ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO DE JULGAMENTO
DOSIMETRIA DA PENA
Sumário

I–O vício de erro notório na apreciação da prova (art. 410.º/2c)CPP), não se confunde com a divergência entre aquela que é a convicção pessoal - próxima da justiça por mão própria em que o recorrente forma a sua – sempre indissociável - subjetiva convicção sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o Tribunal a quo firmou sobre os factos no âmbito do respeito pelas regras de apreciação da prova e dentre estas na livre apreciação da prova, como princípio inscrito no art. 127.ºCPP.

2–Tal erro notório na apreciação da prova também não se confunde com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida, pois que, tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.
3–A forma de descortinar o erro de julgamento não passa pela mera alegação da discordância , antes tem que passar pela demonstração inequívoca – nos mesmos moldes de fundamentação que se exige ao julgador - de que o Tribunal desdizeu as exigidas regras da experiência e afrontou princípios basilares do direito probatório.
4–Concordando o AA com o modo como o Tribunal a quo fixou a dosimetria da pena, pretendendo tão só a alteração da mesma com base na desqualificação do crime e no caso de a mesma operar, caindo tal pretensão de desqualificação, base para a moldura concreta da pena ser reduzida, a premissa do silogismo passa a falsa, pelo que não vindo posta em crise a pena para o crime efetivamente cometido, limitado que está o recurso pelas conclusões do recorrente, não cabe exercer qualquer censura acerca da pena aplicada.
Sumário (da responsabilidade do Relator):

Texto Integral

Acordam os Juízes, em conferência, na 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO


1.Decisão recorrida
Mediante Acórdão datado e depositado a ... (ref.s … e …), foi o AA (no que ora se cuida) condenado na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática, como autor material e na forma tentada, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, p. p. pelos art.s 22.º; 23.º, 131.º e 132.º/1/2e)CP.

2.Recurso
Inconformado com o referido Acórdão, do mesmo e junto do Tribunal a quo interpôs o AA recurso (entrado a …-ref.…) motivando-o e delimitando-o no objeto com as conclusões (medianamente aceitáveis na condensação exigível) que se transcrevem (SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator):

