IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Sumário

I -Se o apelante que pretende impugnar a decisão de facto limita-se a fazer uma impugnação em bloco, não conexionando cada facto individualizadamente (ou, pelo menos, grupos de factos que estejam em intimamente relacionados) com os concretos meios de prova que aduz, omitindo qualquer discurso argumentativo onde explicite de forma critica as concretas razões dos vícios que aponta a esse segmento da sentença recorrida, não dá satisfação ao ónus de especificação, de entre os constantes do processo, nele registados ou gravados em áudio ou vídeo, dos concretos meios de prova que, na perspetiva dela, teriam imposto decisão diversa de cada um de tais pontos e fundamentam a sua alteração, o que determina, a rejeição da impugnação da decisão de facto.
II - Numa ação de reivindicação, regulada no art.º 1311.º CCivil, reconhecido que seja o direito de propriedade do reivindicante, e surgindo a impetrada entrega/restituição como uma manifestação da sequela que caracteriza esse direito, deve o detentor da coisa ser condenado a restituí-la, salvo se – como previne o no 2 do citado normativo - invocar e provar a titularidade de algum direito que o legitime a continuar a manter a coisa em seu poder.
III - Feita essa condenação por sentença transitada em julgado, se o réu pretende aportar ao processo factualidade nova, consubstanciando defesa nova por exceção, para justificar a não entrega do imóvel, terá de observar a tramitação processual que é imposta para aportar ao processo factualidade nova, concretamente, através da apresentação de articulado superveniente, a que aludem os art.ºs 588.º e 589.º do CPC.

Texto Integral

Processo: 1557/21.8T8PVZ.P.1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 1
Relator: Francisca da Mota Vieira
1º Adjunto: Paulo Duarte Mesquita Teixeira
2º Adjunto: Judite Pires

