NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
DESPACHO JUDICIAL
ATO JURÍDICO
VENDA EXECUTIVA
Sumário

I - A nulidade por omissão de pronúncia só acontece quando o despacho deixa de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes, as quais não se confundem com os argumentos, as razões e motivações produzidas pelas partes para fazer valer as suas pretensões.
II - O despacho não deixa de se constituir como um acto jurídico não negocial, ao qual são aplicáveis, nos termos e para os efeitos do art. 295º do CC, as regras gerais da interpretação jurídica e, desde logo, a doutrina da impressão do destinatário, sendo o labor interpretativo alcançável bem assim do contexto da decisão/despacho e respectiva fundamentação.
III - Pode alcançar-se por concludência teor integral ou global do despacho a desconsideração ou desatendimento da pretensão, sendo-o de forma muito relevante da fundamentação.
IV - Não se tem como proibida a venda executiva por negociação particular de um bem cuja área constante do registo predial não coincida com a real e que sequer se tem por necessária a rectificação desta prévia à venda, por não haver disposição legal que a imponha, sendo certo que razões de salvaguarda do comprador não a exigem também.

Texto Integral

Processo: 2524/17.1T8LOU-E. P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo de Execução de Lousada - Juiz 2

Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: João Maria Espinho Venade
2º Adjunto: Francisca Micaela Fonseca da Mota Vieira

I.
AA, na qualidade de Executado e legal representante do Executado menor BB, em Execução para Pagamento de Quantia Certa, Comum, na qual é exequente o Banco 1... SA ali deduziu reclamação do acto da Sra. Agente de Execução, que decide a venda do imóvel penhorado, por negociação particular, suscitando a sua nulidade processual.
Não se conformando com a decisão que julga improcedente a reclamação apresentada, dela veio interpor recurso, que é o versado.
Conclui nos termos seguintes:
I- Tem o presente recurso por escopo, a Decisão prolatada que julga improcedente a reclamação apresentada, a qual estriba o seu indeferimento no entendimento de que, (…). “Ora, perante a decisão da SR. AE fica prejudicado o pedido de anulação da venda dado que a mesma foi considerada sem efeito pela Sr.ª AE. Ademais carece legitimidade ao executado de requerer a anulação dado que tal como consta do anúncio de venda, o imóvel é vendido no estado e condições em que se encontra, sendo certo que o proponente tem que assegurar, antes de licitar, que o bem corresponde às suas expectativas e se não o fez a responsabilidade é inteiramente do proponente, não podendo invocar ulteriores desconformidades, uma vez que, com a licitação, aceitou o bem no estado em que se encontra e não alegou o proponente qualquer – único a quem se confere legitimidade para vir arguir qualquer eventual nulidade – motivo ou razão para ter incorrido em erro. Quanto ao demais concordarmos com a posição da Sr. AE dado que não se mostra junto aos autos qualquer documento que comprove a existência de qualquer divergência de áreas, sendo que os executados tiveram várias oportunidades no decorrer do processo para dar conta aos presentes autos, da existência de tal divergência e não o fizeram.”.
II- Ora, salvo melhor opinião, não pode o Recorrente estar mais em desacordo, com a Decisão, objeto do presente recurso, já que não atende ao alegado nos requerimentos e documentos anteriormente apresentados e que se encontram juntos aos autos, sendo mesmo contraditória, revelando também omissão de pronuncia que conduz à sua nulidade, já que, em causa não está a venda, considerada sem efeito, mas a decisão de uma futura venda, nos mesmos termos, ainda por realizar e anunciar, através venda por negociação particular, questão que, apesar de legitimamente colocada ao Tribunal ad quo, a decisão, agora em crise, não aprecia.
III- Assim, em 07-12-2021, é o executado notificado para se pronunciar sobre o ofício apresentado pela proponente da melhor proposta, o qual, sumariamente, refere que, após a realização de levantamento topográfico, que junta, foi constatado que o prédio urbano em questão, não tem a área anunciada de 900m2, mas apenas de 400m2. Caso a proponente tivesse conhecido, antes da licitação, a área real de tal prédio urbano, nunca teria proposto/aceite a sua aquisição por preço superior a €81.500,00, requerendo a redução do preço para este valor.
