TUTELA DA PERSONALIDADE
COLISÃO DE DIREITOS
Sumário

I - Em caso de conflito entre os "direitos, liberdades e garantias", não sujeitos a reserva da lei restritiva, com outros direitos fundamentais (direitos económicos, sociais e culturais, v.g.) devem prevalecer os primeiros.
II - No campo da lei ordinária, há um texto atinente à colisão de direitos - o artigo 335º do Código Civil -, que, apesar de anterior à Constituição de 1976, se mantém em vigor, tendo em vista o disposto no artigo 293.º da Constituição.
III - Na interpretação do artigo 335º do Código Civil a propósito da colisão entre um direito de personalidade e um outro direito que não de personalidade, devem prevalecer, em princípio, os bens ou valores pessoais aos bens ou valores patrimoniais.
IV - Sobre a interpretação deste artigo 335º, a doutrina tem-se manifestado no sentido de que na hipótese de se concluir pela superioridade de um direito relativamente a outro, se deve encontrar, se possível, uma solução que, sem prejuízo de dar prevalência ao superior, acautele na medida do possível um exercício residual e subsidiário do direito preterido.”

Texto Integral

Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2023:461/23.0T8VCD.P1




Acordam no Tribunal da Relação do Porto


1. Relatório

AA, com sede na Avenida ..., ..., ... Vila do Conde, instaurou acção de tutela de personalidade contra BB, residente na Travessa ..., ..., onde concluiu pedindo a condenação do Réu a abster-se de entrar no domicílio da Autora, nomeadamente na garagem que faz parte do mesmo, a abster-se de aceder, seja por que forma for, à caixa de correio da Autora, bem como a apropriar-se (ou ler) da correspondência desta, a abster-se de dirigir a palavra à Autora, bem como na sanção pecuniária compulsória não inferior a € 5.000,00 por cada infracção.
Alegou, em síntese, que a Autora e o Réu foram casados, encontrando-se divorciados desde 20/10/2020.
Acrescentou que, no âmbito do processo de divórcio a casa de morada de família ficou entregue à Autora até à respectiva partilha.
Mais alegou, que o Réu ainda detém as chaves do bem imóvel e que tem vindo a aceder à residência da Autora, levando ao seu interior pessoas que a Autora desconhece.
Acrescentou que o Réu acede a todas as divisões do bem imóvel, apregoando que a casa é sua e que a pode frequentar livremente, apropria-se da correspondência da Autora, acedendo para o efeito à respectiva caixa de correio e dirige-se à Autora com expressões ofensivas.
Mais alegou, que a conduta do Réu causa-lhe desassossego, encontrando-se abalada psicológica e emocionalmente.

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Citado, o Réu contestou.
Alegou, em síntese, que exerce, na garagem do imóvel, actividade de pintura e chaparia automóvel.
Acrescentou que, no âmbito do acordo de divórcio, foi referido que o acesso do Réu à referida garagem não perturbaria a manutenção da Autora na sua residência, sendo, ainda, certo que o exercício da referida actividade pelo Réu é necessária para o mesmo custear as suas despesas mensais.
No demais, nega os restantes factos alegados pela Autora.
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Saneado o processo, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades prescritas na lei.
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Após a audiência de julgamento foi proferida sentença, na qual se decidiu:
a) Condenar o Réu, BB, a abster-se de entrar no domicílio da Autora, AA, sito na Avenida ..., ..., ... Vila do Conde, designadamente na respectiva garagem, a partir do fim do quinto dia após o trânsito em julgado da decisão;
b) Condenar o Réu no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de €75,00 por cada acesso do Réu ao domicílio (onde se inclui a garagem) da Autora sem autorização desta, e,
c) Absolver o Réu do demais peticionado.
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Não se conformando com a decisão proferida, veio o Réu BB interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações concluiu da seguinte forma:
I.A sentença proferida à data de 11 de Setembro de 2023 julgou procedente o pedido formulado pela Autora, condenando o Réu a abster-se de entrar no domicílio daquela, designadamente, na respetiva garagem.

II. Para tanto, considerou o tribunal a quo que o facto de o Réu continuar a frequentar aquela habitação para prestar os seus serviços de chaparia e pintura e o facto de daí derivarem ruídos numa frequência diária, violou o direito da Autora à tranquilidade, à vida privada, ao sossego e saúde mental.

III. Crê o douto tribunal estar em causa uma ofensa à proteção que a CRP confere aos cidadãos através dos artigos 25.º (direito à integridade pessoal) e 34.º (inviolabilidade do domicílio).

IV. Nesse sentido, e perante a colisão de direitos em apreço, julga prevalecentes os direitos da Autora, que se integram na categoria dos primados direitos, liberdades e garantia, em detrimento do direito ao trabalho que pretende o Réu fazer-se valer, que mais não é do que um direito económico, social e cultural.

V. O ora Recorrente não se pode conformar com tal decisão, considerando que aquela padece de erro de julgamento relativamente à matéria de facto e de erro no que respeita à aplicação do Direito.

VI. Salvo o devido respeito, o tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova produzida, valorando as declarações subjetivas e pouco isentas prestadas pela Recorrida e pela testemunha por si arrolada ao processo, e desconsiderando a prova testemunhal que de modo espontâneo e coeso é apresentada pelo Recorrente.

VII. Atentas as declarações prestadas pelas testemunhas, não poderiam ter sido dados como provados os factos vertidos nos pontos 4), 9) e 15) da matéria de facto dada como provada,

VIII. Nem deveria ter sido elencado como não provado o facto vertido em 8) da matéria de facto não provada.

IX. Isto porquanto, em primeiro lugar, resulta de modo evidente que efetivamente, no momento do divórcio, tenha existido um acordo relativamente à utilização e entrega da casa de morada de família.

