PENHORA
EXECUÇÃO COMUM
EXECUÇÃO FISCAL
Sumário

I - A aplicação do art. 794º, nº 1, do Código de Processo Civil pressupõe que seja possível a prossecução normal da execução na qual o bem duplamente penhorado foi primeiramente penhorado.
II - Essa possibilidade não existe se a execução em que a penhora é mais antiga é uma execução fiscal e o bem penhorado é a casa de habitação própria e permanente do executado, porque nessa execução, por força do disposto no art. 244º do CPPT, a venda do bem é legalmente impossível, mesmo a requerimento de um credor.
III - Nessa circunstância, conforme o Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo sem controvérsia, a execução comum deve prosseguir, apesar de nela a penhora ter sido posterior, cabendo à Administração Tributária a faculdade de reclamar o seu crédito exequendo nesta execução.

Texto Integral

RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:7623.23.8T8PRT.A.P1

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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
O Banco 1..., S.A., Sociedade Aberta, matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto com o número único de matrícula e de identificação fiscal ..., com sede no Porto, instaurou execução para pagamento de quantia certa no valor de €44.245,58, contra AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente em Vila Nova de Gaia, BB, contribuinte fiscal n.º ..., CC, contribuinte fiscal n.º ..., ambos residentes em ....
Apresentou como título executivo duas escrituras públicas de mútuos com hipotecas registadas definitivamente sobre as fracções autónomas designadas pelas leiras “AI”, correspondente a habitação no terceiro andar esquerdo (corpo IV), inscrita na matriz sob o artigo ...-A1, e “BB”, correspondente a lugar de garagem na cave, inscrita na matriz sob o artigo ...-BB, que fazem parte do prédio urbano em propriedade horizontal, sito na Praceta ..., ..., Vila Nova de Gaia, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número ... da freguesia ....
No requerimento executivo informou que na sequência da declaração de insolvência de outra devedora hipotecária, por escritura pública celebrada em 03.11.2021, o Administrador de Insolvência vendeu a terceiro as metades indivisas das fracções autónomas hipotecadas, tendo o exequente reclamado o seu crédito e aí obtido pagamento parcial já levado em conta no crédito ora reclamado.
Feita a penhora de ½ da fracção “AI” hipotecada, o Agente de Execução apurou que sobre essa parte do imóvel incidia já registo de penhora ordenada no âmbito do processo executivo nº 9350/13.5TBVNG, registada pela AP. ... de 2013.12.12 e (ii) penhora ordenada pelo Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 1, no âmbito do PEF nº ..., registada pela ap. ... de 2015.03.12.
Por esse motivo, o Agente de Execução decidiu declarar sustada a execução em relação a tal bem, nos termos do artigo 794º do Código de Processo Civil.
O exequente veio então requerer que «devido ao reconhecido impedimento legal à realização da venda no âmbito da execução fiscal promovida pela Fazenda Nacional, se digne ordenar o levantamento da sustação da execução, com vista ao prosseguimento da execução com a venda do imóvel penhorado nos autos».
O Mmo. Juiz a quo ouviu os executados sobre a possibilidade de prescindem do direito previsto na Lei n.º 13/2016, de 23/05, aceitando o prosseguimento da execução fiscal, com a venda do imóvel penhorado na citada execução fiscal e a efectuar pelos serviços fiscais, tendo o executado BB, declarado que não prescinde desse direito por se tratar de habitação própria e permanente.
De seguida o Mmo. Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
«Considerando o actual estado dos autos, instaurados apenas em 18/04/2023, com base em escritura de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança, e por falta de suficiente e adequada justificação concreta e indispensável ao prosseguimento desta execução quanto ao imóvel penhorado (metade – ½) estando aqui em causa uma execução sumária e uma penhora comum muito posterior à penhora fiscal de 12/03/2015 (sendo esta já há muito conhecida do exequente e da Sra. AE, ainda muito antes da instauração desta execução apenas em 18/04/2023 e muito antes da penhora aqui efectuada e registada em 28/04/2023, sendo informações acessíveis ao público por mera consulta ao registo predial), deverá aplicar-se o disposto no art.º 794.º, n.º 1, do CPC.
É igualmente certo que o art.º 244.º, n.º 2, do CPPT, na versão da Lei n.º 13/2016, de 23/05, veio criar um impedimento legal à realização da venda em execução fiscal de imóvel afecto à habitação própria e permanente do executado, com vista à protecção da casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal.