IV- Pronunciando-se, em 04/01/2022, referiu o Executado que, Na sequência das várias reuniões mantidas entre Executados e Exequente, visando a obtenção de um acordo de pagamento, a questão da divergências de áreas, agora abordada pela proponente, foi, por diversas vezes discutida, atendendo a que, já aquando da concessão dos mútuos, garantidos pela constituição de hipoteca sobre o imóvel o problema existia, pois a área física não corresponde à constante da inscrição matricial e descrição no registo predial, tendo a avaliação efetuada pelo Exequente ignorado tal facto, comportamento que o Exequente e a Sra. A.E. mantêm preferindo ignorar a existência da referida divergência de áreas, prosseguindo com a venda do imóvel. E o resultado é este, tendo a proponente razão, aceitando o pedido de redução do valor da venda do imóvel penhorado formulado pela proponente.
V- Em 20 de Janeiro de 2022, a Sra. Agente de Execução decide, “determinar que a venda, à proponente da melhor proposta do E-leilões, fique sem efeito, e prosseguir com a venda do imóvel penhorado nos autos mediante negociação particular, e pelos valores já fixados na decisão de 20/01/2021.”.
VI- VI-Os Executados, perante a decisão de venda por negociação particular, supra referenciada, sem que exista prévia retificação da área do imóvel, apresentam Reclamação do ato da Sra. Agente de Execução, que decide a venda do imóvel penhorado, por negociação particular, e invocam a sua nulidade processual, alegando fundamentalmente que, Mesmo que a Sra. Agente de Execução desconhecesse a existência da divergência das áreas, em cerca de 500 metros, tomou entretanto conhecimento, facto que continua, voluntária e conscientemente, a ignorar. Ao decidir pela venda do imóvel penhorado, sem conhecer as reais condições do bem imóvel, nomeadamente limites e área, tal circunstância só poderá conduzir à anulação sucessiva das vendas a realizar, devendo a Sra. Agente de Execução ser responsabilizada por tal facto. Isto porque, existindo desconformidade entre o imóvel transmitido e o anunciado, isto é, existindo erro sobre a coisa transmitida, por desconformidade com o que foi anunciado, tal facto origina erro na formação da vontade do adquirente, por facto imputável ao agente de execução que penhorou, anunciou e vendeu um prédio com determinadas características, que na realizada não tem. No entanto persiste a Sra. A.E. no mesmo erro material, que bem conhece. Na verdade, o valor proposto para aquisição do imóvel, tem por base uma área de cerca de 1.000m2, quando, na realidade o prédio urbano não possuí mais de 400m2. A descrição do prédio no registo, apenas faz presumir que este é propriedade do executado; dessa presunção não deriva a presunção de que o prédio é dotado de uma determinada área, constante da descrição e inscrição prediais, bem como não se presume que as confrontações mencionadas no registo estão corretas.
Pelo que, a venda do bem imóvel penhorado deverão ter sido suspensa pela Sra. Agente de Execução, até que se apurasse e registasse a área que efetivamente coincide com a realidade física do prédio urbano, já que pretende proceder à venda de um imóvel, cujas características não são conhecidas, apesar da manifesta e evidente desconformidade entre a área real do imóvel a vender, a que se encontra documentada (registo, matriz ou em quaisquer outros registos públicos), e a anunciada ou a anunciar, sobre o bem a transmitir, já que o anúncio publicita uma área do imóvel superior à existente na realidade física do prédio.
Sendo certo que, a preterição de formalidades prescritas para a publicidade da venda constituí nulidade do anúncio.
É requerida a procedência da Reclamação, pela arguição da nulidade processual da decisão do Sr. Agente de Execução, relativa à venda do imóvel penhorado através de leilão, por negociação particular, que deverá ser revogada.
