões suscitadas pelo arguido no recurso interlocutório têm precedência lógica sobre as restantes, atinentes à decisão final, pelo que serão conhecidas de imediato.
Discorda o arguido/recorrente do despacho de indeferimento do requerimento por si apresentado, proferido pelo tribunal a quo na sessão de audiência de julgamento realizada em 14/6/2023, pugnando pela sua substituição por outro que efetivamente determine a tomada de novas declarações à menor, tendo por objeto as duas situações identificadas no aludido requerimento.
Analisada a ata de audiência de julgamento, que teve lugar na referida data, verificamos a ocorrência da seguinte sequência de atos processuais:
1 - Terminada a inquirição das testemunhas presentes, o ilustre mandatário do arguido requereu a palavra e, no uso da mesma, requereu o seguinte (segue transcrição): «O arguido e a sua esposa, aqui testemunha referiram dois episódios ocorridos com a menor, que no seu entendimento estão relacionados com os factos da acusação, aparecimento do primeiro sintoma da menstruação e a aplicação de uma pomada para evitar as consequências decorrentes de picadas de insetos que teriam ocorrido em dias anteriores. Atendendo a que a menor neste momento já tem praticamente 15 anos e também de acordo com o teor das suas declarações para memória futura, prestadas em 08-10-2021, ela revelou bastante à vontade no relato que fez do que teria acontecido, seria importante reinquirir a menor, confrontá-la diretamente com estas duas situações referidas para a boa decisão da causa.
Ao abrigo do disposto no artº 271º, nº 8 do C. P. Penal o arguido entende para um melhor esclarecimento dos factos e a boa decisão da causa a tomada de declarações à menor tomando-se todos os cuidados que o tribunal entender ser adequados» – requerimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal.
2 – Sobre o aludido requerimento pronunciou-se o Exmo. Procurador da República nos seguintes moldes: «A lei é clara a estipular que o objeto de discussão numa audiência de julgamento são os factos constantes da acusação, da contestação e os demais factos que sejam relevantes para estabelecer a medida da pena e a culpabilidade. Os factos a que se refere o requerimento antecedente não se tratam de nenhum desses factos, assim sendo é absolutamente irrelevante a alegada contradição entre esses factos e os factos constantes da acusação. Na verdade, tais factos estão fora da discussão dos moldes supracitados. Acresce que o ilustre mandatário do arguido esteve presente nas declarações para memória futura, sendo certo que não eram desconhecidos do arguido os factos cuja prova ora se requer e cujas declarações pretende da ofendida. Assim sendo e caso considerasse pertinente deveria ter colocado essas questões.
O Ministério Público requer que seja indeferida a pretendida tomada de declarações» - requerimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal.
3 - Concedida a palavra ao ilustre mandatário dos assistentes, pelo mesmo foi dito que aderia à posição manifestada no requerimento do Ministério Público, adiantando o seguinte: «O princípio do contraditório não exige em termos absolutos o interrogatório direto. Tal princípio comporta, como o caso, salvo exceções, em que se verificam circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa. Daí que é possível, conforme à jurisprudência do Supremo, valorar o depoimento da menor em audiência de julgamento. Note-se, aliás, que o procedimento determinado pelo artº 271º do C.P. Penal foi integralmente cumprido pelo Ministério Público, foi ordenada a transcrição do depoimento prestado pela menor em declarações para memória futura e encontra-se junta aos autos desde o inquérito. O arguido teve oportunidade para se pronunciar sobre o depoimento em sede de inquérito, em sede de instrução e agora também em sede de audiência de julgamento, o que nunca fez. Teve também oportunidade de alegar irregularidades, nulidades, eventuais irregularidades o que nunca também fez, nem sequer a leitura das declarações para memória futura é necessária no âmbito da presente audiência de julgamento e no exercício do contraditório. Finalmente, o arguido também não adiantou quaisquer questões relevantes e que quer que se discutam com a produção de prova que requereu. Os assistentes opõem-se que seja deferida tal prova» - requerimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal.
4 – Após uma breve interrupção para deliberação, a audiência de julgamento foi retomada, tendo sido proferido pela Exma. Sra. Juíza Presidente do tribunal coletivo o seguinte despacho:
«O art.º 24º, nº 6, da Lei nº 130/2015, de 04-09 (Estatuto da Vítima) estabelece, como regra geral, não ser repetível a prestação de depoimento de pessoa que já prestou declarações para memória futura.
No que se refere a menores vítimas de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, a Reforma Penal de 2007 (Lei nº 48/2007, de 29-08), na sequência de contributos de legislação internacional, já havia tornado obrigatória a inquirição para memória futura, no decurso do inquérito (valendo como prova em julgamento, independentemente do menor vir a ser novamente ouvido durante a audiência), estabelecendo ainda a lei condições específicas da realização desta diligência (cf. art.º 271º, nº 4, do CPP: ambiente informal e reservado e assistência por técnico especialmente habilitado).
Em 2015, as alterações à Lei de Proteção de Crianças e Jovens (Lei nº 142/2015, de 08-09), ao Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei nº 141/2015, de 08-09) e a aprovação do já referido Estatuto da Vítima (Lei nº 130/2015, de 04-09) visaram evitar a audição sucessiva (em diversos procedimentos judiciais ou no mesmo procedimento judicial) de menor vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, conferindo centralidade às declarações para memória futura recolhidas no processo criminal e assumindo uma opção clara no sentido de tais declarações para memória futura constituírem a única situação de audição da criança.
A regra geral de não renovação do depoimento, no caso dos menores vítimas de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, assenta, no essencial, no efeito vitimizador (vitimização secundária) inerente a tal repetição (pretende-se evitar que a criança seja levada a reviver os sentimentos negativos – medo, ansiedade, dor – experimentados aquando do crime), pretendendo-se evitar também os efeitos de contaminação e erosão da veracidade do depoimento que são apontados à prática da audição sucessiva.
Como não há regra sem exceção, a norma do art.º 24º, nº 6, da Lei nº 130/2015, de 04-09 (Estatuto da Vítima) estabelece, a par da regra geral de não renovação do depoimento, uma exceção a tal regra.
A exceção, aí prevista, assenta na circunstância da prestação de depoimento em audiência de julgamento se mostrar indispensável para a descoberta da verdade e não puder em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar.
A prestação de declarações para memória futura de menor alegadamente vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual deve ter lugar no mais curto espaço de tempo possível após a ocorrência dos factos ou do seu conhecimento.
Os alegados factos, relativamente aos quais o arguido pretende a reinquirição da menor, são circunstanciais e secundários e sobre estes foi produzida prova suficiente em sede de audiência de discussão e julgamento. A relevância destes factos para a resposta do tribunal á matéria de facto é questão a debater em sede de motivação do acórdão a proferir.
Nesta medida, e pelas razões legais e factuais referidas indefere-se o pedido de reinquirição da menor na presente audiência de discussão e julgamento. […]».
É sabido que as declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção e em conjugação com a restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.
O instituto das declarações para memória futura tem como objetivo evitar a repetição da audição da vítima em julgamento, protegendo-a, assim, do perigo da vitimização secundária. A tomada de declarações antecipada pretende, além disso, assegurar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, evitando os efeitos de contaminação e erosão do depoimento que são apontados à prática da audição sucessiva, como é salientado pelo tribunal a quo na decisão recorrida, e obstar a pressões ou manipulações prolongadas no tempo, prejudiciais à liberdade de declaração da vítima.
