LIVRANÇA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Sumário

I - Numa ação executiva em que o titulo é uma livrança de que o exequente é legitimo portador a causa de pedir corresponde à invocação da relação cambiária documentada na referida livrança, não sendo necessário alegar a relação causal à mesma. (cf. o artigos.1º e 10º da LULL e o artigo 458º do CC).
II - O indeferimento liminar da oposição à execução com base na sua manifesta improcedência (artigo 732º nº1 alínea c) do Código de Processo Civil) só deve ocorrer naqueles casos em que é evidente e há absoluta certeza jurídica de que os fundamentos invocados nunca poderiam proceder, ou seja, quando falta, ostensivamente, alguma das condições indispensáveis para que o tribunal possa acolhê-la, que por razão atinente ao fundo da causa não tem, patentemente, probabilidade de êxito.

Texto Integral

Proc. n.º 9404/12.5TBVNG-A.P1


SUMÁRIO (artigo 663º nº 7 do Código de Processo Civil)
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

AA, Executado/Embargante deduziu embargos à execução fundada numa livrança no valor de €10.323,14 datada de 27-07-2012, que lhe move a exequente Banco 1... SA.
Suscitou a inexigibilidade do título e da obrigação exequenda, (artigo729º, alíneas a) e e) do Código de Processo Civil). por ausência de indicação dos factos estruturantes da causa de pedir, nomeadamente o facto de que nasce o direito de crédito invocado pela Embargada.
Sustentou que a livrança apenas poderá ter sido emitida no âmbito do contrato de crédito n.º ...68 celebrado entre o aqui embargante e o extinto Banco 2... em março de 2004 para aquisição de uma viatura automóvel marca Honda ... Matrícula ..-..-OQ e que terá sido sucessivamente transmitido até chegar à Exequente Embargada.
Que o referido contrato de crédito foi sendo liquidado pelo executado, encontrando-se à data do incumprimento definitivo apenas em débito doze prestações no montante de €120.00 cada.
Que em 2012, data de preenchimento da livrança, não se encontrava em débito a quantia de €10.323,00.