VII-Apesar de não ter sido notificada par o efeito, pronuncia-se a Sra. AE sobre a Reclamação formulada e ofício da proponente, dizendo que,
- Tal como consta do anúncio de venda, o imóvel é vendido no estado e nas condições em que se encontra, sendo certo que o proponente tem que assegurar, antes de licitar, que o bem corresponde às suas expetativas;
- Se não o fez, a responsabilidade é sua, não podendo invocar posteriores desconformidades,
uma vez que com a licitação, aceitou o bem no estado em que se encontra;
- Importa referir, que o executado, nunca juntou aos autos qualquer documentação que suporte a referida divergência, nem tão pouco tentou sanar tais divergências;
- Ora, atento todo o historial do processo, e por forma a evitar delongas, decidiu a aqui signatária depois de ouvidas as partes nos termos do art. 825º do CPC, e considerando que nunca foi informada da existência de qualquer divergência de área, determinar que a venda, à proponente da melhor proposta do E-leilões, fique sem efeito, e prosseguir com a venda do imóvel penhorado nos autos mediante negociação particular, e pelos valores já fixados;
- Deve a reclamação apresentada ser julgada improcedente.
VIII-Notificados para se pronunciarem, referem os Executados, em síntese, que, a informação prestada pela Sra. A.E. atropela manifestamente, o regime de anulação da venda judicial, nomeadamente os casos previstos no artigo 838º do CPC..O Prof Alberto dos Reis ensinava que: “há erro sobre a coisa transmitida quando o comprador ou o adjudicatário perante o anunciado supõe que adquire a coisa pretendida, mas ela tem qualidades diversas das conjeturadas” (apud Curso de processo Execução Ferreira, Fernando Amâncio, Almedina 2010, 13ªed p. 405).
IX-No domínio da legislação anterior, era entendido que para a verificação do “erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado” o comprador não precisa de alegar e provar a verificação dos pressupostos gerais da relevância do erro (247º, 251º e 254º do CC) sendo bastante que alegue e prove a existência de desconformidade relevante de acordo com o bónus pater famílias (Abílio Neto, CPC anot. Ediforum, abril de 2008 p. 1306), entendimento que se mantém válido atualmente.
Ao decidir a venda do imóvel penhorado, sem que tivesse existido prévia correção da divergência das áreas que este possuí, vai dar origem a nova invalidade do ato, pela existência de erro sobre a identidade da coisa que se pretende transmitir.
Reiterando todo o alegado na Reclamação apresentada, deve ser esta conhecida e julgada procedente, por provada, a arguida nulidade processual da decisão da Sr. Agente de Execução, relativa à venda do imóvel penhorado através de leilão, por negociação particular, que deverá ser revogada, e consequentemente, determinada a anulação de todo o processado tramitado posteriormente.
X- É então proferida a Decisão, ora em crise, resultando do teor da mesma, que fica prejudicado o pedido de anulação da venda dado que a mesma foi considerada sem efeito, carecendo o executado de legitimidade para requerer a anulação, dado que tal como consta do anúncio de venda, o imóvel é vendido no estado e condições em que se encontra, e não alegou o proponente – único a quem se confere legitimidade para vir arguir qualquer eventual nulidade – motivo ou razão para ter incorrido em erro.
XI-Acontece, que a Reclamação apresentada pelo Executado refere-se, tão somente, ao ato da Sra. Agente de Execução, que decide a venda do imóvel penhorado, por negociação particular, (venda para a qual não foi efetuado qualquer anúncio de venda, ao contrário do mencionado na Decisão), sem que exista prévia retificação da área do imóvel, suscitando-se a nulidade processual deste ato, e não da venda, realizada através de leilão eletrónico, considerada sem efeito.
XII-Isto porque, na sequência da venda do imóvel penhorado por leilão eletrónico foi suscitada, pela proponente da melhor proposta, a questão do mencionado imóvel não possuir, nem metade da área publicitada, o que é verdade, como o Exequente/Recorrido sabe, atendendo a que, aquado da concessão do mútuo, a discrepância de áreas já se verificava, facto que foi por este ignorado, referindo sempre que nada pretendia fazer, não se responsabilizando pelo facto de ter concedido empréstimos garantidos pela constituição de hipoteca sobre um imóvel, cuja área física não corresponde à constante da inscrição matricial e descrição no registo predial.
