NULIDADE PROCESSUAL
ANULAÇÃO DE SENTENÇA
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
DECISÃO QUE PÕE TERMO AO PROCESSO
Sumário


I. Sem prejuízo da ampla recorribilidade da generalidade das decisões, umas sê-lo-ão de imediato, enquanto outras sê-lo-ão apenas de forma diferida (nomeadamente, com o recurso que venha a ser interposto da decisão final); e é este último o caso da quase generalidade das decisões interlocutórias proferidas ao longo do processo (recorríveis, mas não imediata e autonomamente recorríveis).

II. Com a decisão final não cessa a possibilidade de serem proferidas decisões posteriores, estando legalmente assegurada a possibilidade da sua impugnação (necessariamente autónoma); mas estas decisões posteriores serão necessariamente distintas, no seu objecto e fundamentos, da dita decisão final (que pôs termo ao processo), isto é, não se reportam à sua sindicância (nomeadamente, quando aos seus originais validade, eficácia ou mérito), mas sim à apreciação e decisão de outras questões suscitadas a jusante (embora naturalmente a pressuponham).

III. O recurso da decisão que julgou nula a sentença antes proferida (por não se ter aguardado o decurso do prazo para replicar) consubstancia uma apelação diferida, e não uma apelação interposta de decisão proferida depois da decisão final: o que aquela fez, exclusiva e precisamente, foi invalidar esta (que tinha posto fim ao processo), desaparecendo, do mesmo passo, o anterior pressuposto que permitia a recorribilidade imediata de qualquer decisão proferida depois dela.

Texto Integral


DECISÃO SINGULAR

I - RELATÓRIO

1.1. Despacho reclamado
1.1.1. AA  e mulher, BB, residentes na Praça ..., ..., ..., em ..., propuseram uma acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e mulher, DD, residentes na Rua ..., ..., traseira, em ..., pedindo nomeadamente (a título principal e cumulativo) que: se decretasse a validade da cessação do contrato de arrendamento habitacional que, como senhorios, celebraram com os Réus, seus arrendatários, em 08 de Junho de 2010, mediante oposição à sua renovação, que realizaram por notificação judicial avulsa, com efeitos a partir de 01 de Julho de 2021; se declarasse resolvido o dito contrato de arrendamento, desde esta última data; os Réus fossem condenados a entregarem-lhe o imóvel antes locado, livre de pessoas e bens; e os Réus fossem condenados a pagarem-lhes o dobro das rendas em vigor, desde 30 de Junho de 2021 até à efectiva entrega do dito imóvel.

1.1.2. Regularmente citados, os Réus (CC e mulher, DD) contestaram, pedindo nomeadamente que a acção fosse julgada totalmente improcedente; e deduzindo reconvenção, pedindo que se reconhecesse que o contrato de arrendamento em causa nos autos será válido até 30 de Junho de 2024, e se condenassem os Autores (AA  e mulher, BB) a pagarem-lhes € 1.080,00, a título das quantias que eles próprios deixaram de receber pela não emissão atempada dos recibos mensais de pagamento de rendas.

1.1.3. Foi proferida decisão: a declarar ser possível o conhecimento imediato do mérito da causa; a admitir a reconvenção; a fixar o valor da causa em € 11.480,00; a certificar tabelarmente a validade e a regularidade da instância; e julgar a acção totalmente improcedente e o pedido reconvencional totalmente procedente.

1.1.4. Os Autores (AA  e mulher, BB)  vieram arguir a nulidade da sentença e replicar, alegando: quanto à primeira, ter sido a mesma proferida quando se encontravam em prazo para replicar (aliás, ainda em curso no momento de apresentação do articulado de arguição de nulidade), com violação, por isso, do princípio do contraditório; e, quanto à segunda, impugnando a factualidade alegada em sede de reconvenção.

1.1.5. Os Réus (CC e mulher, DD) responderam, reconhecendo a nulidade invocada (por a sentença ter sido proferida quando ainda se encontrava a decorrer o prazo para apresentação da réplica), mas defendendo que, estando a mesma coberta por posterior decisão judicial, teria de ter sida invocada em sede de recurso dela interposto.