i)–Conclusões
I. “ O Recorrente está condenado, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de um crime de homícidio qualificado na forma tentada, p.p. pelos artigos 22º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 al. e), do Código Penal.
II.O presente recurso tem por objecto a alegação do vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal, por considerar o Recorrente que, e salvo o devido respeito, a decisão sub judice padece do vício de Erro notório na apreciação da prova.
III.–Com o devido respeito, o Tribunal a quo fundamenta a sua motivação da decisão de facto relativa ao início da dinâmica dos factos submetidos a julgamento tão só à expressão do depoimento da referida testemunha NR (ofendido), a qual cotejada com outros elementos de prova existentes nos autos, e outros produzidos em audiência de discussão e julgamento, conjugados com as regras da experiência comum aferida em função do homem médio, sempre fariam o Tribunal a quo alcançar convicção distinta, sendo notória a existência de erro na apreciação da prova, que deve ser ultrapassado.
IV.–O Tribunal a quo, limita-se na sua fundamentação a conferir credibilidade às declarações da testemunha NR, ofendido nos autos, em detrimento das prestadas pelo arguido, sem explicar o raciocínio lógico dedutivo utilizado na motivação da matéria de facto, por forma a credibilizar totalmente as declarações daquele.
V.–No entendimento do Recorrente e salvo o devido respeito por melhor opinião, a factualidade considerada provada sob os n.ºs 2) e 12), assim como a não provada referente aos pontos 3) da acusação e 2), 3), 8), 9), e 10) da contestação, não correspondem à expressão de toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, cotejada com a demais prova existente nos autos.
VI.–O Tribunal a quo deu credibilidade ao depoimento da testemunha NR (ofendido), apesar desta testemunha apresentar uma memória selectiva dos factos, pois depois de descrever minuciosamente a sua versão dos factos, referiu não se recordar se já tinha consumido nessa noite, pois tinha sido uma noite traumática. Foi o único facto que não se recordou.
VII.–Mal andou a PJ por ter diligenciado pela obtenção e concordância do ofendido para recolha de ADN através de zaragatoa bucal, (cfr. auto fls. 20 e 21 dos autos), e não ter diligenciado pela mesma concordância para realização de exames de despite da presença de álcool e estupefacientes no sangue, apesar de o arguido em conversa informal ter referido que aquele estaria embriagado e sob efeito de estupefacientes (cfr. fls 56)
VIII.–Efectuada busca domiciliária à residência do arguido, apenas 1 hora após a comunicação da ocorrência à Central policial, não foi encontrado nenhum produto estupefaciente, vd auto de fls. 20 e 21 e aditamento n.º 4 de fls. 61, parágrafo 6. E, também no local dos factos nada foi encontrado que indiciasse qualquer contacto com produto estupefaciente, cfr. auto de diligência de fls. 56.
Estes elementos probatórios permitem conferir credibilidade às declarações do Recorrente no sentido de que não abordou o ofendido para vender-lhe haxixe.
IX.–Esta conclusão supra descredibiliza o depoimento da testemunha NR relativamente à motivação que originaram os factos objecto do processo, designadamente no sentido de se poder concluir pela existência de uma qualificação susceptível de um especial juízo de censurabilidade prevista no artigo 132.º, nºs 1 e 2, alínea e), do Código Penal, consubstanciada na conduta ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil.
X.–Face à escassa prova produzida (nenhuma testemunha presenciou o que motivou a acção e o Tribunal ateve-se à versão do assistente, que contrariou a do arguido) o Tribunal devia ter aplicado o princípio in dubio pro reo, ligado à presunção da inocência do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
XI.–O qual estipula que a dúvida deve favorecer o acusado / arguido; é um princípio de prova que vigora em geral, entendendo-se que, na decisão de factos incertos, não seguros quanto à sua verificação / imputação a um agente, a dúvida deve favorecê-lo – vide, v.g., Acs. do S.T.J. de 25/10/2007, in proc. 07P3170 e de 04/12/2008 e Cristina Líbano Monteiro, "In Dubio Pro Reo", Coimbra, 1997 .
XII.–O que sempre imporia que não tendo o Tribunal a quo logrado apurar as exactas circunstâncias que originaram os factos descritos na ACUSAÇÃO, passariam a elencar os factos não provados, os pontos 2 e 12 da matéria facto dada provada.
XIII.–E, os factos articulados nos pontos 3 da ACUSAÇÃO e pontos 2, 3), 8), 9), e 10) da CONTESTAÇÃO apresentada pelo Recorrente, e que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, passem a constar dos factos provados.
XIV.–Impondo-se, a final, um juízo e decisão no sentido de não poder concluir-se pela existência de uma qualificação susceptível de um especial juízo de censurabilidade prevista no artigo 132.º, nºs 1 e 2, alínea e), do Código Penal, enquadrando-se juridicamente os factos provados no ilícito previsto nos artigos 22º, 23.º e 131.º, todos do Código Penal, ou seja, crime de homícidio na forma tentada.
XV.–Ao ter-se decidido como se decidiu, violou o douto acórdão a quo o disposto nos artigos131 e 132.º, n.ºs 1 e 2 al. e), do Código Penal e artigos 124.º, n.º 1, 127.º, do Código de Processo Penal.