Coerentemente com tais natureza e finalidades, dispõe o art.º 24.º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/ 2015, de 4/9, no respetivo n.º 6 que, sendo prestadas declarações para memória futura, só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
É de notar que, diversamente do que resulta da norma contida no art.º 271.º, n.º 8, do CPP (que estabelece que «A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar»), a norma especial contida no Estatuto da Vítima, atrás transcrita, expressamente prescreve que as vítimas não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a sua saúde física ou psíquica, tratando-se de pressupostos cumulativos.[1]
Portanto, a presença da vítima em julgamento deve ser assumida sempre como uma exceção, constituindo a regra a valoração da prova pré-constituída traduzida nas declarações prestadas para memória futura.[2]
Sucede que, no presente caso, o arguido/recorrente não demonstra a essencialidade do depoimento da vítima a prestar em audiência para a descoberta da verdade. Com efeito, e como bem salienta o tribunal no despacho recorrido, os factos sobre os quais se pretendia a audição da menor, em audiência, não se encontram descritos no despacho de pronúncia – o qual, como é sabido, delimita o objeto do processo e, portanto, o thema decidendum -, configurando meros factos circunstanciais, acessórios e, por isso, instrumentais.
Podendo ser levados em consideração pelo tribunal na formação da sua convicção relativamente à demonstração dos factos principais, conformadores do objeto do processo, é evidente, porém, que o seu debate e, em particular, a inquirição da menor sobre os mesmos não se revela essencial à descoberta da verdade.
De resto, nada indica que, mesmo que a menor confirmasse a sua ocorrência e veracidade, o efeito sobre o processo de formação de convicção do tribunal relativamente aos factos essenciais, constitutivos do objeto do processo, fosse diverso, coincidente com a pretensão do requerente: ou seja, a falta de demonstração dos factos narrados nos despachos de acusação e de pronúncia.
Diversamente do que pretende o recorrente, não se descortina qualquer incompatibilidade intrínseca entre a ocorrência dos factos invocados pelo arguido/recorrente e aqueles que foram descritos no despacho de pronúncia. Tais circunstancialismos fácticos não são, em abstrato, mutuamente excludentes, admitindo-se a possibilidade da respetiva coexistência.
Por outro lado, para além de revestirem caráter meramente instrumental – e não essencial -, os factos invocados pelo recorrente, a serem verdadeiros, teriam ocorrido no mesmo contexto e circunstancialismo temporal dos demais, narrados nos despachos de acusação e de pronúncia. Nada impedia, portanto, o arguido, representado pelo seu defensor, de procurar ouvir a menor sobre tal matéria, no decurso da tomada de declarações para memória futura, diligência na qual esteve presente.
Finalmente, e como bem salienta o Ministério Público na resposta ao recurso, o arguido/recorrente não demonstra o segundo requisito legalmente exigido – isto é, que a reinquirição não poria em causa a saúde física ou psíquica da menor ofendida -, limitando-se a alegar que «atendendo a que a menor neste momento já tem praticamente 15 anos e também de acordo com o teor das suas declarações para memória futura, prestadas em 08-10-2021, ela revelou bastante à vontade no relato que fez do que teria acontecido».
Nada indica, e o recorrente também não o demonstra, como se impunha, que a menor, confrontada com tais episódios, não experienciaria, de novo, sentimentos de medo, ansiedade e dor, sendo exatamente o efeito de “vitimização secundária” daqui resultante que o legislador pretendeu evitar.
Sendo manifesta a falta de demonstração dos pressupostos cumulativos de que a lei faz depender a possibilidade de reinquirição das vítimas, em audiência, tendo sido prestadas declarações para memória futura, nenhuma censura merece o tribunal a quo por ter indeferido o requerimento do arguido.
Improcede, deste modo, o presente recurso interlocutório.
I) Nulidade do julgamento.
Alega o recorrente que, em grande parte da gravação dos depoimentos das testemunhas da acusação CC e DD, embora audível, por distorção do respetivo som, não é percetível o teor das respostas por elas dadas. Por isso, e porque se propunha impugnar a decisão da matéria de facto também com base nesses depoimentos, defende que deve decretar-se a nulidade do julgamento nessa parte e determinar-se a sua repetição.
É certo que a omissão (ou deficiência) de documentação da prova constitui, nos termos do art.º 363.º do CPP, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29/8, uma nulidade sanável, sujeita ao regime de arguição e de sanação dos artigos 120.º, nº 1 e 121.º, do CPP.
Como se faz notar no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 1/7/2010 [3], a deficiente gravação da prova, desde que atinja um grau de impercetibilidade que impeça o seu efetivo conhecimento e, como tal, a sua impugnação, com vista a ser reapreciada, deve ser equiparada á situação de falta (total ou parcial) da gravação, constituindo da mesma forma nulidade, porquanto ambas as situações estão no mesmo patamar de gravidade quanto á violação ou inobservância da respetiva disposição legal.
Contudo, a nulidade decorrente da omissão ou deficiente gravação da prova produzida na audiência de julgamento deve ser suscitada, no decurso da audiência de julgamento, se aí for detetada a ausência de documentação, nos termos do n.º 3, alínea a) do art.º 120.º do CPP, ou, finda a audiência, no prazo de 10 dias, após a entrega de cópia do suporte contendo a gravação da prova (cf. o art.º 105.º, n.º 1 do CPP), sob pena de dever considerar-se sanada.
Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou jurisprudência no seguinte sentido: «A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.» (Acórdão nº 13/2014, de 3 de Julho de 2014, DR 183 SÉRIE I, de 23/9/2014).
Ora, o recorrente, tendo acesso à gravação desses depoimentos, não arguiu atempadamente qualquer nulidade, o que só fez, extemporaneamente, no recurso que interpôs do acórdão.
Devendo considerar-se sanada a mencionada nulidade, improcede o presente fundamento do recurso.
Considera o recorrente que a decisão encontra-se insuficientemente fundamentada, não só porque assenta, fundamentalmente, nas declarações para memória futura prestadas pela menor ofendida, obliterando os depoimentos relevantes prestados pelas testemunhas de defesa, mas também porque não permite compreender o conteúdo e sentido útil de diversos depoimentos prestados por testemunhas da acusação e das declarações dos assistentes, progenitores da menor ofendida, limitando-se o tribunal a quo a tecer comentários genéricos relativamente a esta matéria.
Vejamos, então, se assiste razão ao recorrente na crítica dirigida ao acórdão recorrido.
Decorre do disposto no n.º 2, do art.º 374.º do CPP – que regula os requisitos da sentença – que ao relatório segue-se a fundamentação, “que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.
Como é salientado no acórdão do STJ, de 21/3/2007 [4], “A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289).”.
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo.[5]
O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cf., v.g., Ac. do STJ de 30-01-2002, Proc. n.º 3063/01).
O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
Como é observado no acórdão do TRL de 18/5/2022 [6], “É certo que o exame crítico das provas tem geometria variável, tanto quanto o dever geral de fundamentação de todas as demais decisões judiciais, consoante a sua complexidade intrínseca ou a controvérsia gerada entre os sujeitos processuais, ou mesmo, a natureza e o conteúdo dos meios de prova disponíveis, designadamente, quanto à existência ou não de prova direta dos factos que integram a prática dos crimes pelos quais os arguidos vêm acusados, ou à necessidade de recurso a presunções naturais que podem envolver e, por regra, envolvem mesmo, um maior esforço argumentativo, pela necessidade de cruzamento de informações provenientes de diferentes fontes e da sua análise lógica e dedutiva, à luz de máximas de experiência comum, de critérios de razoabilidade humana, de determinados usos, ou de regras técnicas e científicas, pertinentes ao juízo de inferência necessário para extrair um facto desconhecido de outro facto conhecido.”.
A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
Contudo, e como se adverte no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2/10/2018 [7], “A lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o ato de decidir numa tarefa impossível.”
Por fim, importa salientar que “O exame crítico exigido pela lei não se basta com a apreciação das provas uma a uma, isoladamente, de forma segmentada. Do juiz exige-se muito mais que análises fragmentárias, parcelares e descontextualizadas do material probatório que tem à sua disposição. O que o legislador pressupõe é um juiz responsável, capaz de pôr o melhor da sua inteligência e do seu conhecimento das realidades da vida na apreciação do material probatório que tem ao seu dispor, analisando e valorando as provas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.” [8].