Todavia, perante a informação fiscal junta pela Sra. AE, dando conta apenas de uma aparente suspensão temporária, um mero aguardar das diligências necessárias para marcação da venda, e de acordo com o que consta dos autos, não está inviabilizada na execução fiscal a tutela do direito patrimonial do credor aqui exequente, inexistindo qualquer impedimento legal à prossecução da execução fiscal, na qual a exequente podia e devia reclamar os seus créditos e impulsionar a execução fiscal pelos meios que entender convenientes.
Além disso, a outra metade ½ do imóvel penhorado foi já vendida em 30/12/2021 a terceira pessoa no âmbito da insolvência da mutuária, pelo que foi já antes alienada a habitação do executado, a qual, na referida proporção, pertence agora a outra pessoa, deixando de ser própria do executado.
Como vem sendo entendido, o citado impedimento legal fiscal previsto no art.º 244.º, n.º 2, do CPPT, é inoponível aos credores comuns, que aí podem reclamar os seus créditos e impulsionar a execução fiscal, requerendo nela o que tiverem por conveniente à defesa dos seus interesses/direitos (cf. sobre esta temática, entre outros, o Ac. do TRC de 26/09/2017, relatado pelo Sr. Des. Dr. Fonte Ramos, no proc. n.º 1420/16.4T8VIS-B.C1; e o Ac. do TRP de 08/03/2019, relatado pela Sra. Des. Dra. Anabela Dias da Silva, no proc. n.º 11128/11.1TBVNG-C.P1; ambos acessíveis in www.dgsi.pt; bem como a jurisprudência e doutrina aí indicadas, além do estudo do Sr. Dr. J. H. Delgado de Carvalho, publicado na obra Temas de Processo Civil, Quid Juris, 2019, p. 259-277).
Em qualquer caso, o(a) exequente poderá sempre reclamar os seus créditos na execução fiscal, onde obterá a tutela legal adequada, devendo aí requerer o seu prosseguimento e a respectiva venda.
A suspensão desta execução comum deve manter-se apesar da anterior penhora fiscal e da execução fiscal se poder encontrar suspensa, mas onde não está vedada a intervenção processual do aqui exequente, o qual poderá sempre em tal execução fiscal requerer o que tiver por conveniente no sentido de impulsionar tal execução fiscal ou diligenciar pela sua extinção.
A celeridade e a utilidade processual destes autos, bem como o direito de propriedade e o crédito do(a) exequente não são postos em causa, devendo atender-se ao regime e às finalidades do art.º 794.º do CPC, o que se justifica também para não prejudicar os direitos e interesses do credor fiscal e dos executados e por razões de certeza e segurança jurídica.
Por outro lado, o(a) exequente poderá sempre desistir da penhora aqui efectuada e indicar outros bens em sua substituição, nos termos do disposto no art.º 794.º, n.º 3, do CPC, o que levará ao prosseguimento da execução sustada.
Pelo exposto, indefiro o requerido pelo exequente, devendo manter-se suspensa a execução quanto ao imóvel (1/2 - metade) aqui penhorado, nos termos do disposto no art.º 794.º, n.º 1, do CPC, sem prejuízo da sua extinção, caso, entre outros, se verifiquem os pressupostos previstos no art.º 794.º, n.º 4, do CPC.»
Do assim decidido, o exequente interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido pelo Tribunal a quo, que indeferiu o requerimento apresentado pelo Exequente Banco 1..., S. A. onde este requereu o levantamento da sustação da presente execução, com vista ao prosseguimento da execução com a venda de metade do imóvel penhorado nos autos.
2. Com efeito, devido à sustação da execução em virtude da penhora anterior, o Banco reclamou créditos no âmbito dos autos de execução fiscal.
3. No entanto, foi informado de que a venda do imóvel em tal processo não é possível, em virtude do impedimento legal plasmado no artigo 244.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário: trata-se de habitação própria e permanente do Executado.
4. O citado n.º 2 do artigo 244.º do CPPT consagra taxativamente a impossibilidade da venda em sede de execução fiscal de imóvel que constitua a habitação própria permanente do executado, o que impede que a venda na execução fiscal prossiga, ainda que a requerimento de qualquer outro credor comum, que não o Exequente Fazenda Nacional, não podendo por isso operar o regime previsto no artigo 794.º nº 1 do CPC.