XVI.–Considerando a qualificação jurídica defendida na conclusão XIV, ao crime de homícidio na forma tentada previsto e punido nos artigos 22º, 23.º e 131.º, todos do Código Penal, corresponde uma pena abstracta de 8 a 16 anos de pena de prisão, pena especialmente atenuada, nos termos do disposto no artigo 73º, nº 1, alíneas a) e b), do Código Penal, com a moldura penal abstracta de pena de prisão de 1 anos 6 meses e 10 anos e 6 meses.
XVII.–Dispõe o art.º 40.º do Código Penal que a pena não deve ultrapassar a medida da culpa. Como critérios de determinação da medida concreta da pena, o art. 71.º do Código Penal determina que deve o juiz atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, ou seja, a culpa é a culpa do facto sem deixar de se atender à personalidade e às perspectivas da socialização do agente e ainda a consideração das condições pessoais e a situação económica deste.
XVIII.–O Recorrente adere ao raciocínio expendido pelo Tribunal a quo para determinação da medida da pena, [que aqui dá por reproduzido para todos os efeitos], que em observância dos critérios contidos nos artigos 40.º e 71º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código Penal, fixou a pena concreta próximo do ¼ da medida da pena abstracta, entende o Recorrente que deverá ser-lhe aplicada uma pena de 3 anos e 9 meses de prisão.
XIX.–O artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal consagra agora um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos (Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 14.ª Edição, pág. 191).
XX.–Sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, tem o Juiz o dever de suspender a execução da pena: esta é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico (Ac. S.T.J., de 27/06/1996, in CJ, Acs. do STJ, IV, tomo 2, 204).
XXI.É necessário que o Julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição (Ac. do S.T.J., de 11/05/1995, in proc. n.º 4777/3.ª).
XXII.–O Recorrente com 29 (vinte e nove) anos de idade, à data da prática dos factos tinha registado duas condenações em penas não privativas da liberdade, sendo a prática dos factos da primeira condenação de há nove anos atrás.
XXIII.–A última condenação ocorrida já decurso dos presentes autos - proferida em .../.../2022, transitada em julgado em .../.../2022-, o que significa que o Recorrente, à data da prática dos factos em causa nos presentes autos, ainda não tinha sentido a forte imposição dirigida ao agente do facto para pautar sua a vida de modo a responder positivamente às exigências de respeito pelos valores comunitários.
Entendeu o Tribunal efectuar ainda um juízo de prognose favorável ao Recorrente, e aplicar uma pena de prisão suspensa na sua execução com subordinação a regime de prova.
XXIV.–A execução desta sentença condenatória ainda não foi iniciada, não estando o seu comportamento moldado pelos efeitos benéficos do regime de prova.
XXV.–Apesar do Recorrente ter iniciado o consumo de substâncias aditivas (álcool, tabaco e haxixe) aos 12/13 anos de idade, interrompeu a ingestão de bebidas álcoolicas após ter iniciado a medida de coação a que se encontra sujeito (OPHVE), bem como deixou de consumir haxixe, há cerca de sete meses, o que denota um esforço da sua parte para abandonar hábitos aditivos.
XXVI.–Está familiarmente inserido no agregado familiar de origem.
XXVII.–Tem-se mantido profissionalmente activo, à data da prática dos factos encontrava-se a trabalhar no ...., empresa sediada na localidade do R…. (M…), que opera na comercialização de bacalhau, (tendo sido despedido após o início de cumprimento da medida de coacção determinada nos presentes autos), trabalho que pretende recomeçar após colocado em liberdade.
XXVIII.–O recorrente reconhece ser muito nervoso e ansioso, demosntra dificuldades ao nível da gestão das emoções, do controlo dos impulsos e baixa tolerância à frustração.
Declarou em audiência não estar a ser medicado.
XXIX.–Após o primeiro interrogatório judicial e aplicação da medida de OPHVE, em ... de ... de 2022, o recorrente mantém-se, desde então, em confinamento habitacional as 24h diárias, revelando globalmente uma satisfatória capacidade pessoal para o cumprimento da medida de coação.
XXX.–Suspensão da pena que venha a ser aplicada ao Recorrente, acompanhada de um rigoroso regime de prova, vocacionado para tratamento não só das adições supra referidas, mas também tratamento psiquiátrico direccionado para controle emocional, assente em plano individual de readaptação social a elaborar pela DGRSP, ainda acautelará in casu as exigências de prevenção geral e especial legalmente exigidas.
Termos em que dando procedência ao presente recurso e, em conformidade ser:
a.-Revogado o acórdão que condenou o Recorrente, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de um crime de homícidio qualificado na forma tentada, p.p. pelos artigos 22º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 al. e
b.-O Recorrente condenado pela prática de um crime de homícidio na forma tentada, p.p. pelos artigos 22º, 23.º e 131.º, do Código Pena numal pena de 3 anos e 9 meses de prisão;
c.-A execução da pena de prisão que vier a ser aplicada ao Recoorente ser suspensa na sua execução,
Vossas Excelências farão a necessária e costumada Justiça. “