Na formulação do acórdão deste TRP de 7/6/2017 [9], o exame crítico dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento “só será suficiente quando identificar cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com referências genéricas que, de tão abstratas, genéricas e esvaziadas de conteúdo preciso, ou que apenas reproduzam – total, ou parcialmente - o teor da prova produzida, não permitam perceber o que de útil, em concreto, o tribunal extraiu e valorou de cada meio concreto de prova produzido em julgamento e o motivo pelo qual assim decidiu.”.
Recordemos o que se escreveu, a propósito do exame crítico das provas e da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, no acórdão recorrido (segue transcrição parcial):
«[…] É sabido que em matéria de “crimes sexuais” as declarações do/a ofendido/a têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais. Por outro lado, sabemos que ao arguido fica a árdua tarefa de infirmar aquelas declarações.
Por esta razão ao julgador cabe especial cuidado na análise do referido meio de prova.
O caso concreto não fugiu a esta realidade probatória, a menor descreveu a factualidade dada como provada e o arguido refutou-a veementemente, o que significa que o tribunal valorou positivamente as declarações desta.
Tais declarações, prestadas perante Juiz de Instrução e sujeitas a contraditório, mereceram inteira credibilidade do tribunal.
Em primeiro lugar porque, como por todos foi afirmado, a menina tinha uma especial relação de afeto e proximidade com o avô, fundamentada também na confiança que os progenitores depositavam neste familiar e mulher, a quem entregavam os filhos durante dias, inexistindo, por essa razão, motivos para a menina imputar ao avô factos tão sórdidos. É aqui de ter em conta que a professora, e posteriormente o avô, mas já depois do conhecimento dos factos pelos progenitores, a alertou para a gravidade do que estava a afirmar, devendo pensar muito bem pois o avô podia ser preso, o que não demoveu a menina de o denunciar.
A forma envergonhada, mas séria, com que o menor revelou os episódios supra descritos – ainda que com frequentes pausas no discurso e ainda que em relação a algumas situações não tenha tido a iniciativa de as narrar limitando-se a responder que sim (ou que não) ou a descrever as ocorrências na sequência de perguntas muito concretas – levou o Tribunal a acreditar plenamente na bondade do depoimento e a valorá-lo como credível.
Neste depoimento é relevante a pormenorização da conduta sexual que só é compatível com uma vivência efetiva, designadamente quando a menor descreve a tentativa de penetração “…ele pegou no órgão íntimo dele…”; é também relevante, em nosso entendimento, quando à pergunta “porque não contaste” a menina responde: “ (…) Eu tive medo; Eu não sei. Eu ainda não sabia o que era isso”. Isto vem ao encontro daquilo que é normal no desenvolvimento de uma criança com aquela idade e insere-se na relação familiar e de afeto que a menina mantinha com o avô. Com efeito, em inúmeros casos de abuso sexual de crianças o abusador é uma pessoa em quem a criança confia, conhece e muitos vezes ama. Nos casos de abuso sexual intrafamiliar pode ocorrer uma ambivalência de sentimentos do menor relativamente ao ofensor que sem saber como valorar a conduta pode apreendê-la como uma especial fonte de atenção e afeto.
Neste contexto faz sentido que a menor tenha contado os factos na sequência da aula a que assistiu sobre as diversas formas de amor e sobre eventuais abusos, foi aí que ela teve uma resposta para aquilo que já a vinha a incomodar e a que não sabia dar nome.
Estranha o arguido e demais família - cônjuge e filhas – que, no período em que ocorreram os factos, a menina continuasse a procurar a companhia deste.
Este comportamento insere-se no que supra expusemos sobre a dualidade de sentimentos que se instala no menor abusado: por um lado julga-se beneficiada com um especial carinho do familiar que lhe é próximo e querido e por outro teme que o comportamento seja errado e que a sua denúncia o afaste daquela pessoa. A tudo acresce o facto de não apreender o conteúdo valorativo dos comportamentos a que é sujeito/a.
Fundamentaram as conclusões do tribunal, no que à credibilidade deste testemunho diz respeito, a avaliação psicológica vertida no relatório do IML, onde se lê: “Apesar do desconforto que evidenciou, BB conseguiu relatar o alegado abuso sexual que motiva o presente processo de avaliação pericial. A entrevista foi conduzida de modo a obter um relato livre, sem questões diretivas, sugestivas ou indutoras, seguindo os procedimentos da entrevista forense.
Foi feita a análise de conteúdo baseada em critérios que a literatura aponta como indicadores associados a relatos de factos vivenciados, credíveis. Do ponto de vista geral, o seu relato apresenta estrutura lógica, com suficiente coerência nas descrições, uma produção pouco estruturada no que diz respeito à sequência da narrativa, com informações dispersas, mas não inconsistentes e com descrição de detalhes que permitem compreender a situação e as circunstâncias em que alegadamente ocorreu. (sublinhado nosso). (…) Não se observaram alterações emotivas ou cognitivas que comprometessem a recolha de informação durante entrevista. BB utilizou uma linguagem e nível de conhecimentos de acordo com o esperado para a sua idade e experiência sugerindo ausência de influência ou sugestão por parte de terceiros.
Não se apuraram ganhos secundários relativos à denúncia. Todo o relato é efetuado com um humor ajustado ao discurso. O relato foi consistente com outras declarações (análise das peças processuais).
A análise qualitativa do relato de BB permite-nos concluir que se trata de um relato provavelmente credível. Da avaliação realizada conclui-se ainda que BB apresenta capacidade para prestar depoimento.”
Por não ter qualquer relação com os sujeitos processuais e/ou o objeto em discussão, foram especialmente relevantes as declarações da testemunha, DD, professora a quem a menor contou em primeiro lugar o que estava a vivenciar, que confirmou o conteúdo da aula que ministrou, no termo da qual a menina “desabafou”. Esta testemunha alertou a menor para a gravidade do que descrevia e das consequências adversas que daí poderiam resultar para o arguido, impondo-lhe que contasse aos progenitores, se fosse verdade, pois caso o não fizesse ela tomaria essa iniciativa.
Toda esta envolvência foi descrita pela menor e pelos seus progenitores FF e EE.
Claro que os progenitores não assistiram aos factos e destes pouco lhes foi relatado pela menor que se “fechou” na expressão “o avô abusa de mim”. Foi na sequência da “notícia” dada pela menor que os progenitores a mandaram efetuar o contacto telefónico cujo conteúdo e imagem se encontra junto aos autos, reproduzido em audiência de discussão e julgamento, a pedido do arguido. E se dúvidas houvessem relativamente à veracidade do relato efetuado pela menor, a conversa telefónica com o avô, quer pelo conteúdo quer pela emoção percetível na voz do arguido, de medo e aflição, sanou-as por completo […].
A testemunha CC, psicóloga na escola e que seguiu a menina na sequência da diminuição de aproveitamento escolar, confirmou a sintomatologia alegada em sede de pedido de indemnização civil quanto ao isolamento a que a menina se votou e o decréscimo do rendimento escolar.
A matéria relativa ao pedido de indemnização civil foi relatada pelos progenitores que, também aqui mereceram a credibilidade do tribunal. De notar que a mãe se mostrou destroçada pelo que julgamos ser, também, culpa por não ter obstado à factualidade provada. Tal matéria de facto vai, ademais, ao encontro das regras da experiência comum.
As demais testemunhas trazidas pela defesa – cônjuges e filhas- em nada esclareceram o Tribunal pois não assistiram aos factos. De resto confirmaram a ligação emocional da menina ao avô e vice-versa, cuja valoração foi por nós abordada supra, e tentaram alijar os eventuais abusos sobre terceiros. […]».