X. Embora, neste âmbito, o douto tribunal tenha fundado a sua decisão na argumentação apresentada pela Recorrida, nomeadamente, que a meritíssima juiz permitiu a contínua utilização pelo Réu da garagem pertencente à habitação porque cria que aquela estava distanciada da respetiva residência,

XI. Tal argumento não parece credível visto que o habitual é as garagens serem contíguas ou adjacentes à habitação a que servem.

XII. Além disso, se fosse esse o caso, e fossem prédios distintos ou afastados, o Recorrente não faria questão de evidenciar a necessidade e a importância de prosseguir a sua atividade naquela residência depois de nela cessar o seu domicílio.

XIII. Atente-se, deste modo, no depoimento prestado pela Recorrida (em audiência de julgamento entre as 15:49h e as 16:19h (00:30:44), correspondente ao Ficheiro de Áudio “Diligencia_461-23.0T8VCD_2023-06-29_15-49-03”):
Recorrida: A Dra. Juíza disse-lhe que ele não poderia usufruir mais da casa onde eu coabito, onde eu como, onde eu vivo, onde eu durmo, tudo, tudo. E ele disse “Ah, sim, Sra. Dra., mas eu precisava de ir lá à garagem, tenho lá umas coisitas” e ela disse assim “e você ir à garagem não interfere nada com a Sra. AA?” e ele disse “não”. 00:09:43
Recorrida: E o que a Juíza disse foi “sim, se o Sr. BB não se cruza com a Sra. AA enquanto tem que ir lá à garagem fazer lá essas ditas coisas, pronto, tudo bem”. 00:10:29

XIV. Bem como nas do próprio Recorrente, que alega nunca ter sido proibido de entrar na garagem nem nunca lhe terem sido solicitadas as chaves do imóvel (conforme depoimento prestado em audiência de julgamento datada de 29 de Junho de 2023, entre as 15:15h e as 15:44h (00:29:27), correspondente ao Ficheiro de Áudio “Diligencia_461-23.0T8VCD_2023-06-29_15-15-08”):
Réu: Foi um acordo que nós na altura quando foi o divórcio, concordou-se a praticamente ir lá só quando necessariamente… ou ir à casa de banho, deixei de residir lá porque pronto (…) Nunca fui proibido de nada, de entrar dentro de casa nem nada, a juíza é que me disse que eu tinha na mesma acesso à habitação. Nunca fui proibido de nada. 00:06:19
Réu: E o Dr. sabe, na altura quando foi aqui o acordo do divórcio ninguém me pediu para entregar a chave nem impediu de entrar dentro da residência. 00:14:17
Réu: Concordamos eu deixar de residir na moradia, não comer nem dormir lá dentro, mas ter acesso à garagem e às ferramentas (…). 00:21:55
Réu: Foi decretado isso, que eu podia utilizar a minha moradia para trabalhar (…). 00:22:25

XV. O que sempre relevará para a apreciação da questão que ora nos ocupa, sendo certo que a possibilidade de continuar a exercer sua atividade profissional naquele espaço foi condição necessária para a aceitação por parte do Recorrente respeitante à entrega do domicílio à Recorrida.

XVI. Pois, tal como refere, não tem possibilidade de efetuar aqueles trabalhos noutro local, inclusive na casa onde atualmente habita.
Vejamos:
Réu: Não, não, não tenho. Não tenho condições e ali é o sítio que eu estou desde que tive este problema de saúde, eu já estou há 14 anos em casa, nos meus biscatitos. 00:18:47
Réu: Não, não, o que está em serviço para se poder estar é a habitação, o resto está tudo ao abandono, uma casa que já tem 60 e tal anos, antigas explorações agrícolas, está tudo em terra, não tem condições para trabalhar lá. (…) não tenho outro meio. 00:26:08
Réu: Não, não (…) está tudo degradado, tudo velho, tudo estragado, não tenho condições para fazer lá nada, nada, está tudo… 00:28:55

XVII. Sendo tal prestação de serviços e o vencimento que daí advém imprescindíveis para a sua subsistência, pois que laborar a partir da sua habitação se tornou a opção mais exequível a partir do momento em que lhe foi diagnosticada uma incapacidade resultante de uma doença oncológica.

XVIII. Acresce que também não existem elementos probatórios que nos permitam concluir que o Recorrente autoriza a entrada de terceiros (quer sejam desconhecidos da Autora ou não) na sua garagem em função dos serviços que efetua, indicando o próprio que recebia os seus clientes na rua, transportando posteriormente, sozinho, os respetivos veículos para o interior da propriedade para iniciar o seu trabalho:
Réu: Não vão, não dou autorização de nada. E praticamente eu atendo as pessoas cá fora, não dentro de casa, fora, na rua (…) e falo cá fora com as pessoas e depois eu cá dentro eu levo o carro e trabalho cá dentro. 00:14:35