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FOI PROFERIDO DESPACHO DE INDEFERIMENTO LIMINAR COM OS SEGUINTES FUNDAMENTOS EM SÍNTESE:
Os factos relevantes resultam exclusivamente dos autos principais e são os seguintes:1º Nos autos de execução de que estes dependem, o exequente (…), pede o pagamento de 10.323,14€ e para tanto alega: o aqui exequente apresentou a livrança a pagamento pelo valor de €10.090,27 (vide doc nº 1) a livrança não foi paga pelo que foi elaborado o respetivo protocolo de devolução de efeitos. (vide doc nº 2) os executados são assim responsáveis pelo pagamento ao exequente do valor de €10.090,27, bem como dos juros que sobre esta quantia se vencerem desde a data de apresentação da livrança a pagamento - 09.08.2012 - até integral e efetivo pagamento, que nesta data perfazem já o valor de €194,62.
2º Para justificar tal pretensão junta uma livrança, emitida no dia 16 de Julho de 2012, em Lisboa, com vencimento em 2012-07-27, relativa a “contrato vendas crédito nº ...68” e no montante de 10.090,27€, à ordem de Banco 2..., S.A., subscrita por AA e BB.
3º A livrança foi apresentada a pagamento à vista em 9 de agosto de 2012, tendo sido devolvida sem pagamento.
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Dispõe o art. 724º, nº 1, al. e) do Código de Processo Civil (aprovado pela Lei nº 41/2013 de 26 de Junho):
1 - No requerimento executivo, dirigido ao tribunal de execução, o exequente:
(…) e) Expõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo, podendo ainda alegar os factos que fundamentam a comunicabilidade da dívida constante de título assinado apenas por um dos cônjuges;
O título contém todos os factos que fundamentam o pedido porque a emissão de uma livrança ou qualquer outro título cambiário envolve a constituição ou reconhecimento de uma obrigação cambiária de carácter abstrato.
Assim, nada mais carecia o exequente de alegar, consubstanciando o próprio título a causa de pedir – art. 10º, nº 5 do Código de Processo Civil.
(…)
Está assim dispensada a exequente de indicar qualquer facto suplementar no requerimento executivo, improcedendo pois a invocada ineptidão.
A exequibilidade das livranças está consagrada no art. 703º, nº 1, al. d) do Código de Processo Civil, e nos art. 47º e 77º da Lei Uniforme relativa às letras e livranças, estabelecida pela Convenção assinada em Genebra, em 7 de Junho de 1930, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 23721, de 29 de Março de 1934, e ratificada pela Carta de 21 de Junho de 1934 (LULLiv).
(…) quem assina uma livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher nos termos acordados. Quem subscreve uma livrança em branco fica, sem mais, vinculado ao acordo de preenchimento havido entre o portador e o subscritor, independentemente de também assinar ou não tal acordo.
O embargante reconhece a assinatura da livrança. Não alega nenhum vício formal da mesma. Não alega o pagamento da livrança. Não alega preenchimento abusivo, porque não diz como é que a livrança podia ter sido preenchida.
Diz que é o exequente que tem que alegar e provar o incumprimento, mas tal afirmação não tem qualquer sustento legal.
(…)
A exceção de preenchimento abusivo, como exceção do direito material, que é, deve ser alegada e provada pelo executado, por força do nº2 do artigo 342º do Código Civil.
A livrança em branco é admissível, sendo de considerar como tal a que, embora contendo a assinatura de, pelo menos, um obrigado cambiário, lhe faltam alguns dos requisitos elencados no artigo 75º da LULL, como foi o caso da livrança em análise nestes autos.
(…)
Ora no caso dos autos a embargante não alega que a exequente violou o pacto. Não alega sequer que pacto existe.
E nesta senda, coerentemente, não invoca a embargante qualquer facto que permita sustentar um hipotético preenchimento abusivo da livrança.
Para dizer que o acordo foi desrespeitado, tinha que alegar e provar que esse acordo existiu e porque é que não foi respeitado.
(…)
Não alega quanto lhe foi emprestado; por quanto tempo; a que juros; quais as penalizações pela mora e pelo incumprimento; quantas prestações pagou; para além das 12 que reconhece já estarem em atraso em 2012, quantas faltariam pagar? o que foi concretamente acordado para o preenchimento da livrança? bastava a mora ou era exigido o incumprimento? Estes seriam os factos essenciais – e portanto, não suscetíveis de qualquer convite ao aperfeiçoamento – que o embargante deveria alegar e não alegou.
Pelo que a obrigação cambiária pura, simples, autónoma e abstrata, se mantém, sendo os embargos totalmente sem fundamento.
Pelo que a obrigação cambiária pura, simples, autónoma e abstrata, se mantém, sendo os embargos totalmente sem fundamento. Assim, os embargos são manifestamente improcedentes, pelo que devem ser liminarmente rejeitados – art. 732º, nº 1 c) do Código de Processo Civil.