5. Não está ao alcance do Exequente requerer o prosseguimento dos autos ao abrigo de qualquer norma análoga ao artigo 850.º do CPC pois esta não existe no CPPT.
6. Nem existe outro processo onde o Exequente poderá ver ressarcido o seu crédito.
7. Pelo que deverá ser ordenado o levantamento da sustação dos presentes autos, prosseguindo a venda de metade do imóvel nos mesmos.
8. O disposto no artigo 822.º do CPC não sai beliscado com esta situação, pois que a Fazenda Nacional é citada para reclamar créditos na execução comum, assim estando salvaguardados todos os seus direitos.
9. Quer a doutrina, quer a jurisprudência maioritárias entendem que, nestas circunstâncias, em que a primeira penhora que incide sobre o imóvel que é habitação própria e permanente do executado se encontra registada a favor da Fazenda Nacional, uma vez que esta entidade está legalmente impedida de prosseguir com as diligências de venda de tal bem, deve ser autorizado o prosseguimento do processo de execução comum, sob pena de o credor não ver o seu direito acautelado. – Vide Acórdãos do STJ de 23.01.2020 e de 02.06.2021, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
10. Andou mal o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, uma vez que estando os autos em que a penhora era mais antiga suspensos em virtude do impedimento legal consagrado no n.º 2 do artigo 244.º do CPPT da Fazenda Nacional, deveria ter sido ordenado o prosseguimento dos autos desta execução comum, pois que só assim se tutela efectivamente o direito do credor reclamante.
11. A sentença recorrida violou, por deficiente interpretação e aplicação o disposto nos artigos 10.º n.º 3 do C.C., 244.º nº 2 do CPPT, 791.º nºs 1 e 4, 794.º, 822.º e 850.º n.º 2 do CPC.
Nestes termos e nos que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e decidir-se no sentido das alegações e conclusões supra com o que se fará inteira Justiça!
Os recorridos não responderam a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se um credor comum com hipoteca sobre o bem penhorado na execução por si instaurada, que se encontrava já anteriormente penhorado numa execução promovida pela Fazenda Nacional, pode, tendo esta execução sido suspensa ao abrigo da Lei n.º 13/2016, de 23/05, fazer prosseguir sobre esse bem a execução por si instaurada não obstante a penhora anteriormente realizada na execução fiscal suspensa.

III. Fundamentação de facto:
Encontram-se provados pela certidão do registo predial junta os seguintes factos:
A- Sobre a fracção AI descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º ...-AI da freguesia ..., encontram-se lavradas as seguintes inscrições e averbamentos:
1. ap. ... de 1988/06/07 - constituição da propriedade horizontal
2. ap. ... de 2008/04/15 - aquisição
Causa: compra
Sujeito(s) activo(s): AA e DD
Sujeito(s) passivo(s): Banco 2..., S.A.
3. ap. ... de 2008/04/15 - hipoteca voluntária
Capital: 53.500,00 euros
Montante máximo assegurado: 71.714,07 euros
Sujeito(s) activo(s): Banco 1..., S.A.
Sujeito(s) passivo(s): AA e DD.
Fundamento: empréstimo.
4. ap. ... de 2008/04/15 - hipoteca voluntária
Capital: 31.550,00 euros
Montante máximo assegurado: 42.196,55 euros
Sujeito(s) Activo(s): Banco 1..., S.A.
Sujeito(s) Passivo(s): AA e DD.
Fundamento: empréstimo
5. ap. ... de 2015/03/12 15:07:52 - penhora
Registado no sistema em: 2015/03/12 15:07:52
Data da penhora: 2015/02/17
Quantia exequenda: 3.303,88 euros
Sujeito(s) activo(s): Autoridade Tributária e Aduaneira
Sujeito(s) passivo(s): na proporção de 1/2: AA
Proc.º nº ... - serviço de finanças de vila nova de gaia - 1
6. ap. ... de 2021/12/30 19:13:02 - aquisição
Registado no sistema em: 2021/12/30 19:13:02
Causa: compra em processo de insolvência; quota adquirida: 1/2
Sujeito(s) activo(s): EE
Sujeito(s) passivo(s): DD
Processo de insolvência nº 1235/21.8T8VNG do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, Juiz 1.
7. averb. - ap. ... de 2021/12/30 16:07:34 - cancelamento parcial
Registado no sistema em: 2022/01/13 16:07:34
da apresent. 8 de 2008/04/15 - hipoteca voluntária
Cancelada quanto à 1/2 em que era hipotecante DD.