XIX. O que as próprias testemunhas acabam por confirmar, sendo que a testemunha CC (audiência de julgamento datada de 29 de Junho de 2023 entre as 16:33h e 16:39h (00:05:45), correspondente ao ficheiro de Áudio “Diligencia_461-23.0T8VCD_2023-06-29_16-33-37”) refere nunca ter entrado lá dentro, ao passo que a testemunha DD (depoimento prestado entre as 16:40h e as 16:53h (00:12:57), correspondente ao ficheiro de Áudio “Diligencia_461-23.0T8VCD_2023-06-29_16-40-11”) refere ter entrado naquela garagem - e só na garagem, nunca no interior da casa - em tempos, o que não faz há muitos meses:
Testemunha CC: (…) Nunca entrei lá dentro, na casa dele não. 00:01:52
Testemunha CC: Nunca entrei na casa dele. 00:04:08
Testemunha DD: Não tenho ido (…). 00:04:23
Testemunha DD: Não posso dizer a certeza mas já para aí há uns meses bem largos. 00:04:40
Testemunha DD: Sim, sim, eu era só na garagem. 00:04:49

XX. Além disso, não obstante o tribunal a quo ter considerado provado que da atividade levada a cabo pelo Recorrente derivam ruídos que causam na Recorrida desassossego e intranquilidade, provado ficou que esta é uma atividade contínua, que já perdura há vários anos (inclusive durante o casamento), e que nunca foi assunto de conflito ou de discórdia entre ambos.

XXI. Vejamos, neste sentido, os depoimentos da Autora, do Réu e das suas testemunhas:
Réu: Não, não, não tenho. Não tenho condições e ali é o sítio que eu estou desde que tive este problema de saúde, eu já estou há 14 anos em casa, nos meus biscatitos. 00:18:47
Réu: Eu estive sempre a trabalhar lá e ela nunca me complicou com nada (…) 00:19:15
Autora: Olhe antes de nós nos separarmos ele já fazia isso (…) 00:07:42
Testemunha (CC): Foi na altura que ele até fez a cirurgia e já trabalhava nuns biscatezinhos. Eu já o conheço há uns anos (…) 00:01:14
Testemunha (DD): Trabalhava sempre na casa dele (…) na parte de garagem. 00:01:58

XXII. Não sendo uma atividade permanentemente ruidosa, sendo-o apenas quando carece da utilização e do manuseamento de determinadas máquinas ou equipamentos:
Réu: Não faz muito barulho, só mesmo o compressor quando está a precisar um bocadinho de ar para dar a pintura ou assim, pouco mais. Não é assim um trabalho constantemente barulhento. 00:05:30
Réu: É mesmo só quando eu preciso de ar porque eu sem ar não consigo pintar. 00:05:44

XXIII. É natural que dos serviços levados a cabo resultem outros ruídos, provavelmente menos intensos, que assim não serão suscetíveis de impedir o sossego e o descanso da Recorrida, inserindo-se naqueles que inevitavelmente fazem parte do quotidiano, que todos originamos e causamos uns aos outros.

XXIV. E com o propósito de minimizar qualquer incómodo que possa causar com a audição daquele ruído no exterior da garagem, labora o Recorrente com a garagem fechada, evitando assim qualquer contacto com a Recorrida:
Réu: Até agora ultimamente tem sido sempre com a garagem fechada. 00:15:28
Réu: Praticamente desde o divórcio mantenho tudo fechado para estar mais atento, mais tranquilo (…) já começa a ser um ambiente mais pesado e a gente reserva-se (…) dar-lhe a paz a ela e eu também estar no meu canto. 00:15:52

XXV. Aquilo que mais parece molestar a Recorrida nem sequer é o barulho, mas tão só a presença constante do Recorrente na habitação. Nas suas declarações, acaba por referir que o barulho nem tem sido tão incómodo, vejamos:
Autora: Não, não chama nomes nenhuns nem coisa nenhuma. Eu é que estou chateada com o barulho, e agora até melhorou muito (…) 00:16:50
Autora: O barulho é ruim, mas a presença é pior. 00:20:05

XXVI. É de salientar que a Recorrida não logrou, em momento algum, demonstrar que o ruído fora de tal modo excessivo que obstou ao seu descanso, privando-a, por exemplo, de noites de sono. Aquilo que alega é que, por estar abalada psicológica e emocionalmente, necessita de assistência hospitalar.

XXVII. Contudo, ainda que o impedimento para o Recorrente de entrar naquela habitação surgisse como uma precaução dos efeitos nocivos que a sua presença possa causar na Recorrida, é evidente que aqueles nem sequer mantêm o contacto, uma vez que o Recorrente frequenta somente o espaço da garagem com o escopo de cumprir os referidos serviços. Nada pratica o Recorrente que impeça a Recorrida de utilizar ou fruir do seu domicílio.

XXVIII. Em face do exposto, impõe-se a eliminação do ponto 9) da matéria de facto considerada provada,

XXIX. A alteração dos pontos 4) e 15), passando os mesmos a ter a seguinte redação:
4. O Réu ainda detém as chaves do aludido prédio, porquanto lhe fora permitido o acesso à garagem daquele para fins profissionais.
15. A constante presença do Réu na habitação da Recorrida e do Recorrente, causa nesta desassossego e intranquilidade.

XXX. Bem como o aditamento dos seguintes factos à matéria de facto considerada provada:
17. Aquando do acordo do divórcio, ficou acordado que o Réu pudesse aceder livremente à garagem para desempenhar a sua atividade profissional.
18. O Réu não possui qualquer outro espaço onde possa dar continuidade aos serviços que atualmente presta na garagem da casa de morada de família.
19. Os serviços de pintura e chaparia automóvel que executa são imprescindíveis para a sua subsistência.