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação do Porto
I.RELATÓRIO
1.AA veio intentar a presente acção contra BB, divorciado, residente na Rua ..., R/C, ..., freguesia ..., concelho de Via do Conde e HERANÇA ILIQUIDA E INDIVISA aberta por óbito de CC, representada pelo cabeça de casal DD, solteiro, maior, residente na Rua ..., ... ..., concelho de Vila do Conde, alegando ser proprietária de um imóvel que estava, ao nível do 1º andar, ocupado por CC. Tendo este falecido, requer que seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre o imóvel e a R. Herança condenada a entregar tal imóvel, devoluto de pessoas e bens.
2. O 1º Réu devidamente citado, contestou e alegou que ocupa o rés-do-chão da moradia indicada nos autos desde meados do ano de 2011, isto é, desde data anterior à doação do prédio à A. AA.
3.A 2ª Ré., devidamente citada, excecionou a falta de personalidade jurídica da 2ª Ré, impugnou parte da alegação feita na petição inicial e alegou “que o prédio não se mantém ocupado com o recheio da herança, o que lá existe é apenas lixo…” e “desconhece a R. a que recheio a A. se refere na p .i.” e, mais adianta “ nunca se negou a entregar as chaves do dito imóvel” .
Assim alega que nunca se negou a entregar as chaves do imóvel, tendo transmitido tal intenção à A. em Outubro de 2021, desconhecendo porque razão a A. “não diligenciou nesse sentido”, tendo optado por propor a acção. Mais refere ter ido ao imóvel, tendo contactado todos os herdeiros, agindo com zelo.
4. No dia 22.02.2022, a autora apresentou articulado para responder às exceções arguidas nas contestações e veio requerer a ampliação do pedido, alegando que se a R. tivesse entregue aquele 1º andar, já teria podido fazer as obras que o imóvel necessita para o colocar no mercado do arrendamento, o que teria podido fazer a partir de Março de 2022, pela renda mínima de 250,00 euros.
Terminou formulando a seguinte ampliação do pedido.
- ao abrigo do disposto no art.º 265, n.º 2 do C. Processo Civil, a A. vem ampliar o pedido formulado contra a Ré Herança, sendo esta também condenada no pagamento à A. da quantia mensal de 250,00 € (duzentos e cinquenta euros), com início no dia 1 de Março de 2022, até efetiva entrega do 1º andar do prédio reivindicado livre e desocupado de pessoas e bens.
Peticiona assim uma indemnização não inferior a 250,00 euros por mês até à data da entrega efectiva do imóvel.
5.A R. Herança respondeu, opondo-se à requerida ampliação e alegando que foi a A. que se recusou a receber o imóvel desde Outubro de 2021.
6. Foi proferido despacho no dia 25.03.2022 pelo qual o Tribunal a quo não admitiu a requerida ampliação do pedido, absolveu a ré Herança da instância (após despacho de rectificação) com fundamento na falta de personalidade judiciária e fixou o obejcto do litigio e os temas de prova, determinando o prosseguimento dos autos apenas contra o 1º R, sendo que em sede de audiência prévia foi proferida decisão quanto à reclamação dos temas de prova.
7.A A. recorreu da decisão proferida e o Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão proferido no apenso A, em 08/11/2022, revogou o despacho proferido no dia 25.03.2022, nos dois segmentos impugnados no recurso (absolvição da instância da 2ª Ré com fundamento na falta de personalidade judiciária e indeferimento da requerida ampliação do pedido) e determinou que fosse admitida a ampliação do pedido.
8.Entretanto, no dia 7.12.2022 no tribunal a quo as partes transigiram quanto ao réu DD contra quem, a ação prosseguia e o tribunal a quo homologou a transação nos termos que se reproduzem:
“TRANSAÇÃO:
1)O R. BB compromete-se a entregar à A. AA, o imóvel R/C Chão, sito na Rua ..., freguesia e ..., concelho de Vila do Conde, inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º.../..., livre de pessoas e bens, até ao dia 15 de Abril de 2023;
2) Caso o R. BB não entregue o imóvel identificado em 1) até ao dia 15 de Abril de 2023, será devida a cláusula penal de 50€ ao dia;
3) Existindo bens pertencentes ao R. BB no terreno contiguo ao R/Chão ocupado, compromete-se o R. avisar o Ilustres Mandatário da A., do dia e hora em que pretenda retirar os bens ali existentes até ao dia 15 de Abril de 2023.
Logo após pela Mm.ª Juiz, foi proferido o seguinte: SENTENÇA: Uma vez que o ato de transação exarado pelas partes é válido objetiva e subjetivamente, atenta a natureza disponível dos interesses em causa e a qualidade dos intervenientes, homologo-a pela presente sentença, condenando a Autora AA e o Réu BB a cumpri-lo nos seus precisos termos (arts. 283.º, n.º1, 284.º, 289.º "a contrário" e 290.º, n.º3, todos do Código de Processo Civil).Custas por ambas as partes em partes iguais - art.º537, n.º2 do C.P.C.. Registe e notifique.”
9.Posteriormente, o Tribunal a quo admitiu a ampliação do pedido e designou audiência prévia para o dia 30.01.2023.
10.No dia 30.01.2023 foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual, entre outros despachos, foi proferida decisão, transitada em julgado, sobre o mérito parcial da causa e o Tribunal julgou parcialmente procedente a ação, reconhecendo que a A. é proprietária do prédio descrito na CRP de Vila do Conde sob o nº..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o art. ... e composto por casa de dois andares e quintal, condenando a R. Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC a entregar-lhe o 1º andar desse imóvel, livre de pessoas e bens, determinando o prosseguimento dos autos apenas para que se aprecie se a A. se recusou a receber o imóvel da R. e existe fundamento para a sua pretensão indemnizatória. Quanto a estas questões, fixou o objecto do litígio e os temas da prova.
11.Na sequência da entrega ordenada, no dia 30.01.2023, no decurso da audiência prévia, a R. alegou não ter acesso ao imóvel e, perante a posição assumida pela A., o tribunal agendou com a concordância das partes, inspecção judicial ao local, reproduzindo-se aqui o segmento da audiência prévia que releva para o efeito:
“De seguida, o representante da Ré, presente na sala de audiência, declarou não poder aceder ao imóvel sem que a Autora permita tal acesso, facto que o mandatário da Autora declarou desconhecer.
Pretendendo a Ré proceder à entrega do imóvel, e tendo em vista averiguar como se faz o acesso ao imóvel, a Mm.ª Juiz, obtida a prévia concordância dos mesmos, designou o próximo dia 8 de fevereiro de 2023, pelas 10,00 horas para uma inspeção judicial ao imóvel, deslocando-se as partes diretamente ao imóvel e na presença de ambas.”
12. A situação foi verificada pelo Tribunal, lavrando-se um auto de inspecção, tendo a entrega do imóvel ocorrido em 8/02/2023, na sequência da diligência efectuada pelo Tribunal.
13.Reproduz-se aqui o auto de inspecção judicial:
“Após deslocação do Tribunal ao local em causa nos autos e aberta a diligência, a Mm.ª Juiz, acompanhada dos presentes, procedeu a uma inspeção sumária ao mesmo, tendo começado por tentar abrir o portão existente na frente e à direita da casa com a chave que se encontrava na posse do testamenteiro, não tendo sido possível tal abertura.
No portão existente na frente da casa, à esquerda, que permitia a entrada no logradouro, existia um cadeado para o qual não havia chave.
Tendo ambas as partes admitido que se podia entrar para o imóvel através de um terreno existente nas traseiras, deslocamo-nos a esse local, nele existindo duas parcelas de terreno, cada uma com o seu portão, para os quais tinha chave de acesso a A..
A A. facultou o acesso pelo primeiro portão, mas deste não foi possível aceder à casa em discussão nestes autos.
Facultou depois o acesso pelo segundo portão e nessa parcela de terreno existia um portão de acesso ao logradouro do imóvel em discussão nestes autos.
Neste portão existiam dois cadeados, tendo sido possível retirar um deles. Quanto ao outro, apenas com o auxílio do morador do rés-do-chão, o aqui R. BB, foi possível a sua retirada.
Neste logradouro encontrava-se um cão.
Deste logradouro, logrou o Tribunal entrar no imóvel, pela cozinha existente no rés-do-chão, e desta para as outras divisões da casa que permitiam o acesso ao primeiro andar.
A casa estava imunda, com roupa e lixo espalhados pelas divisões e alguns móveis.
Da parte interior da casa foi possível aceder ao local onde se encontrava o primeiro portão pelo qual foi tentada a primeira entrada no imóvel, tendo-se mais uma vez verificado que não era possível abri-lo com a chave existente.
Neste momento, a Mmª Juiz propôs às partes que, em 5 dias, o legal representante da R. indicasse dia e hora em que procederia à remoção dos bens pertencentes à Herança que se encontrassem dentro do imóvel, devendo indicar o tempo necessário para o efeito, assumindo a A. a responsabilidade de, nessa data, franquear o acesso ao imóvel através daquele primeiro portão, substituindo ou arranjando para o efeito a fechadura nele existente.
Esta proposta foi aceite pelas partes.
Finda a inspeção ao local e não tendo sido requerida qualquer outra diligência, a Mm.ª Juiz determinou o regresso ao Tribunal, aguardando os autos a data designada para realização da presente audiência final, o que veio a acontecer, sensivelmente, pelas 10,35 horas.”
14. No dia 13.02. 2023 a Ré veio indicar o dia 18.02.2023 para a retirada do recheio- móveis da herança que se encontravam a ocupar o imóvel reivindicado.
15.Os bens móveis pertencentes à herança foram retirados no dia 18.02.2023 conforme requerimento da própria Ré apresentado a 20.02.2023.
16.Oportunamente realizou-se audiência de julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, condenou a R. Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por óbito de CC a pagar à A. AA a quantia de 250,00 euros por mês a título de indemnização pela não entrega do 1º andar do imóvel referido no ponto 1 da matéria de facto provada, no período de Março de 2022 a 18 de Fevereiro de 2023”, sendo, em relação a este mês, proporcional aos dias referidos e, portanto, de 160,71 euros, num total de 2.910,71 euros (dois mil novecentos e dez euros e setenta e um cêntimos).
17.Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação cujas conclusões aqui se reproduzem:
Tendo a sentença dado já provados os factos melhor descritos nos pontos de 1 a 9 desta, somos a considerar pela falta de prova dos factos dados como provados em sede de audiência, bem como da falta de correspondência da argumentação a que recorre a sentença.
É demais evidente que, perante os factos e a matéria provatória, se pode concluir que ao Recorrente não poderão ser imputados os factos apresentados pela sentença que se se recorre, desde logo, porque em nenhum momento essa tese encontra fundamento legal e demais para o efeito, senão vejamos:
1.Focou-se a sentença ora recorrida no facto de a casa peticionada pela Recorrida não lhe ter sido entregue pela Recorrente.
2. Numa fase inicial, solicitou a Recorrente prazo razoável para o efeito, inclusive por analogia ao previsto para a caducidade do arrendamento, cfr. Artigo 1053.º do Código Civil.
3. Ainda no decurso do período de seis meses, a Recorrida propôs a presente ação.
4. Não obstante, em fevereiro de 2023, quando perfaziam os 6 meses mínimos exigíveis para “arrumar” 96 anos de vida naquela casa, a Recorrida toma a iniciativa de mudar as fechaduras.
5. Esta ação resulta no ato de vedar o acesso à casa a qualquer terceiro, exercendo o poder sobre o imóvel.
6. Aliás, conforme visto in loco pelo Tribunal, o acesso foi apenas possível porque a Recorrida cedeu as suas chaves, chaves das fechaduras que havia mudado.
7. E mudou, efetivamente e conforme declarado pelas diversas testemunhas, as fechaduras das únicas entradas disponíveis aos Testamenteiro em representação da Recorrente.
8. Estes factos, ou seja, desde fevereiro de 2022, configuram uma real situação de posse sobre o imóvel, pois apenas a Recorrida poderia a ele aceder.
9. No mesmo mês, peticiona a Recorrida uma indemnização mensal a iniciar em março desse ano (2022) pelos danos da privação do uso do imóvel.
10. Porém, recorde-se, apenas ela tinha acesso e posse sobre o imóvel.
11. Na verdade, o que estava em causa era tão só e apenas a remoção de bens móveis pertencentes à herança e, jamais, a entrega do imóvel, o que se inferiu do histórico processual.
12. Mal ponderou o Tribunal a responsabilidade civil no caso, porquanto não existe qualquer facto ilícito praticado pela Recorrente que dê aso à privação do pretenso arrendamento – reitera-se, era a Recorrida que mantinha a posse sobre o imóvel e sobre ele poderia ter praticado todos os atos que assim considerasse.
13. Há um claro erro relativamente à interpretação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, e uma errada ponderação do resultado da inspeção judicial ao local.
14. O entendimento relativamente à posse do imóvel pela Recorrida materializa o previsto no artigo 1251.º do Código Civil, configurando um real caso de posse sobre um bem imóvel.
15. Não se pode, por outro lado, entregar e ser condenado a fazê-lo sobre algo que não se possui – contrariamente ao que sucedeu na presente ação.
16. Acresce que, se não se possuiu não se pode inibir o uso pelo proprietário e real possuidor – no caso, a Recorrida – pelo que não há qualquer privação de lucro do arrendamento.
17. Mas mais, não se conforma a Recorrente pela fórmula inédita de ponderação e aplicação do artigo 483.º do Código Civil.
18. Não foram demonstrados nem ponderados os pressupostos da responsabilidade civil que daria aso à pretensa condenação no montante exigido.
19. Não se conforma a Recorrente com a ponderação da prova produzida, e mais ainda com a incoerência e critério, ou ausência dele, da argumentação tida. Vejamos,
20.Da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, olvidou o Tribunal de considerar o único local por onde o Testamenteiro, representante da Recorrente, tinha acesso à casa, conforme os depoimentos prestados assim o atestam e confirmam.
a. A Testemunha EE, nas suas declarações, descreveu exatamente por onde entrou na casa ao minuto 3, “Da segunda vez entramos na casa toda, aí entramos pelo outro lado da casa, pelo lado da junta (…) porque segundo aquilo que eu sei era por onde o DD tinha as chaves (…)”, sempre se diga que, da primeira, quando o Sr. CC lá vivia, chegou a entrar pela frente, pela Rua ..., e disse ainda “Da outra vez quando fomos e entramos na casa toda ele já estava no hospital (…)”. Afirmou ainda, ao minuto 5.34, “eu via-os algumas vezes ao dia, porque eles, eles saiam muitas vezes pelo tal portão que se vê da Junta porque o portão batia, chamava-me atenção e eu olhava (…).
b. FF, nas declarações prestadas enquanto testemunha, ao minuto 7, diz-nos que “fui lá uma vez com o Dr. DD (…) já tinha falecido (…) um sábado, sei que foi um sábado” Entrei por trás, pelo quintal, e entrei pela cozinha (…)”. Questionado ainda para clarificar, disse “pela antiga junta”.
c. GG, nas suas declarações ao minuto 7.45, referindo-se ao Sr. CC que “Ele saía pelo, por um portão grande pelo terreno na Rua, acho que é 25 de abril, que vai dar à sede e à antiga Junta (…) Ele saía quase sempre por ali. (…) Ele saía quase sempre por ali.”
d. O Padre HH nas declarações enquanto testemunha afirmou ter visitado a casa do Sr. CC, e em resposta à questão colocada pela magistrada sobre o sítio de acesso à casa, respondeu ao minuto 4 “bom, nós o acesso à casa foi feito por um terreno contíguo, na parte de trás, (…) pela antiga sede da Junta de Freguesia, onde há um portão, entrando no campo ia dar à parte de trás da casa (…)”.
21. Dos depoimentos produzidos em sede de audiência de julgamento, resulta, claramente, que o Testamenteiro sempre entrou pelo portão do quintal da casa, em frente à sede da Junta de Freguesia.
22. E resultou ainda que, o próprio dono da casa, quando vivo, por lá fazia a serventia, com a única diferença de que quando estava em casa atendia as visitas pela Rua ..., a partir do portão da frente.
23. E olvidou também, ignorando por completo, o porquê de o Testamenteiro deixar de ter acesso à casa, ora, recorde-se o depoimento da testemunha II, filho da Recorrida, a partir do minuto 13 e 50 segundos:
a. Questionado pelo Mandatário da progenitora: “Vocês depois foram lá (…) fazer alguma coisa aos portões…” ao que perentória e de forma bastante assertiva respondeu;
b. “Fomos! (…) Há um prédio que é as ..., que é um prédio contíguo, é um terreno contíguo (…) que nós tivemos que ir mudar as fechaduras porque o vizinho se queixou que estava tudo cheio de silvas quer nesse terreno quer no quintal da casa (…) portanto, mudamos as fechaduras dos dois portões. Em fevereiro de 2022, foi o Dr. JJ, fui eu e foi o serralheiro. E a minha mãe também esteve lá e também foi embora, teve lá um bocadinho e depois foi embora. (…) Ao pé da Junta de Freguesia, tem dois portões verdes. (…)”.
c. Afirma também o mencionado II: “Ficamos com acesso ao quintal da casa.”. Que, sempre se diga, é parte integrante do imóvel.
d. No seguimento, questiona o mandatário da A.: “e do quintal da casa não tinham acesso ao interior da casa?”.
e. Responde a testemunha II: “Não, não tínhamos. “. f. E questiona ainda o mandatário “Não tinham porquê?
g. E com toda a verdade que o Tribunal exige, responde o filho da Autora: “Não tínhamos porque colocamos lá um portão. No dia em que fomos mudar as fechaduras colocamos um portão entre o pátio e o quintal. E fechamos também o acesso que dá do terreno das ... que dá acesso ao pátio, com um aloquete.”.
24.Acresce que, não restavam alternativas ao Testamenteiro, apesar do Tribunal entender existirem alternativas. Vejamos,
25. “Nada fez a R. perante o estado em que encontrou os portões do imóvel, (…) não tendo a A. como adivinhar que a fechadura do portão da frente do imóvel não estava acessível.”, dita a Mmª. Juiz na sentença, revelando ignorar a prova produzida.
26.O mencionado portão da frente do imóvel era o do lado direito que dava acesso apenas a umas escadas exteriores, ao topo das quais existe uma porta de acesso à casa, ao hall.
27. O referido portão do lado direito encontrava-se fechado há meses, provavelmente desde quando foram trocadas as restantes fechaduras, porém:
a. A testemunha EE, ao minuto 5, afirmou que o portão estava sempre aberto, “Tinha ideia que aquilo nem tinha trinque, estava encostado”.
28.Mas ignorou também o Tribunal que o serralheiro contratado pela Recorrida, quando se deslocou ao local para proceder à abertura deste portão do lado direito da casa, não conseguiu aceder diretamente ao imóvel:
a. Afirmou o próprio serralheiro, Sr. BB, ao minuto 2.54, que “na porta lá em cima não fiz nada, ela estava aberta (…) tinha uma chave por dentro (…) eu não fiz nada, peguei na chave, e vim cá fora ver se ela fechava por fora, deixei lá a chave e vim-me embora (…)”.
b. Tinha uma chave por dentro, foi por dentro, pegou na chave, e experimentou a mesma do lado de fora – não conseguiu o próprio serralheiro abrir aquela porta pelo lado de fora, mesmo depois de ter reparado o portão do lado direito da casa.
29.Ora, se o Testamenteiro, que sempre na ausência do Sr. CC, quando se deslocou ao imóvel, entrou pelo portão do quintal, na Rua ..., viu mudadas as fechaduras dos portões e, além disso, não conseguia aceder ao imóvel pela Rua ..., nunca poderia cumprir as suas obrigações, nem nunca poderia entregar o que quer que fosse a quem já possuía.
30.Mas de tudo isto o Tribunal tomou conhecimento no local:
a. “(…) a Mmª. Juiz, acompanhada dos presentes, procedeu a uma inspeção sumária ao mesmo, tendo começado por tentar abrir o portão existente na frente e à direita da casa com a chave que se encontrava na posse do testamenteiro, não tendo sido possível a abertura.”
b. “No portão existente na frente da casa, à esquerda, que permitia a entrada no logradouro, existia um cadeado para o qual não havia chave.”
c. “Tendo ambas as partes admitido que se podia entrar no imóvel através de um terreno existente nas traseiras, deslocamo-nos a esse local, nele existindo duas parcelas de terreno, cada uma com o seu portão, para os quais tinha chave de acesso a A.”.
d. “A A. facultou o acesso pelo primeiro portão, mas deste não foi possível aceder à casa em discussão nestes autos.”
e. “Facultou depois o acesso pelo segundo portão e nessa parcela de terreno existia um portão de acesso ao logradouro do imóvel em discussão nestes autos.”
f. E prossegue: “Deste logradouro, logrou o Tribunal entrar no imóvel, pela cozinha existente no rés-do-chão, e desta para as outras divisões da casa que permitiam o acesso ao primeiro andar.”.
g. E esclarece ainda o auto de inspeção judicial ao local: “Da parte interior da casa foi possível aceder ao local onde se encontrava o primeiro portão pelo qual foi tentada a primeira entrada no imóvel, tendo-se mais uma vez verificado que não era possível abri-lo com a chave existente” – o Tribunal acedeu ao já mencionado portão da direita, porém, acedeu a este pelo interior da casa e não o contrário, isto porque, a 31. O Tribunal tomou conhecimento que apenas com o acesso facultado pela Recorrida foi possível entrar no imóvel.
32. Atente-se que o segundo portão por onde foi efetiva a entrada, da Rua ..., que dá acesso ao campo... e daí acesso ao pátio, não é parte do imóvel, mas sim contíguo -porém, as fechaduras foram mudadas, conforme confessado.
33. O Testamenteiro fazia o acesso pelo quintal da casa, paralelo ao campo..., onde a Recorrida além de ter mudado as fechaduras colocou um portão.
34.E apenas graças à boa vontade da Recorrida em franquear o acesso, foi possibilitado ao Tribunal aceder ao imóvel.
35. Inclusive para a remoção dos bens móveis, em data posterior, na qual foi usada a chave cedida pela autora.
E qual a relevância destes factos para a causa?
36.Não pode o Tribunal condenar alguém à entrega de um bem (imóvel) quando (no caso, a Recorrente) não tem a posse sobre o mesmo.
37.A posse revela-se, apesar de melhor explanado nas alegações, no poder jurídico de algo fazer sobre a coisa, e no caso esse poder estava, pelo menos desde fevereiro de 2022, sobre a Recorrida, tendo sido valorizada pela Mmª. Juiz como já de seguida se explica. Mas mais ainda,
38.É na sentença agora recorrida sancionada a aqui Recorrente, em diversos trechos, pelo facto de possuir coisa alheia e de a não entregar, tendo, aliás, sido dito que havia cessado a sua boa fé a partir do momento em que foi citada para a presente ação.
a. Depreende a Mmª. Juiz que a Recorrente. não tinha motivos para a não entrega imediata do imóvel “Certo é que não se demonstraram os factos alegados pela R. para a não entrega: que a A. se recusou a recebe-lo ou que dele já se teria apossado”.
b. Ignorou o Tribunal a manifestação de vontade da Recorrente em proceder à entrega do imóvel.
c. Ignorou, aquando da contestação, de que facto existia bastante lixo no local e que pretendia a aqui Recorrente proceder a essa entrega, porém, era necessário aferir, em conjunto com os demais herdeiros, dos bens de valor económico relevante que poderiam lá existir.
d. A dez de outubro de 2021, comunicou o Testamenteiro ao mandatário da A.: “Tendo sido notificado judicialmente para proceder à entrega da chave do imóvel por vós identificado sou pelo presente a informar de que, na qualidade de testamenteiro, irei proceder a breve trecho à entrega da chave do imóvel, o que não aconteceu até ao momento porque, como bem sabe, nele se acha depositado o recheio do saudoso CC o qual, nos termos do testamento referido por V ex. carece de ser entregue a quem de direito, sendo que, ainda não decorreu tão pouco o prazo máximo para participação de imposto de selo.
Aliás apenas por esse facto não foi possível até ao momento cumprir, o que se estima que ocorrerá nos próximos dias permitindo pois que se proceda à entrega das chaves nos moldes em que nos achamos notificados.” – conforme documento juntos aos autos a fls..
e. Não interpretou com realidade a prova, o Tribunal, quando a testemunha Padre HH, ao minuto 3, das suas declarações, afirmou que se deslocou à casa “Para ver se tinha pertences que pelo valor fossem de ser recolhidos para a herança, penso que tinha que ver com isso.” Situou no tempo a questão “(…) por acaso quando recebi a notificação, imaginando que tivesse que ver com esta questão fui tentar pesquisar na agenda do telefone quando foi mas entretanto perdi esses dados, eu tenho ideia que foi no outono de 2021, em novembro ou outubro, recordo-me que foi um sábado de manhã (…)”.
Contudo,
39.Não foi dado ao Testamenteiro um prazo razoável para a entrega do imóvel.
40.Apesar da lei não regular especificamente esta matéria, com recurso à analogia é possível encontrar soluções legais de tempos, prazos, que se considerem razoáveis, veja-se o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no processo 4262/07.4TBVCT.G1, no qual é clara e taxativamente demonstrada a fórmula legal nos casos concretos:
a. “E, não se tendo transmitido o contrato de arrendamento por morte do primitivo inquilino, e não havendo convenção escrita das partes em contrário, por força do disposto na alínea d) do art.º 1051.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 6/2006 de 27/02, o litigado contrato de arrendamento para habitação caducou, em 15/05/2007, data do falecimento do inquilino, por a caducidade constituir causa legal de extinção imediata do contrato de arrendamento e operar ipso jure ou ope legis e, por conseguinte, extinguir o contrato de arrendamento sem necessidade de qualquer declaração das partes ou do tribunal nesse sentido.
Estatui o art.º 1053.º, na redacção da Lei n.º 6/2006 de 27/02, que, em qualquer dos casos de caducidade previstos nas alíneas b) e seguintes do art.º 1051.º, a restituição do prédio, tratando-se de arrendamento, só pode ser exigida passados seis meses sobre a verificação do facto que determina a caducidade.”.
41. Pese embora não tenha a Autora direito à renda, tal como no contrato de arrendamento, sempre se diga que adquiriu gratuitamente e sem qualquer encargo uma casa. Em abono do princípio da razoabilidade, e ao abrigo do instituto da analogia, era aceitável o período mínimo de 6 meses (que terminariam apenas em fevereiro de 2022) para a entrega do imóvel.
42.Não obstante, tão pouco respeitou o tempo de participação de imposto de selo e, antes mesmo do término do prazo, propôs a Autora a presente ação.
Apesar do exposto, e conforme já melhor aclarado supra,
43.Não pode o Tribunal regozijar-se na sentença dizendo “só o entregou na sequência de diligência que este Tribunal fez” – esta afirmação é, por completo, impercetível e sem qualquer enquadramento fáctico ou jurídico.
44.A Recorrida, desde fevereiro de 2022, detinha a posse do imóvel, facto por si confessado na pessoa do seu filho, II, e devidamente atestado pelo Tribunal aquando da deslocação ao imóvel para inspeção judicial realizada em fevereiro de 2023 e melhor descrito supra.
45.Sem resposta fica a ciência jurídica para perceber como é que se pode entregar algo que não se possui.
46.Prevê o artigo 1251.º do Código Civil que “Posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.” - possuir as chaves e acesso exclusivo ao imóvel não é indício suficiente da existência desta. Mais se diga,
47.O problema da entrega do imóvel é mera ficção jurídica, uma vez que o mesmo estava já entregue, a única questão existente era a remoção dos bens móveis que pertenciam à herança.
48. Quanto a estes – era de todo impossível o Testamenteiro em representação da Recorrente retirá-los – por ação da Recorrida.
49.Porém, era possível à Recorrida retirá-los, mesmo que imputando custos à Herança e usufruir do seu imóvel.
50.Foi, contudo, possível retirar os bens porque foi cedido pela Recorrida uma chave de acesso ao imóvel.
Mas há mais,
51.Sem qualquer ilicitude, ponderação dos danos, nexo de causalidade, fixa o Tribunal uma indemnização devida pela Recorrente à Recorrida.
52.Não se aceita nem se concebe que possa uma decisão judicial alicerçar a convicção em juízes de prognose póstuma infundados: “não restam dúvidas que a A., pessoa conhecida na freguesia com elevado património, pretenda arrendá-lo – o valor alegado é tão baixo que resultaria sempre demonstrado, com base nas regras da experiência comum” – pode ler-se na sentença.
53.Restam hoje muitas dúvidas à aqui Recorrente, na medida em que não se entende que alguém “com elevado património” volvidos cerca de 8 meses sob a pretensa entrega do imóvel, e mais 20 meses sob a efetiva tomada de posse sobre o imóvel, o mesmo ainda hoje não o tenha arrendado, nem se indiciam sinais dessa pretensa intenção.
54.Aliás, não pode o Tribunal, por mero entendimento da Mmª. Juiz, afirmar que 4 meses era o tempo suficiente para a realização de obras – de acordo com o que foi alegado pela Recorrida no pedido indemnizatório.
55.Não existiu prova pericial ao estado do imóvel nem sequer se pode concluir pelo estado do mesmo apenas por mera apreciação de homem médio, e, nesse sentido, condenar alguém ao pagamento de uma indemnização.
a. Serviu-se a Mmª. Juiz apenas das declarações do do Sr. KK, testemunha indicada pela Recorrida, que conta com grande historial na arte da construção civil, dedicando-se quase exclusivamente a intervir no “elevado património” da Recorrida, conforme assenta o Tribunal.
b. Além de que, recorreu o Tribunal para o fundamento da sua convicção, no depoimento do Sr. LL que, a título de curiosidade, tem em si um grande historial político na freguesia de onde as partes são naturais e residentes, dedicando-se à oposição ao exercício do cargo político ocupado pelo aqui Testamenteiro.
c. E foram estes os dois depoimentos “de quem foi contratado pela A. para realizar as obras no imóvel” (conforme se lê na sentença) suficientes para o Tribunal alicerçar a sua opinião e não corporizar outros argumentos.
56.Apesar da Recorrida ter já posse sobre o imóvel – adquirida em fevereiro de 2022 – foi-lhe concedido um quantum indemnizatório de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) mensais.
57.A questão da indemnização nos presentes autos, e a responsabilidade civil pretensamente inerente, não verifica nenhum dos pressupostos do artigo 483.º do Código Civil.
58.O Testamenteiro não inibiu ninguém do uso da casa, até porque esta era já possuída desde fevereiro de 2022 pela Recorrida, sendo o pedido de indemnização a partir de marco de 2022.
59.Se o interesse da Recorrida fosse efetivamente arrendar o imóvel, tê-lo-ia feito, bastando a entrega dos bens móveis ou a sua remoção.
60.Não existe ilicitude, não existe dolo, não existe qualquer nexo de causalidade para imputação à Recorrente dos potenciais danos que nunca se verificaram.
61.Tudo se resumiu às meras opções da Recorrida, tal como hoje em dia.
62.Concluiu o Tribunal, sem mais, que, em suma, a Recorrente agiu de forma ilícita e com dolo, gerando assim danos, porque não entregou um imóvel que estava na posse da Recorrida. Nada mais desfasado da verdade dos factos.
Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, deve ser admitido o presente recurso e julgado o mesmo procedente, por provado, revogando-se, em conformidade, a sentença aqui sindicada, julgando assim improcedente o pedido formulado pela Recorrida.
18.Foram apresentadas contra-alegações, pelas quais, entre o mais, a autora-requerida entende que o recurso sobre a matéria de facto não observa os requisitos legais a que alude o art 640º do CPC.
19.Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
II.DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
As questões colocadas no recurso são as seguintes:
.Apreciar e decidir se a impugnação da decisão de facto observa os requisitos legais.
.Na hipótese afirmativa, apreciar e decidir o recurso sobre a matéria de facto.
.Do Mérito da sentença.
III.FUNDAMENTAÇÃO.
3.1. Na sentença da 1ª instância consta o seguinte enunciado de factos provados e não provados:
Fundamentação de facto:
Estava já provado que:
1 - Por escritura pública de doação, de 19/10/2011, CC e MM declararam doar à A., que declarou aceitar tal doação, do prédio descrito na CRP de Vila do Conde sob o nº..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o art. ... e composto por casa de dois andares e quintal.
2 - Tal doação foi efectuada com reserva de usufruto em benefício dos doadores. 3 - MM faleceu em 02/12/2015.
4 - CC faleceu em 09/08/2021.
5 - Está registada a favor da A. por doação de CC e MM, a aquisição do prédio descrito na CRP de Vila do Conde sob o nº..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o art. ... e composto por casa de dois andares e quintal.
6 - CC outorgou testamento em 30/03/2020, tendo nomeado como testamenteiro DD, “a quem compete vigiar o cumprimento deste testamento, executa-lo na sua totalidade, cabendo-lhe ainda as demais atribuições descritas no art. 2326º do Código Civil”.
7 - Os doadores residiam no 1º andar do referido imóvel.
8 - A A. requereu a notificação judicial avulsa do testamenteiro da R. para remover o recheio da casa até ao dia 10/10/2021, ficando advertido que, decorrida essa data, procederia à mudança das fechaduras do prédio e procederia à remoção do recheio da casa que porventura ainda lá estivesse, cujas despesas seriam suportadas pela referida herança.
9 - O testamenteiro foi notificado em 20/09/2021.
Realizada a audiência, resultou ainda provado que:
10 - O imóvel poderia ser arrendado com facilidade, após a realização de obras, por renda mensal nunca inferior a 250,00 euros.
11 - O facto de o A. não ter a disponibilidade do imóvel, impediu-a de realizar as obras e de colocar o imóvel no mercado de arrendamento, destinando-o a esse fim.
12 - Para a realização das obras não seriam necessários mais do que 4 meses.
13 - A partir de Fevereiro de 2022, a A. colocou um cadeado no portão que permitia o acesso ao imóvel do 1º andar pelo logradouro existente nas traseiras do imóvel.
14 - Em 08/02/2023, não foi possível entrar no imóvel referido através dos dois portões nele existentes.
15 - A fechadura do portão que se situava à direita, na frente da casa, encontrava-se avariada e a chave da mesma, na posse da R., não permitiu abrir o portão.
16 - O portão que se situava à esquerda, na frente da casa, tinha um cadeado para o qual ambas as partes declararam não ter chave.
17 - O imóvel encontrava-se cheio de lixo e tinha alguns móveis. **
Não se provou que:
1 - A. se recusou a receber da R. Herança o 1º andar do imóvel a partir de Outubro de 2021.
2 - A A. tivesse sido vista a entrar nesse 1º andar.
3.2. Da Impugnação da decisão sobre a questão de facto.
3.2.1.Do cumprimento dos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão sobre a questão de facto:
O artº 640º regula especialmente os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de julgar provados ou não provados certos pontos da matéria de facto.
Podem estes assim esquematizar-se:
-especificação ou individualização concreta dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, pois não são admissíveis recursos genéricos de tal matéria;
-especificação, de entre os constantes do processo, nele registados ou gravados em áudio ou vídeo, dos concretos meios de prova que, na perspectiva dele, teriam imposto decisão diversa de cada um de tais pontos e fundamentam a sua alteração;
-no caso de serem invocados meios probatórios que tenham sido gravados, indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso;
-isto sem prejuízo da possibilidade de o recorrente proceder à transcrição (fiel) dos excertos que considere relevantes;
-especificação inequívoca (que pode ser feita apenas nas alegações, conforme AUF proferido no dia 17.10.2023 no Processo nº 8344/17.6T8STB.E1.A.S1 -Recurso para Uniformização de Jurisprudência) da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida.
Tais requisitos devem ser observados pontual e rigorosamente, por forma a evidenciar os pretensos erros, respectivos fundamentos e a possibilitar a apreciação destes e eventual correcção daqueles (sempre tendo presentes as contingências decorrentes dos princípios da oralidade e da imediação e da liberdade de apreciação da prova e de formação da convicção do julgador de 1ª instância.
Por tudo isso é que a violação daqueles apontados ónus, conduz, nos termos expressos da norma, à rejeição imediata do recurso na parte afectada, não havendo sequer lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento da falha.
E conforme refere Abrantes Geraldes[1]: “as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, próprio de um instrumento processual que visa pôr em causa o julgamento da matéria de facto efectuado por outro tribunal em circunstâncias que não podem ser inteiramente reproduzidas na 2ª instância. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Irrelevando, pois, uma simples manifestação de discordância ou de inconformismo em relação à decisão proferida.
Assim, a alegação e as conclusões devem identificar e localizar com evidência, clareza e de forma sintética, o erro de julgamento em que o tribunal recorrido laborou, ou a invalidade que cometeu – justificativos da pretensão recursiva e da visada modificação da decisão – ao apreciar livremente as provas e ao decidir segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (artº 607º, nº 5).
E, acolhendo o entendimento do Ac. desta Relação de 12-05-2014, relatado por Manuel Domingos Fernandes e do Ac da Relação de Guimarães de 18.12.21017, relatado por Jose Cardoso Amaral, também se nos afigura, no que concerne à impugnação da matéria de facto, que o recorrente deve apresentar um discurso argumentativo onde explicite as concretas razões dos vícios que aponta a esse segmento da sentença recorrida, elencando aí os concretos meios de prova que suportam a sua versão dos factos oposta àquela do tribunal recorrido e fazendo uma análise critica dos mesmos por forma a permitir que o Tribunal da Relação seja colocado perante uma questão a resolver, avaliar a razão do inconformismo manifestado e o mérito da alteração pretendida pelo recorrente e, por fim, decidir sobre esta
No que particularmente respeita à indicação exacta das passagens da gravação, aceitando-se que basta fazê-la no corpo das alegações, considera-se, porém, que não satisfaz minimamente tal exigência a indicação apenas do seu início, tal como a do início e do fim de todo o depoimento (por referência horária), nem a substitui a transcrição respectiva, maxime quando, como já tem sucedido, feita em simples notas de rodapé.
De resto, tal indicação deve ser conexionada com o ponto de facto impugnado visado e com o erro detectado, de forma a impulsionar e a facilitar não só o contraditório pela parte contrária como a reapreciação dos pretensos vícios e subsequente decisão pelo tribunal.
3.2.2.Descendo ao caso dos autos, relativamente à individualização concreta dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, pois não são admissíveis recursos genéricos de tal matéria, resulta que este declara que “ somos a considerar pela falta de prova dos factos dados como provados em sede de audiência”.
Quid Iuris?
A.Nesta parte, afigura-se-nos, que efectivamente, a Recorrente não delimitou nas suas conclusões, e com toda a clareza, o âmbito da sua impugnação, isto é, não afirmou, clara e assertivamente, nas conclusões de recurso, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente provados, pela necessária remissão para os factos obrigatoriamente a considerar para este efeito: os contidos na sentença recorrida no elenco dos factos provados (identificados por numeração árabe, e/ou os aí contidos no elenco dos factos não provados (identificados por numeração árabe).
Nunca chegou a afirmar, clara e assertivamente, nas suas alegações de recurso, que concretos pontos de facto consideraria incorrectamente provados, pela necessária remissão para os únicos factos obrigatoriamente a considerar para este efeito.
De resto, não autoriza, a lei que, em substituição deste concreto e claro ónus, a parte recorrente se limite, genérica e conclusivamente, a afirmar que “somos a considerar pela falta de prova dos factos dados como provados em sede de audiência”.
Com efeito, quando na lei se afirma que, «sob pena de rejeição», «deve o recorrente obrigatoriamente especificar (…) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados», reporta-se àqueles factos que, tendo sido fixados ou ignorados pelo Tribunal a quo, ficarão desse modo sob sindicância do Tribunal ad quem. Logo, e no que ora nos interessa, serão aqueles factos que tenham sido exarados na fundamentação de facto da sentença recorrida (e isto independentemente de não se terem logrado provar, por deverem então integrar o respectivo elenco de factos não demonstrados).
Considera-se, assim, que a recorrente não cumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art.º 640º, n.º 1, do CPC (conclusão distinta de saber se, a tê-lo feito, existiria fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo), desde logo porque não indicou nas suas alegações de recurso (corpo e conclusões) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente provados.