8. averb. - ap. ... de 2021/12/30 16:07:59 - cancelamento parcial
Registado no sistema em: 2022/01/13 16:07:59
da apresent. 9 de 2008/04/15 - hipoteca voluntária
Cancelada quanto à 1/2 em que era hipotecante DD.
9. ap. ... de 2023/05/08 10:17:39 - penhora registado no sistema em: 2023/05/08 10:17:39
Data da penhora: 2023/05/08
Quantia exequenda: 44.245,58 euros
Sujeito(s) activo(s): Banco 1..., S.A.
Sujeito(s) passivo(s): AA
A penhora é de 1/2
Processo executivo nº 7623/23.8T8PRT, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução, Juiz 4.
B- Em resposta a pedido de informação da Agente de Execução o Serviço de Finanças informou que «o processo de execução fiscal nº ... e apensos, se encontra activo na fase F(005) – Mandado de Penhora, mantendo-se o interesse na manutenção da penhora do referido imóvel» e ainda que «a venda do bem objecto da penhora encontra-se suspensa nos termos do artº 244 do CPPT, aditado pela Lei 13/2016».

IV. Matéria de Direito:
A questão de direito cuja decisão é objecto de recurso foi motivada pela Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, que alterou o Código de Procedimento e de Processo Tributário e a Lei Geral Tributária, com o objectivo declarado no respectivo artigo 1.º de proteger «a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado».
Para o efeito, além do mais, aquele diploma alterou o artigo 244.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, estabelecendo no n.º 2 que «não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efectivamente afecto a esse fim», e no n.º 6 que esse «impedimento legal à realização da venda de imóvel afecto a habitação própria e permanente … pode cessar a qualquer momento, a requerimento do executado» (hipótese que no caso foi fiscalizada pelo Mmo. Juiz a quo e afastada pelo executado).
Daqui decorre que, no âmbito de um processo de execução fiscal, para obter pagamento do crédito do Estado, a Administração Tributária não pode promover a venda de um imóvel que penhorou, desde que ele constitua a «habitação própria e permanente do executado». A Administração Tributária não está impedida de penhorar um imóvel que reúna essa circunstância, mas está impedida de fazer evoluir o processo de execução fiscal para a venda desse imóvel, excepto se o próprio executado, na avaliação que faça dos seus interesses, renunciar a tal protecção e consentir na venda.
Esta disposição colocava de imediato o problema de saber como se relaciona a execução fiscal com uma execução comum na qual seja penhorado o mesmo bem e na qual não existe o referido impedimento legal à venda porque a Lei n.º 13/2016 expressamente restringiu o seu âmbito de aplicação às execuções fiscais (sendo que a sua aplicação também às execuções comuns, no dizer do próprio Tribunal Constitucional, «atentaria contra os princípios da proporcionalidade, da confiança e da igualdade, consagrados nos artigos 2.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa» - Decisão Sumária n.º 728/2018).
Com efeito, decorre do n.º 1 do artigo 794.º do Código de Processo Civil que pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respectivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga. Já Alberto dos Reis, in Processo de Execução, Vol. II, reimpressão, Coimbra, 1985, pág. 287, explicava, a propósito do 871º do Código de Processo Civil então vigente, mas que consagrava a mesma solução, que «o que a lei não quer é em processos diferentes se opere a adjudicação ou a venda dos mesmos bens; a liquidação tem de ser única e há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar».
Embora o n.º 3 do mesmo preceito estabeleça que na execução sustada, o exequente pode desistir da penhora relativa aos bens apreendidos no outro processo e indicar outros em sua substituição, trata-se de uma mera faculdade ou direito, não de uma obrigação, pelo que se o concreto bem penhorado responde pelo pagamento da quantia exequenda e não existe impedimento legal à sua venda para obter a satisfação dessa quantia, a questão não é se o exequente pode indicar outros bens à penhora, mas o que sucede se ele pretender mesmo obter pagamento pelo produto do bem duplamente penhorado, quando a primeira penhora tiver sido realizada na execução fiscal impedida de continuar para a venda.