XIII-Certo é que, mesmo que a Sra. Agente de Execução não tivesse conhecimento da existência da divergência das áreas, em cerca de 500 metros, tomou entretanto conhecimento, facto que continua, voluntária e conscientemente, a ignorar. Ao decidir pela venda do imóvel penhorado, sem conhecer as reais condições do bem imóvel, nomeadamente limites e área, tal circunstância só poderá conduzir à anulação sucessiva das vendas a realizar, devendo a Sra. Agente de Execução ser responsabilizada por tal facto. Isto porque, tendo sido considerada a venda, através de leilão eletrónico, sem efeito, por se ter demonstrado que existiu desconformidade entre o imóvel transmitido e o anunciado, isto é, que existiu erro sobre a coisa transmitida, havendo erro na formação da vontade do adquirente, difícil é de entender, como pode a Sra. A.E. persistir no mesmo erro material, que bem conhece, ao decidir-se por nova venda, agora por negociação particular.
XIV-A descrição do prédio no registo, apenas faz presumir que este é propriedade do executado; dessa presunção não deriva a presunção de que o prédio é dotado de uma determinada área, constante da descrição e inscrição prediais, bem como não se presume que as confrontações mencionadas no registo estão corretas.
XV-Pelo que, a venda do bem imóvel penhorado deverá ser suspensa, até que se esclareça, apure, regularize e anuncie, a área que efetivamente coincide com a realidade física do prédio urbano, já que pretende proceder à venda de um imóvel, cujas características não são conhecidas, apesar da desconformidade entre a área real do imóvel a vender, a que se encontra documentada (registo, matriz ou em quaisquer outros registos públicos), e a anunciada ou a anunciar, sobre o bem a transmitir, já que o anuncio publicita uma área do imóvel superior à existente na realidade física do prédio.
XVI-Sendo certo que, a preterição de formalidades prescritas para a publicidade da venda constitui nulidade do anúncio.
XVII-Pretende pois o executado, arguir a nulidade processual da decisão da Sra. Agente de Execução, relativa à venda do imóvel penhorado, agora através de leilão, por negociação particular, evitando-se, desta forma a realização de actos inúteis e como tal, nulos, e não a anulação da anterior venda, já considerada sem efeito.
XVIII-Isto porque, entende o Executado que persistir numa nova venda, nas mesmas condições, irá dar origem à sua anulação, já que, de acordo com o previsto no regime de anulação da venda judicial, nomeadamente no artigo 838º,nº 1, do CPC,“ Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil.”
XIX-Ao decidir a venda do imóvel penhorado, sem que tivesse existido prévia correção da divergência das áreas que este possuí, vai dar origem a nova invalidade do ato, pela existência de erro sobre a identidade da coisa que se pretende transmitir.
XX- A verdade porém, é que a Decisão, ora em crise, é omissa sobre a arguida nulidade processual da decisão da Sra. Agente de Execução, relativa à venda do imóvel penhorado através de leilão, por negociação particular.
XXI-A omissão de pronúncia é um vício gerador de nulidade da decisão judicial, que ocorre quando o tribunal não se pronuncia sobre questões submetidas ao seu escrutínio pelas partes, concretas controvérsias centrais a dirimir, com relevância para a decisão da causa, o que se verifica no caso em apreço.
XXII-Assim e conforme fluí do supra exposto, terá de se imputar à Decisão proferida a nulidade por omissão de pronúncia, por não ter apreciado a questão que, legitimamente, lhe foi colocada pelos executados, nulidade que aqui e agora se invoca, e que conduz à revogação desta Decisão.
Conclui pela revogação da decisão.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.
Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C) são duas as questões a tratar:
- da nulidade por omissão de pronúncia da decisão recorrida;
- da nulidade da decisão pela Sra Solicitadora da execução de prosseguimento da venda por negociação particular sem que tivesse existido prévia correção da divergência das áreas que este possui.

A)
Desde logo, a nulidade por omissão de pronúncia só acontece quando o despacho deixa de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes, salvo se a decisão dessa questão tiver ficado prejudicada pela solução dada a outra.
Sempre as questões não se confundem com os argumentos, as razões e motivações produzidas pelas partes para fazer valer as suas pretensões. Questões, para efeito do disposto no art. 615º, n.º 1, al. d) do CPC, não são aqueles argumentos e razões, mas sim e apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, ou seja, as concernentes ao pedido ou requerimento apreciando.
Daí que se possa afirmar que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não tenha tido aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.
Certo que não basta à regularidade da decisão a fundamentação que contém, revelando-se ainda necessário que trate e aprecie o requerido, pois que o contraditório proporcionado às partes com relação aos aspectos jurídicos da causa não pode deixar de encontrar a devida expressão e resposta na decisão.