3.–Resposta ao recurso

Regularmente admitido o recurso (a … - ref. …) e de tal notificado o Ministério Público junto do Tribunal a quo (a …-ref. …) respondeu ao mesmo de forma direta, pugnando no sentido da improcedência do recurso, formulando as conclusões (sintéticas e adequadas) que se transcrevem (SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator):
1.–“A impugnação do acórdão recorrido reconduz-se ao facto de, na opinião do arguido, o Tribunal recorrido não ter feito uma adequada apreciação da prova produzida, pois considerou como provados factos que nunca poderiam ser dados como provados, termos em que incorreu em erro na apreciação da prova, assim como incorreu na violação do princípio in dubio pro reo.
2.–firma o recorrente que o Tribunal a quo motivou o acórdão com base no testemunho do ofendido, ao qual conferiu credibilidade em detrimento da versão dos factos apresentada pelo arguido. Ora, como claramente decorre da leitura do acórdão recorrido em sede de motivação de facto, e pelo contrário, o Tribunal assentou a formação da sua convicção no cotejo das demais provas produzidas.
3.–A verdade é que, afigurando-se as declarações do ofendido mais credíveis do qual aquelas do arguido, justamente porque cotejadas com a restante prova produzida e corroboradas pela mesma, não é o mero facto de o arguido oferecer uma versão diversa, que esta deve ser necessariamente tida em consideração, especialmente quando contrariada pelos restantes elementos de prova, como sucedeu neste caso.
4.–Se o arguido beneficia do princípio in dubio pro reo, as suas declarações não beneficiam de uma presunção de verdade. Não é pelo facto de o arguido apresentar uma determinada versão dos factos, que aliás em muito o beneficia, que a mesma cria uma situação de dúvida séria e razoável.
5.–Tanto da leitura da motivação, quanto das conclusões do recorrente resulta que o presente recurso em matéria de facto se limita a procurar abalar a convicção formada pelo Tribunal a quo e a relevância que foi concedida à versão dos factos apresentada pelo ofendido em declarações (que, em sua opinião, é desajustada), e depois cotejada com os elementos constantes dos autos e demais declarações prestadas pelas restantes testemunhas. Verificamos, assim, que a discordância do recorrente limita-se ao sentido da valoração da prova pela Mm.ª Juiz a quo, valoração essa livremente formada e adequadamente fundamentada nos trechos que referimos.
6.–Mas a realidade é que o Tribunal a quo decidiu segundo uma apreciação crítica e selectiva de toda a prova produzida, assente em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova e recorrendo ao uso de raciocínios lógicos e às regras da experiência. Apenas sucede que valorou a prova em sentido dissonante da opinião do recorrente.
7.–E, gozando o Tribunal recorrido do privilégio da imediação das provas – algo de que não goza o Tribunal de recurso – e assentando a convicção do julgador, em larga medida, no que tal imediação lhe permite apreender, nem sempre facilmente objectivável, parece-nos líquido que só se da apreciação da prova (gravada ou transcrita) feita pelo Tribunal superior resultar para este claramente ter havido violação dos critérios de apreciação da prova, designadamente dos enunciados no artigo 127.º do Código de Processo Penal, deve o Tribunal superior modificar a matéria de facto dada como assente.
8.–Por outro lado, caberá apenas referir que, da motivação do acórdão recorrido, aliás, devidamente sustentada nas provas que referencia, evidencia-se com clareza a análise crítica dos motivos que determinaram o apuramento dos factos provados, facultando o percurso lógico realizado na decisão. Não pode, por isso, o recorrente, exercitando a sua impugnação em meros juízos de interpretação pessoal, pretender qualquer alteração da decisão da matéria de facto.
9.–Ademais, ao contrário do que pretende o recorrente, o Mm.º Juiz esclareceu a matéria de facto, e formou a sua convicção com base na análise, crítica, global e ponderada de toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, bem como dos documentos juntos e constantes dos autos, com recurso a juízos de experiência comum, cumprindo escrupulosamente os termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
10.–Além do mais, também a decisão recorrida não violou o princípio in dubio pro reo, já que este princípio não se aplica quando o Tribunal não tem dúvidas, nem serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas sim para controlar o procedimento do Tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto. No presente caso, a decisão acerca da matéria de facto encontra-se devidamente fundamentada, não resultando da sua análise, que o Tribunal recorrido tenha ficado num estado de dúvida e que, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido, violando o princípio em apreço.
11.–Concluímos, pois, que a motivação constante da decisão recorrida tem o suporte probatório adequado, tendo o Tribunal recorrido procedido a uma apreciação crítica da mesma, pelo que temos como certo que a decisão recorrida não violou nem o princípio da livre apreciação da prova, nem o princípio in dubio pro reo, razões pelas quais não assiste razão ao arguido.
12.–No que respeita à qualificação do crime pelo qual o arguido foi condenado, a realidade é que os factos dados como provado integram, efectivamente, a prática do crime pelo qual o arguido foi condenado, sendo especialmente perturbante a motivação do mesmo para agir como agiu, resultando óbvia a justificação da especial censurabilidade da sua conduta da leitura do acórdão recorrido, tendo o Tribunal a quo efectuado uma efectuou uma correcta subsunção dos factos ao Direito quando optou pela condenação pelo crime de homicídio qualificado.
13.–Por fim, e no que respeita à pena aplicada, uma vez que se pugna pela manutenção da decisão do Tribunal a quo nos seus exactos termos, de facto e de direito, sempre se deverá manter a pena aplicada, a qual consideramos proporcional e adequada, porque determinada por aplicação dos critérios enunciados nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, e em estrito respeito pelo vertido nestes normativos.
14.–Sempre se diga que, ainda que assim não fosse, e fosse procedente a pretendida desqualificação, sempre a pena pretendida seria demasiado benévola e considerando os antecedentes criminais que o arguido apresenta e as exigências de prevenção geral e especial, nunca seria a mesma susceptível de suspensão.
15.–Por tudo quanto foi exposto, sempre se dirá que o recurso apresentado pelo arguido não poderá obter qualquer provimento.
Termos em que, e nos mais que V. Exas. doutamente suprirão, não se deverá dar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se na íntegra a douta decisão recorrida.
V. Ex.as, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA! “