1.1.6. Foi proferido despacho: declarando a nulidade da sentença antes proferida; dispensando a realização de uma audiência prévia; admitindo a reconvenção; fixando o valor da causa em € 11.480,00; certificando tabelarmente a validade e a regularidade da instância; fixando o objecto do litígio e enunciando os temas da prova; apreciando os requerimentos probatórios das partes; e designando dia para a audiência final, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Sobre a nulidade da sentença proferida: refª ...64 (12/06/2023), ...73 (22/06/2023), ...07 (26/06/2023);
No âmbito do n/ despacho com refª ...25 (15/05/2023), determinados que os autos aguardassem o prazo da réplica; posteriormente, a secretaria abriu conclusão em 02/06/2023 (refª ...42).
Tendo as contestações sido apresentadas em 01/05/2023 (refª ...79 e ...81) e sido notificada aos autores em 10/05/2023 (refª ...01), na medida em que os autores dispunham do prazo de 30 dias para replicar (art 585º do Cód de Proc Civil), a réplica poderia ser apresentada até dia 14/06/2023 (20/06/2023 com os três dias de multa), pelo que a conclusão aberta pela Secretaria em 02/06/2023 (refª ...42) foi efectivamente prematura, sem que o Tribunal se tivesse apercebido disso.
Termos em que o conhecimento do mérito da causa através do n/ despacho com refª ...42 (02/06/2023) foi efectivamente prematuro, na medida em que não foi respeitado o prazo da réplica, tendo-se aqui simultaneamente praticado uma acto não admissível e omitido uma formalidade essencial idónea a influir no mérito da causa, pelo que a sentença proferida no n/ despacho com refª ...42 (02/06/2023) encontra-se ferida de nulidade (art 195º, n.º 1 do Cód de Proc Civil).
Pelo que declaro a nulidade da n/ sentença proferida no n/ despacho com refª ...42 (02/06/2023), por não ter sido respeitado o prazo da réplica (art 195º, n.º 1 do Cód de Proc Civil).

*
Posto isto, cumpre regularizar-se a instância.
(…)»

1.1.7. Inconformados com o despacho «que revogou o saneador-sentença, elaborando um novo saneador», os Réus (CC e mulher, DD) interpuseram «recurso», invocando os «artºs. 629 nºs 1 e 3 a), 631º nº. 1, 637º nº. 1, 644º nº 2 g)», recurso dito como «de apelação, a subir em separado (artº. 645º n.º 2), com efeito devolutivo (artº. 647º nº. 1)».

1.1.8. Foi proferido despacho pelo Tribunal de 1.ª Instância, não admitindo o recurso apresentado, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Na Reforma de 2007, que foi mantida com o Novo CPC, toda e qualquer decisão da 1ª instância é impugnável por meio de recurso de apelação, mas só são susceptíveis de recurso autónomo imediato as decisões que ponham termo ao processo ou as demais expressamente indicadas na lei: todas as outras decisões só são impugnáveis no recurso da decisão que tenha posto termo ao processo ou do despacho que se pronuncie sobre a concessão da providência cautelar, ordene o seu levantamento ou indefira liminarmente o respectivo requerimento, ou caso não haja recurso da decisão final, através de um único recurso, a interpor, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 644º do CPC.
Quer isto dizer que apesar das decisões interlocutórias serem recorríveis, não o são autonomamente, uma vez que só se admite a sua impugnação diferida e concentrada com o recurso interposto na decisão final ou em recurso único, interposto nos termos indicados. Esta opção legislativa vai de encontro ao princípio da celeridade, visto que impede que o movimento do processo seja, a todo o momento, interrompido e prejudicado pela interposição de recursos, e da concentração de meios, uma vez que possibilita a apreciação simultânea pelo tribunal ad quem, num só recurso, de todas as decisões interlocutórias desfavoráveis para o recorrente, cfr. neste sentido o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.10.2009, proc. n.º 224298/08.4YIPRT-B.L1-8, disponível na íntegra em www.dgsi.pt.
Ora, tratando-se de uma decisão interlocutória e que não integra nenhuma das decisões elencadas nos artigos 644º, n.ºs 1 e 2 do CPC, apesar de ser uma decisão recorrível, cfr. artigos 629º e 630º do CPC, só poderá ser impugnada a final, com a decisão final ou nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 644º do CPC.
(…)»
*
1.2. Reclamação
1.2.1. Fundamentos
Inconformados com esta decisão, os Réus (CC e mulher, DD) vieram reclamar, pedindo que o seu recurso fosse admitido.
Alegaram, para o efeito, que a «sentença proferida em 02.06.2023 não poderá deixar de considerar-se a decisão final proferida no processo»; e, por isso, defenderam «que o recurso interposto pelos RR do despacho proferido a 27 de Junho está abrangido pelo disposto no artº. 644º nº. 2 al g) do» CPC.
*
1.2.2. Resposta
Não foi apresentada qualquer resposta.
*
II - VALIDADE E REGULARIDADE DA INSTÂNCIA