Com relevância para aferir da correção do segmento decisório imediatamente atrás transcrito, importa observar que, não sendo imposto o dever de o tribunal se pronunciar sobre todo e qualquer meio de prova, mas apenas dos que serviram para fundamentar a convicção do tribunal, e não se mostrando que o meio de prova omitido seja relevante para a decisão, não ocorre nulidade por falta de fundamentação, como se faz notar no acórdão deste TRP, de 25/1/2017 [10].
Além disso, não se exige que o tribunal reproduza, na decisão, o teor de todo e qualquer meio de prova produzido na audiência. O que verdadeiramente importa é que o exame crítico permita identificar cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, assente numa análise conjugada de todos os meios de prova, ainda que de sinal contrário, e daí resulte uma decisão linear, regida pelas regras da lógica e as máximas da experiência.
No presente caso, é manifesta a inexistência ou, sequer, a insuficiência da fundamentação, encontrando-se enunciados, especificadamente, os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, permitindo a fundamentação compreender de forma suficientemente clara e precisa – e com a amplitude adequada à complexidade da causa - os motivos e a construção do percurso lógico da decisão, segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum, não se restringindo a uma adesão acrítica da prova, cumprindo-se, desta forma, o ónus imposto no art.º 374.º, n.º 2, do CPP.
A discordância do recorrente quanto à forma como o tribunal valorou a prova de modo nenhum se confunde com a patologia invocada que, claramente, não se verifica no presente caso e, por isso, em nada contende com a validade formal da decisão de que nos ocupamos.
Ora, o artigo 379.º, n.º 1, do CPP, estabelece, na sua alínea c), que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Deste modo, a sentença é nula, designadamente, quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre factos concretos da acusação, da pronúncia ou da contestação que sejam relevantes para a boa decisão da causa.
Neste sentido, prescreve o n.º 4 do art.º 339.º do CPP que, sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º (respetivamente, determinação da culpabilidade e da sanção).
Com efeito, é preciso notar que o processo penal não é um processo acusatório puro, estando-lhe subjacentes preocupações de justiça que impõem uma mais completa indagação da verdade, permitindo que a versão dos factos apresentada na acusação e a realidade se aproximem. Por isso, como refere Germano Marques da Silva, “por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objeto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afetada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo” (Curso de Processo Penal, Lisboa, Verbo, III, 2.ª edição, p. 273).
Importa, contudo, desde já observar que tem sido entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores que só se verifica omissão de pronúncia quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não as simples razões, argumentos, opiniões, motivos ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respetivas posições. [11]
Além disso, a imposição dirigida ao tribunal não incide, por regra, sobre os factos acessórios ou meramente instrumentais, designadamente quando são invocados pela defesa e têm por finalidade contraditar ou infirmar os factos essenciais que integram o objeto do processo.
É certo que o tribunal não incluiu no elenco dos factos provados ou não provados, constante da decisão recorrida, os factos que terão sido abordados na decisão da causa e invocados pelo arguido no recurso – designadamente, a circunstância de sempre ter existido, nomeadamente nos três anos em que são situados os factos em causa, uma especial proximidade da menor com o avô, tendo até a menor estado, dois ou três dias antes da denúncia, deitada na cama com o avô a ver o “tablet”; e o facto de o arguido ter pedido a uma terceira pessoa para aplicar pomada nas “partes íntimas” da menor (circunstância, segundo o recorrente, incompatível com a possibilidade de ocorrência dos abusos relatados pela menor).
Contudo, tais factos têm natureza meramente instrumental e, diversamente do que pretende o recorrente, não têm o potencial, só por si, de contrariar os factos que lhe foram imputados na acusação/pronúncia.
Com efeito, e como bem explicou o tribunal na motivação da decisão de facto, a circunstância de a ofendida continuar a procurar a companhia do avô, no período em que ocorreram os factos, insere-se no contexto de dualidade de sentimentos que se instala no menor abusado, ambivalência de sentimentos do menor relativamente ao ofensor que é caraterística dos casos de abuso sexual intrafamiliar.
Deste modo, nenhuma razão havia para incluir tais factos na matéria de facto provada ou não provada.
Por fim, considera o recorrente que “devia ter sido dado como provado pelo Tribunal que a personalidade e índole moral do arguido não eram compatíveis com a natureza dos factos em causa” – acrescentando o recorrente que “tanto a irmã, como as outras duas filhas do arguido, depuseram claramente e de forma absolutamente credível nesse sentido […], todas assegurando que, conhecendo o arguido desde sempre, consideram absolutamente impossível ele ter praticado os factos em causa, muito menos com uma neta.”
Contudo, tal alegação nem sequer consubstancia um facto propriamente dito, antes integra um juízo de valor meramente opinativo e sem qualquer valor científico, motivo suficiente para justificar a sua exclusão da matéria de facto apreciada pelo tribunal.
Improcede, assim, na totalidade o presente fundamento do recurso, não se verificando a nulidade do acórdão recorrido.
Sustenta o recorrente que a matéria de facto que consubstancia os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime por que foi condenado foi incorretamente julgada, com violação do princípio da livre apreciação da prova, devendo transitar para o elenco dos factos não provados, o mesmo devendo suceder com a factualidade descrita nos pontos 22), 23) e 24).
Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cf. art.º 428.º do Código Processo Penal).
A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:
- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- mediante a impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
Quanto a esta última modalidade de impugnação (a ampla) o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
Todavia, este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto.
Com efeito, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art.º 430º do Código de Processo Penal), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados [sem prejuízo da audição da totalidade da prova para contextualização do alegado – cf. o nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal].
Ora, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida [12].
Na verdade, dispõe o art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [13]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [14].
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva.
A este propósito refere Germano Marques da Silva [15] que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.
Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de primeira instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados. Com efeito, no processo de formação da convicção do juiz "desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (cf., no sentido apontado, o acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss).
Contudo, e como observa o Conselheiro António Gama [16], a imediação não pode funcionar como desculpa de menor rigor na elaboração da fundamentação, nem torna, em regra, inatacável a decisão do tribunal de 1ª instância.
Como fez notar o STJ, no acórdão de 30/11/2006 [17], “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efetivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento” [18].
Em conclusão, e como é salientado nos acórdãos do STJ de 14/3/2007 e de 3/7/2008 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de Recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Como vimos, o recorrente defende que os factos constantes dos pontos 4º a 20º, 22º, 23º e 24º, dados como assentes, foram incorretamente julgados – com violação do princípio da livre apreciação da prova -, impondo a prova produzida na audiência de julgamento decisão diversa, coincidente com a falta de demonstração dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime por que foi condenado.
Recordemos os pontos de facto impugnados pelo recorrente e que serviram de fundamento ao preenchimento dos tipos de ilícito e de culpa dos crimes de abuso sexual de criança em análise nos autos:
[1. BB, nascida no ... ../../2008, é filha de FF e de EE.
2. O arguido AA é pai de EE e avô materno da menor BB.
3. No dia 28/11/2020, devido a uma cirurgia da mãe, a ofendida BB foi para casa dos seus avôs maternos, sita na Rua ..., ..., ..., em ..., juntamente com o seu irmão mais novo.]
4. Em hora não concretamente apurada, quando BB se encontrava no quarto dos avós, foi surpreendida pelo arguido, seu avô, AA, que a deitou na cama e lhe tocou na vagina e mamas, por cima da sua roupa.
5. Momentos depois apareceu o seu irmão mais novo no quarto e o arguido começou a fazer-lhe cócegas, com o intuito de disfarçar toda aquela situação.