.De qualquer modo, ainda que se entendesse que a forma usada pela recorrente, traduzida em, passamos a citar” considerar pela falta de prova dos factos dados como provados em sede de audiência” seria suficiente para este Tribunal da Relação lograr identificar os concretos factos provados, facto é, que a recorrente, não deu satisfação aos ónus de especificação, de entre os constantes do processo, nele registados ou gravados em áudio ou vídeo, dos concretos meios de prova que, na perspectiva dela, teriam imposto decisão diversa de cada um de tais pontos e fundamentam a sua alteração.
Assim, relativamente aos meios de prova convocados, resulta que a recorrente nas alegações escreveu:
“13. Há um claro erro relativamente à interpretação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, e uma errada ponderação do resultado da inspeção judicial ao local.
14. O entendimento relativamente à posse do imóvel pela Recorrida materializa o previsto no artigo 1251.º do Código Civil, configurando um real caso de posse sobre um bem imóvel.
15. Não se pode, por outro lado, entregar e ser condenado a fazê-lo sobre algo que não se possui – contrariamente ao que sucedeu na presente ação.
16. Acresce que, se não se possuiu não se pode inibir o uso pelo proprietário e real possuidor – no caso, a Recorrida – pelo que não há qualquer privação de lucro do arrendamento.
17. Mas mais, não se conforma a Recorrente pela fórmula inédita de ponderação e aplicação do artigo 483.º do Código Civil.
18. Não foram demonstrados nem ponderados os pressupostos da responsabilidade civil que daria aso à pretensa condenação no montante exigido.
19. Não se conforma a Recorrente com a ponderação da prova produzida, e mais ainda com a incoerência e critério, ou ausência dele, da argumentação tida. Vejamos,
20.Da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, olvidou o Tribunal de considerar o único local por onde o Testamenteiro, representante da Recorrente, tinha acesso à casa, conforme os depoimentos prestados assim o atestam e confirmam.
a. A Testemunha EE, nas suas declarações, descreveu exatamente por onde entrou na casa ao minuto 3, “Da segunda vez entramos na casa toda, aí entramos pelo outro lado da casa, pelo lado da junta (…) porque segundo aquilo que eu sei era por onde o DD tinha as chaves (…)”, sempre se diga que, da primeira, quando o Sr. CC lá vivia, chegou a entrar pela frente, pela Rua ..., e disse ainda “Da outra vez quando fomos e entramos na casa toda ele já estava no hospital (…)”. Afirmou ainda, ao minuto 5.34, “eu via-os algumas vezes ao dia, porque eles, eles saiam muitas vezes pelo tal portão que se vê da Junta porque o portão batia, chamava-me atenção e eu olhava (…).
b. FF, nas declarações prestadas enquanto testemunha, ao minuto 7, diz-nos que “fui lá uma vez com o Dr. DD (…) já tinha falecido (…) um sábado, sei que foi um sábado” Entrei por trás, pelo quintal, e entrei pela cozinha (…)”. Questionado ainda para clarificar, disse “pela antiga junta”.
c. GG, nas suas declarações ao minuto 7.45, referindo-se ao Sr. CC que “Ele saía pelo, por um portão grande pelo terreno na Rua, acho que é 25 de abril, que vai dar à sede e à antiga Junta (…) Ele saía quase sempre por ali. (…) Ele saía quase sempre por ali.”
d. O Padre HH nas declarações enquanto testemunha afirmou ter visitado a casa do Sr. CC, e em resposta à questão colocada pela magistrada sobre o sítio de acesso à casa, respondeu ao minuto 4 “bom, nós o acesso à casa foi feito por um terreno contíguo, na parte de trás, (…) pela antiga sede da Junta de Freguesia, onde há um portão, entrando no campo ia dar à parte de trás da casa (…)”.
21. Dos depoimentos produzidos em sede de audiência de julgamento, resulta, claramente, que o Testamenteiro sempre entrou pelo portão do quintal da casa, em frente à sede da Junta de Freguesia.
A recorrente escreveu ainda o seguinte.
22. E resultou ainda que, o próprio dono da casa, quando vivo, por lá fazia a serventia, com a única diferença de que quando estava em casa atendia as visitas pela Rua ..., a partir do portão da frente.
23. E olvidou também, ignorando por completo, o porquê de o Testamenteiro deixar de ter acesso à casa, ora, recorde-se o depoimento da testemunha II, filho da Recorrida, a partir do minuto 13 e 50 segundos:
a. Questionado pelo Mandatário da progenitora: “Vocês depois foram lá (…) fazer alguma coisa aos portões…” ao que perentória e de forma bastante assertiva respondeu;
b. “Fomos! (…) Há um prédio que é as ..., que é um prédio contíguo, é um terreno contíguo (…) que nós tivemos que ir mudar as fechaduras porque o vizinho se queixou que estava tudo cheio de silvas quer nesse terreno quer no quintal da casa (…) portanto, mudamos as fechaduras dos dois portões. Em fevereiro de 2022, foi o Dr. JJ, fui eu e foi o serralheiro. E a minha mãe também esteve lá e também foi embora, teve lá um bocadinho e depois foi embora. (…) Ao pé da Junta de Freguesia, tem dois portões verdes. (…)”.
c. Afirma também o mencionado II: “Ficamos com acesso ao quintal da casa.”. Que, sempre se diga, é parte integrante do imóvel.
d. No seguimento, questiona o mandatário da A.: “e do quintal da casa não tinham acesso ao interior da casa?”.
e. Responde a testemunha II: “Não, não tínhamos. “. f. E questiona ainda o mandatário “Não tinham porquê?
g. E com toda a verdade que o Tribunal exige, responde o filho da Autora: “Não tínhamos porque colocamos lá um portão. No dia em que fomos mudar as fechaduras colocamos um portão entre o pátio e o quintal. E fechamos também o acesso que dá do terreno das ... que dá acesso ao pátio, com um aloquete.”.
24.Acresce que, não restavam alternativas ao Testamenteiro, apesar do Tribunal entender existirem alternativas.
a. A testemunha EE, ao minuto 5, afirmou que o portão estava sempre aberto, “Tinha ideia que aquilo nem tinha trinque, estava encostado”. (…)
28.Mas ignorou também o Tribunal que o serralheiro contratado pela Recorrida, quando se deslocou ao local para proceder à abertura deste portão do lado direito da casa, não conseguiu aceder diretamente ao imóvel:
a. Afirmou o próprio serralheiro, Sr. BB, ao minuto 2.54, que “na porta lá em cima não fiz nada, ela estava aberta (…) tinha uma chave por dentro (…) eu não fiz nada, peguei na chave, e vim cá fora ver se ela fechava por fora, deixei lá a chave e vim-me embora (…)”.
b. Tinha uma chave por dentro, foi por dentro, pegou na chave, e experimentou a mesma do lado de fora – não conseguiu o próprio serralheiro abrir aquela porta pelo lado de fora, mesmo depois de ter reparado o portão do lado direito da casa.
29.Ora, se o Testamenteiro, que sempre na ausência do Sr. CC, quando se deslocou ao imóvel, entrou pelo portão do quintal, na Rua ..., viu mudadas as fechaduras dos portões e, além disso, não conseguia aceder ao imóvel pela Rua ..., nunca poderia cumprir as suas obrigações, nem nunca poderia entregar o que quer que fosse a quem já possuía.”
A recorrente também convocou a inspeção sumária ao local feita pelo tribunal a quo nos seguintes termos:
“30.Mas de tudo isto o Tribunal tomou conhecimento no local:
a. “(…) a Mmª. Juiz, acompanhada dos presentes, procedeu a uma inspeção sumária ao mesmo, tendo começado por tentar abrir o portão existente na frente e à direita da casa com a chave que se encontrava na posse do testamenteiro, não tendo sido possível a abertura.”
b. “No portão existente na frente da casa, à esquerda, que permitia a entrada no logradouro, existia um cadeado para o qual não havia chave.”
c. “Tendo ambas as partes admitido que se podia entrar no imóvel através de um terreno existente nas traseiras, deslocamo-nos a esse local, nele existindo duas parcelas de terreno, cada uma com o seu portão, para os quais tinha chave de acesso a A.”.
d. “A A. facultou o acesso pelo primeiro portão, mas deste não foi possível aceder à casa em discussão nestes autos.”
e. “Facultou depois o acesso pelo segundo portão e nessa parcela de terreno existia um portão de acesso ao logradouro do imóvel em discussão nestes autos.”
f. E prossegue: “Deste logradouro, logrou o Tribunal entrar no imóvel, pela cozinha existente no rés-do-chão, e desta para as outras divisões da casa que permitiam o acesso ao primeiro andar.”.
g. E esclarece ainda o auto de inspeção judicial ao local: “Da parte interior da casa foi possível aceder ao local onde se encontrava o primeiro portão pelo qual foi tentada a primeira entrada no imóvel, tendo-se mais uma vez verificado que não era possível abri-lo com a chave existente” – o Tribunal acedeu ao já mencionado portão da direita, porém, acedeu a este pelo interior da casa e não o contrário, isto porque, a 31. O Tribunal tomou conhecimento que apenas com o acesso facultado pela Recorrida foi possível entrar no imóvel.
32. Atente-se que o segundo portão por onde foi efetiva a entrada, da Rua ..., que dá acesso ao campo... e daí acesso ao pátio, não é parte do imóvel, mas sim contíguo -porém, as fechaduras foram mudadas, conforme confessado.
33. O Testamenteiro fazia o acesso pelo quintal da casa, paralelo ao campo..., onde a Recorrida além de ter mudado as fechaduras colocou um portão.
34.E apenas graças à boa vontade da Recorrida em franquear o acesso, foi possibilitado ao Tribunal aceder ao imóvel.
35. Inclusive para a remoção dos bens móveis, em data posterior, na qual foi usada a chave cedida pela autora.
E qual a relevância destes factos para a causa?
36.Não pode o Tribunal condenar alguém à entrega de um bem (imóvel) quando (no caso, a Recorrente) não tem a posse sobre o mesmo.”
Assim, a recorrente convoca segmentos dos depoimentos de testemunhas que identificou pela forma atras reproduzida e a inspeção judicial ao local, cujo auto foi por nós reproduzido no relatório introdutório:

Como resulta da peça recursória, no que particularmente respeita à indicação exacta das passagens da gravação, aceitando-se que basta fazê-la no corpo das alegações, considera-se, porém, que a recorrente não satisfaz minimamente tal exigência, porquanto essa indicação não está conexionada com o(s) concreto(s) ponto(s) de facto impugnados visados e com o erro detectado, de forma a impulsionar e a facilitar não só o contraditório pela parte contrária como a possibilitar a reapreciação dos pretensos vícios e subsequente decisão por este tribunal da Relação.
Como é sabido, a lei não autoriza, que, em substituição deste concreto e claro ónus, a parte recorrente se limite, genérica e conclusivamente, a afirmar que o Tribunal a quo deveria ter dado como provada determinada realidade, sem o imediato reporte da mesma à prévia alegação das partes nos respectivos articulados (quando omitida na sentença recorrida), ou à enunciação concreta da matéria de facto fixada (quando precisamente contida na sentença recorrida).
Ora, e salvo o devido respeito por opinião contrária, foi isto mesmo que a recorrente fez, isto é, em vez de reportar a sua eventual sindicância aos concretos factos enunciados na sentença recorrida, limitou-se a verter nas alegações e nas conclusões de recurso a sua própria interpretação dos meios de prova produzidos e por ela indicados, omitindo quer nas alegações, quer nas conclusões, qualquer reporte dessa interpretação aos concretos factos impugnados, os quais, como já referimos, não foram especificados, deixando totalmente omissas as razões pelas quais defende (subjectiva e conclusivamente) que ““somos a considerar pela falta de prova dos factos dados como provados em sede de audiência”.
Mais.
A recorrente não procedeu, quer nas alegações, quer nas conclusões, à indicação do(s) concretos juízo(s) probatório (s) que deveriam recair sobre cada um dos concretos factos vertidos na fundamentação de facto que pretende impugnar.
Recorda-se, a propósito, que «a impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão». Compreende-se, por isso, que se defenda que se «a recorrente identificou os pontos de facto que considera mal julgados, por referência aos quesitos da base instrutória, mas limitou-se a indicar os depoimentos prestados e os documentos que listou, sem fazer a referência indispensável àqueles pontos de facto, especificando que concretos meios de prova impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado», incumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC (Ac. do STJ, de 19.02.2015, Maria dos Prazeres Beleza, Processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1).
Aceita-se que assim seja, já que a «delimitação [do objecto do recurso] tem de ser concreta e específica e o recorrente tem de indicar, com clareza e precisão, os meios de prova em que fundamenta a sua impugnação, bem como as concretas razões de censura. Tal tem de ser especificado quanto a cada concreto facto. Não pode ser efetuado em termos latos, genéricos e em bloco». Por isso, e de novo, se a «recorrente (…) não especifica os meios probatórios que determinariam decisão diversa da tomada em Primeira Instância para cada um dos factos que pretende impugnar» incumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC (Ac. da RG, de 24.01.2019, Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha, Processo n.º 3113/17.6T8VCT.G1).
Ora, e salvo o devido respeito por opinião contrária, nada disto foi feito pela recorrente, quer nas alegações, quer nas conclusões.
Ora, não o tendo feito (isto é, não tendo cumprido este particular ónus de impugnação que a lei lhe impõe), não poderia agora a prova pessoal convocada em globo ser aqui reponderada [2]
Acresce que esta exigência, expressa e inequivocamente imposta por lei, também não redunda num ónus excessivo para o recorrente, que precisamente para o efeito dispõe de uma majoração de dez dias para interposição do seu recurso, face àquele outro em que não impugne a matéria de facto (art.º 638.º, n.º 1 e n.º 7, do CPC).
No tocante ao ónus de especificar: «Decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas» diremos o seguinte.
Concretizando uma vez mais, e mesmo que se entendesse que a recorrente teria, ainda que implícita ou tacitamente, indicado que pretendia sindicar determinados factos, certo é que também não indicou quer nas suas alegações de recurso, quer nas conclusões, a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as concretas questões de facto impugnadas, isto é: a concreta redacção da nova factualidade que pretenderia ver fixada, quer no elenco dos factos provados, quer simultaneamente no elenco dos factos não provados.
Por outras palavras, quando na lei se afirma que, «sob pena de rejeição», «deve o recorrente obrigatoriamente especificar (…) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas», exige-lhe que enuncie os factos que, no seu entender, terão resultado da produção de prova, com a concreta redacção/formulação que deverão ter.
Não autoriza, assim, a lei que, em substituição deste concreto e claro ónus, a parte recorrente se limite, genérica e abstractamente, a afirmar que o Tribunal ad quem deverá dar como provada determinada realidade, já que este esse controlo pressupõe a prévia indicação dos preciso termos da alteração alternativa pretendida.
Considera-se, assim, que a recorrente (AA) não cumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art.º 640.º, n.º 1, do CPC, desde logo porque não indicou nas suas alegações de recurso (corpo e conclusões) a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as questões de facto que pretenderia impugnar.