4.–Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista à Digníssima Procuradora-Geral Adjunta, a qual, com concreta e circunstanciada explanação, acompanhando a posição exarada pelo Ministério Público na primeira instância, emitiu parecer (a … - ref. …) pugnando pela procedência do recurso interposto pelo AA.

Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório, aqui inexistindo resposta do AA.

Efetuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso seja julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO

1.–Apreciação do recurso

i)-Acórdão recorrido
Dada a sua relevância para o enquadramento e melhor compreensão do infra a decidir em termos de delimitação do objeto de recurso, urge, desde já, aqui verter quer a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada e não provada, as razões para tal e ainda, por fim, o enquadramento jurídico que efetua na fundamentação de direito.

a.- Factos provados

(SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator)
1.–“No dia ... de ... de 2022, entre as 02:30 e as 03:00 horas, NR dirigiu-se à ..., no …, a fim de comprar produto estupefaciente, mais concretamente canabis.
2.–Aí chegado NR foi interpelado pelo arguido, tendo-se gerado uma troca de palavras entre ambos, pois o NR disse ao arguido que não lhe queria comprar produto estupefaciente.
3.–Em acto contínuo, o arguido aproximou-se do NR e de frente para o mesmo, empunhando na sua mão direita uma navalha, com a lâmina aberta, que transportava consigo, desferiu-lhe dois golpes nas costas, atingindo-o na região lombar.
4.–Após, o arguido com a sua mão esquerda desferiu um soco na face de NR, atingindo-o no sobrolho.
5.–Em face do sucedido, NR virou costas ao arguido para fugir do local, tendo-lhe este desferido mais dois golpes com a navalha nas costas, atingindo-o na face posterior do tórax, após o que abandonou o local, desfazendo-se da navalha.
6.–Como consequência directa e necessária da actuação do arguido, NR sofreu duas feridas na face posterior do tórax de 3 cm de comprimento e 2 cm de profundidade, e duas feridas com 4 cm de profundidade na região lombar, as quais lhe determinaram um período de 10 (dez) dias de doença, todos com afetação da capacidade para o trabalho.
7.–Que lhe deixaram quatro cicatrizes de feridas incisas perfurantes dorsais e lombares.
8.–Para tratamento das lesões referidas em 6), NR foi assistido e transportado por uma ambulância do INEM para o ..., E.P.E., onde recebeu assistência médica, tendo dado entrada no serviço de urgência da referida unidade hospitalar no dia .../.../2022, pelas 03:42 horas, tendo tido alta nesse mesmo dia, pelas 08:36 horas.
9.–A navalha referida em 3) tinha um cumprimento total de 14 cm, com lâmina de 6,5 cm de cumprimento.
10.–Ao actuar da forma descrita, visou o arguido atingir o corpo de NR com a navalha que trazia consigo, golpeando-o repetidamente nas costas, em zonas onde se alojam órgãos vitais.
11.–Assim, ao executar tais golpes previu necessariamente o arguido que pudesse vir a atingir NR numa zona vital e provocar-lhe a morte, conformando-se com essa possibilidade.
12.–Tendo agido motivado pelo facto de aquele se ter negado a comprar-lhe produto estupefaciente.
13.–O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e, ainda assim, prosseguiu os seus intentos.
Do pedido cível:
14.–Em consequência do descrito em 8), o ... despendeu nos serviços médicos prestados a NR a quantia de €344,97 (trezentos e quarenta e quatro euros e noventa e sete cêntimos).
Mais se provou:
15.–NR nasceu em ...…....
16.–O arguido tem os seguintes antecedentes criminais registados, tendo sido condenado:
- por sentença transitada em julgado em .../.../2016, proferida no âmbito do Processo Comum Singular nº 954/…, que correu termos no Juízo Local Criminal do …, Juiz 2, pela prática em .../.../2014, de um crime de roubo, na pena de um ano de prisão, substituída por 365 (trezentos e sessenta e cinco) horas de trabalho comunitário. Esta pena foi declarada extinta, pelo cumprimento, por despacho de .../.../2019.
- por sentença transitada em julgado em .../.../2022, proferida no âmbito do Processo Sumaríssimo nº 1068/…, que corre termos no Juízo Local Criminal do …, Juiz 1, pela prática em .../.../2021, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros).
- por sentença transitada em julgado em .../.../2022, proferida no âmbito do Processo Comum Singular nº 197/…, que corre termos no Juízo Local Criminal do …, Juiz 2, pela prática entre ... e ... de ... de 2022, de um crime de violência doméstica, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, e proibição de contactar com a ofendida M….
17.–À data dos factos o arguido residia na morada que consta nos autos, integrado no agregado da avó paterna e trabalhava (com contrato a termo), no ..., empresa sediada na localidade do … (…), que opera na comercialização de bacalhau.
18.–Convivia com elementos conotados com comportamentos desviantes e mantinha consumos regulares de haxixe e bebidas alcoólicas.
19.–No processo de desenvolvimento pessoal do arguido salienta-se a pertença a meio familiar disfuncional - os pais do arguido mantiveram trajetória de vida associada a toxicodependência e ao envolvimento em ilícitos criminais (tráfico de estupefacientes e roubo), não tendo sido capazes de exercer as funções parentais (a mãe do arguido viria a falecer há cerca de seis anos).
20.–O arguido permaneceu aos cuidados dos avós paternos, contexto familiar também caracterizado por vários constrangimentos, nomeadamente fragilidades na capacidade educativa e instabilidade das relações entre os seus elementos, associada às problemática aditivas apresentadas, quer pelo avô (consumo excessivo de álcool), do arguido, quer pelo progenitor (consumo de estupefacientes).
21.–Por motivos laborais, a avó do arguido manteve uma intervenção limitada nas várias dimensões do seu quotidiano, ficando o arguido maioritariamente entregue aos cuidados do avô e do pai. O arguido avalia como desajustada a intervenção/supervisão dos elementos do seu agregado familiar e na actualidade continua a vivenciar sentimentos de revolta e abandono relativamente aos pais.
22.–A significativa instabilidade pessoal apresentada pelo arguido, refletiu-se nas várias etapas do seu crescimento originando insucesso escolar, dificuldade em reconhecer/acatar a autoridade das figuras adultas e em progressivas condutas desajustadas.
23.–Aos 12/13 anos de idade, verificou-se o início do consumo de substâncias aditivas (álcool, tabaco e haxixe) e concomitantemente, progressiva desvinculação ao meio escolar (elevado absentismo).
24.–Quando abandonou o sistema regular de ensino, aos 17 anos de idade, apenas tinha completado o 6º ano de escolaridade, ainda foi encaminhado para um curso de formação profissional de técnico de ... de instalações, mas que não veio a concluir.
25.–Posteriormente, passou a exercer de forma irregular actividade laboral, na área da hotelaria, construção civil, superfícies comerciais e fabril, que intercalou com períodos de inatividade mantendo-se na dependência do suporte económico da família detentora de uma condição económica modesta e/ou das namoradas.
26.–O arguido tem dois filhos (actualmente com 12 e 3 anos de idade), fruto de gravidezes não planeadas de dois relacionamentos de namoro distintos, que residem com as respetivas progenitoras no … e …. Segundo o próprio, não tem participado no processo de crescimento dos menores.
27.–Em termos das suas características/funcionamento, o arguido revela ser um indivíduo imaturo, com evidências de acrescidas fragilidades emocionais e com reduzido sentido de responsabilidade.
28.–Apresentou ainda, dificuldades ao nível da gestão das emoções, do controlo dos impulsos e baixa tolerância à frustração. Revelou um limiar de activação reduzido (facilmente se sente provocado/ameaçado) e um estilo desadequado de resolução de problemas. Alguns dos referidos traços pessoais foram reconhecidos pelo arguido, que se assumiu como uma pessoa impulsiva/reativa em algumas situações que contrariam os seus planos e expectativas. Por outro lado, o próprio relatou dificuldades de concentração, instabilidade emocional e agitação corporal.
29.–No que concerne aos consumos de haxixe, revela desvalorizar as implicações negativas da referida substância, considerando que os referidos consumos promovem o seu bem-estar pessoal e o ajudam a reduzir o stress e ansiedade, não reconhecendo que os mesmos possam condicionar o seu funcionamento pessoal. O arguido nunca procurou apoio médico nas referidas áreas de saúde.
30.–Após a aplicação da OPHVE, em ... de ... de 2022, o arguido reintegrou o agregado da avó paterna, constituído actualmente pelo próprio, o progenitor e a avó, sendo esta última a assegurar a sua subsistência, através do valor da pensão de reforma que usufrui. O arguido mantém-se, desde então, em confinamento habitacional as 24h diárias, revelando globalmente uma satisfatória capacidade pessoal para o cumprimento da medida de coação.
31.–Em termos afetivos/relacionais o arguido foi caracterizado pela avó como um individuo emocionalmente instável, impulsivo/agressivo e com fraca tolerância à frustração. O referido funcionamento tem originado por vezes algum desajustamento comportamental do arguido no contexto familiar, sendo que, em ..., na sequência da agudização de conflitos, a avó apresentou queixa junto dos órgãos policiais, que deu origem ao NUIPC 283/….
32.–O arguido refere ter interrompido a ingestão de bebidas etílicas após ter iniciado a medida de coação a que se encontra sujeito (OPHVE), bem como ter deixado de consumir haxixe, há cerca de sete meses, por não dispor de meios económicos para a sua aquisição. A abstinência a bebidas alcoólicas, foi corroborada pela avó do arguido, que referiu não permitir a entrada de bebidas etílicas na sua habitação, no entanto, afirmou que o neto mantém o consumo de outras substâncias aditivas.”