6. Todavia, o arguido desde os 9 anos de idade, altura em que BB ingressou no 5º ano de escolaridade, em diversas ocasiões, que perduraram durante o 6º ano letivo, apalpava o peito e a vagina da menor, inicialmente por cima da roupa e posteriormente introduziu as suas mãos por baixo das camisolas, calças e das cuecas que a mesma envergava, apalpando-a.
7. Do mesmo modo, o arguido introduzia os dedos na vagina da menor,
8.Tendo, em data não apurada das férias de verão de 2020, efetuado sexo oral à menor quando ambos estavam no sofá da sala da casa dos avôs em ....
9. A primeira situação aconteceu em finais de agosto, princípios de setembro, em momento anterior ao início do 5º ano letivo e de seguida, aos fins de semana ou férias.
10. Nessas ocasiões, o arguido aproximava-se da menor que se encontrava na sala, ora no quarto, sentada ou deitada.
11. Além disso, o arguido masturbava-se à frente da menor depois de despir as suas calças e a roupa interior.
12. Para o efeito, o arguido fechava o irmão mais novo num outro quarto e deste modo ter mais privacidade e aproveita a ausência da avó.
13. Ainda durante 6º ano letivo, em duas ocasiões, o arguido tocou com a sua boca e lábios na vulva da BB.
14. Ademais, em data não concretamente apurada, entre o 6º e o 7º ano, durante as férias, quando a menor se encontrava na sala da residência, em ..., o arguido aproximou-se da menor e após tirar a sua roupa e da menor, colocou os seus lábios na vagina da menor.
15. De seguida, pegou no pénis e em cima da menor, tentou introduzi-lo na vagina daquela, o que não logrou, pois esta conseguiu afastá-lo, empurrando-o e fugindo do local.
16. Estas situações ocorreram maioritariamente na casa do arguido em ... e menos vezes, em ..., uma vez que estes possuem uma casa nessa localidade que se encontrava a ser remodelada.
17. Como consequência das aludidas condutas a BB baixou o seu rendimento escolar e começou a isolar-se dos outros.
18. O arguido solicitou à menor BB para não contar a ninguém senão ia preso.
19. O arguido conhecedor da idade da BB agiu livre, deliberada e conscientemente com o propósito e desejo, conseguido, de satisfazer os seus instintos libidinosos, aproveitando-se da inocência e inexperiência da menor sabendo que atuando da forma descrita atentava contra o desenvolvimento sexual da criança, visto que a sua idade não lhe permitia sequer avaliar os atos sexuais levados a cabo pelo arguido.
20. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
(…)
22. Da avaliação da personalidade do arguido resulta grande alienação na relação com os outros, ausência de remorsos e ou sentimentos de culpa, dificuldade na regulação emocional.
23. Em consequência da conduta do arguido BB passou a fechar-se no quarto e a irritar-se com o irmão com mais facilidade; diminuiu o rendimento escolar, teve dificuldades em dormir; chegando a mutilar-se.
24. Atualmente sente tristeza e necessita de apoio psicológico.
Importa reiterar que, para alterar a decisão sobre a matéria de facto, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham decisão diversa da proferida (artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP), sendo que, como justamente salientou o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP, datado de 9/11/2016 (e disponível em www.dgsi.pt), “(…) para tanto, não basta apontar disparidades, divergências, incongruências ou até contradições entre os vários depoimentos. A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos, nem, tão pouco, tem de aceitar ou rejeitar cada um dos depoimentos na globalidade. A sua tarefa é dilucidar, em cada um deles, o que merece crédito e o que lhe suscita reservas ou mesmo descrédito.
Sobretudo quando a prova seja, exclusiva ou essencialmente, testemunhal, ao tribunal de recurso cabe aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.”.
Da análise da decisão recorrida (já transcrita) resulta que o tribunal a quo explicitou, claramente e de forma perfeitamente lógica e sustentada na prova produzida, as razões pelas quais, no confronto da versão dos factos trazida, por um lado, pela menor BB - versão parcialmente corroborada, de forma igualmente isenta, pelos assistentes FF e EE (pai e mãe da menor) e pela testemunha DD (professora da menor) - e, por outro, pelo arguido, conferiu maior credibilidade á primeira.
O recorrente, embora com referenciação e/ou transcrição de depoimentos, limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, verificando-se, porém, inequivocamente que o tribunal explica de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos na decisão recorrida, sendo da análise conjugada das declarações da menor BB (prestadas para memória futura), dos depoimentos prestados pelos mencionados assistentes e testemunhas e do conteúdo do relatório pericial de psicologia forense - mostrando-se, no essencial, tais meios de prova coerentes e congruentes entre si - que retira a sua convicção.
Verifica-se, ainda, que os elementos de prova que o recorrente indica para contrariar as conclusões obtidas pelo tribunal – fundamentalmente, as suas próprias declarações e os depoimentos prestados pelas testemunhas de defesa - não impõem, efetivamente, decisão diversa da recorrida.
Com efeito, o arguido limita-se a negar as acusações que lhe são dirigidas e aponta, na motivação do recurso, incongruências que considera existir nas declarações da menor BB e nos depoimentos dos mencionados assistentes e testemunhas - meios de prova nos quais o tribunal, a par da prova pericial, baseou a sua convicção -, sem que, de modo algum, se possa concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou notoriamente violadora das regras da experiência comum [19].
Na verdade, o que ressalta da motivação é que o recorrente tem opinião diversa da que foi expressa pelo tribunal a quo no que respeita à análise e valoração da prova, pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, de forma não consentida pelo nosso sistema, que configura o recurso sobre a matéria de facto como um remédio jurídico, com o objetivo de detetar e corrigir erros de julgamento.
É certo que da análise da decisão recorrida facilmente se constata que o tribunal baseou a sua convicção fundamentalmente nas declarações prestadas pela menor BB, mas sem que tal constitua algum problema sob o ponto de vista processual. Como é assinalado no acórdão do TRC de 17/5/2017 (consultável em www.dgsi.pt), o Tribunal pode formar a sua convicção apenas num único depoimento, mesmo que se trate do ofendido/assistente - importante é que este o preste de forma séria e credível e o Tribunal de forma clara e concisa explicite as razões do seu convencimento.
De resto, como é justamente salientado no acórdão do TRC, de 4/3/2020 [20], “há que atender ao facto de a prova da verificação dos factos nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, ser particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é suscetível de formar a convicção do julgador.”.
Com efeito, normalmente sucede nestes casos que o único elemento de prova existente resume-se às declarações dos menores ofendidos, podendo coexistir alguns elementos instrumentais, que conjugados entre si e com as regras da experiência comum, permitem formar a convicção sobre a verdade dos factos para além da dúvida razoável.
O tribunal a quo fundou justificadamente a sua convicção – na falta de outra prova direta – no depoimento da menor ofendida, salientando a sua congruência, verossimilhança e credibilidade, aferida, designadamente, pela forma séria, embora envergonhada, como relatou os abusos, inexistindo qualquer indício de efabulação ou de mentira. A corroborar a veracidade do relato da ofendida, salientou também o depoimento dos assistentes e das testemunhas inquiridas (incluindo da psicóloga CC, que acompanhou a menor em contexto escolar), as quais mencionaram as alterações de comportamento evidenciadas pela menor naquela época e as suas caraterísticas de personalidade.
Para além dos depoimentos prestados pelas aludidas testemunhas e assistentes, que considerou isentos e credíveis, o tribunal evidenciou o conteúdo do relatório de perícia médico-legal constante do processo, no qual se concluiu pela inexistência, do ponto de vista psicológico forense, de qualquer fator que diminua a credibilidade dos relatos da menor examinada, a qual “utilizou uma linguagem e nível de conhecimentos de acordo com o esperado para a sua idade e experiência, sugerindo ausência de influência ou sugestão por parte de terceiro”, sendo todo o relato efetuado com um “humor ajustado ao discurso” e “consistente com outras declarações”, permitindo concluir que se “trata de um relato provavelmente credível” (cf. o relatório pericial constante dos autos).