Como é óbvio, as soluções legais não podem definir direitos sem assegurarem meios processuais que permitam torná-los efectivos (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, artigo 2.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Por esse motivo, por imperioso constitucional e legal, é necessário encontrar no sistema jurídico-processual uma solução que compatibilize a faculdade de a Administração Tributária penhorar imóveis que sejam a habitação própria e permanente do executado mas depois estar impedida de proceder à sua venda coerciva (o que implica que a execução fiscal fique suspensa se não houver ou não forem indicados outros bens passíveis de penhora e cujo produto seja suficiente para pagar o crédito fiscal), com o direito do credor comum de executar a totalidade do património do devedor que responda pela satisfação do seu crédito, requerendo a sua penhora e posteriormente a sua venda coerciva, apesar de o bem penhorado ser a habitação própria e permanente do executado, e com a necessidade processual de nos casos de pluralidade de execuções em que o mesmo bem foi penhorado realizar a sua venda num mesmo e único processo.
É conhecido que a questão tem recebido respostas diferenciadas, encontrando-se publicados vários Acórdãos dos Tribunais Superiores que enumeram pormenorizadamente os arestos seguidores de cada uma das posições, como, por exemplo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 22-06-2023, proc. n.º 6038/15.6T8OER.L1-2, disponível como os demais in www.dgsi.pt e que aqui nos dispensamos de repetir ou copiar.
Cremos que está praticamente consolidada a posição que o Supremo Tribunal de Justiça vem acolhendo e que no último Acórdão sobre o assunto, proferido em já em 31-10-2023, no proc. n.º 2245/19.0T8ACB-A.C1.S1, in www.dgsi.pt, se menciona tratar-se mesmo de uma solução que nunca dividiu o Supremo Tribunal de Justiça mas apenas as Relações.
Trata-se da posição que defende que na situação que nos ocupa a solução é considerar que o disposto no artigo 794.º, n.º 1, do Código de Processo Civil não tem aplicação na medida em que o mesmo pressupõe que o processo da primeira penhora esteja a ser ou possa ser movimentado, incluindo para a fase da venda do bem duplamente penhorado, porque só isso justifica que o credor do processo da nova penhora se veja obrigado a reclamar o seu crédito no processo da primeira penhora para aí obter pagamento do seu crédito reclamado (se o bem não pode ser vendido no processo da primeira penhora que sentido faz o credor comum ir aí reclamar o seu crédito?).
A essa posição não constitui obstáculo a subsistência do crédito fiscal para cujo pagamento a Administração Tributária obteve a penhora do bem posteriormente penhorado pelo credor comum, uma vez que a Administração Tributária pode (e deve) reclamar o seu crédito na execução comum que vai prosseguir, aí sendo paga de acordo com a prioridade que a lei estabelece para os créditos em concurso a estabelecer na graduação dos créditos reclamados.
Por outras palavras, tendo sido suspensa, nos termos do disposto no artigo 794º, nº 1, do Código de Processo Civil, a execução comum em que foi penhorado imóvel do executado destinado exclusivamente a sua habitação própria e permanente e do seu agregado familiar e sobre o qual incide penhora com registo anterior realizada em execução fiscal e encontrando-se esta execução parada por a Autoridade Tributária não poder promover a venda deste imóvel, em virtude do impedimento legal constante do artigo 244º, nº 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, deve levantar-se a sustação da execução comum e permitir que esta prossiga os seus termos, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos na execução comum na qual se procederá oportunamente à venda do bem penhorado.
Se isso representa fazer entrar pela janela o que se fez sair pela porta (permitir que o crédito fiscal seja satisfeito pelo produto da venda de um bem que é habitação própria e permanente do devedor executado) é um resultado inevitável face à circunstância de a Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, não ser oponível à execução comum e aos credores comuns em virtude dos imperativos constitucionais atrás mencionados e em simultâneo a opção legislativa que preside a esse diploma não ser a extinção ou a inexigibilidade do crédito fiscal mas apenas a paralisação da fase da venda …na execução fiscal (finalidade alcançável, apesar de tudo, quando, mas só quando, o devedor só tem a dívida fiscal e só a Administração Tributária penhorou a sua habitação própria e permanente).
É, pois, à posição que o próprio Supremo Tribunal de Justiça declara seguir sem controvérsia que se adere: a execução comum deve prosseguir, levantando-se a respectiva sustação, com a citação da Administração Tributária para reclamar, querendo, o seu crédito.
Procede o recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, deferindo a requerida autorização do prosseguimento da execução nos termos assinalados.
Custas do recurso pelo recorrente, atento o critério supletivo do proveito, as quais se limitam à taxa de justiça paga pela interposição do recurso.
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Porto, 25 de Janeiro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 792)
Isabel Rebelo Ferreira
Isoleta de Almeida Costa

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]