DESTA DECISÃO APELOU O EMBARGANTE TENDO FORMULADO AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
1 -Segundo o disposto no artigo 703º do CPC, só são exequíveis os títulos que a lei admite, ou seja; “A execução apenas pode servir de base:
(…)
c) Os títulos de crédito ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou seja, alegados no requerimento executivo;
(…)
3 – Nos presentes autos, é facilmente constatável, nem tal é alegado, que a certeza e a exigibilidade da obrigação, ou seja, os pressupostos de carácter material que intrinsecamente condicionam a exequibilidade do direito, já que sem eles não é admissível a satisfação coativa da pretensão, não são do conhecimento do tribunal;
(…)
7 –Por outro lado, a prestação não é exigível enquanto a obrigação não está vencida e, este facto, não está dependente do mero preenchimento da livrança pelo portador;
8 – Nos termos do Artigo 75º, “A livrança contém: (…) A promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada; 3. A época do pagamento; (…)”
9 – Ora, a época de pagamento, depende do vencimento da obrigação assumida no contrato que lhe é subjacente e, facto que, não consta dos presentes autos;
10 – Nem sequer foi alegado;
(…)
12 – A decisão unilateral de preenchimento da livrança, é um ato que transforma uma promessa de pagamento, numa obrigação de cumprimento imediato, o que significa, torna a livrança num título executivo;
13 – Mas tal, só acontece, repete – se, desde que haja incumprimento da obrigação assumida pelo contrato que subjaz á livrança, pelo que, não estamos perante, um mero requisito de forma, mas sim de um facto modificativo e;
14 – Como se alegou nos embargos, não pode o embargante, aqui, apelante, fazer qualquer tipo de prova, por manifesta falta de elementos que lhe permitam arrogar – se do quer que seja;
15 – a não ser, alegar e provar que, não existe incumprimento definitivo por sua parte, que não há efetivamente, uma obrigação vencida, exigível, por determinada, certa e líquida;
16– Está coartado, o efetivo direito de defesa– artigo 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa – de exercer os seus próprios direitos de prova, porque, decidiu, através de uma interpretação dos factos proveniente, da violação das regras da live apreciação da prova;
17 – Po isso, decidiu de forma errada, ilegal e inconstitucional, por violação dos artigos 75º e seguintes da LULL e dos artigos 32º, nº 1, 20º, 18º, nº 1 e 3ºda Constituição da República Portuguesa.
23 – Aliás, como muito bem, referiu o STJ, no Acórdão de 14.12.2006, disponível in www.dgsi.pt: “No domínio das relações imediatas – isto é, enquanto a livrança não é detida por alguém estranho às relações extracartulares – o executado pode opor ao exequente a excepção de incumprimento do pacto de preenchimento, geradora de preenchimento abusivo.
(…)
28 –A certeza a liquidez e a exigibilidade da dívida incorporada no título cambiário, em relação ao qual foi acertado pacto de preenchimento, nos termos do art. 10º da LULL, alcança-se após o preenchimento e completude do título que, assim, se mostra revestido de força executiva.
O regime daquele normativo do Código de Processo Civil é aplicável aos casos de inexigibilidade da obrigação a postular prévia interpelação, que aqui se não exige: são distintos os conceitos de exigibilidade e vencimento.
Nestes termos, deve o presente recurso ser admitido e, por via disso, ser julgado provado e procedente, pelo que deve ser a douta decisão a quo, ser revogada e substituída por uma outra que admita os embargos deduzidos e permita a apreciação do mérito, como é quem, diz, afira da (i)legalidade da livrança, para que assim se alcance a verdade e a Justiça.