Como é salientado por Inês Sarmento Rodrigues, na dissertação apresentada à Universidade Católica Portuguesa para obtenção do grau de Mestre em psicologia, intitulada “ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR: ORIENTAÇÕES PARA A PARTICIPAÇÃO DA CRIANÇA NO SISTEMA JUDICIAL” [21], “A competência ou capacidade da criança para testemunhar é uma das dimensões avaliadas e postas em causa no seu depoimento. Não raras vezes, o sistema jurídico assume que as crianças possuem poucas competências enquanto testemunhas em situações crime, mas a investigação tem demonstrado que estas podem recordar e contar as suas experiências com precisão, desde idade precoce, revelando elevadas capacidades testemunhais e comunicacionais (Soeiro, 2003; Ribeiro, 2009). Variáveis como a mentira, a fantasia, a memória, a linguagem, a vulnerabilidade, a sugestionabilidade e a credibilidade são, igualmente, muitas vezes apontadas pelos investigadores como fatores que desvirtuam a autenticidade do testemunho da criança. No entanto, vários autores sugerem (e.g., Lamb, Strenberg, Orbach, Hershkowitz e Esplin, 1999; Soeiro, 2003) que variáveis como a sugestionabilidade podem ser contornadas pela correta atuação dos profissionais envolvidos, tendo surgido, neste âmbito, vários protocolos visando testar as competências da criança e despistar relatos falsos. A este respeito, vários estudos demonstram também que as crianças, tendencialmente, não mentem sobre a ocorrência de situações de abuso, não fantasiam acerca de situações abusivas, nem fabricam esse tipo de acontecimentos (e.g. Ribeiro, 2009). Ainda assim esta é uma dimensão que gera incertezas no sistema judicial e, por vezes, na família da criança. (…)”.
A doutrina que atribui às crianças tendência para mentir ou para memórias falsas está já ultrapassada pela investigação científica. Com efeito, e como nos dá conta Maria Clara Sottomayor [22], esta demonstra que as crianças não têm tendência a mentir e que revelam elevadas competências testemunhais e comunicacionais, assim como uma capacidade de discernimento superior à que lhes é frequentemente atribuída, percebendo a diferença entre a verdade e a mentira, geralmente, a partir dos 4 anos.
Ora, um dos critérios de fiscalização ou verificação dos meios de prova tem a ver com as características da declaração ou atendibilidade intrínseca, em que a sindicância se exerce sobre o conteúdo narrado, procurando aferir-se da sua credibilidade [23].
Fatores como a espontaneidade e tempestividade da declaração, a sua constância e coerência interna, mas sobretudo a sua completude e verossimilhança, constituirão importantes elementos de avaliação da credibilidade dessa declaração [24].
Como vimos, o tribunal recorrido expressou – fundamentadamente, procedendo a uma análise crítica da prova de forma exaustiva e absolutamente certeira - um juízo positivo sobre a credibilidade das declarações da menor ofendida e negativo sobre a credibilidade, plausibilidade e verossimilhança das que o arguido/recorrente prestou na audiência de julgamento, sem que, naturalmente, tal implique qualquer violação do princípio da igualdade constitucionalmente tutelado ou decorra da derrogação das suas garantias de defesa, que foram estrita e escrupulosamente observadas.
Invoca também o recorrente que o tribunal a quo valorou indevidamente a gravação da conversa telefónica mantida com a menor, sua neta, o que configura prova proibida, por ter sido obtida sem o seu consentimento.
Vejamos.
De harmonia com o disposto no art.º 125.º do Código de Processo Penal, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. Tal norma consagra, assim, o princípio da legalidade, e não o da tipicidade, dos meios probatórios.
Os métodos proibidos de prova foram estatuídos no art.º 126.º do CPP e estão intimamente associados às garantias constitucionais de defesa consagradas no art.º 32º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Assim, a enunciação do n.º 8 desse normativo, de que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”, aparece legalmente transposta no n.º 3, do citado art.º 126º, que estatui, além do mais, que “são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada”.
Todavia, e como se observa no acórdão deste TRP, de 25/2/2015 [25], esta proibição é relativa, visto que admite a utilização mediante consentimento do respetivo titular.
Consentimento esse que poderá ser prévio, subsequente ou evidenciado por atos expressos de renúncia à invocação da nulidade cometida por indevida intromissão em direitos de natureza pessoal com garantia legal e constitucional, como é o caso da reserva da vida privada.
Ora, no presente caso, e como bem observam os assistentes na resposta ao recurso, o recorrente consentiu na utilização e, consequentemente, na valoração de tal meio de prova, uma vez que tal gravação foi reproduzida na audiência de julgamento, não só sem qualquer oposição, mas também com o seu consentimento e participação ativa, prestando o arguido subsequentes declarações, pronunciando-se sobre o conteúdo de tal gravação e prestando os esclarecimentos que teve por convenientes (cf. a ata da sessão de audiência de julgamento realizada no dia 10/5/2023, junta aos autos).
Consequentemente, mesmo que tivesse sido obtido mediante intromissão na vida privada, o seu consentimento posterior – expresso nos atos que praticou - teria validado o referido meio de prova e sanado a sua eventual nulidade.
Ainda que de forma velada, invoca o recorrente que o tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo, na medida em que fundou a sua convicção nas declarações prestadas pela menor, apesar de inexistir concordância ou convergência entre tais declarações e a posição por ele manifestada sobre a matéria. Porém, sem qualquer razão.
Tal princípio, enquanto emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (32.º, n.º 2, da Constituição), consagra uma “regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos”. Dele decorre que o ónus probatório cabe a quem acusa e que em caso de dúvida, séria, razoável, objetiva e insanável, relativamente aos factos que consubstanciam a prática de um crime pelo arguido, deve tal dúvida ser resolvida a favor deste.
É de notar que não basta ao arguido lançar uma qualquer versão alternativa para que possa infundir dúvidas no processo da formação da convicção do julgador. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção [26].
Ora, resulta claramente da leitura da decisão recorrida que o tribunal a quo não teve qualquer dúvida sobre a realidade dos factos que considerou demonstrados. De resto, nem tal dúvida poderia ser legitimamente equacionada em face da certeza e segurança da prova produzida, pelas razões já explicitadas, sendo manifestamente insuficiente para provocar a dúvida razoável a circunstância de as testemunhas de defesa terem declarado que os factos em discussão nunca poderiam ter ocorrido, por serem incompatíveis com a personalidade do arguido [27].
Igualmente irrelevante para demonstrar a falta de veracidade do relato dos abusos efetuado pela menor mostra-se a circunstância de denotar afeto pelo recorrente e de continuar a procurar estar na sua companhia, naquele período temporal. Com efeito, e como bem explicou o tribunal na motivação da decisão de facto, tal comportamento insere-se no contexto de dualidade de sentimentos que se instala no menor abusado, sendo a ambivalência de sentimentos do menor relativamente ao ofensor caraterística dos casos de abuso sexual intrafamiliar. Como se faz notar no relatório pericial/relatório psicológico relativo à vítima, de acordo com a descrição efetuada pela menor, «a manutenção do alegado abuso foi justificada pelo pedido de segredo por parte do avô "porque ele poderia ir preso", por falta de coragem e medo inespecífico sobre o que poderia acontecer», descrevendo ainda a menor «uma relação próxima com o avô ("adorava o meu avô”), que sugere ambivalência de sentimentos. É comum existirem sentimentos ambivalentes em situações de abuso sexual intrafamiliar, que justificam a não revelação ou revelação tardia dos mesmos» (cf. página 12 do relatório pericial).
Já a prova do dolo, na ausência de confissão, assenta naturalmente em prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do arguido, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum. [28] Com efeito, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).