Ora, não tendo a Recorrente cumprido o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art.º 640.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC, e não cabendo aqui proferir qualquer despacho de aperfeiçoamento com vista a suprir a sua omissão, sempre teria o respectivo e eventual recurso sobre a matéria de facto que ser rejeitado, o que, se determina para todos os efeitos legais.
Mostra-se, por isso, definitivamente assente a matéria de facto que foi apurada pelo Tribunal a quo.

3.2.3 Alteração oficiosa da matéria de facto[3]
Para além dos factos dados por provados, afigura-se-nos que existe um conjunto de factos processuais que devem integrar o leque de factos provados, por serem essenciais à apreciação das questões suscitadas no recurso, sendo que tal facto resulta da tramitação ocorrida nos autos e é do conhecimento das partes, pelo que não se justifica o oferecimento do contraditório sobre a sua inclusão neste aresto.
Impõe-se, pois, quer ao abrigo da norma enunciada no n.º 1 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil, quer por força do disposto na al. c) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil, alterar a decisão de facto.
Em face o exposto, julgamos provado os seguintes factos que aditamos ao elenco dos factos provados:
18. No dia 13.02. 2023 a Ré veio indicar o dia 18.02.2023 para a retirada do recheio- móveis da herança que se encontravam a ocupar o imóvel reivindicado.
19.Os bens móveis pertencentes à herança foram retirados do imóvel pertencente à autora no dia 18.02.2023 conforme requerimento da própria Ré apresentado a 20.02.2023.
20. Na resposta enviada a 10.10.2021 pelas 21.44 horas pela Ré ao mandatário da A., no último dia do prazo concedido ao testamenteiro DD, pela notificação judicial avulsa referida na petição inicial que lhe foi efectuada para retirar o recheio e proceder à entrega das chaves do 1º andar do prédio doado, o mesmo testamenteiro enviou, via email, a comunicação cujo conteúdo, no essencial, se reproduz:
-» sou pelo presente a informar de que, na qualidade de testamenteiro, irei proceder a breve trecho à entrega da chave do imóvel, o que não aconteceu até ao momento porque, como bem sabe, nele se acha depositado o recheio do saudoso CC, o qual nos termos do testamento referido por V Ex. carece de ser entregue a quem de direito, sendo que, ainda não decorreu tão pouco o prazo máximo para participação do imposto de selo.
Aliás apenas por esse facto não foi possível até ao momento cumprir, o que se estima que ocorrerá nos próximos dias, permitindo pois que se proceda à entrega das chaves nos moldes em que nos achamos notificados».

3.3. Do Mérito da Decisão.
3.3.1.Permanecendo inalterada a decisão sobre a matéria de facto inserida na sentença recorrida importa agora atentar nas razões de discordância vertidas nas conclusões de recurso.
Assinalamos desde já que a autora-recorrida, como proprietária plena, tem o direito de gozar de modo exclusivo do uso, fruição e disposição do indicado 1º andar, livre e desocupado, desde a data da morte do CC. – art. 1305 do C.C.
Não tendo o testamenteiro cumprido com prudência e zelo as funções do seu cargo, quanto à remoção do recheio e entrega das chaves daquele 1º andar, viu-se a recorrida na necessidade de proceder à notificação judicial avulsa do mencionado testamenteiro, referida na petição inicial, e à propositura da presente acção contra a ré Herança pela falta de desocupação e entrega do citado 1ª andar.
Na contestação da acção, nunca a 2ª Ré Herança invocou que estivesse impedida de aceder ao 1ª andar, para poder retirar o recheio lá existente e entregar as chaves.
Em segundo lugar assinalamos desde já os seguintes factos:
1. Por saneador- sentença proferido em 30-1-2023, foi decidido julgar a acção parcialmente procedente;
- “reconhecendo que a autora é proprietária do prédio do prédio descrito na CRP de Vila do Conde sob o nº ..., freguesia ..., inscrito ma matriz sob o art. ... e composto por casa de dois andares e quintal,
- condenando a ré Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC a entregar–lhe o 1ª andar desse imóvel livre de pessoas e coisas”.
Lê-se nessa decisão judicial que “tal entrega deverá ser efectuada sem que nele permaneça o que quer que seja que fosse pertencente ao referido doador CC e que, seja lixo ou não, agora pertence aos seus herdeiros, incumbindo ao testamenteiro a sua administração”.
2.Desse saneador-sentença não foi interposto qualquer recurso, pelo que há muito tempo que se encontra transitado, sem possibilidade de nova discussão sobre a matéria nele contemplada.
3.Por despacho judicial proferido na mesma data de 30-1-2023, foi ainda decidido que : “os autos prosseguem apenas para que se aprecie se a autora se recusou a receber o imóvel da ré e se existe fundamento para a sua pretensão indemnizatória”.
Sendo então definido que o objecto do litígio ficava circunscrito a saber:
1- “Se existe fundamento para condenar a A, no pagamento das custas judiciais perante a procedência do pedido de reivindicação do 1ª andar “.
2- “Se a autora pode exigir da R. uma indemnização pelos prejuízos causados com a não entrega do imóvel a partir de Março de 2022”
Naquele mesmo despacho de 30-1-2023, foi ainda declarado que os temas da prova eram apenas os seguintes:
“1 – Se a autora se recusou a receber da ré Herança o 1º andar do imóvel a partir de Outubro de 2021.
2 – Se a A. já foi vista a entrar nesse 1ª andar”
3 – Qual o valor locativo desse 1º andar.
4 – Se a não entrega do 1ª andar impede a A. de tirar qualquer rendimento daquela parte do imóvel, destinando-o ao arrendamento”.
Mais se assinala os seguintes factos que estão referidos no relatório introdutório:
5.Foi só no decurso da diligência da audiência prévia efectuada no mesmo dia 30 de Janeiro de 2023, depois de tomar conhecimento do citado saneador-sentença, que a representante da ré Herança “declarou não poder aceder ao imóvel sem que a autora permita tal acesso”
Todavia, tendo sido essa factualidade omitida no articulado da contestação apresentada no dia 8.02.2022, se os factos que suportavam essa alegação fossem anteriores a essa data, e não são, sempre estaria vedada à ré-recorrente, alegar naquela data essa factualidade por força do princípio da preclusão.
No processo civil português, o réu tem o ónus de alegar na contestação toda a defesa que queira deduzir contra o pedido formulado pelo autor, conforme resulta do artigo 573.º, n.º 1, do Código Civil.
A correlatividade entre o ónus de concentração e a preclusão significa que, sempre que seja imposto um ónus de concentração, se verifica a preclusão de um facto não alegado, mas também exprime que a preclusão só pode ocorrer se e quando houver um ónus de concentração.
Normalmente, a preclusão resulta da omissão da prática de um ato no momento legal ou judicialmente fixado, ou seja, a preclusão é temporal.
Equacionáveis são também as situações em que a preclusão resulta da não realização do ato no processo adequado, ainda que respeitando o prazo para a sua prática. Exemplo desta preclusão espacial, em matéria de efeitos da citação, o artigo 564.º, alínea c), do CPC determina que a citação do réu inibe esta parte de propor uma ação destinada à apreciação da questão jurídica colocada pelo autor.
Ora, como explica Miguel Teixeira de Sousa, «A preclusão intraprocessual torna-se uma preclusão extraprocessual quando o que não foi praticado num processo não pode ser realizado num outro processo. Importa salientar um aspecto essencial: a preclusão intraprocessual e a preclusão extraprocessual não são duas modalidades alternativas da preclusão (no sentido de que a preclusão é intraprocessual ou extraprocessual), mas duas manifestações sucessivas de uma mesma preclusão: primeiro, verifica-se a preclusão da prática do acto num processo pendente; depois, exactamente porque a prática do acto está precludida nesse processo, torna-se inadmissível a prática do acto num outro processo. Portanto, a preclusão começa por ser intraprocessual e transforma-se em extraprocessual quando se pretende realizar o acto num outro processo.
No caso em apreço, perspectivando esta questão de outro ângulo, sempre se dirá que a referida declaração da ré, traduz questão nova, cuja matéria, aliada à questão das formas de acesso ao 1º andar, só surgiu naquele momento, pela 1ª vez.
Por isso, tal matéria só podia ser deduzida em articulado superveniente, nos termos do art. 588 do C.P.C., com observância da tramitação processual prevista nos nºs 4, 5 e 6 do mesmo preceito , mediante a pertinente alegação de concretos factos, designadamente, alegando os seguintes factos: qual era o modo, ou modos, de aceder ao 1º andar reivindicado, designadamente, se era através de portões situados na parede da frente da casa seguido de um outro portão sito no 1º andar reivindicado; quem tinha acesso a esses portões ; a recorrida tivesse impedido o acesso do testamenteiro ao 1º andar e desde quando ; de que modo e quando foi feito esse impedimento pela recorrida, designadamente, se era através de portões situados na parede da frente da casa ; quem tinha em seu poder as chaves desses portões e quem tinha em seu poder as chaves das portas de acesso ao interior do 1º andar; que as chaves desses dois portões, bem como as demais chaves das portas do 1º andar não estiveram sempre em poder do testamenteiro ou na sua disponibilidade.