RESPONDEU A EXEQUENTE A SUSTENTAR:
1. Em 31 de Março de 2003 foi celebrado um contrato de venda a crédito entre Recorrente e Recorrido;
2. No âmbito desse contrato, em concreto na cláusula 9.º, o Recorrente prestou, como garantia, livremente, uma livrança em branco, que no momento do vencimento, reunia a integralidade dos elementos necessários e, antes, dispunha do requisito essencial e obrigatório: a assinatura do Recorrente.
3. Assim, sabe o Recorrente que prestou uma garantia livremente, para garantia do pontual cumprimento, tendo procedido à sua assinatura.
4. Aliás, tanto isto sabe que reconhece (vide artigo 17.º das alegações) o não cumprimento da obrigação a seu cargo: pagar os valores acordados no âmbito do contrato.
5. Assim, perante o incumprimento, em 15 de Dezembro de 2010, o Recorrido, mediante comunicação postal, procedeu à resolução do contrato, solicitando o pagamento dos valores resultantes da extinção da relação contratual até então tida
6. O Recorrente manteve a não liquidação de qualquer montante.
7. O que levou, inevitavelmente, o aqui Recorrido, a remeter nova comunicação postal, datada de 16 de Julho de 2012, a dar conta do preenchimento da livrança pelo montante de € 10.090,27, com vencimento a dia 27 de Julho de 2012.
8. Note-se que i) o preenchimento motivou-se pelo incumprimento despoletado pelo Recorrente, confessado pelo próprio, e ii) a cláusula 9.º do contrato celebrado livremente entre as partes previa a constituição de garantias, nomeadamente, livranças quanto às quais o aqui Recorrido ficava autorizado a preencher.
a. Existe um pacto de preenchimento que corresponde a um contrato celebrado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular, onde são definidos os termos em que deve ocorrer a completude do título cambiário – clausula 9.º do contrato.
b. Inexiste qualquer preenchimento abusivo, uma vez que a presente livrança foi preenchida em harmonia com os termos estipulados entre as partes na dita cláusula.
10. Por outro lado, sempre se dirá que ao aqui Recorrente incumbia o ónus de alegação e prova dos factos reais, concretos e objetivos capazes de colocar em crise a validade, existência, manutenção, subsistência ou eficácia daquela relação fundamental que subjaz à livrança.
11. O que manifestamente não foi feito pelo Recorrente.
12. Assim, no seguimento da comunicação postal referida no ponto 6., a livrança prestada em garantia foi apresentada a pagamento no dia 9 de Agosto de 2012.
13. Pasme-se: o valor continuou por liquidar.
14. O que, em resultado último do mencionado incumprimento e sustento legal supra referido, inevitavelmente, obrigou o aqui Recorrido a avançar com a execução tramitada pelos autos principais, face à obrigação certa, liquida e exigível que, nos termos do artigo 713.º CPC, passou a vigorar.
15. Em suma, o Recorrido entende que um só desfecho pode ser atribuído às alegações apresentadas pelo Recorrente junto do Tribunal de V/ Exa: a improcedência integral, nos termos do supra exposto, devendo a execução, nos autos principais, prosseguir os seus ulteriores termos até final.
Nestes termos, não só em conformidade com a Lei, mas, também, com a posição da Recorrida e Tribunal ad quo, que bem apreciaram e aplicaram os requisitos legais de fronte com os factos em causa, o Recurso deverá ser julgado improcedente.
Nada obsta ao mérito.,

O OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do código de processo civil).
Atentas as conclusões do embargante a única questão a decidir é a de saber se os embargos são manifestamente improcedentes como se sustenta no despacho recorrido por (i) ser o titulo dado à execução exigível, e portanto inexistir vicio formal haver ausência de alegação, no que à relação causal diz respeito (i) quanto ao valor e prazo do empréstimo (ii) juros estipulados (iii) penalizações pela mora (iv)prestações que faltariam pagar (v) acordo para o preenchimento da livrança e saber se estes factos são essenciais – e portanto, não suscetíveis de qualquer convite ao aperfeiçoamento .

O MÉRITO DO RECURSO:

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Dá-se aqui por reproduzida a fundamentação supra.


FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
1.
Quanto à 1ª questão decidida no despacho recorrido consistente em saber, se, a livrança exequenda incorpora uma obrigação exigível.
1.1
A causa de pedir numa ação executiva é uma questão controversa. Segundo Castro Mendes, in “ A causa de pedir na ação executiva “, a causa de pedir é uma figura que não se confunde com o título executivo, e traduz-se “no facto jurídico de onde procede a pretensão deduzida na ação – cfr. art. 581º, nº 4 do CPC; enquanto Lopes Cardoso, in “Manual da Acão Executiva”, pág. 23, Anselmo de Castro, pág. 903, Amâncio Ferreira, in “Curso do Proc. de execução”, pág. 82; e Remédio Marques, in “Curso de Processo executivo comum”, pág. 23..sustentam que a causa de pedir é o mesmo que o título executivo.
Apesar de bastar ao credor estar munido do título executivo para poder lançar mão da ação executiva, tal não significa que a sua existência garanta em absoluto a existência do crédito, já que o direito de ação executiva é autónomo e independente do direito substancial.
Em casos como o dos autos, fundando-se a pretensão executiva numa livrança a que o legislador atribui exequibilidade- a causa de pedir só poderá ser constituída pela própria relação cambiária documentada no título de crédito junto aos autos.
Na verdade, uma das espécies de títulos executivos expressamente elencada. no artigo 703º , do Código de Processo Civil, é justamente a livrança (título de crédito- al. c) do citado preceito legal).
Decorre, efetivamente, da al. c) deste preceito legal, que “à execução apenas podem servir de base: “ os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.
1.2
Passou-se, assim, a distinguir nesta norma quanto aos títulos de crédito, duas situações (distinção que já anteriormente a doutrina e a jurisprudência acolhiam em interpretação da al. c) do art. 46º do CPC).
A) Em primeiro lugar, podem os mesmos surgir na execução como verdadeiros e próprios títulos de crédito, sendo invocados pelo exequente como modo de demonstração da respetiva relação cambiária, literal e abstrata, que constitui, como vimos, verdadeira causa de pedir da ação executiva (verificados que sejam os pressupostos e condições de que a respetiva lei uniforme faz depender o exercício dos direitos que confere ao seu titular ou portador legítimo).
Nesta situação, o título executivo é uma peculiar categoria de documentos particulares, regidos por uma disciplina específica, decorrente da sua especial segurança formal e fiabilidade, e a “causa petendi” da ação executiva é, pois, a relação creditória neles incorporada, com as suas características próprias, em larga medida decorrentes da literalidade e abstração das obrigações cartulares por eles documentadas.
B) Em segundo lugar, podem valer os títulos de crédito que não obedeçam integralmente aos requisitos impostos pela respetiva Lei Uniforme como quirógrafos da relação causal subjacente à respetiva emissão, desde que os factos constitutivos desta resultem do próprio título ou sejam articulados pelo exequente no respetivo requerimento executivo, revelando plenamente a verdadeira “causa petendi” da execução e propiciando ao executado efetiva e plena possibilidade de sobre tal matéria exercer o contraditório: como é evidente, esta segunda perspetiva funcionará nos casos em que a declaração de vontade consubstanciada no título de crédito não puder valer como declaração unilateral de reconhecimento do débito subjacente à respetiva emissão, não beneficiando, consequentemente, da presunção afirmada pelo art. 458º do CC – o que naturalmente implicará para o exequente o ónus de invocar e demonstrar os factos constitutivos da relação fundamental que constitui a verdadeira causa de pedir da execução- cfr. decorre atualmente da segunda parte da al. c) do art. 703º do CPC.
Nesta situação o documento assinado pelo devedor constitui quirógrafo de uma obrigação causal cujos elementos constitutivos essenciais têm de ser processualmente adquiridos, em complemento do título executivo, por iniciativa tempestiva e processualmente adequada do próprio exequente, sendo articulados no requerimento executivo sempre que não resultem do próprio título.