O tribunal é o competente em razão da matéria, da nacionalidade e da hierarquia.
O processo é o próprio, e não enferma de outras nulidades que o invalidem na sua totalidade.
Os Réus (CC e mulher, DD) dispõem de personalidade e de capacidade judiciárias, e bem assim de legitimidade.
Inexistem outras excepções dilatórias, nulidades parciais ou quaisquer questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade de facto relevante para a decisão a reclamação apresentada coincide com a descrição feita no «I - RELATÓRIO» da mesma, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Recorribilidade imediata versus Recorribilidade diferida
4.1.1. Em geral (art.º 644.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 3, do CPC)
 Lê-se no art.º 644.º, do CPC, nos seus n.ºs 1 e n.º 2, que cabe «recurso de apelação» das decisões do tribunal de 1.ª instância que a seguir taxativamente se discriminam nas suas plúrimas alíneas.
Mais se lê, no n.º 3 do mesmo art.º 644.º, que as «restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1». Qualificam-se, assim, como decisões interlocutórias recorríveis, mas não autonomamente recorríveis (o que abrange a quase generalidade das decisões interlocutórias proferidas ao longo do processo).
Logo, e sem prejuízo da ampla recorribilidade da generalidade das decisões, umas sê-lo-ão de imediato, enquanto que outras sê-lo-ão apenas de forma diferida, nomeadamente com o recurso que venha a ser interposto da decisão final.
Manteve-se, assim, no CPC de 2013 a solução adoptada com a reforma de 2007 do regime dos recursos do CPC de 1961. Com efeito, na versão inicial do dito regime, e «salvo nos casos em que a lei determinava a irrecorribilidade, para evitar a formação de caso julgado, era imprescindível a interposição de recurso (de apelação ou de agravo)», já que, fosse «a decisão de forma ou de mérito, a parte que pretendesse impedir o trânsito em julgado tinha o ónus de interpor recurso dentro de um prazo peremptório» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, pág. 148).

Reconhece-se que a actual concentração da impugnação inerente à irrecorribilidade autónoma imediata das decisões interlocutórias diminui formalmente o número de recursos, mas aumenta-o materialmente.
Com efeito, e quanto à «diminuição formal» do número de recursos, a «irrecorribilidade autónoma imediata das decisões meramente interlocutórias dá decerto satisfação ao princípio da celeridade, dado que impede que o movimento do processo seja, a todo o momento, interrompido e prejudicado pela interposição de recursos, e da concentração de meios, uma vez que possibilita a apreciação simultânea pelo tribunal ad quem, num só recurso, de todas as decisões interlocutórias desfavoráveis para o recorrente».
Contudo, embora favoreça a celeridade processual, a recorribilidade diferida simultaneamente induz um «aumento material» do número de recursos, já que «provoca uma permanente insegurança sobre a eficácia das múltiplas decisões interlocutórias», sobre as quais não se chega a formar caso julgado, nem o efeito preclusivo correspondente: o «vencido pela decisão final, no recurso que dela interpuser, tenderá a impugnar toda e qualquer decisão interlocutória anterior que julgue relevante para a procedência do recurso».
Acresce que, em caso «de procedência do recurso no tocante a uma decisão interlocutória», ocorrerá a «inutilização dos actos processuais praticados depois do proferimento da decisão revogada» (Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, págs. 228 e 229).