b.-Factos não provados

(SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator)

“Da acusação

A.–Na sequência dessa troca de palavras, NR chamou ao arguido “filho da puta”.
B.–O arguido empunhou com a navalha que transportava consigo e desferiu um golpe na face de NR, atingindo-o no sobrolho.

Da contestação:

C.–NR interpelou no local outras pessoas ali presentes para que lhe vendessem produto estupefaciente e como ninguém tivesse consigo o que ele procurava, NR foi no encalce do arguido que, entretanto, começara o trajecto apeado em direcção à Av. da … para aí apanhar transporte de regresso a casa.
D.–NR abordou o arguido e insistiu para que ele telefonasse a alguém para lhe vender “droga”, tendo o arguido lhe respondido que o deixasse em paz.
E.–Após ter reiniciado a marcha para se retirar, NR chamou-o de “filho da puta”, tendo o arguido se voltado para trás e preguntou-lhe o que é que lhe tinha chamado.
F.–NR veio na direção do arguido com uma postura agressiva, com o punho da mão erguido e fechado, numa clara intenção de dar um murro no arguido, tendo este se esquivado, atingindo-o com um soco no sobrolho, após o que, temendo pela sua integridade física e de forma a repelir um ataque iminente deste, refugiou-se na retaguarda do arguido e empunhou o canivete.”

c.-Motivação

(SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator, mas mantendo-se os negritos e sublinhados)
“No apuramento da factualidade julgada provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na valoração crítica e conjunta dos meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento (artigo 127º do Código de Processo Penal). Assim, quanto aos factos provados o Tribunal fundou a sua convicção:
No Auto de Notícia a fls. 10.
No documento a fls. 11.
No aditamento a fls. 12 e 13.
Nas autorizações de busca a fls. 14 e 15.
No Auto de Apreensão a fls. 16 e no Auto de Exame Directo a fls. 104 (navalha).
Nas fotografias a fls. 18 e 50.
Na reportagem fotográfica a fls. 19 a 22 e 51.
No relatório de inspecção judiciária a fls. 43 e 44.
No print a fls. 58 e no teor de fls. 174.
No relatório de exame pericial a fls. 80 a 83.
No Auto de Diligência a fls. 88.
Nos documentos do INEM a fls. 181 a 186 e no Auto de Transcrição a fls. 187.
No episódio de urgência a fls. 202 a 204.
No Auto de Exame Médico a fls. 229 a 231.
No exame a fls. 283 a 285.
Na factura do hospital a fls. 312.
No documento a fls. 330 a 334 (contrato de trabalho do arguido).
No print a fls. 339.