Ora, no caso concreto, estamos inequivocamente naquela primeira situação.
Ou seja, a exequente, como fundamento da sua pretensão executória, juntou com o requerimento inicial executivo, uma livrança de que é portadora e, ao fazê-lo, pretende invocá-la como verdadeiro e próprio título de crédito, no sentido da demonstração da respetiva relação cambiária, literal e abstrata.
Logo, não há dúvidas, que juntando aos autos a livrança com esse fundamento, a exequente alega, de uma forma adequada e justificada, a causa de pedir correspondente ao pedido que pretende formular, ou seja, invoca a relação cambiária documentada na referida livrança como causa de pedir (cf. o art. 1º da LULL e o art. 458º do CC).
O credor de livrança, por exemplo, “apenas tem de juntar a livrança com o requerimento inicial, não tendo pois que juntar o documento de onde conste a obrigação fundamental” (Rui Pinto, in “Manual da execução e despejo”, pág. 197.
1.3
Ora, se assim é, não podem existir quaisquer dúvidas que o requerimento inicial executivo não padece do vício invocado pelo embargante.
Como se acentua na decisão recorrida nestas situações a exequente não tem que alegar no requerimento inicial executivo nada mais do que a dita relação cambiária incorporada no título de crédito que apresenta em juízo. Tal resulta das características de literalidade e abstração de que beneficia tal título de crédito, que como refere o despacho recorrido está consagrada no art. 703º, nº 1, al. d) do Código de Processo Civil, e nos art. 47º e 77º da LULL estabelecida pela Convenção assinada em Genebra, em 7 de Junho de 1930, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 23721, de 29 de Março de 1934, e ratificada pela Carta de 21 de Junho de 1934 (LULLiv). (V. a este respeito o ac. da RP de 10.2.2015 (Rui Moreira), in dgsi.pt.).
Com efeito, “ à luz dos princípios da abstração e da incorporação, a livrança, enquanto título de crédito, dispensa a necessidade de o exequente invocar a relação subjacente à sua emissão…” (Marco Gonçalves, in “Lições de processo executivo”, pág. 82. No mesmo sentido, Lebre de Freitas, in “A acção executiva à luz do Código Processo Civil de 2013, pág. 71 e ss.).
É inequívoco que a livrança junta ao requerimento inicial constitui título executivo (artigos, 10º, 75º, e 77ºda LULL e 703º, nº 1, alínea d) do CPC) pelo que, sendo a obrigação que esta incorpora o facto jurídico de onde procede a pretensão exequenda ter-se-á de considerar improcedente a exceção deduzida na petição de embargos.
Assim, por força destes princípios vigentes no domínio cambiário, uma livrança pode ser dada à execução, para valer como suficiente título executivo, sem a alegação da relação jurídica subjacente. Nesse caso, o Tribunal ter-se-á tão só de certificar se estão verificados, enquanto condições da sua exequibilidade, os requisitos de validade do título e de regularidade da detenção do título pelo seu portador.
Tanto basta para julgar improcedente a argumentação do Recorrente, nesta parte, confirmando-se este segmento da decisão recorrida.
2.
Vejamos se, e, sem prejuízo, os embargos deveriam prosseguir para apreciar a relação jurídica causal.
Decorre do princípio do dispositivo que incumbe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (art. 5º, nº 1 do CPC).
Pelo que, também aqui, sufragando o que vem decidido no despacho recorrido incumbe ao executado/embargante o ónus de prova das causas impeditivas, extintivas ou modificativas do direito de crédito (incorporado no título), designadamente, a demonstração da inexistência da “causa petendi” ou obrigação exequenda – art. 342º, nº 2 do CC (Vide sobre a matéria, neste sentido, por todos, Lebre de Freitas, “A acção executiva à luz do Código Processo Civil de 2013, pág.).
(Admite, no entanto, o legislador que, quanto aos factos complementares que resultem da instrução da causa, os mesmos possam ainda ser considerados pelo Juiz (art. 5, nº 2, al. b) do CPC), desde que sobre eles tenham as partes tido possibilidade de se pronunciar, situação que não está aqui em causa).
2.1
No tocante à sua tramitação, a oposição à execução é autuada por apenso e será objeto de despacho liminar, que poderá ser de indeferimento, se, se verificar alguma das circunstâncias previstas nas diversas alíneas do n.º 1, do art. 732º do CPC, de aperfeiçoamento do articulado (art. 590º, n.ºs 2, al. b), 3 e 4 do CPC) ou de recebimento, nos termos e com a tramitação subsequente prevista no n.º 2 do art. 732º do CPC.
Prescreve o n.º 1 do art. 732º do CPC:
«- Os embargos, que devem ser autuados por apenso, são liminarmente indeferidos quando:
a) Tiverem sido deduzidos fora do prazo;
b) O fundamento não se ajustar ao disposto nos artigos 729.º a 731.º;
c) Forem manifestamente improcedentes».