Ora, a tramitação processual que é imposta para aportar ao processo factualidade nova que não foi alegada oportunamente nos articulados respectivos das partes, não foi observada pela ré-recorrente, o que revela que a argumentação vertida na peça recursória que versa sobre essa factualidade não pode ser aqui reapreciada por este Tribunal da Relação. Assim, as conclusões nºs 7 a 10º, 47ª a 4) da peça recursória não serão por nós reapreciadas.

.Saliente-se que a própria recorrente se encarrega de verter conclusões na peça recursória que não correspondem à verdade bem como admite na conclusão nº 38ªb.), e factos que lhe são desfavoráveis.
Assim nas referidas als a) e b) dessa conclusão 38ªalega que:
“a. Depreende a Mmª. Juiz que a Recorrente. não tinha motivos para a não entrega imediata do imóvel “Certo é que não se demonstraram os factos alegados pela R. para a não entrega: que a A. se recusou a recebe-lo ou que dele já se teria apossado”.
b. Ignorou o Tribunal a manifestação de vontade da Recorrente em proceder à entrega do imóvel.”
Ora, foi por nós rejeitada a impugnação da matéria de facto, sendo certo que, a recorrente nem sequer ensaiou impugnar o juízo de prova do tribunal a quo sobre os factos não provados que nessa parte relevariam.
Acresce que não resulta da factualidade apurada que o aí referido portão do quintal, na parede confinante com a Rua ..., fosse o local por onde o falecido doador e herdeiros habitualmente acediam ao 1ª andar, nem sequer esse portão foi objecto de pedido de entrega, na presente acção.
Mais. A recorrente na contestação alegou que no interior do 1º andar se encontrava recheio do pertencente ao doador entretanto falecido local e que pretendia a aqui Recorrente proceder a essa entrega, porém, era necessário aferir, em conjunto com os demais herdeiros, dos bens de valor económico relevante que poderiam lá existir.
Assim, admite que na al. d) da conclusão 38º que:
2d. A dez de outubro de 2021, comunicou o Testamenteiro ao mandatário da A.: “Tendo sido notificado judicialmente para proceder à entrega da chave do imóvel por vós identificado sou pelo presente a informar de que, na qualidade de testamenteiro, irei proceder a breve trecho à entrega da chave do imóvel, o que não aconteceu até ao momento porque, como bem sabe, nele se acha depositado o recheio do saudoso CC o qual, nos termos do testamento referido por V ex. carece de ser entregue a quem de direito, sendo que, ainda não decorreu tão pouco o prazo máximo para participação de imposto de selo.
Aliás apenas por esse facto não foi possível até ao momento cumprir, o que se estima que ocorrerá nos próximos dias permitindo pois que se proceda à entrega das chaves nos moldes em que nos achamos notificados.”.
Ora este documento traduz a confissão pela própria recorrente que devido apenas devido a actos/ omissões imputáveis aos herdeiros de CC é que a autora-recorrida não logrou obter o controle direto e físico sobre o bem imóvel dos autos .
É que para se afirmar que a Recorrida tinha a posse do imóvel em causa antes de 18.2.2023 teria que estar provado que ela podia realizar atos sobre aquela coisa, comprovativos que era ela quem detinha o controle direto e físico sobre aquele 1º andar, o que, não resulta da factualidade provada.
E como resultou provado apenas com esta acção obteve a A. a entrega do imóvel que lhe pertence, concretamente no dia 18.02.2023, facto que foi dado o pertinente relevo pelo tribunal a quo.
Assim, resulta daquele documento convocado pela recorrente que esta aquando da apresentação da contestação sabia que tinha de entregar o imóvel livre de pessoas e bens, alegou que lhe era difícil entrega-lo porque a herança é de difícil cumprimento.
Todavia, só o entregou na sequência de diligência que este Tribunal fez - e que não tinha que fazer - para resolver de forma imediata a questão da entrega do imóvel.
Reproduzimos aqui segmento da fundamentação da sentença recorrida:
“A R. sabe que tem de entregar o imóvel, alegou que lhe era difícil entrega-lo porque a herança é de difícil cumprimento, mas só o entregou na sequência de diligência que este Tribunal fez - e que não tinha que fazer - para resolver de forma imediata a questão da entrega do imóvel.
Certo é que não se demonstraram os factos alegados pela R. para a não entrega: que a A. se recusou a recebe-lo ou que dele já se teria apossado.
Quer isto dizer que, pelo menos desde que foi citada para a esta acção, sabe a R. que detém coisa alheia contra a vontade da A. e que está obrigada a entregar, pois que o imóvel onde se encontravam os bens da herança não lhe pertencia.
Carece se qualquer razoabilidade que a R. entenda que pode entregar quando lhe apetecer - quando reunir condições para tal -, à custa da A. e do seu património.”
Assim, como se escreveu na sentença recorrida:
“O Tribunal deu como provados os factos 13 a 17 que resultaram da instrução destes autos e da diligência realizada pelo Tribunal e que permitiu que a entrega do imóvel se realizasse.
E não pode ignora-los porque parte significativa das instâncias recaiu sobre esta factualidade.
Daí não retira - ao contrário do que parecem pensar as partes - que esta factualidade tenha relevo para se considerar que a R. estava impedida de entregar o imóvel à A..
Em nenhum momento dos articulados alegou a R. que o que a impedia de entregar o imóvel era o facto de a ele não poder aceder. Tendo a acção entrado em Novembro de 2021 (e, portanto, há 14 meses quando se realizou a audiência prévia), só em 30/01/2022 alegou a R. tal factualidade como impeditiva da entrega do imóvel.
Essa impossibilidade de acesso só faria sentido ser alegada após o momento em que a A. colocou o cadeado no acesso das traseiras, pois que foi a própria R. que alegou ter acedido ao imóvel com os interessados na partilha (art.19º da contestação).
Após a alegação da R., em 30/01/2023, depois de ser condenada a entregar o imóvel, logrou o Tribunal resolver a situação, com a colaboração das partes, que se concretizou 19 dias depois.
Era esse o comportamento que se exigiria a um testamenteiro zeloso, que pretendesse fazer o que lhe confrontado com dificuldades de acesso ao imóvel, dele não pudesse retirar os bens da herança - arts. 2079º e 2080º, nº1, alínea b), do C. Civil.
Nada fez a R. perante o estado em que encontrou os portões do imóvel, a não ser quando o Tribunal proferiu a decisão dos autos, não tendo a A. como adivinhar que a fechadura do portão da frente do imóvel não estava acessível.”
Por outro lado, no que se reporta à alegação feita na conclusão recursória nº 42.(Não obstante, tão pouco respeitou o tempo de participação de imposto de selo e, antes mesmo do término do prazo, propôs a Autora a presente ação.), da qual resulta que a recorrente /testamenteiro entende que os prazos que lei estabelece para o cumprimento das obrigações fiscais lhe confere um qualquer direito de detenção sobre o imóvel que alberga os bens da herança mas que a esta não pertence, urge referir o seguinte:
A ré na contestação efectivamente afirmou que a autora antes do término do prazo de participação de imposto de selo, propôs a presente acção.
Todavia, dessa afirmação não retirou quaisquer consequências, designadamente, para alegar a eventual falta de razoabilidade do prazo concedido para a Ré retirar do imóvel o recheio do imóvel pertencente à Herança.
Assim, porque não foi alegada oportunamente na contestação, trata-se de questão nova, a qual, este Tribunal da Relação está impedido de apreciar e conhecer.
Todavia, sempre se dirá o seguinte:
Ficou assim reconhecido, pelo próprio testamenteiro, que o recheio pertencente à herança se encontrava depositado no 1ª andar do reclamado prédio e que tal recheio carece de ser entregue a quem de direito.
Ora, cabe ao testamenteiro DD, como cabeça de casal da herança, proceder à remoção desse recheio do 1º andar do prédio, constituído por roupas, mobiliário, electrodomésticos e todos os demais utensílios indispensáveis à economia e vivência doméstica do falecido CC, qualquer que seja o seu valor económico.
É totalmente irrelevante que ainda não tivesse decorrido o prazo para o testamenteiro apresentar a relação de bens da herança do Sr. CC e a respectiva participação do imposto de selo, quando lhe foi feita a notificação judicial avulsa para remover o recheio da mesma herança e proceder à entrega das chaves da casa reivindicada, pois os bens que constituem o recheio daquela herança podiam, e podem, perfeitamente ser removidos pelo testamenteiro e ser guardados em qualquer outro local para tal destinado pelo mesmo testamenteiro, onde fiquem à disposição de todos os herdeiros, que já se encontram devidamente identificados no testamento de 30 de Março de 2020, junto com a petição inicial.
Acresce que, a autora, como proprietária, tem o direito de gozar de modo pleno e exclusivo do uso, fruição e disposição do imóvel, livre e desocupado, desde a data da morte do Sr. CC - art. 1305 do Cód. Civil.
De resto, no dia 18.02.2023, quando já tinham decorrido mais de 6 meses após o óbito do Sr. CC e, sem qualquer justificação, o testamenteiro continuou sem corresponder às intimações a si dirigidas pela A. AA.
Assim, a questão suscitada não tem qualquer relevância para a sorte da ação e deste recurso.