De todo o modo, o despacho não deixa de se constituir como um acto jurídico não negocial, ao qual são aplicáveis, nos termos e para os efeitos do art. 295º do CC, as regras gerais da interpretação jurídica e, desde logo, a doutrina da impressão do destinatário, sendo o labor interpretativo alcançável bem assim do contexto da decisão/despacho e respectiva fundamentação.
Quando se tenham presentes estas directrizes, ainda quando se haja de reconhecer a parcimónia ou susceptibilidade de induzir em equívoco do despacho, no que tange ao segmento da pretensão que se reconduzia já ou agora à anulação da decisão Sra Solicitadora tendente à venda por negociação particular independente e previamente à rectificação (registral) da área respectiva, a verdade é que se infere de forma concludente do teor integral ou global do despacho a desconsideração ou desatendimento da pretensão, sendo-o de forma muito relevante da fundamentação, ainda quando esta se reporte também à falta de razão da pretensão primeira no mesmo requerimento apreciando (havida por prejudicada em razão da anulação mesma da primeira venda pela Solicitadora[1])
Não deixou de como tal a compreender o recorrente mesmo, como às razões em que se estribou, como resulta das conclusões do presente recurso.
Com efeito, o despacho recorrido, numa interpretação contextualizada, reconduz-se à natureza do objecto da venda, o prédio penhorado efectivamente existente ou real, independente da sua descrição registral ou matricial, para concluir pela irrelevância de uma eventual discrepância da área em sede de vício da venda, a qual se constitui como razão para que nada obste ao prosseguimento da venda.
Não sendo absolutamente directa a referência ao indeferimento da pretensão de sustação da venda decidida pela Sra Solicitadora, o mesmo resulta concludente do despacho recorrido, pelo que se tem por improcedente a arguida omissão de pronúncia.
O despacho recorrido, ainda quando imperfeitamente, pela referência equívoca a pretensão havida por “ultrapassada”, materializa a análise da questão suscitada pelos Recorrentes, no sentido que estes adquiriram, de indeferimento.
B) Da anulação do despacho da Sra Solicitadora que decidiu da venda por negociação particular do imóvel penhorado
Nessa parte, patente e manifesta falta de rigor técnico dos Recorrentes, confundindo putativos vícios de conteúdo de anúncios de venda com nulidades processuais… E sempre não assacando à decisão da Ex.ma Solicitadora uma invalidade própria ou autónoma, por inobservância de qualquer disposição legal relativa àquela modalidade da venda ou tomada de decisão… Na verdade, tendo os autos, sem oposição, prosseguido para a fase da venda e tendo até sido anulada a venda por negociação particular concretizada, sendo que a questão da área apenas foi suscitada após toda aquela outra tramitação, quando alegadamente bem conhecida dos executados/recorrentes desde sempre, não se compreende como assacar à decisão agora da venda por negociação particular a natureza de acto proibido por lei nos termos e para os efeitos do art. 195º do CPC e muito menos como haver por tempestiva a arguição, nos termos e para os efeitos do art. 199º do CPC.
É o que desde logo determina a improcedência da arguida nulidade.
Sempre, de fundo, não assiste razão aos Recorrentes, aproximando-se perigosamente de um comportamento abusivo a tentativa de sustar a execução/a venda mediante a inobservância de deveres próprios, assim o de diligenciar pela veracidade da descrição predial do imóvel.
A sua argumentação em sede recursiva quanto à insuficiência demonstrativa do registo predial no que à área do imóvel concerne patenteia a desnecessidade de proceder à rectificação da área registral (ou matricial) do imóvel penhorado antes da venda…
Como é sabido, o registo predial que se efectua na Conservatória do Registo Predial, é o arquivo oficial onde se registam e confirmam todos os direitos de propriedade e outros direitos e ónus sobre os imóveis, sem conhecimento actualizado do qual nenhum acto jurídico (compra, venda, hipoteca, etc.) pode ser realizado sobre um prédio rústico ou urbano, ou sobre uma parte ou fracção destes. Sendo assim, é na respectiva Conservatória do Registo Predial que está registada oficialmente a propriedade de cada prédio e inscrita a identificação dos seus proprietários e de quaisquer outros direitos ou ónus sobre o prédio ou de servidões que o condicionem.