Este último fundamento de indeferimento liminar da oposição à execução verificar-se-á quando, face aos termos da petição, seja desde logo equacionável – seguindo de resto a orientação jurisprudencial e doutrinária maioritárias – a improcedência do(s) fundamento(s) da oposição à execução – tornando “inútil qualquer instrução e discussão posterior” (Cfr. Ac. da RL de 15/12/2011 (relator Ezagüy Martins), in www.dgsi.pt).
Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª Ed., Reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pp. 384 e 385) explicitou a este respeito que “o juiz só deve indeferir a petição inicial (…), quando a improcedência da pretensão do autor for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de atividade judicial. O caso típico é o de a simples inspeção da petição inicial habilitar o magistrado a emitir, com segurança e consciência, este juízo: o autor não tem o direito que se arroga”. Se realmente as coisas se apresentarem com esta evidência e com esta nitidez, para que há-de o juiz mandar citar o réu e deixar seguir a instância até ao despacho saneador ou até à sentença? Tudo o que se praticasse no processo seria em pura perda. Impõe-se, portanto, o indeferimento imediato”.
Daí que, o indeferimento liminar da oposição à execução com base na sua manifesta improcedência esteja reservado a situações de evidente e absoluta certeza jurídica de que os fundamentos invocados nunca poderiam proceder qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais, isto é, quando se não tiver na doutrina a e na jurisprudência quem os defenda”( Acs. da RP de 22/11/2011 (Vieira e Cunha), de 07/06/2010 (Ferreira da Costa), Acs. da RL de 15/09/2015 (Cristina Coelho), de 2012/06/14 (Tomé Ramião), de 05/11/2013 (Ana Resende), de 21/03/2013 (Anabela Calafate), de 04/12/2012 (Manuel Tomé Soares Gomes), todos acessíveis in www.dgsi.pt.
Isto é, por oposição manifestamente improcedente, deve ter-se a oposição a que falta, ostensivamente, alguma das condições indispensáveis para que o tribunal possa acolhê-la, que por razão atinente ao fundo da causa não tem, patentemente, probabilidade de êxito (Cfr. Remédio Marques, ibidem, p. 155).
Por outras palavras, o indeferimento dos embargos, com base neste fundamento, só deverá ser decretado por motivos de fundo, atinentes à natureza específica do direito material ou substancial invocado pelo embargante. Ou seja, quando a pretensão do executado/embargante, em face dos factos por ele articulados, nunca possa proceder em termos de não haver desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido.
O mesmo é dizer, quando não possa haver dúvida sobre a inexistência de factos constitutivos do fundamento alegado ou sobre a existência, relevada pelo próprio executado, de factos impeditivos ou extintivos desse mesmo fundamento. (Cfr. Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil, Anotado, Vol. 1.º, Coimbra Editora, 1999, p. 400.
Em suma, socorrendo-nos do Ac. da RL de 24/04/2019 (relator Arlindo Crua), in www.dgsi.pt., podemos concluir, que “a manifesta improcedência justificativa do juízo de liminar indeferimento é aquela que decorre da circunstância da pretensão de executado/embargante, seja por razões de facto, seja por razões de direito, configurar-se, de forma inequívoca, irremediável e indiscutível, condenada ao fracasso, injustificando o prosseguimento dos ulteriores termos processuais, em obediência aos princípios de economia processual e proibição da prática de atos inúteis”.
2.2
Tendo sempre como fundamento qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo da obrigação exequenda, como resulta das regras gerais relativas ao direito probatório constantes do art. 342º, n.º 2 do Código Civil, o ónus de alegação e prova desses factos será – em regra – do embargante (Cfr. Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acão Executiva Anotada e Comentada, Almedina, 2015, p. 259, ponderamos que no caso, o oponente/embargante, no requerimento executivo, & 5 e 6 invoca que:
5(…) a livrança apenas poderá ter sido emitida no âmbito do contrato de crédito n.º ...68 celebrado entre o aqui embargante e o extinto Banco 2... em março de 2004 para aquisição de uma viatura automóvel marca Honda ... Matrícula ..-..-OQ e que terá sido sucessivamente transmitido até chegar à Exequente Embargada.
6º Porém e ao contrário do alegado, o referido contrato de crédito embora nunca pontualmente, foi sendo liquidado pelo executado, encontrando-se à data do incumprimento definitivo apenas em débito doze prestações no montante de €120.00 cada, não se fixando nem sendo sequer alegado o início do incumprimento por parte do Embargante sendo, porém completamente falso que em 2012 e quando foi unilateralmente preenchida a livrança se encontrasse em débito a quantia de €10323,00.