Nas declarações do arguido … o qual em sede de audiência de julgamento, tal como anteriormente o havia feito em sede de primeiro interrogatório judicial, afirmou que nesse dia estava na Rua do … no …, zona de pescadores perto da praia, tendo-se cruzado com o ofendido. Conhecia o ofendido de vista, de um café no …, o “…”, que o arguido costuma frequentar. O ofendido dirigiu-se a si e perguntou-lhe se ele tinha canabis, tendo-lhe respondido que não. O ofendido insistiu para ele telefonar a alguém que lhe arranjasse canabis, tendo o arguido negado, virando-lhe as costas. O arguido tinha chamado um táxi e pretendia sair do local.
Após ter virado as costas ao ofendido, ele chamou-o de “filho da puta”, pelo que foi ter com ele e disse-lhe “chama lá filho da puta outra vez”. Aí, o NR chamou-o de “filho da puta” e avançou sobre si para lhe dar um soco, tendo o arguido se esquivado do mesmo e lhe desferido um soco, que atingiu o NR na cara (o arguido não usava anéis, nem tinha nada nas mãos). O NR tentou então dar-lhe outro soco, mas o arguido esquivou-se, metendo-se atrás do NR, tirou um canivete que tinha guardado no bolso da frente das calças que envergava, abriu o canivete e espetou-o por quatro vezes nas costas daquele. Após, o arguido saiu do local, apanhando um táxi e indo para casa, e o NR entrou no seu veículo automóvel.
Igualmente, após os factos o canivete caiu-lhe das mãos, não o tendo apanhado pois era de noite e o local era escuro.
Não se recorda do movimento que fez para atingir o NR com a lâmina do canivete, pensando que fez um movimento lateral como quem o quer cortar com o mesmo e não espetar a lâmina. O NR ainda tentou virar-se para si, mas o arguido impediu-o, nunca tendo o NR tentado fugir do local.
Agiu da forma descrita pois o NR é muito maior do que o arguido e teve medo do mesmo, tendo ficado “cego”, não sabendo onde o atingiu, pois só se queria defender e sair do local.
No local estavam apenas o arguido e o NR.
Reconhece o canivete apreendido a fls. 16 e examinado a fls. 85 como sendo aquele com que atingiu o ofendido, andando normalmente com o mesmo, usando-o como portachaves e para limpar as unhas.
Ficou muito ofendido com o NR por este o ter apelidado de “filho da puta”, pois a sua mãe morreu quando o arguido tinha 22 (vinte e dois) anos, facto de que o NR tinha conhecimento, pois tal foi comentado no café frequentado por ambos.
Nessa noite tinha ingerido bebidas alcoólicas, reconhecendo estar “tocado”, mas não estava embriagado, nem a cambalear, não tendo consumido produtos estupefacientes. Reconhece que tem problemas de ansiedade e é muito nervoso, não tomando qualquer medicação.
Quanto ao NR, este pareceu-lhe estar drogado, pois estava muito suado, como quem está a “ressacar”.

No depoimento da testemunha P…, agente da PSP, o qual de forma isenta e credível confirmou o teor do Auto de Notícia a fls. 10 por si elaborado, afirmou que nessa madrugada recebeu uma chamada pela central rádio dando notícia de um indivíduo agredido com uma arma. Deslocou-se pouco tempo depois ao local, encontrando o ofendido sozinho, sentado no lugar do condutor no interior de um veículo automóvel estacionado na Av. da …, o qual lhe disse que havia sido agredido com quatro facadas por um indivíduo magro, caucasiano, com o cabelo amarelo, que sabia chamar-se BB, tendo os factos ocorrido na .... A zona onde os factos ocorreram é junta ao rio, não sendo conotada com tráfico de estupefacientes. O ofendido tinha sangue nas costas, razão pela qual foi chamado o 112, tendo o médico lhe dito que dois dos golpes eram bastante profundos. Não reparou que o ofendido tivesse ferimentos na cara, nem este lhe pareceu estar alcoolizado, nem drogado, estando calmo. Quando abordou o ofendido este estava a cerca de 1 km do local dos factos, tendo conduzido até ao local onde foi abordado pela testemunha.

No depoimento da testemunha C…, inspectora da Polícia Judiciária, a qual de forma isenta e credível afirmou que no dia .../.../2022 estava de prevenção aos homicídios e nessa noite, perante a notícia dos factos, falou com o ofendido no hospital, o qual apresentava um discurso coerente no relato que fez dos factos, estando ciente do que se tinha passado nessa noite, parecendo-lhe estar sob o efeito de medicação pois já estava a ser observado no hospital.
Igualmente, deslocou-se ao local, em busca de droga, garrafas de álcool e vestígios de sangue, não tendo encontrado nada de relevante, conforme Auto de Diligência a fls. 88.

No depoimento da testemunha R…, agente da PSP, o qual de forma isenta e credível confirmou o teor do Aditamento a fls. 12 e 13 por si elaborado, o qual de forma isenta e credível afirmou que, na sequência dos factos e atenta a descrição do suspeito, a qual correspondia à descrição do ora arguido, o qual conhecia do exercício das suas funções, deslocou-se à casa da avó do mesmo, onde este residia, tendo o arguido e a sua avó consentido na realização de uma busca domiciliária, nada tendo encontrado de relevante. Após, perguntou ao arguido pela faca, o qual lhe disse o local onde a mesma se encontraria e as características da mesma. Perante tal, na presença do arguido, deslocou-se ao local – uma zona escura, sem luz – onde encontraram a faca, a qual apreendeu, conforme Auto de Apreensão a fls. 16 e reportagem fotográfica a fls. 19 a 22 por si elaborada.
Conhece o arguido de outras intervenções no exercício das suas funções policiais, caracterizando-o como um indivíduo que “ferve em pouca água”, “um barril de pólvora”, o qual olha para as pessoas com um ar provocador.