XXXI. Tais alterações e aditamentos teriam permitido concluir pela improcedência dos pedidos formulados pela Autora.

XXXII. Relativamente à aplicação do Direito, mal andou o tribunal a quo ao sacrificar totalmente o exercício do direito do Recorrente ao trabalho, por considerar estar em causa uma colisão entre um direito, liberdade e garantia (respeitantes à saúde mental e à inviolabilidade do domicílio), considerado superior, e um direito económico, social e cultural (direito ao trabalho).

XXXIII. É certo que, tal como dispõe o Ac. do STJ de 31701/2023 (proc. n.º 773/19.7T8CBR.C1.S1), havendo colisão de direitos de espécies diferentes, prevalecerá aquele que deva considerar-se superior, nos termos do artigo 335.º, n.º 2 do CC.

XXXIV. E também o é que o direito ao repouso e à tranquilidade constituem um valor superior ao direito de exercício de uma atividade profissional e comercial (cf. Ac. do STJ de 06/04/2021, proc. n.º 19/18.5T8CBC.G1.S1), uma vez que aqueles se integram nos direitos de personalidade à integridade moral e física, à proteção da saúde e a um ambiente de vida humano sadio e equilibrado, direitos considerados absolutos e protegidos constitucional e legalmente (cf. Ac. do TRG de 17/12/2019, proc. n.º 19/18.5T8CBC.G1).

XXXV. Porém, relativamente à questão que nos cumpre, a doutrina e a jurisprudência têm-se pronunciado no sentido de que se deve encontrar uma solução que acautele na medida do possível um exercício residual e subsidiário do direito preterido, não devendo a prevalência de um direito sobre outro provocar a exclusão completa, o esmagamento do último.

XXXVI. É imperioso que se assegure alguma oportunidade de exercício do direito tido como inferior, devendo as restrições impostas limitar-se ao necessário para a proteção do outro, de modo a evitar o sacrifício total deste.

XXXVII. É que o direito ao trabalho e as suas inerentes garantias também decorrem da lei (art. 58.º CRP), constituindo este o primordial, o pressuposto e antessente lógico de todos os direitos económicos, sociais e culturais.

XXXVIII. Não se vislumbra como é que, sopesada a realidade factual em concreto, se pôde julgar prevalecentes os direitos da Recorrida, aniquilando completamente aqueles de que se pretende fazer valer o Recorrente, tendo em conta que a presença e o ruído provocado por aquele não é de tal modo excessivo que impeça a Recorrida de descansar. É que, à luz do Ac. do STJ supra mencionado (de 06/04/2021), «o repouso não pressupõe silêncio completo, pois o ruído é algo de inerente à civilização moderna, integrando na sua essência».

XXXIX. Até porque o Recorrente não labora em período noturno ou considerado de descanso (isto é, ao fim de semana), não privando a Recorrida do seu sono e do seu descanso.

XL. Mesmo perante a existência de algum ruído audível pela Recorrida, sempre deveria ser elaborado um juízo de equidade e de ponderação, no sentido de avaliar quando é que são ultrapassados os limites da normalidade e da tolerância e ponderar a intensidade e a relevância dos direitos atingidos, para encontrar o equilíbrio possível entre os direitos colidentes.

XLI. Efetuando-se assim, quando necessário, um juízo de concordância prática de modo a satisfazer ambas as partes, ao invés de sacrificar totalmente o direito de um em prol do direito do outro, o que sempre comportaria uma desproporção inaceitável e um atentado ao princípio da proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2 CRP).

XLII. Negar ao Recorrente a utilização da garagem será prejudicá-lo duas vezes no âmbito do direito de propriedade (art. 1302.º CC) que ainda possui sobre aquele imóvel.

XLIII. Não se aceitando a conciliação de interesses proposta pelo Recorrente à data do acordo - ceder o domicílio à Recorrida mas permanecer com o usufruto da garagem para fins profissionais -, então deveriam ter sido devidamente atendidos os critérios legais para a atribuição provisória da casa de morada de família, tal como discorre o Ac. do TRG de 17/09/2020 (proc. n.º 114/14.0TCGMR-A.G1), pois da factualidade apurada não se pode concluir que o Recorrente tenha uma situação patrimonial superior à da Recorrida, ou que esta possua mais necessidades da casa de morada de família do que aquele.