A descrição predial assim “tem por fim a identificação física, económica e fiscal dos prédios. De cada prédio é feita uma descrição distinta. No seguimento da descrição do prédio, são lançadas as inscrições ou as correspondentes cotas de referência”. Ou seja, as descrições são abertas “na dependência de uma inscrição ou de um averbamento” em nome do titular, cfr. art.ºs 79.º e 80.º do Código do Registo Predial, aprovado pelo DL n.º 224/84, de 29.09, actualizado com as alterações introduzidas, sendo as últimas resultantes da Lei n.º 89/2017, de 21.08 – (C.R.Predial).
O registo compõe-se da descrição predial e da inscrição dos factos e respectivos averbamentos, bem como de anotações de certas circunstâncias, nos casos previstos na lei, cfr. art.º 76.º do C.R.Predial. Sendo que “O registo predial destina se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”, cfr. art.º 1.º do C.R.Predial. Ou seja, é através da informação disponibilizada pelo registo que se pode saber e confirmar qual a efectiva “composição de determinado prédio, a quem pertence e que tipo de encargos (hipotecas, penhoras, etc.) sobre ele incide”. De cada prédio é feita uma descrição predial, e apenas uma, com os elementos previstos na lei, cfr. art.ºs 79.º e 82.º do C.R.Predial.
Por seu turno, a matriz das Finanças, que se divide em matriz predial rústica e matriz predial urbana, constitui o inventário fiscal de todos os prédios rústicos e urbanos de cada freguesia e concelho, a que se tem de comunicar, antecipada ou posteriormente, quaisquer actos de alteração das características, mudança de utilização ou titular, etc., para poder oficializar esses actos.
Para um prédio estar descrito na Conservatória é fundamental inscrevê-lo previamente na matriz das Finanças, obtendo o respectivo artigo e descritivo actualizado, sem o qual não é possível requerer ou alterar o registo do prédio ou formalizar qualquer operação jurídica sobre este. No entanto, “as inscrições matriciais só para efeitos tributários constituem presunção de propriedade”, cfr. art.º 12.º do C.do IMI.
É obrigação dos proprietários proceder à inscrição dos prédios na matriz, bem como à actualização desta, no prazo de 60 dias, pois “a inscrição de prédios na matriz e a actualização desta são efectuadas com base em declaração apresentada pelo sujeito passivo, no prazo de 60 dias contados a partir da ocorrência de qualquer” facto relevante para o efeito, cfr. art.º 13.º do C.do IMI. Para a inscrição ou actualização da matriz, são factos relevantes: que “uma dada realidade física passar a ser considerada como prédio”, isto é, que um terreno ou parcela passe a constituir um prédio autónomo; que o prédio passe de rústico a urbano; que sejam alterados os seus limites; que se concluam obras de edificação, de melhoramento ou outras alterações que possam determinar variação do valor patrimonial tributário do prédio; que sejam alteradas as culturas praticadas num prédio rústico»; ou ainda a partir do momento em que se tome conhecimento que o prédio está omisso na matriz ou quando ocorram eventos que façam cessar uma isenção fiscal de que esteja a beneficiar, cfr. art.º supra.“As modificações que se verifiquem nos limites dos prédios, por transmissão de parte deles, parcelamento ou qualquer outra causa”, devem ser comunicadas pelo Serviço de Finanças aos serviços cartográficos, para que possam “os peritos que procedam às alterações previstas (…) quando se justifique, actualizar o mapa parcelar para além das alterações requeridas, com excepção das estremas com outros proprietários; na divisão de prédios, a requerimento dos interessados, o perito pode corrigir a distribuição das parcelas divididas”, cfr. art.º 97.º do C.do IMI.
Pois que os elementos das descrições “podem ser alterados, completados ou rectificados por averbamento” e “os elementos das descrições devem ser oficiosamente actualizados (ou seja, directamente pelos serviços) quando a alteração possa ser comprovada por acesso à base de dados da entidade competente” e em alguns outros casos, cfr. art.ºs 88.º e 90.º C.R.Predial.