O Tribunal Constitucional, porém, chamado a pronunciar-se sobre o tema, tem sublinhado que a restrição quanto à subida imediata dos recursos «não ofende o princípio constitucional da igualdade, expressando tal regime uma opção legislativa, baseada na tutela da celeridade processual, que não se pode configurar como injustificada, irrazoável ou arbitrária» (Ac. do TC, de 16.03.1993, BMJ, n.º 425, pág. 142) [1].
*
4.1.2. Em particular (art.º 644º, n.º 1, al. g), do CPC) 
Lê-se no art.º 644.º, n.º 2, al. g), do CPC (expressamente invocado pelos Réus, na reclamação que deduziram) que cabe «ainda recurso de apelação» de «decisão proferida depois da decisão final».
Com efeito, com «a decisão final não cessam as possibilidades, que o direito processual acolhe, de serem proferidas decisões posteriores, assegurando-se a possibilidade da sua impugnação (necessariamente autónoma), coligidos que sejam os demais pressupostos objectivos e subjectivos do recurso» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, págs. 159 e 160).
Logo, a «disposição do nº 2, g) do artº 644º visa disciplinar todos os recursos proferidos depois da decisão final que não tenham integração no nº1 desse artigo, ou numa das outras alíneas do nº2 do mesmo» (Ac. da RC, de 12.12.2017, Falcão de Magalhães, Processo n.º 1638/08.3TBACB-C.C1, in www.dgsi.pt).

Precisa-se, porém, que estas decisões posteriores serão necessariamente distintas, no seu objecto e fundamentos, da dita decisão final (que pôs termo ao processo), isto é, não se reportam à sindicância desta última (nomeadamente, quando aos seus originais validade, eficácia ou mérito), mas sim à apreciação e decisão de outras questões suscitadas a jusante da mesma, embora naturalmente a pressuponham.
Compreende-se, por isso, que o prazo de interposição do respectivo recurso seja, não de 30 dias, mas sim de 15 dias (conforme art.º 638º, nº 1, do CPC).
*
4.2. Caso Concreto (subsunção ao Direito aplicável)
Concretizando, verifica-se que a decisão recorrida (que julgou nula, «por não ter sido respeitado o prazo da réplica (art 195º, n.º 1 do Cód de Proc Civil)», a sentença antes proferida nos autos) não se enquadra em nenhuma das alíneas do n.º 1 e do n.º 2, do art.º 644.º, do CPC, isto é, não consubstancia decisão susceptível de permitir um imediato recurso de apelação.
Com efeito, e ao contrário do defendido pelos Reclamantes, só aparentemente se está perante uma «decisão proferida depois da decisão final» (a dita sentença): o que a dita decisão impugnada fez, exclusiva e precisamente, foi invalidar aquela que tinha posto fim ao processo, deixando a mesma de existir; e, do mesmo passo, desapareceu o anterior pressuposto que permitia a recorribilidade imediata de qualquer decisão proferida depois dela (por, precisamente, ter deixado de existir qualquer uma que tivesse posto termo à causa).
Logo, o recurso interposto do despacho recorrido consubstancia, de facto, apelação diferida, nos termos do art.º 644.º, n.º 3, do CPC (isto é, não é admissível nesta fase dos autos, cabendo a pretendida impugnação no eventual recurso que venha a ser interposto da decisão final, a proferir após o julgamento); e, por isso, se decidindo pela improcedência da reclamação apresentada.
*
V - DECISÃO

Pelo exposto, nos termos das disposições legais citadas e do art.º 643.º, n.º 4, do CPC, julgo improcedente a reclamação apresentada pelos Réus (CC e mulher, DD) e, em consequência,

· Confirmo o despacho do Tribunal de 1.ª Instância que, não admitiu o recurso por eles interposto, da decisão que declarou nula a sentença antes proferida, por o ter sido quando ainda se encontrava a decorrer o prazo para apresentação de eventual réplica.
*
Custas pelos Reclamantes (art.º 527.º, n.º 1, do CPC).
*
Notifique.
*
Guimarães, 05 de Janeiro de 2024 (de 22.12.2023 a 03.01.2024, férias judiciais de natal).

A presente decisão singular é assinada electronicamente pela respectiva

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos.


[1] No mesmo sentido, Acórdãos do TC n.ºs 125/98, 72/99, 431/02 e 106/06, todos disponíveis no sítio da internet do mesmo Tribunal.
Ainda Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Maio de 2010, págs. 449 e 450.