XLIV. Nestes termos, deve a sentença recorrida ser revogada e ser proferida nova decisão que julgue improcedente o pedido formulado pela Autora, reconhecendo o direito que o Réu possui em continuar a utilizar a garagem em apreço.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2. Factos
2.1 Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. Autora e Réu celebraram, entre si, casamento católico em 02/05/1992 (sem convenção antenupcial).
2. No dia 20/10/2020, Autora e Réu divorciaram-se por mútuo consentimento, acordo esse devidamente homologado por sentença transitada em julgado no Juízo de Família e Menores de Vila do Conde - Juiz 1, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, proc. n.º 315/201T8VCD.
3. No âmbito do processo de divórcio mencionado supra, a casa de morada de família (sita na Av.ª ..., ..., ... Vila do Conde, correspondente ao Prédio urbano destinado a habitação com dois pisos, composto por cave com uma divisão e garagem, R/C com quatro divisões, cozinha, dois wc ìs e corredor – tipologia T4 -, sito na ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...19 da União das Freguesias ... e ..., concelho de Vila do Conde, distrito do Porto) foi, tal como se colhe da sentença mencionada no item precedente, até à partilha/venda, entregue à Autora.
4. O Réu, contra a vontade da Autora, ainda detém as chaves do aludido prédio.
5. O inventário do património comum (do qual consta o prédio onde a Autora reside) corre no Juízo de Família e Menores (Juiz 1) de Vila do Conde, Comarca do Porto, com o n.º 315/20.1T8VCD-A.
6. Desde pelo menos há três meses, contados da data da propositura da acção, o Réu tem vindo a aceder ao domicílio da Autora.
7. Concretamente, o Réu utiliza diariamente, durante todo o dia, a garagem situada nas traseiras do prédio.
8. Em tal garagem, o Réu realiza pequenos serviços de pintura e chaparia automóveis.
9. Devido a tais serviços, entram na garagem da Autora diversas pessoas cuja identidade a Autora desconhece.
10. Devido à actividade que exerce na garagem, o Réu provoca ruídos.
11. O Réu igualmente acede à cave da habitação da Autora como alguma regularidade.
12. Por volta do dia 21/11/2022, o Réu entrou no domicílio da Autora (na ausência e sem a autorização desta), e abriu as portas ao Sr. Perito EE, que se deslocara lá para realização de uma perícia judicial no âmbito do processo de inventário n.º: 315/20.1T8VCD.
13. Com a presença constante do Réu na sua residência, a qual é praticamente diária, a Autora vê a sua intimidade, reserva da vida privada e familiar ultrajadas.
14. Atenta a sistemática presença do Réu, a Autora sente-se coibida na livre fruição da sua residência, evitando levar à mesma familiares e amigos.
15. A constante presença do Réu no domicílio da Autora, bem como o barulho causado pela sua actividade, causa nesta desassossego e intranquilidade.
16. Por se encontrar bastante abalada psicológica e emocionalmente, a Autora, nestes últimos três meses, teve necessidade de ser assistida nos seguintes hospitais: 1... - Matosinhos e Unidade Hospitalar ....
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3.2 Factos não provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
1. Que a Autora tenha interpelado o Réu por diversas vezes para que este entregasse as chaves da habitação.
2. Que o Réu aceda recorrentemente, sem qualquer exclusão, a todas as divisões do prédio em causa, como sala, cozinha, quartos, casas de banhos.
3. Que o Réu faça barulho na garagem com o propósito exclusivo de incomodar a Autora.
4. Que, com a conduta acima descrita, o Réu vise controlar e atormentar a vida quotidiana da Autora.
5. Que o Réu apregoe pelas redondezas que a casa é sua e que é livre de a frequentar.
6. Que o Réu tenha vindo a apropriar-se de muita da correspondência da Autora que é na caixa de correio depositada, abrindo as cartas e lendo o seu conteúdo.
7. Que o Réu, quando por vezes se cruza com a Autora, lhe dirija impropérios, como “vaca”, “ladra” e “puta”, bem como lhe dirige várias frases de intimidação “vais ver… vais ver”, entre outras.
8. Que, aquando do acordo do divórcio, tenha ficado acordado que o Réu pudesse aceder livremente à garagem.
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3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir:
Das conclusões formuladas pelo recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso são as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto;
- Da colisão de direitos.
*
4. Conhecendo do mérito do recurso:
4.1 Da impugnação da matéria de facto
O apelante em sede recursiva manifesta-se discordante da decisão que apreciou a matéria de facto, reputando que não poderiam ter sido dados como provados os factos vertidos nos pontos 4), 9) e 15) da matéria de facto dada como provada, bem como não deveria ter sido elencado como não provado o facto vertido em 8) da matéria de facto não provada.
Pugna pela alteração dos pontos 4) e 15), devendo os mesmos passar a ter a seguinte redacção:
“4. O Réu ainda detém as chaves do aludido prédio, porquanto lhe fora permitido o acesso à garagem daquele para fins profissionais.”
“15. A constante presença do Réu na habitação da Recorrida e do Recorrente, causa nesta desassossego e intranquilidade.”
Defende, ainda, a eliminação do ponto 9) da matéria de facto considerada provada.