Os processos de “suprimento, da rectificação e da reconstituição do registo” iniciam-se “com a apresentação do pedido em qualquer serviço de registo com competência para a prática de actos de registo predial”, pelo qual “o interessado solicita o reconhecimento do direito em causa, oferece e apresenta os meios de prova e indica, consoante os casos”, cfr. art.º 117.º-B do C.R.Predial.
Donde, a rectificação matricial e registral da área do prédio é, desde logo, obrigação/dever do proprietário.
A descrição destina-se a proceder à “identificação física, económica e fiscal dos prédios” (artigo 79º, nº1, do Cód.Reg.Predial). É um assento onde, portanto, se recolhem dados de facto relativos à coisa objecto da descrição. É verdade que semelhante recolha deve ser cuidadosamente realizada e que se deve adoptar o máximo de elementos disponíveis que permitam individualizar o mais exactamente possível o imóvel em causa. De todo o modo, se se trata de dados de facto, estes são como são, e não como a sua retratação é feita na descrição. Ou seja, se porventura não existir rigorosa correspondência entre a realidade física e a realidade registal correspectiva, obviamente só pode prevalecer a realidade tal como ela é – se, por exemplo, o prédio descrito não existe, não tem a área ou não tem a construção que na descrição se identifica, não tem. Por muito cuidado que haja e por muito fidedignos que sejam os meios de prova nos quais se baseie a descrição, a possibilidade de se verificar uma discrepância entre a realidade e o conteúdo de descrição é concretizável, sucede efectivamente e com alguma frequência.
Tendo em mente que a área de um prédio é um dos elementos mais importantes da identificação desse prédio – e que por isso, merece menção na descrição predial e que esta deve, igualmente, coincidir com a existente na matriz predial, é hoje razoavelmente aceite a ideia de que o conteúdo da descrição predial não está dotado de fé pública[2]. Não só por se entender que o artigo 7º do Cód.Reg.Predial se reporta sobretudo à inscrição, como por força da própria natureza da descrição. Dela (ao invés da inscrição, que contém factos jurídicos) apenas constam essencialmente dados materiais, factuais. Ora, a realidade material é aquilo que é – ou seja, existe por si. Logo, impõe-se como realidade pré-construída. A realidade material, pela sua própria natureza, não pode ser alterada intelectualmente – só pode ser bem ou mal representada. Daí que se imponha inexoravelmente. Daí que seja um pré-dado. Assim, por exemplo, se da descrição predial consta a identificação de certo prédio mas ele, na verdade, não existir, não se pode pretender o contrário, como é óbvio. É essencialmente por esta razão que não é estritamente indispensável utilizar métodos muito sofisticados na elaboração das descrições prediais. Um mínimo de fiabilidade é suficiente. No fundo, basta que se possa partir do princípio de que o prédio objecto da descrição efectivamente existe e é aproximadamente aquele ao qual esta se refere. Uma coisa, porém, é pretender que a descrição corresponda ao objecto retratado, outra coisa, mais simples, é partir do princípio segundo o qual corresponde. No fundo, trata-se do mesmo exacto problema que se coloca para a fiabilidade da inscrição – uma coisa é afirmar que é exacta e está completa, outra coisa é partir do princípio de que assim sucede. Apesar da óbvia precariedade da informação vertida na descrição predial, nada obsta a que se estabeleça a presunção de correspondência entre a descrição e o imóvel descrito. Será inquestionavelmente, porém, uma presunção de ténue intensidade.
Por comparação com a inscrição, a descrição faz menos fé. E certamente a prova do contrário daquilo que pela lei se presume é relativamente fácil: bastará confrontar a descrição com o respectivo objecto, bastará a simples constatação de que a descrição não tem correspondência com o imóvel tal qual como este surge descrito.
Esta realidade ou putativa discrepância será, de qualquer modo, mais facilmente apreensível para um comprador em sede de negociação particular do imóvel.