Também a factualidade constante dos pontos 22), 23) e 24) da matéria de facto provada encontra-se suportada pela prova pericial constante dos autos, resultando ainda, quanto aos dois últimos, das declarações prestadas pelos assistentes, progenitores da menor BB, e do depoimento da testemunha CC, psicóloga da escola por esta frequentada.
Por fim, e diversamente do que propõe o recorrente, não vemos qualquer razão para acrescentar factos aos já constantes do ponto 18) da matéria de facto assente, materialidade que encontra suporte probatório no conteúdo do relatório pericial constante dos autos[29].
Em conclusão, não merece censura a firme convicção do tribunal a quo quanto à demonstração da factualidade impugnada pelo recorrente, mostrando-se esta decisão congruente com a prova produzida, aferida segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), e perfeitamente suportada pelo princípio in dubio pro reo (sendo certo que, como vimos, o tribunal de primeira instância não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem tal dúvida se evidencia) [30].
Baseando-se na factualidade atrás transcrita e que temos por definitivamente assente, é manifesto que o comportamento do recorrente integra o tipo objetivo (e subjetivo) dos crimes de abuso sexual de crianças por que foi condenado, para além do respetivo tipo de culpa.
Improcede, por conseguinte, o presente fundamento do recurso.
Já vimos que a decisão sobre a matéria de facto não merece qualquer censura e que esta integra a prática pelo arguido/recorrente de quatro crimes de abuso sexual de crianças agravados, por que foi condenado.
O recorrente não questiona a medida concreta de cada uma das penas parcelares determinadas pelo tribunal de primeira instância, insurgindo-se apenas quanto à pena única de 9 anos de prisão, que reputa excessiva e desproporcionada, considerando, por isso, que deve ser reduzida para medida não superior a 6 anos.
Vejamos o que escreveu o tribunal a quo sobre esta matéria no acórdão recorrido (segue transcrição):
«Importa, determinar a pena única a aplicar ao arguido, fazendo-se o respetivo cúmulo jurídico das penas parcelares, tendo em conta a moldura penal abstrata do concurso e sendo determinada a pena concreta a aplicar ao arguido, para o que deverão ser considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
A pena única que terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (art.º 77.º, n.º 1 e n.º 2 do C. P.).
Assim, a moldura do concurso é de 6 a 19 anos de prisão;
Estabelecida a moldura penal do concurso, deve determinar-se a pena conjunta do concurso, dentro dos limites daquela. Tal pena será encontrada em função das exigências de culpa e de prevenção, tendo o legislador fornecido, para além dos critérios gerais estabelecidos no art.º 71.º do C. P., um critério especial: “Na determinação concreta da pena serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” (cfr. art.º 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do C.P.).
Assim, do que se trata agora é de ver os factos concorrentes no seu conjunto e detetar a possível conexão e o tipo de conexão que os liga, tendo em vista a totalidade da atuação dos arguidos como unidade de sentido por forma a possibilitar uma avaliação da gravidade do ilícito global perpetrado e a “culpa pelos factos em relação” (cf. MONTEIRO, Cristina Líbano, in “A Pena “Unitária” do Concurso de Crimes”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano XVI, n.º 1, pág. 162 e segs.).
Ora, no presente caso, o cúmulo engloba 1 crime de abuso sexual de criança, p.p. pelo art.º 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. a) e 3 crimes de abuso sexual de criança, p.p. pelo art.º 171º, n.º1 e 2 e 177º, n.º 1, al. a), do C.P.
Tudo ponderado, julga-se adequado condenar o arguido na pena de 9 anos de prisão.»
De acordo com as regras da punição do concurso de crimes, estabelecidas no art.º 77.º, n.º 2, do Código Penal, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Portanto, no presente caso, a moldura abstrata da pena conjunta de prisão oscila entre o mínimo de 6 anos e o máximo de 19 anos, correspondendo o limite mínimo à pena parcelar mais elevada e o máximo à soma da totalidade das penas determinadas (em concreto, 6+5+6+2).
Na determinação da medida concreta da pena unitária, o que interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz, nomeadamente, uma personalidade propensa ao crime ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido (cf. o art.º 77.º, n.º 1, do CP).
Embora a lei não estabeleça nenhum critério rígido a seguir na determinação da medida concreta da pena única dentro da moldura do concurso, a prática jurisprudencial tende no sentido de, em casos que não fogem à normalidade, fazer acrescer à pena parcelar mais grave 1/3 das demais, oscilando para mais ou para menos consoante as específicas circunstâncias do caso e a personalidade do agente [31].
Trata-se, na verdade, de um critério orientador, não vinculativo, moldável às especificidades do caso concreto, mas que serve como auxiliar e merece ser ponderado, como é observado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 7/4/2015 [32].
Por outro lado, importa ter presente que, também quanto a esta matéria, o recurso reveste-se das características e função de remédio jurídico. Como é assinalado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação do Porto, datado de 2/6/2010 (relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes e disponível em www.dgsi.pt), “No recurso dirigido à reação penal aplicada, a pretensão recursiva incidirá sobre os seus critérios fundamentais (culpa, prevenção especial ou geral) no propósito de comprovar seja a inadequação quanto à escolha, seja um desajustamento relevante no quantum fixado. Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável.”
Tal critério orientador merece amplo acolhimento na prática jurisprudencial e não vemos nenhuma razão para dele divergir no caso concreto. Ora, o tribunal a quo aplicou ao arguido a pena única de 9 anos de prisão, mais reduzida do que aquela que resultaria do funcionamento da fórmula atrás enunciada (6 anos + 1/3 das penas restantes, ou seja, 4 anos e 4 meses = 10 anos e 4 meses de prisão) e não vemos qualquer razão válida para diminuir o seu quantum concreto.
É certo que o recorrente é primário, contava com 61 anos de idade e sempre denotou adequada inserção familiar e socio-profissional, o que naturalmente terá sido valorado pelo tribunal de primeira instância. Contudo, a ilicitude dos factos, globalmente considerada, é acentuada, sendo prementes as exigências de prevenção geral associadas a este tipo de criminalidade.[33]
A propósito da danosidade social dos crimes sexuais contra menores, refere Paulo Guerra (in “O Abuso Sexual de Menores”, pág. 39): «Falar de abuso sexual é falar de maus tratos (…) a vítima do abusador sexual é ofendida no seu supremo direito à integridade física e moral, vê comprometido o seu direito a um integral desenvolvimento afetivo e social (…), vê-se impedida no seu absoluto direito de viver como criança, “sem comer etapas à vida” e sem “responsabilidades, remorsos ou culpabilidades prematuras».
Por isso, e como justamente é salientado no acórdão do STJ de 23/6/2010 [34], «a sociedade alimenta crispação, reclamando pena exacerbada contra o abusador sexual, não só para afirmação da eficácia da norma penal violada, enquanto prevenção geral positiva, mas ainda em nome da intimidação de potenciais delinquentes, enquanto prevenção geral negativa».
Os crimes praticados pelo arguido/recorrente são, assim, muito graves, repugnando à consciência coletiva, que não o poupa a severa reprovação, pela prática frequente registada entre nós, e não só, observando Daniel Borrillo (in “Droit des Séxualités”, Paris, Puf, 1998, in Colection de Notre Droit, pág. 123), citado pelo referido acórdão do STJ, que o crime sexual representa na atualidade o «paradigma do mal absoluto», sendo o seu autor um ser associal, portador de periculosidade por excelência.
Por outro lado, é sabido que a prática destes atos com crianças tem subjacente a lascívia sexual, sendo elevada a perigosidade do agente voltar a delinquir, acentuando-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3/12/2014 [35], que este tipo de perturbação comportamental é frequentemente endógeno do agente.