Pugna, por fim, que sejam aditados os seguintes factos ao rol dos factos provados:
“17. Aquando do acordo do divórcio, ficou acordado que o Réu pudesse aceder livremente à garagem para desempenhar a sua atividade profissional.
18. O Réu não possui qualquer outro espaço onde possa dar continuidade aos serviços que atualmente presta na garagem da casa de morada de família.
19. Os serviços de pintura e chaparia automóvel que executa são imprescindíveis para a sua subsistência.”
Vejamos, então.
No caso vertente, mostram-se cumpridos os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, nada obstando a que se conheça da mesma.
Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pelo recorrente e, se necessário, outras provas, máxime as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.
Reportando-nos ao caso vertente constata-se que o Senhor Juiz a quo, após a audiência e em sede de sentença, motivou a sua decisão sobre os factos nos seguintes meios de prova:
“Para fundamentar a sua convicção, o Tribunal baseou-se no teor do depoimento de parte do Réu e nas declarações de parte da Autora, bem como nos depoimentos das testemunhas FF (amiga da Autora), CC e DD (ambos amigos do Réu).
Valorou igualmente o teor dos documentos juntos com a petição inicial, nomeadamente a certidão do processo de divórcio junto como documento n.º 1, fotografias da garagem e veículos que aí se encontravam, juntas como documentos n.ºs 2 a 6 e perícia junta como documentos n.ºs 7 e 8.
Concretizando a matéria de facto dada como provada, os factos provados n.ºs 1 a 3 resultam do documento n.º 1 junto com a petição inicial, bem como das declarações da Autora e do Réu.
A prova dos factos n.ºs 4 e 5 advém das declarações conjuntas da Autora e do Réu, que confirmaram tal facto.
No que concerne aos factos provados n.ºs 6 a 10, os mesmos foram confirmados pela Autora, pelo Réu e por todas as testemunhas arroladas, sendo ainda confirmadas pelas fotografias juntas como documentos n.ºs 2 a 6 da petição inicial.
Neste ponto, embora o Réu tenha procurado minorar os ruídos e incómodos que a sua actividade causa, a Autora, a sua testemunha FF, bem como a testemunha do Réu DD confirmaram que, de facto, a actividade levada a efeito pelo Réu gera diversos barulhos.
Os factos provados n.ºs 11 e 12 foram confirmados pelo próprio Réu.
No que tange aos factos provados n.ºs 13 a 16, foram valoradas as declarações de parte da Autora, conjugadas com o depoimento da testemunha FF.
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Atendendo à matéria de facto dada como não provado, o facto não provado n.º 1 foi admitido pela própria Autora, que confirmou que apenas solicitou ao Réu as chaves uma única vez, pouco tempo após o divórcio.
No que concerne ao facto não provado n.º 2, não só o Réu negou o mesmo como a Autora, bem como a sua testemunha FF, foram capazes de confirmar o mesmo.
A ausência de prova dos factos n.ºs 3 e 4 resulta das declarações do Réu e das suas testemunhas, CC e DD, que confirmaram que o Réu não procura propositadamente incomodar a Autora, antes procurando obter quantias monetárias, com a sua actividade, para poder prover ao seu sustento.
No que respeita ao facto não provado n.º 5, não foi realizada qualquer prova sobre o seu teor.
Os factos não provados n.ºs 6 e 7 não foram confirmados pela própria Autora, referindo desconhecer se o Réu havia remexido na sua correspondência e negando que lhe tenha dirigido impropérios após o divórcio.
Por fim, no que toca ao facto não provado n.º 8, embora o Réu tenha referido que, no acordo do divórcio, tenha sido deixada em aberto a possibilidade de este aceder à garagem do imóvel, a Autora, nas suas declarações (que foram particularmente espontâneas e credíveis neste ponto), explicou que se partiu do erróneo pressuposto que a garagem não integraria a residência, motivo pelo qual a questão nem sequer se colocaria, podendo o Réu aceder-lhe livremente independentemente da decisão que recaísse sobre a casa de morada de família, motivo pelo qual nada foi acordado a tal respeito.”.
Tendo presentes estes elementos probatórios e demais motivação, ouvida que foi a gravação dos depoimentos prestados em audiência, vejamos então se, na parte colocada em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pelo apelante.
Insurge-se o Recorrente contra tal decisão por entender que o Tribunal a quo valorou erradamente a prova oferecida nos segmentos fácticos em causa.
Entendemos, porém, que o Senhor Juiz a quo fundamentou a sua decisão de forma rigorosa, bem sistematizada, não contornando as questões que se colocavam, invocando sempre com ponderação as regras da experiência comum e o juízo lógico-dedutivo.
Após audição da prova afigura-se-nos, ainda, que a apreciação do Sr. juiz a quo - efectivada no contexto da imediação da prova -, surge-nos como claramente sufragável, com iniludível assento na prova produzida e em que declaradamente se alicerçou, nada justificando, por isso, a respectiva alteração.
Com efeito, a convicção expressa pelo tribunal a quo tem razoável suporte naquilo que a gravação das provas e os demais elementos dos autos lhe revela.
Isto porque salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Contudo, a livre apreciação da prova, não se confunde, de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve, portanto, colocar o julgador ao apreciar livremente a prova.