A descrição será um assento extremamente importante do ponto de vista da organização estrutural da instituição registal predial, uma vez que constitui o centro da mesma. No entanto, do ponto de vista externo, ou seja, do ponto de vista da negociação de imóveis vem a constituir-se como um elemento nitidamente acessório e muitas vezes irrelevante. Não se esqueça que a venda executiva o é do imóvel penhorado e não de um prédio com estes ou aqueles metros quadrados…
Certo também que a venda executiva é anulável quando se verifique algum dos fundamentos mencionados nos artigos 838º e 839º do CPC. Os fundamentos previstos no artº 838º do CPC – existência de ónus ou limitação não considerado e o erro sobre a coisa transmitida - visam a tutela do comprador, estando por isso na sua exclusiva disponibilidade. Contempla situações de erro acerca do objecto jurídico (ónus ou limitação) ou material (identidade ou qualidade da coisa transmitida) da venda, mas quando comparado com o regime geral da anulação do negócio jurídico por erro (artº 257 CC e 251 CC) dispensa os requisitos exigidos pelo artigo 247º do CC: a essencialidade para o declarante e o seu conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário, sendo apenas necessária a demonstração de que o ónus ou limitação não foi considerado ou que a identidade ou as qualidades do bem vendido não coincidem com as que foram anunciadas (cfr. ensinamentos de José Lebre de Freitas, A ação executiva depois da reforma da reforma, 5ª edição, Coimbra Editora, p. 342 e 343 e no mesmo sentido, Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., 507; M. Teixeira de Sousa, “Acção executiva Singular”, 396 e F. Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de Execução”, 2ª ed., 285).
Contudo, novamente a modalidade da venda por negociação particular é a que salvaguarda melhor a não verificação do erro do comprador quanto às qualidades do bem, na medida da verificação efectiva ou real, física, do objecto…
Tudo para dizer que não se tem como proibida a venda executiva de um bem cuja área constante do registo predial não coincida com a real e que sequer se tem por necessária a rectificação desta prévia à venda, por não haver disposição legal que a imponha, sendo certo que razões de salvaguarda do comprador não a exigem também.
Improcedente, pois, a arguição da nulidade da decisão da Sra. Solicitadora de prosseguir com a venda por negociação particular, cabendo manter a decisão de indeferimento proferida, entendendo-se nada obstar à venda na decidida modalidade.
III.
Tudo visto, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida que indeferiu a arguição da nulidade da decisão da Sra. Solicitadora de prosseguir com a venda por negociação particular, entendendo-se nada obstar à venda na decidida modalidade.
Custas pelos recorrentes.
Notifique.

Porto, 25 de Janeiro de 2024
Isabel Peixoto Pereira
João Venade
Francisca Mota Vieira
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[1] Donde “sobrevivente” apenas a pretensão ainda subsistente ou não inutilizada, objecto necessário da apreciação seguinte.
[2] Veja-se, por exemplo, o já longínquo Acórdão do STJ de 04/04/1995, Proc. n.º 086741: I. O registo predial continua a ter uma função essencialmente declarativa; e a presunção, aliás ilidível, do artigo 7 do Código de Registo Predial de 1984, não se estende aos elementos meramente descritivos, como sejam a área ou as confrontações de prédio urbano. II. O artigo 28 do Código de Registo Predial de 1984 reporta-se a harmonização dos valores de áreas mas entre o registo predial e a matriz fiscal, e não com áreas reais. III. A referência a estas seria, sempre, corrigível, mormente a partir de iniciativa de qualquer interessado. IV. Sem mais, a não coincidência entre a área constante, identicamente, do registo predial e da matriz fiscal, e a área real (nem se sabendo qual) não justificaria a resolução do contrato-promessa. V. O princípio da boa fé é uma aragem vivificadora que perpassa pelo direito, mormente obrigacional, implicando uma conduta ético-jurídica que se traduz por deveres acessórios e por corolários concretos conforme a problemática em apreço. VI. Agem em abuso de direito, por ofensa ao princípio da boa fé (que é de conhecimento oficioso), os promitentes compradores que, sem motivo plausível, recusam, ao promitente comprador, uma planta do prédio prometido comprar e vender, sabem que área oficial e a real não coincidem, requerem a correcção da descrição sem, disso, darem conhecimento ao promitente comprador, apesar de o prazo do negócio prometido depender da obtenção da documentação pertinente e de, anteriormente, terem-lhe enviado documentação referente à área conforme constava antes do pedido de correcção; e pretendem a condenação do promitente-comprador no pagamento do valor de cláusula penal, ainda que a resolução desencadeada por este não tivesse tido suficiente justificação; ou o Acórdão, do mesmo Tribunal, de 24/01/2002: A presunção derivada da inscrição no registo predial não abrange os elementos da identificação predial.