Embora de forma imperfeita/deficiente, este ónus de alegação foi sumariamente cumprido pelo embargante com esta alegação, já que invoca que a divida à data do incumprimento definitivo se situava num montante equivalente a 120,00 x12 e depois conclui que o valor constante da livrança não é o devido.
Dissentindo-se da decisão recorrida, não estamos num caso de manifesta improcedência mas antes e melhor caberá aqui um despacho de aperfeiçoamento por modo a permitir ao embargante, de acordo com o ónus da prova que sobre ele recai, a concretização discriminada do que alega no sentido do esclarecimento do conceito conclusivo invocado seu requerimento de que a divida global contratual não ascendia de €10.323,00 à data do incumprimento, ou seja explicitando todas as quantias em falta à data do preenchimento da livrança.
No sentido de que o despacho convite ao aperfeiçoamento dos articulados não é à luz do atual CPC uma mera faculdade do juiz, mas antes um poder funcional vinculado, Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, obra citada, p. 520/521, Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., 2017, Almedina, pp. 249/252. José Henrique Delgado de Carvalho, Os Temas da prova, 2ª ed., Quid Iuris, 2015, p. 23/35 e Ac. do STJ de Ac. do STJ de 6/06/2019 (relatora Rosa Ribeiro Coelho), in www.dgsi.pt.; no âmbito do anterior regime do CPC, no sentido de estarmos perante um poder-dever de natureza essencialmente discricionário que o juiz da causa exercitaria ou não segundo o seu prudente arbítrio, daí que a omissão de um tal despacho, em situações em que se justificasse, não importava irregularidade que determinasse nulidade, nem era impugnável. - cfr. Pais de Sousa e Cardona Ferreira, in Processo Civil, Editora Rei dos Livros, 1997, p. 39, e Paula Costa e Silva, Saneamento e Condensação no Novo Processo Civil: A Fase da Audiência Preliminar, in Aspetos do Novo Processo Civil, Lex, 1997, pp. 224/225 e 228/233 e Ac. do STJ de 01/04/14 (Relator Gregório Silva Jesus), in www.dgsi.pt.
2.3.
Com efeito, segundo o estatuído no art. 590º do CPC, «findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a», entre o mais, «providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados» (n.º 2, al. b), no que se inclui o convite às «partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa» (n.º 3), incumbindo, ainda, «convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido» (n.º 4). Os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova (n.º 5), sendo que as alterações à matéria de facto alegada devem conformar-se com os limites de alteração do pedido e da causa de pedir estabelecidos no art. 265º, quando introduzidas pelo autor, e com as regras da contestação previstas nos arts. 573.º e 574º, quando o sejam pelo réu.
Articulado deficiente é aquele que apresenta insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (n.º 4 do art. 590º do CPC), reportando-se o citado normativo, fundamentalmente, aos factos principais da causa, isto é, aos que integram a causa de pedir e àqueles em que se baseiam as exceções (art. 5º, n.º 1 do CPC), pois só esses são suscetíveis de comprometer o êxito da acção (39).
O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, no pressuposto de que a causa de pedir existe (na petição) e é percetível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram ou foram-no em termos pouco preciso
José Lebre de Freitas (Cfr. A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4ª ed., Gestlegal, 2017, pp.168/170) destaca que o convite ao aperfeiçoamento justifica-se nos “casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as exceções) são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados. No primeiro caso, está em causa a falta de elementos de facto necessários à completude da causa de pedir ou duma exceção, por não terem sido alegados todos os elementos que permitem a subsunção na previsão da norma jurídica expressa ou implicitamente invocada”. Quanto ao segundo caso, o despacho convite justificar-se-á quando estiverem “em causa afirmações feitas relativamente a alguns desses elementos de facto, de modo conclusivo (abstrato ou jurídico) ou equívoco”.
Como se referiu, no caso concreto, o embargante invocou, no que aqui releva (i) que a divida vencida no contrato de mutuo subjacente à livrança exequenda à data do incumprimento definitivo se fixava em 12 prestações mensais no montante de 120,00 euros cada pelo que quando o titulo foi preenchido não se encontrava em débito a quantia de €10323,00.
Estão, embora de modo conclusivo, identificados os factos constitutivos da exceção de preenchimento –divergência entre o valor real da divida e o valor constante do titulo - pois terá de se entender que se divida não era a de €10.323,00 então não foi respeitado o pacto de preenchimento, sendo que quanto a este se refere ter a livrança sido emitida no âmbito de contrato de crédito (...).
De facto, uma vez que o embargante não questiona a emissão da livrança como garantia associada a um contrato subjacente, impõe-se a conclusão de que, pelo menos implicitamente, o embargante autorizou o credor a preencher a livrança pelo valor que viesse a estar em dívida no cumprimento desse contrato, para que a exceção de preenchimento abusivo possa proceder (tornando útil o prosseguimento dos autos), basta que o embargante alegue factos reveladores de que a exequente não estava legitimada a preencher a livrança nos termos em que o fez, nomeadamente por o valor aposto na livrança não corresponder àquele que se mostrava vencido e exigível na sequência do contrato subjacente, o que passaria pela alegação dos termos do pacto de preenchimento (explícito ou, na sua falta ou exclusão, implícito) e pelo confronto com o seu efetivo preenchimento.
A alegação de tais factos, ainda que por forma mínima extrai-se do articulado sub iudice, sendo por isso, de admitir aliás o convite de aperfeiçoamento do articulado da petição de embargos tendente à concretização da matéria de facto corporizadora da exceção de preenchimento
Assumimos que pode haver deficiência, imprecisão, que importa completar ou corrigir, devendo ser proferido despacho de aperfeiçoamento no âmbito do art. 590º, n.ºs 4 e 6, do Código de Processo Civil, não sendo todavia caso de manifesta improcedência dos embargos, quanto a este segmento do requerimento do embargante.
Acresce que, tendo a livrança data de vencimento e sido apresentada a pagamento em 2012 portanto há cerca de 11 anos e, não obstante não ter sido alegada a prescrição do titulo, é de admitir todavia o abuso de direito no seu acionamento, o que constitui exceção de conhecimento oficioso.

SEGUE DELIBERAÇÃO:
PROVIDO O RECURSO EM PARTE. PARCIALMENTE REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA QUE DEVE SER SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE ORDENE O PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS.

Custas pela embargada.



Porto, 25.01.2024
Isoleta de Almeida Costa
Isabel Rebelo Ferreira
Paulo Dias da Silva