Importa, isso sim, aquilatar se as conclusões que foram retiradas a partir da prova que foi produzida e credibilizada pelo tribunal, não contende com as regras da experiência comum e da lógica.
A livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma real motivação da decisão: com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim: a convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros em termos de racionalidade e perceptibilidade.
Não esqueçamos, por fim, que a formação da convicção do juiz não pode resultar de partículas probatórias, mas tem necessariamente de provir da análise global do conjunto de toda a prova produzida.
A actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o Juiz necessariamente aceite esse sentido ou essa versão. Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos.
No caso ajuizado, consta como provado que:
“4. O Réu, contra a vontade da Autora, ainda detém as chaves do aludido prédio.”
“9. Devido a tais serviços, entram na garagem da Autora diversas pessoas cuja identidade a Autora desconhece.”
“15. A constante presença do Réu no domicílio da Autora, bem como o barulho causado pela sua actividade, causa nesta desassossego e intranquilidade.”
Conforme atrás referimos, pugna o Apelante pela alteração dos pontos 4) e 15), devendo os mesmos passar a ter a seguinte redacção:
“4. O Réu ainda detém as chaves do aludido prédio, porquanto lhe fora permitido o acesso à garagem daquele para fins profissionais.”
“15. A constante presença do Réu na habitação da Recorrida e do Recorrente, causa nesta desassossego e intranquilidade.”
Consta do ponto 8 da referida matéria de facto não provada que:
“8. Que, aquando do acordo do divórcio, tenha ficado acordado que o Réu pudesse aceder livremente à garagem.”.
Defende, ainda, que o ponto 8 seja considerado provado.
Analisada a factualidade provada, à luz da prova produzida, afigura-se-nos que os respectivos pontos da matéria de facto não poderiam obter resposta diferente.
Com efeito, a prova do facto vertido no ponto n.º 4 advém, designadamente, das declarações conjuntas da Autora e do Réu. Além disso, ficou vertido na acta da tentativa de conciliação que a Apelada e o Apelante acordaram que a casa de morada de família era atribuída àquela até à respectiva partilha, pelo que conclui-se, à luz do acordado e das regras da experiência comum, que se o Réu/Apelante, ainda, detém as chaves do bem imóvel é certamente contra a vontade da Autora/Apelada.
Relativamente ao facto vertido no ponto 15, pese embora o Réu tenha procurado minorar os ruídos e incómodos que a sua actividade causa, a Autora/Apelada e as testemunhas FF e DD confirmaram que, de facto, a actividade levada a efeito pelo Réu gera diversos barulhos. A referida conclusão encontra-se, aliás, em sintonia com as regras da lógica e da experiência comum.
Já relativamente ao facto vertido no ponto 8 encontra-se o mesmo em sintonia com a acta de tentativa de conciliação junta ao processo de divórcio, do qual se infere que a Apelada e o Apelante acordaram que a casa de morada de família era atribuída àquela até à respectiva partilha pelo que não se justifica qualquer alteração, soçobrando de fundamento o aditamento do pretenso facto nº 17.
Defende, ainda, sem razão, a eliminação do ponto 9) da matéria de facto considerada provada.
Com efeito, da prova produzida resulta que, em consequência da actividade desenvolvida pelo Recorrente, entram na garagem da Recorrida diversas pessoas cuja identidade aquela desconhece. Tal conclusão extraída da prova encontra-se, inclusive, em sintonia com as regras da lógica e da experiência comum, atenta a atividade desenvolvida pelo Apelante, não se encontrando em sintonia com as referidas regras a tese defendida pelo Recorrente segundo a qual o mesmo se limitasse a receber e conversar com os seus clientes na rua, mesmo aqueles que considera mais próximos.
Pugna, por fim, o Apelante que sejam aditados os seguintes factos no rol dos factos provados:
“17. Aquando do acordo do divórcio, ficou acordado que o Réu pudesse aceder livremente à garagem para desempenhar a sua atividade profissional.
18. O Réu não possui qualquer outro espaço onde possa dar continuidade aos serviços que atualmente presta na garagem da casa de morada de família.
19. Os serviços de pintura e chaparia automóvel que executa são imprescindíveis para a sua subsistência.”.
Adiantamos, desde já, que relativamente ao pretenso aditamento também não se nos afigura, neste ponto, assistir, razão ao Apelante, sendo certo que quanto ao ponto 17 tal conclusão emerge do atrás por nós defendido.
Relativamente aos pontos 18 e 19 nada resulta dos autos que nos leve a concluir pela veracidade da referida factualidade, pelo que não se impõe o seu aditamento.
Afigura-se-nos, por isso, não existirem motivos que justifiquem a alteração, devendo manter-se as respostas dadas aos referidos pontos da matéria de facto provada.
Na realidade as observações feitas aos depoimentos prestados e à prova documental oferecida são pertinentes e acutilantes e em sintonia com as regras da lógica e da experiência comum.
Em face do que vem de ser exposto, improcede o recurso sobre a decisão da matéria de facto.