3.3.2.Dos Danos sofridos pela recorrida.
No caso em apreço, estamos, assim, em presença de uma típica ação de reivindicação a qual, de acordo com o que postula o nº 1 do art. 1311º do Cód. Civil, se caracteriza pela faculdade conferida ao proprietário de poder “[e]xigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”.
A pretensão reivindicatória, conforme resulta do inciso transcrito, é integrada por dois pedidos entre si logicamente articulados: i) reconhecimento judicial do direito de propriedade do autor da acção sobre a coisa reivindicada; ii) condenação do detentor da coisa a restituí-la ao seu proprietário.
Deste modo, um dos requisitos necessários para a procedência da acção é a prova do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada No entanto, o reconhecimento desse direito não goza de (efectiva) independência relativamente ao pedido de restituição, sendo um mero pressuposto deste. É que, em rigor, neste tipo de ação o verdadeiro e específico pedido é o de condenação a restituir a coisa, funcionando o primeiro pedido (o de reconhecimento do direito de propriedade) como preparatório ou premissa do segundo, tanto assim que se tem considerado o mesmo como implícito, quando não expressamente formulado.[4]
Consequentemente, reconhecido que seja o direito de propriedade do reivindicante, e surgindo a impetrada entrega/restituição como uma manifestação da sequela que caracteriza esse direito, deve o detentor da coisa ser condenado a restituí-la, salvo se – como previne o nº 2 do citado normativo - invocar e provar a titularidade de algum direito que o legitime a continuar a manter a coisa em seu poder.
Em suma: sobre o autor de uma acção de reivindicação impende apenas o ónus de alegar e provar que é proprietário da coisa que reivindica e que esta se encontra em poder do réu. O réu, por sua vez, se quiser evitar a condenação terá de alegar e provar que a sua detenção é legítima e oponível ao autor.
Isto posto, revertendo ao caso sub judicio, verifica-se que a ré não colocou em crise o direito de propriedade da autora sobre o identificado imóvel, sendo que, com o desiderato de neutralizar a pretensão reivindicatória e indemnizatória àquela acoplada alegaram na contestação que a autora se recusou a receber o imóvel, o que não se provou.
A A-recorrida requereu que a Ré-recorrente fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização de 250,00 euros por cada mês que esteve sem poder arrendar o imóvel, de Março de 2022 até á data da sua entrega que sabemos ter-se verificado em 18 Fevereiro de 2023. Estão em causa 11 meses e 18 dias.
Quanto à questão da responsabilidade da Ré-recorrente pelos danos sofridos pela autora-recorrida, considerou o Tribunal a quo, e bem, estarmos perante responsabilidade civil extracontratual, (delitual/aquiliana) que é a que advém da violação de direitos absolutos (violação de deveres genéricos de respeito, violação de normas gerais destinadas à proteção de outrem) ou da prática de certos atos, que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem, sendo categorias desta: a) a emergente de atos ilícitos; b) a emergente de atos lícitos (ato consentido por lei mas que a mesma lei considera de justiça que o seu titular indemnize o terceiro pelos danos que lhe causar); c) a emergente do risco (alguém responde pelos prejuízos de outrem em atenção ao risco criado pelo primeiro).
Como tem sido assinalado na jurisprudência, a “responsabilidade extracontratual surge como consequência da violação de direitos absolutos, que se encontram desligados de qualquer relação pré-existente entre o lesante e o lesado (obrigação de indemnizar em consequência de um acidente de viação, por exemplo)” e a “responsabilidade contratual pressupõe a existência duma relação inter-subjectiva, que atribuía ao lesado um direito à prestação, surgindo como consequência da violação de um dever emergente dessa mesma relação (caso típico da violação de um contrato)”[5]
O Código Civil, abreviadamente CC, diploma a que doravante nos passamos a referir na falta de outra indicação, ocupa-se da matéria da responsabilidade civil:
- no capítulo sobre fontes das obrigações, sob a epígrafe responsabilidade civil - artigos 483º a 510º;
- no capítulo sobre modalidades das obrigações, sob a epígrafe obrigação de indemnizar - artigos 5620 a 5720;
- e no capítulo sobre cumprimento e não cumprimento das obrigações, sob a epígrafe falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor - artigos 798° a 812º).
Alicerça a autora-recorrida a sua pretensão indemnizatória contra a ré-recorrente, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização de 250,00 euros por cada mês que esteve sem poder arrendar o imóvel, de Março de 2022 até á data da sua entrega que sabemos ter-se verificado em 18 Fevereiro de 2023. Estão em causa 11 meses e 18 dias.
Assim, convoca a pretensão da ré nesta parte convoca a responsabilidade extracontratual ou aquiliana, resultante da violação de direitos absolutos, tal como definida no art. 483º do C. Civil: “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
São pressupostos deste tipo de responsabilidade: a) a verificação de um facto;
b) a ilicitude; c) a culpa;
d) a existência de danos;
e) o nexo de causalidade entre o facto ocorrido e os danos verificados.
O facto terá necessariamente de ser aquele que é dominável e controlável pela vontade humana, pois só desse modo se compreenderá a responsabilização do indivíduo que o pratica.
A ilicitude traduz a reprovação da conduta do agente “no plano geral e abstracto em que a lei se coloca, numa primeira aproximação da realidade” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, 1996, pág. 562), reflectida na violação do direito de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
A culpa é um juízo de reprovação e censura da conduta do agente, que assenta na imputação do facto à vontade deste e que revestirá uma de duas formas: dolo ou negligência.
Os danos correspondem ao prejuízo que decorre para quem suporta a actuação ilícita e culposa de outrem.
Vejamos.
Como assinalado pelo tribunal a quo a autora-recorrida não peticiona o pagamento da indemnização considerando a data em que faleceu o doador ou sequer a data em que efectuou a interpelação do representante da herança para a sua entrega e lhe conferiu um prazo para que essa entrega se realizasse.
E não o faz porque, como evidenciou o tribunal recorrido, em qualquer daqueles momentos, não estava o imóvel em condições de ser arrendado.
Deduz tal pretensão apenas a partir de Março de 2022.
Ora, tendo a R. sido citada para esta acção em 08/11/2021, pelo menos a partir desta data, cessou a boa-fé com que podia possuir o imóvel do de cujus, os termos do art. 564º do C. P. Civil.
E tal como o Tribunal a quo este colectivo de juízes não logra sequer perceber a posição da R. Herança nestes autos.
A única atitude correcta e zelosa teria sido a de entregar o imóvel aquando da citação e no decurso do prazo de contestação.
A R. sabe que tem de entregar o imóvel, alegou que lhe era difícil entrega-lo porque a herança é de difícil cumprimento, mas só o entregou na sequência de diligência que este Tribunal fez - e que não tinha que fazer - para resolver de forma imediata a questão da entrega do imóvel.
Acresce que não se demonstraram os factos alegados pela R. para a não entrega, designadamente que a A. se recusou a receber o imóvel.
A revelar que, pelo menos desde que foi citada para a esta acção, sabe a R. que detém coisa alheia contra a vontade da A. e que está obrigada a entregar, pois que o imóvel onde se encontravam os bens da herança não lhe pertencia.
E também nós entendemos, tal como o tribunal recorrido:
“que carece se qualquer razoabilidade que a R. entenda que pode entregar quando lhe apetecer - quando reunir condições para tal -, à custa da A. e do seu património.
O Tribunal deu como provados os factos 13 a 17 que resultaram da instrução destes autos e da diligência realizada pelo Tribunal e que permitiu que a entrega do imóvel se realizasse.
E não pode ignora-los porque parte significativa das instâncias recaiu sobre esta factualidade.
Daí não retira - ao contrário do que parecem pensar as partes - que esta factualidade tenha relevo para se considerar que a R. estava impedida de entregar o imóvel à A..
Em nenhum momento dos articulados alegou a R. que o que a impedia de entregar o imóvel era o facto de a ele não poder aceder. Tendo a acção entrado em Novembro de 2021 (e, portanto, há 14 meses quando se realizou a audiência prévia), só em 30/01/2022 alegou a R. tal factualidade como impeditiva da entrega do imóvel.
Essa impossibilidade de acesso só faria sentido ser alegada após o momento em que a A. colocou o cadeado no acesso das traseiras, pois que foi a própria R. que alegou ter acedido ao imóvel com os interessados na partilha (art.19º da contestação).
Após a declaração-alegação da R., em 30/01/2023, depois de ser condenada a entregar o imóvel, logrou o Tribunal resolver a situação, com a colaboração das partes, que se concretizou 19 dias depois.
Era esse o comportamento que se exigiria a um testamenteiro zeloso, que pretendesse fazer o que lhe competia que era entregar o imóvel que detinha sem qualquer título se, confrontado com dificuldades de acesso ao imóvel, dele não pudesse retirar os bens da herança - arts. 2079º e 2080º, nº1, alínea b), do C. Civil.
Nada fez a R. perante o estado em que encontrou os portões do imóvel, a não ser quando o Tribunal proferiu a decisão dos autos, não tendo a A. como adivinhar que a fechadura do portão da frente do imóvel não estava acessível.”
Feita esta transcrição da argumentação do tribunal a quo, a qual, sufragamos por revelar exato enquadramento jurídico, concluímos que a conduta da Ré-recorrente é ilícita, culposa e geradora de danos, pois que, não se tendo verificado a entrega do imóvel que incumbia à R. Herança, não pôde a A. fazer nele as obras que poderiam permitir que o mesmo fosse arrendado e, dessa forma rentabilizar o bem que lhe foi doado e que lhe pertence, conforme itens dos factos provados que não foram alterados.
De resto, como já referimos, carece de razão a argumentação da recorrente quando concluiu nas nºs 58 º e 59ª:
“58.O Testamenteiro não inibiu ninguém do uso da casa, até porque esta era já possuída desde fevereiro de 2022 pela Recorrida, sendo o pedido de indemnização a partir de marco de 2022.
59.Se o interesse da Recorrida fosse efetivamente arrendar o imóvel, tê-lo-ia feito, bastando a entrega dos bens móveis ou a sua remoção.
Desde logo, não estão provados factos que revelem que a autora –recorrida tenha ficado na posse efectiva do imóvel desde Fevereiro de 2022.
E como decorre das considerações expostas supra o ónus de entregar à autora-recorrente o imóvel livre e desocupado, a incluir a efectivação da desocupação ainda que com auxílio da recorrida ou de terceiros) incumbia à recorrente.

3.3.3.Da quantia arbitrada pelo tribunal a quo a título de indemnização pelos danos sofridos em consequência da privação do imóvel durante o período de Março de 2022 até à da sua entrega que sabemos ter-se verificado em 18 Fevereiro de 2023.

A A-recorrida requereu que a Ré-recorrente fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização de 250,00 euros por cada mês que esteve sem poder arrendar o imóvel, de Março de 2022 até á data da sua entrega que sabemos ter-se verificado em 18 Fevereiro de 2023. Estão em causa 11 meses e 18 dias.
O tribunal a quo entendeu que: “Tem assim o direito a ser indemnizada pelo valor de 250,00 euros por mês pelo período em que o poderia ter rentabilizado e não pode fazer, e que corresponde aos meses de Março de 2022 a 18 de Fevereiro de 2023. No caso deste último mês, a indemnização é proporcional ao número de dias em causa em que, tendo o mês 28 dias, se consideram apenas 18 dias (ou seja, 160,71 euros).”