Decidimos, assim, manter a pena única de prisão aplicada ao recorrente, a qual se afigura ajustada às elevadas necessidades preventivas globalmente consideradas, não excedendo a medida da sua culpa, igualmente acentuada.[36]
Improcede, deste modo, o presente fundamento do recurso, nenhuma censura merecendo a medida da pena única determinada pelo tribunal a quo.
De acordo com o nº 1 do art.º 483º do C.C., a obrigação de indemnizar, por imputação de um dano, exige a verificação dos seguintes pressupostos: existência de um facto ilícito; imputação subjetiva do facto ao lesante; nexo de causalidade entre o facto e o dano [37].
Como foi já salientado neste acórdão, é inequívoco que o arguido/demandado atuou de forma ilícita e culposa, tornando-se, assim, responsável pela reparação dos danos não patrimoniais que haja causado à vítima.
O tribunal de 1ª instância, apelando a critérios de equidade, fixou no montante de € 25.000,00 o valor da indemnização atribuída à menor BB, por forma a compensá-la dos danos de natureza extrapatrimonial que lhe foram causados ilícita e culposamente pelo arguido/recorrente.
Do valor arbitrado pelo tribunal de condenação diverge o recorrente, considerando-o excessivo em face da dimensão dos danos considerados provados, devendo tal montante ser reduzido, na sua opinião, para valor não superior a € 5.000,00.
Relativamente à verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do recorrente e quantificação do montante indemnizatório, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte:
«BB, representada pelos seus progenitores, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação deste no pagamento, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em resultado do seu comportamento na quantia de € 100.000, 00 (cem mil euros) acrescida de juros legais desde a notificação até efetivo e integral pagamento.
Os danos não patrimoniais são aqueles que, não sendo suscetíveis de avaliação pecuniária, apenas podem ocasionar uma compensação.
Nestes casos, a indemnização visa proporcionar ao lesado uma compensação ou benefício de ordem material (a única possível) que lhe permita obter prazeres ou distrações – porventura de ordem espiritual – que, de algum modo, atenuem a sua dor (cf. Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1972, pág. 375).
O Código Civil, no artigo 496º do Código Civil, admite, independentemente da natureza da responsabilidade civil que a fundamenta (pré-contratual, extracontratual ou contratual), a indemnização dos “danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
A gravidade do dano há de medir-se por um padrão objetivo (essa apreciação deve ter em linha de conta as circunstâncias do caso concreto), devendo abstrair-se dos fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada), reparando-se apenas os danos que afetem profundamente os valores ou interesses da personalidade moral.
Com vista à quantificação de tais danos remete a lei para juízos de equidade, haja culpa ou dolo (cf. artigo 496º, nº 3, do Código Civil), tendo em atenção os fatores referidos no artigo 494º, do Código Civil (grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e quaisquer outras circunstâncias).
É pacificamente aceite que o sofrimento moral (suffering, na expressão anglo-saxónica, contraposta a pain), e a repercussão da situação de sofrimento na esfera bio-psíquica do lesado (suscetível de ser verificada em termos médicos), quando não se traduza em meros incómodos, integra a situação de gravidade merecedora da tutela do direito.
Vejamos o que de relevante se provou a este propósito (para além dos factos criminosos praticados pelo arguido): da matéria de facto supra mostra-se provado que em consequência da conduta do arguido a demandante baixou o rendimento escolar, tornou-se mais fechada, irritadiça, sentiu tristeza, passou a dormir mal.
Estes danos (em si e no contexto em que ocorreram) constituem lesões que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito.
Assim, tendo em conta a natureza dos factos ilícitos e culposos praticados pelo arguido, o efeito por ele provocado na pessoa da ofendida BB, bem como o restante circunstancialismo apurado (nomeadamente, o que se provou quanto à situação económico-financeira do arguido), entende-se como adequado fixar a indemnização, por danos não patrimoniais, no montante de € 25.000, 00, (valor atualizado à data da presente decisão), acrescido de juros, à taxa legal anual dos juros civis, a contar da data da presente decisão até efetivo e integral pagamento.»
Os danos não patrimoniais, reportando-se a valores de ordem espiritual, ideal ou moral [38], são insuscetíveis de avaliação pecuniária, visando, por isso, o seu ressarcimento uma compensação das dores físicas ou morais sofridas pelo lesado, bem como sancionar, em alguma medida, a conduta do lesante.
A ressarcibilidade destes danos está dependente de um juízo de valoração objetivo, tendente a afirmar a sua gravidade, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 496º do C.C.
Como vem salientando a jurisprudência, a compensação por danos não patrimoniais, para constituir uma efetiva possibilidade compensatória, deve ser significativa e não meramente simbólica. Refere-se, a este propósito, no acórdão do STJ de 24/4/2013 (disponível em www.dgsi.pt), que a fixação da indemnização não deve ser simbólica, miserabilista ou arbitrária, mas nortear-se por critérios de equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art.º 494.º do CC. [39]
Diversamente do que defende o recorrente, a matéria de facto provada evidencia a intensidade e gravidade dos danos de natureza não patrimonial sofridos pela menor BB. Com efeito, como consequência da conduta do arguido, a BB passou a fechar-se no quarto e a irritar-se com o irmão com mais facilidade; diminuiu o rendimento escolar e teve dificuldades em dormir; chegou a mutilar-se. Atualmente sente tristeza e necessita de apoio psicológico (cf. os pontos 23 e 24 da matéria de facto provada).
Como observam os assistentes na resposta ao recurso, a factualidade descrita no acórdão recorrido não traduz a totalidade dos danos e sequelas causados à menor pelo comportamento do recorrente, documentados na prova pericial constante dos autos,[40] sendo, contudo, já suficientemente gravosa para justificar o valor da indemnização arbitrada pelo tribunal.
A gravidade dos crimes, o período temporal do respetivo cometimento (cerca de 3 anos), o qual atravessou parte da infância e o início da adolescência da vítima, com o que tal representou e vai continuar a representar ao nível psicológico, de desestruturação de toda uma fase da vida, cujas consequências para o futuro, desde logo ao nível da organização de uma relação afetiva, sendo imagináveis, não deixam de ser incomensuráveis, constituem uma realidade que se impõe com grande crueza.
Como se acentua no acórdão do TRC de 4/3/2020 (in www.dgsi.pt, já citado) «a dimensão dos danos, físicos e psicológicos, revelados nos factos […], decorrentes para a vítima das práticas delituosas a que foi submetida durante longos anos é devastadora não só porque foi privada de um desenvolvimento e crescimento harmonioso, como da vivência de etapas relevantíssimas da vida de uma pessoa, precisamente aquelas em que a formação da personalidade assume um papel primordial. A projeção negativa dos danos na vida futura, designadamente na capacidade de desenvolver de forma saudável uma relação afetiva, constitui uma evidência.»
Deste modo, e ponderando ainda a situação económico-financeira do arguido/recorrente, afigura-se-nos equitativa a quantia de € 25.000,00 arbitrada pelo tribunal de primeira instância, por forma a compensar adequadamente a demandante dos graves danos não patrimoniais por ela sofridos e, pela mesma via, sancionar o comportamento ilícito e culposo do arguido/recorrente.
Improcede, assim, na totalidade o recurso do arguido, nenhuma censura nos merecendo o acórdão recorrido.
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, no seguinte:
1) Negam provimento ao recurso interlocutório interposto pelo arguido, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas pelo arguido/recorrente, com 3 UC de taxa de justiça (art.º 513.º, n.º 1, do CPP).
2) Negam provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.
Custas pelo arguido/recorrente, com 4 UC de taxa de justiça (art.º 513º, nº 1, do CPP).
3) Declaram extinta a instância, no que concerne ao recurso do Ministério Público, por inutilidade superveniente da lide, e determinam a correção do erro material constante do dispositivo do acórdão, referente ao nome da demandante civil, dele ficando a constar “BB”.
Notifique.