4.2. Da colisão de direitos.
Dispõe o artigo 878.º, do Código de Processo Civil que: “Pode ser requerido o decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e direta à personalidade física ou moral de ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos de ofensa já cometida.”.
Destarte, a acção de tutela de personalidade é uma acção especial, com uma tramitação mais célere que as acções comuns, destinada a terminar, de forma eficaz, com a violação de um direito de personalidade.
Assim, a acção em causa constitui um mecanismo de protecção dos direitos de personalidade, em concretização do artigo 70.º do Código Civil.
No caso em análise, encontra-se provado que o Apelante, com as suas condutas, tem vindo a violar o domicílio da Apelada, perturbando, ainda, o seu direito à tranquilidade, à vida privada, ao sossego e saúde mental.
De facto, encontrando-se demonstrado que a Autora/Apelada e o Réu/Apelante acordaram que a casa de morada de família ficasse para aquela até à respectiva partilha, a mesma tem, perante a habitação, os mesmos direitos que um arrendatário teria, nos termos do artigo 1793.º do Cód. Civil, onde se inclui o direito a fruir integralmente da mesma.
Assim, com a sua conduta, o Réu/Apelante viola, na pessoa da Autora/Apelada, a protecção que lhe é conferida pelos artigos 25.º e 34.º da Constituição da República Portuguesa.
E, embora tenha resultado demonstrado que o Réu, na sua garagem, exerce uma actividade profissional, não pode o exercício da referida actividade sobrepor-se ao direito da Autora à sua tranquilidade e à possibilidade de usufruir integralmente da sua habitação.
De facto, o artigo 335.º, do Código Civil estabelece que:
“1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.”
Assim, verificando-se colisão de direitos, devem os mesmos ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes. Isto quando a colisão se verifica entre direitos iguais, ressalvando o nº 2 a prevalência do direito considerado superior quando os direitos forem desiguais ou de espécie diferente.
No conflito entre os dois direitos fundamentais já explicitados, temos de ter presente os ensinamentos de Gomes Canotilho e Vital Moreira quando escrevem:
"Para a solução entre dois "direitos liberdades e garantias" há que verificar se os mesmos estão sujeitos a reserva da lei restritiva (artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).
"Há dois tipos de leis restritivas" nuns, é a própria Lei Fundamental que prevê directamente certa e determinada restrição cometendo à lei a sua concretização e delimitação (é o caso por exemplo, dos artigos 27º, nº 3, 34º, nºs. 2 e 4) noutros, a Constituição limita-se a admitir restrições não especificadas (é o caso, por exemplo, dos artigos 35º, nº 2, 47º, nº 1, 49º, nº 1 e 270º, nº 1) - Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, página 151).
E a completarem a sua linha de pensamento, escrevem:
"As soluções concretas e os instrumentos metódicos a utilizar dependem essencialmente da natureza dos direitos e bens em conflito, pois
- "Se o conflito se estabelece entre "direitos, liberdades e garantias" sujeitos a reserva da lei restritiva, o legislador pode fazer ingerências e limitar o exercício dos dois direitos na medida necessária, estabelecendo, de forma proporcionada, a concordância prática entre ambos";
- "Em caso de conflito entre "direitos, liberdades e garantias" não sujeitos a reserva da lei restritiva com outros direitos fundamentais (exemplo direitos económicos, sociais e culturais) ou outros bens constitucionalmente postergados (defesa, saúde) devem prevalecer aqueles;
- Se o conflito surgir entre "direitos, liberdades e garantias" sujeitos a reserva de lei restritiva e outros bens ou direitos, há ainda persistência dos primeiros" (cf. Fundamentos da Constituição, 1991, páginas 136 e 137).
De resto, como é entendimento do STJ, havendo colisão de direitos de espécies diferentes, dum lado o direito à tranquilidade, à vida privada, ao sossego e à saúde mental, e do outro o direito ao trabalho e ao exercício de uma actividade comercial, prevalece o que deva considerar-se superior, nos termos do n.º 2, do artigo 335º, do Código Civil e não há dúvida de que o direito à tranquilidade, à vida privada, ao sossego e saúde mental é de valor superior ao direito ao trabalho e ao exercício de uma actividade comercial/industrial.
Sobre este artigo a doutrina tem-se manifestado no sentido de que “na hipótese de se concluir pela superioridade de um direito relativamente a outro, se deve encontrar uma solução que, sem prejuízo de dar prevalência ao superior, acautele na medida do possível um exercício residual e subsidiário do direito preterido. Com efeito, a prevalência de um direito relativamente ao exercício de outro direito não significa a exclusão obrigatória e completa deste último. Sempre que seja viável, o juiz deve tentar assegurar alguma oportunidade de exercício ao direito tido como inferior” (Elsa Vaz Sequeira, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, pág. 793); noutra obra, de referência, pode ler-se “o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses, inclusivamente, caso sejam possíveis e adequados vários modos de exercício dos direitos superior e inferior, a solução legal do conflito impõe que as partes adoptem modos alternativos de exercício que respeitem a diferença axiológico-jurídica em causa e se mostrem não colidentes entre si ou, se isso não for possível, impõe que o titular do direito predominante adopte o modo de exercício mais moderado ou menos gravoso, que limite no mínimo o direito secundário” ( Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, 1995, pág. 549).
Portanto, a prevalência de um direito superior relativamente ao inferior não significa o “esmagamento” do segundo pelo primeiro.
E este princípio de proporcionalidade sai reforçado se ambos os direitos forem, como é o caso, tutelados constitucionalmente: os direitos de personalidade encontram abrigo no artigo 25º da CRP, subordinado à epígrafe” Direito à Integridade Pessoal”, que inclui a integridade moral e física (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anotada, volume I, 4ª edição revista, pág. 455); e o direito ao trabalho e à exploração de atividade comercial/industrial nos artigos 59.º e 61º da CRP (ob. cit. pág. 790).
Neste caso, a harmonização de tais direitos deverá conformar-se com as exigências contidas no artigo 18º da Constituição mormente com o princípio da proporcionalidade inscrito na parte final do nº 2.
No Ac. do STJ de 06-04.2021, proferido no Proc. nº 19/18.5T8CBC.G1.S1 se entendeu que, “1. O direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de uma parte prevalece sobre o direito à actividade económica da outra;
2. A harmonização entre esses direitos há-de obedecer ao princípio da proporcionalidade de modo que, se possível, a afirmação de um direito não implique necessariamente a exclusão do outro;”
Neste sentido, também, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-03-1997, proferido no Processo n.º 557/96, “Na interpretação do artigo 335.º, a propósito de a colisão ocorrer entre um direito de personalidade e um direito que não de personalidade, devem prevalecer, em princípio, os bens ou valores pessoais aos bens ou valores patrimoniais.”
Ora, correspondendo o direito à saúde mental e à inviolabilidade do domicílio a um direito, liberdade e garantia (direito de primeiro grau) e o direito ao trabalho (previsto no art.º 58.º da nossa Lei Fundamental) a um direito económico, social e cultural, resulta que os direitos da Apelada sempre prevalecerão sobre os do Apelante.
De resto, nada resulta dos autos que nos leve a concluir que o Recorrente não possa desenvolver a sua actividade noutro local.
Além disso, a Autora/Apelada e o Réu/Apelante acordaram que a casa de morada de família ficasse para aquela até à respectiva partilha, no contexto de um processo de divórcio, em que há sempre muitas “feridas” a curar, pelo que não se afigura proporcional que o Réu, para manter o exercício da sua actividade (que, aparentemente, nem será declarada fiscalmente nem sequer licenciada), pudesse perturbar a Autora na sua residência, como o tem vindo a fazer, realizando barulho com base diária e levando para o seu interior várias pessoas desconhecidas da Autora.
Por conseguinte, afigura-se-nos ser de manter a decisão recorrida.
Impõe-se, por isso, o não provimento da apelação.
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Sumariando, em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar não provido o recurso, confirmando a decisão recorrida.
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Custas a cargo do apelante.
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Notifique.




Porto, 25 de Janeiro de 2024
Paulo Dias da Silva
Isabel Peixoto Pereira
Isabel Ferreira

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)