Nesta parte, a recorrente teceu a seguinte argumentação para afastar a condenação:
“52.Não se aceita nem se concebe que possa uma decisão judicial alicerçar a convicção em juízes de prognose póstuma infundados: “não restam dúvidas que a A., pessoa conhecida na freguesia com elevado património, pretenda arrendá-lo – o valor alegado é tão baixo que resultaria sempre demonstrado, com base nas regras da experiência comum” – pode ler-se na sentença.
53.Restam hoje muitas dúvidas à aqui Recorrente, na medida em que não se entende que alguém “com elevado património” volvidos cerca de 8 meses sob a pretensa entrega do imóvel, e mais 20 meses sob a efetiva tomada de posse sobre o imóvel, o mesmo ainda hoje não o tenha arrendado, nem se indiciam sinais dessa pretensa intenção.
54.Aliás, não pode o Tribunal, por mero entendimento da Mmª. Juiz, afirmar que 4 meses era o tempo suficiente para a realização de obras – de acordo com o que foi alegado pela Recorrida no pedido indemnizatório.
55.Não existiu prova pericial ao estado do imóvel nem sequer se pode concluir pelo estado do mesmo apenas por mera apreciação de homem médio, e, nesse sentido, condenar alguém ao pagamento de uma indemnização.
a. Serviu-se a Mmª. Juiz apenas das declarações do do Sr. KK, testemunha indicada pela Recorrida, que conta com grande historial na arte da construção civil, dedicando-se quase exclusivamente a intervir no “elevado património” da Recorrida, conforme assenta o Tribunal.
b. Além de que, recorreu o Tribunal para o fundamento da sua convicção, no depoimento do Sr. LL que, a título de curiosidade, tem em si um grande historial político na freguesia de onde as partes são naturais e residentes, dedicando-se à oposição ao exercício do cargo político ocupado pelo aqui Testamenteiro.
c. E foram estes os dois depoimentos “de quem foi contratado pela A. para realizar as obras no imóvel” (conforme se lê na sentença) suficientes para o Tribunal alicerçar a sua opinião e não corporizar outros argumentos.”
Apreciando e decidindo:
Ora como resulta linear esta argumentação está essencialmente dirigida a impugnar factualidade provada, a qual, como vimos, mantivemos inalterada.
A revelar que para reapreciar a bondade da discordância da recorrente este Tribunal da Relação irá ter como referência os factos julgados provados nos itens a seguir reproduzidos, os quais, convocam algumas considerações sobre a indemnização pela privação de uso de bem por ação-omissão de terceiro.
São estes os factos:
10 - O imóvel poderia ser arrendado com facilidade, após a realização de obras, por renda mensal nunca inferior a 250,00 euros.
11 - O facto de o A. não ter a disponibilidade do imóvel, impediu-a de realizar as obras e de colocar o imóvel no mercado de arrendamento, destinando-o a esse fim.
12 - Para a realização das obras não seriam necessários mais do que 4 meses.
17 - O imóvel encontrava-se cheio de lixo e tinha alguns móveis.”.
Todavia, sempre diremos que, como tem sido assinalado, na jurisprudência[6] e na doutrina[7] a problemática da ressarcibilidade do dano de privação do uso (mormente de veículo automóvel) e da sua quantificação não tem obtido, entre nós, uma resposta unívoca sendo que em resultado dessa privação podem ocorrer:
.um dano emergente (derivado da utilização mais onerosa de um meio de transporte alternativo, designadamente o aluguer de outro veículo)
. e/ou um lucro cessante, em consequência da perda de (eventual) rendimento que o veículo propiciava, como no caso de o mesmo ser utilizado em alguma atividade comercial, por exemplo, em serviço de táxi.
Mas pode ainda considerar-se que concorre aí um outro dano, que consiste na própria privação do uso do veículo, na simples privação desse uso.
Os dois primeiros danos referidos não suscitam especiais dificuldades, posto que a respetiva indemnização encontra-se expressamente prevista na lei (art. 564º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil).
Discutido tem sido, porém, o reconhecimento do dano da mera privação do uso, sendo que o principal óbice que tem sido erigido à sua ressarcibilidade prende-se com a sua natureza abstrata, quando é certo que a responsabilidade civil exige a produção de um dano concreto cuja medida sirva para quantificar a indemnização, acrescentando-se outrossim que o simples dano da privação não seria compatível com a teoria da diferença (que se mostra consagrada no art. 566º do Cód. Civil), uma vez que a comparação que esta pressupõe (entre a situação real e a situação que existiria se não fosse o evento danoso) não pode revelar a existência daquele dano.
Trata-se de questão que tem sido discutida quer na doutrina quer, sobretudo, na jurisprudência, perfilando-se, essencialmente, três posicionamentos:
Assim, para uns o dano da mera privação do uso não é indemnizável, já que para que a privação seja ressarcível, terá de fazer-se prova do dano concreto e efetivo, isto é, da existência de prejuízos decorrentes diretamente da não utilização do bem; para outros, a simples privação do uso, só por si, constitui um dano indemnizável, mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou destino que seria dado ao bem; outros ainda advogam que se, por um lado, não basta a simples privação do uso do bem, por outro, também não se exige a prova de danos concretos e efectivos, sendo, contudo, essencial a alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização.[8]
Das enunciadas teses tem sido a segunda aquela que vem obtendo maior acolhimento na doutrina,[9] que vem sustentando ser essa a posição que melhor tutela a lesão dos interesses do proprietário de um veículo que se vê privado de extrair dele todas as vantagens e utilidades que o seu uso lhe proporciona, não podendo deixar de reconhecer-se como lesiva do seu património a perda, em si mesma, da possibilidade de continuar a usufruí-lo, por facto ilícito de um terceiro, durante o período de tempo em que tal se verificar. De facto, um veículo está, em regra e por sua natureza, destinado a proporcionar ao seu proprietário ou legítimo detentor utilidades (designadamente a possibilidade de se deslocar para onde quiser e quando quiser) que só podem ser fruídas por via do uso. Ora, impedido este, há um prejuízo que se traduz na impossibilidade de fruir essas utilidades, situação que pode ou não implicar lucros cessantes e/ou danos emergentes com tradução monetária imediata, mas que, em regra, importa a frustração do gozo.
Daí que, tomando posição a respeito, e cientes de que «O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas» (cf. o artigo 1305.ᵒ do Código Civil), entendemos que a privação do uso não pode ser aferida (e consequentemente resolvida) em abstracto, isto é, apreciada em função da simples impossibilidade objectiva, ainda que constatada, de utilização da coisa.
Por ser obra de referência para a problemática em questão não poderemos deixar de referir aqui que a análise mais detalhada do problema foi da iniciativa de Júlio Gomes que num Estudo intitulado “O Dano da Privação do Uso”[10] deixou subentendida a adesão à valoração autónoma daquele dano no âmbito da nossa ordem jurídica.
E como salientado no Ac da Relação de Lisboa, in Processo nº 683/2003-7, relatado por Abrantes Geraldes, Júlio Gomes, noutro local assume, com mais clareza, uma posição favorável ao ressarcimento da privação do uso, como contrapartida da perda da “capacidade de decisão exclusiva quanto à utilização do bem” durante o período de privação”[11].
Assim, demonstrados que estejam os requisitos da responsabilidade civil (subjectiva ou objectiva) existe um dano patrimonial, posto que as utilidades proporcionadas por um bem, suscetíveis de serem fruídas, consideradas em si mesmas, têm valor pecuniário, tanto mais que a simples detenção do bem, tendo um determinado valor intrínseco, determina encargos que se mantêm independentemente da utilização que lhe é dada.
Tal como refere António Geraldes, in Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, 2001, a privação do uso de um veículo representa sempre uma falha na esfera patrimonial do lesado, que em regra causa um prejuízo material, devendo avaliar-se concretamente qual a compensação adequada de acordo com a gravidade e destino dado ao bem (equidade artigo 4º do CCivil- ou condenação genérica sendo essa a situação).
Deverá atender-se ao caso concreto, tendo-se em conta no caso, o valor de arrendamento que seria possível ao proprietário obter com inclusão do imóvel no mercado de arrendamento, sendo que a privação deverá ser compensada com a atribuição de um quantitativo correspondente ao desvalor emergente da acção. Conforme refere o citado autor a falta de prova de despesas realizadas depois de um sinistro não implica necessariamente a falta de prejuízos, dado que sempre existe um desequilíbrio material entre a situação que existiria e aquela que existe decorrente da privação do uso. E esse ressarcimento poderá ser realizado através de uma compensação em dinheiro recorrendo-se à equidade, sem prejuízo da importância que pode assumir a quantia necessária para o aluguer de um veículo com características idênticas à do veículo paralisado, sendo que se deve ter em conta o valor real do veículo e o seu período de vida útil.

Feitas estas considerações, reportando-as ao caso dos autos, independentemente da tese que se sufrague, certo é que, no caso vertente, se provou que.
“10 - O imóvel poderia ser arrendado com facilidade, após a realização de obras, por renda mensal nunca inferior a 250,00 euros.
11 - O facto de o A. não ter a disponibilidade do imóvel, impediu-a de realizar as obras e de colocar o imóvel no mercado de arrendamento, destinando-o a esse fim.
12 - Para a realização das obras não seriam necessários mais do que 4 meses.”
Posto isto, no caso a privação do uso e fruição do uso do imóvel pela autora é um facto objectivo, circunstância que deixou de ser lícita quando o Autor foi feita a citação da ré para a ação e assim para proceder à restituição.
E dos factos apurados resulta que a autora –recorrida tinha a intenção de arrendar ou retirar utilidades directas de tal falta de uso e fruição.
De qualquer modo, tal como se decidiu no recente Acórdão do STJ, de 20/01/2022, proc. nº 6816/18.4T8GMR.G1.S1, in www.dgsi.pr/jstj: I. A privação do uso de um prédio urbano, de rés-do-chão, com cinco divisões e com um valor locativo de €460,00, decorrente de acto ilícito de quem, não tendo título legítimo para o ocupar, persiste nessa actuação, mesmo depois de interpelado para o entregar, representa para os proprietários um dano autónomo. II. Do facto de não terem provado a vontade de arrendar o prédio não deve retirar-se que os autores não pretendam dele extrair, como bem entenderem, na qualidade de proprietários, as utilidades que aquele estará em condições de lhes facultar, não se tendo provado qualquer circunstância que, não fora a ocupação que se vem registando, revele que não o possam levar a efeito.

Neste contexto, no caso em apreço, resulta para nós que a privação do uso do imóvel durante o período correspondente aos meses de Março de 2022 a 18 de Fevereiro de 2023 foi causa de prejuízos representados pela diferença entre a situação que existiria se a ocupação não tivesse existido e aquela que realmente se verificou. O bastante para determinar o ressarcimento através da única via possível, isto é, mediante a atribuição de uma compensação em dinheiro, com o que se consegue o duplo objectivo de colocar no património da A. uma prestação pecuniária correspondente ao valor de uso do prédio ocupado e, ao mesmo tempo, evitar a manutenção na esfera jurídica dos RR. dos ganhos que alcançaram, sem qualquer legitimidade, à custa da A.
O artº 566º nº 3 diz-nos que, se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o Tribunal julgará equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados.
Embora se trate do mesmo “juízo de equidade” que o legislador manda observar na fixação do preço na compra e venda (artº 883º), ou mesmo no artº 496º 3, não podemos esquecer que estamos no domínio do dano patrimonial e por isso trata-se antes de mais de avaliar o dano, de o quantificar (e não de fixar equitativamente uma indemnização em virtude do dano não ser quantificável, nem mensurável, como o é o dano não patrimonial).
Todavia, no caso, porque foram apurados factos que permitem quantificar com segurança que o valor de € 250,00 mensal, correspondente ao valor mínimo da renda que seria possível obter pelo arrendamento do imóvel, após a realização de obras, afigura-se-nos dever manter-se a indemnização relativa aos danos sofridos pela autora –recorrida pelos dano da privação do uso do imóvel, correspondente à quantia de 250,00 euros por mês a título de indemnização pela não entrega do 1º andar do imóvel referido no ponto 1 da matéria de facto provada,” no período de Março de 2022 a 18 de Fevereiro de 2023”, sendo, em relação a este mês, proporcional aos dias referidos e, portanto, de 160,71 euros, num total de 2.910,71 euros (dois mil novecentos e dez euros e setenta e um cêntimos).
Em consequência do exposto concluímos pela improcedência da apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Sumário.
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IV:DELIBERAÇÃO:
Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 25.01.2024
Francisca Mota Vieira
Paulo Duarte Teixeira
Judite Pires
______________
[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, página 124 e seguintes.
[2] Recorda-se, a propósito, que não satisfaz a exigência determinada pela al. a), do n.º 2, do art.º 640.º, do CPC, o recorrente que pretenda que valha como transcrição uma resenha ou súmula do que terão referido as pessoas de cujos depoimentos se quer fazer valer (na parte relevante), já que transcrever os depoimentos é reproduzi-los objetivamente (aquilo que as pessoas ouvidas verbalizaram), sem fazer intervir qualquer subjetividade, filtro ou juízo apreciativo (Ac. do STJ, de 18.06.2019, José Raínho, Processo n.º 152/18.3T8GRD.C1.S1)
[3] Sobre a admissibilidade da alteração oficiosa, cfr. o Ac. do STJ de 17-10-2019 (3901/15.8T8AVR.P1.S1), bem como ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, pp. 357 e 358.
[4] Cfr., por todos, na doutrina, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 113; na jurisprudência, acórdão do STJ de 8.02.2011 (processo nº 12/09.9T2STC.E1.S1), acessível em www.dgsi.pt.
[5] Ac. do STJ de 20/11/2012, proc. 176/06.3TBMTJ.L1.S2 (Relator: Fonseca Ramos), acessível in dgsi, onde se entendeu “Classicamente, a responsabilidade civil coenvolve a responsabilidade contratual (a violação do contrato) e a extracontratual (a que não se filia na violação de deveres contratuais, mas em normas que tutelam interesses alheios, ou direitos absolutos) e ainda a responsabilidade objectiva: em não poucos casos, a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual miscigenam-se, mal se destrinçando os campos de aplicação e nem sequer a nitidez das fronteiras”.
[6] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2008, de 03.05.2011, de 8.5.2013, acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10.01.2022.
[7] Abrantes Geraldes, in “Indemnização do Dano da Privação do Uso”, Coimbra, Almedina, 2001.
[8] Neste sentido, acórdão do STJ de 13.05.2011, relatado por Nuno Cameira, cujo sumário, pela relevância, se transcreve:
“I - A privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem, nos termos genericamente consentidos pelo art. 1305.º do CC.
II - Não é suficiente, todavia, a simples privação em si mesma: torna-se necessário que o lesado alegue e prove que a detenção ilícita da coisa por outrem frustrou um propósito real – concreto e efectivo – de proceder à sua utilização.
III - A privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano correspondente a essa realidade de facto.
IV - Tendo o autor demonstrado que usava o veículo sinistrado no apoio à actividade de construção civil a que se dedica, bem como nas suas deslocações diárias e de lazer, tal mostra-se suficiente para justificar a atribuição duma indemnização a título de privação do uso.
V - O que na essência define o dano da privação do uso, independentemente de outros prejuízos concretos que possam alegar-se e provar-se associados a essa ocorrência (danos emergentes e lucros cessantes), é a impossibilidade de usar a coisa por virtude da conduta ilícita do lesante, e enquanto essa impossibilidade subsistir.
VI - A avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no art. 566.º, n.º 3, do CC.”
[9] Assim, Júlio Gomes, O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, 1998, págs. 274 e seguintes e, do mesmo autor, Custo das reparações, valor venal ou valor de substituição?, in Cadernos de Direito Privado, nº 3, págs. 62 e seguintes; Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, vol. I - Indemnização do dano da privação do uso, 3ª edição, págs. 72 e seguintes; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, págs. 297 e seguinte e Américo Marcelino, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 6ª edição, págs. 359 e seguintes.
[10] Na Rev. de Direito e Economia, ano XII (1986), págs. 169 a 239.
[11] In O Conceito de Enriquecimento, pág. 278.