No depoimento da testemunha NR…, o qual de forma isenta e credível afirmou que conhecia o arguido de vista, do bairro dos …, no …. Nessa madrugada deslocou-se sozinho, de carro, à Av. da …, no …, indo à procura de alguém que lhe pudesse vender haxixe, julgando que alguém naquele local – zona das praias –, junto ao Clube …, pudesse ter produto estupefaciente. Saiu do carro e viu o arguido com um grupo de indivíduos, tendo o arguido vindo na sua direcção, perguntando-lhe se “queria ganza”. Respondeu-lhe que não queria, tendo o arguido o questionado o porquê de este não querer, mantendo o arguido as mãos atrás das costas. De imediato, estando de frente para si e bastante próximo, o arguido desferiu-lhe com o seu braço direito um primeiro murro que o atingiu nas costas, seguido de outro murro com o braço direito que o atingiu, igualmente, nas costas, mas mais acima do que o primeiro, tendo aí sentido a faca, apercebendo-se então que ele tinha uma faca na mão. O arguido ainda lhe desferiu um murro com o braço esquerdo, que o atingiu no sobrolho direito, após o que a testemunha lhe virou as costas para fugir do local, tendo o arguido ainda lhe desferido duas facadas nas costas. Após, o arguido saiu do local e a testemunha foi para o seu carro e saiu do local, conduzindo cerca de 1 km, após o que telefonou para a polícia. Nunca chegou a ver a faca, pois o arguido até o atingir manteve sempre as mãos atrás das costas e o local onde os factos ocorreram era pouco iluminado.
Nessa noite tinha ingerido bebidas alcoólicas, e pensa que não tinha fumado haxixe, sendo que só consumia haxixe.
Não chamou nomes ao arguido, nem o apelidou de “filho da puta”, não tendo havido troca de palavras, ou qualquer discussão entre ambos, não lhe tendo batido, nem se tendo virado ao mesmo.
Não quis adquirir haxixe ao arguido pois já anteriormente lhe havia adquirido tal produto estupefaciente e era de má qualidade, sendo que não era a primeira vez que o arguido lhe oferecia produto e a testemunha lhe dizia não o querer comprar, nunca tendo tido problemas com ele anteriormente.
A testemunha mede cerca de 1,78 m de altura e tem cerca de mais 40 kg do que o arguido.
Após os factos nunca mais viu o arguido.

No depoimento da testemunha CC, enfermeira, a qual fez a triagem aquando da admissão do ofendido NR no ..., no dia .../.../2022, conforme episódio de urgência a fls. 202 a 204, a qual de forma isenta e credível afirmou não ter memória da situação concreta, mas pelo episódio de urgência o ofendido apresentava uma situação urgente, necessitando de observação imediata, tendo sido encaminhado para a sala de reanimação, não se recordando se o mesmo estaria embriagado.
Mais referiu que a morfina causa sonolência, bem como esclareceu que as duas lesões na região lombar são as sofridas na zona mais lateral das costas, e as lesões sofridas na face posterior do tórax são as lesões na zona superior, conforme fotografia a fls. 18.

Assim, perante estes elementos probatórios temos que:

Quanto ao facto provado descrito em 1) o mesmo decorreu das declarações do ofendido NR, que afirmou que naquele dia, de madrugada, deslocou-se à ..., no …, com o objectivo de comprar canabis para o seu consumo. Quanto à hora concreta em que se deslocou a esse local, a mesma decorre da conjugação do Auto de Noticia a fls. 10 e do teor do telefonema da PSP para o INEM a fls. 181 a 187, de onde resulta que a PSP chegou junto do ofendido e telefonou para o INEM pelas 03:01 horas, pelo que os factos terão ocorrido necessariamente entre as 02:30 e as 03:00 horas da madrugada.

Relativamente aos factos provados descritos em 2), 3), 4) e 5) os mesmos resultaram das declarações do ofendido NR, o qual os descreveu, afirmando que ao avistar o ofendido o arguido se dirigiu a ele, questionando-o se não lhe queria comprar haxixe, o que a testemunha negou, pois antes já lhe tinha adquirido produto estupefaciente, e o mesmo era de má qualidade. Em acto contínuo, o arguido aproximou-se do NR e de frente para o mesmo, com a sua mão direita desferiu-lhe dois golpes nas costas, atingindo-o na região lombar, sendo que o ofendido não viu o que o arguido tinha na mão pois este antes de lhe desferir os golpes tinha as mãos atrás das costas. Após, o arguido com a sua mão esquerda desferiu um soco na face de NR, atingindo-o no sobrolho. Em face do sucedido e apercebendo-se perante o segundo golpe que levou nas costas que o arguido teria uma faca, pois sentiu “picar”, NR virou costas ao arguido para fugir do local, tendo o arguido ainda lhe desferido mais dois golpes nas costas, atingindo-o na face posterior do tórax, após o que abandonou o local, desfazendo-se da navalha.
Estas declarações são compatíveis com os ferimentos sofridos pelo ofendido, conforme episódio de urgência a fls. 202 a 204, Auto de Exame Médico a fls. 229 a 231 e fotografias a fls. 18 e 50, sendo certo que o mesmo foi atingido nas costas com um objecto perfurante, designadamente com a navalha apreendida a fls. 16, examinada a fls. 104 e fotografada a fls. 82 (vide reportagem fotográfica a fls. 19 a 22). A navalha apreendida nos autos foi reconhecida pelo arguido como sua, com a qual este reconheceu ter atingido o ofendido nas costas, tendo sido recuperada mediante indicações do próprio arguido, a qual tinha ADN do ofendido na respectiva lâmina, conforme exame a fls. 284 e 285.
Acresce que, o arguido, apesar com um enquadramento um pouco diverso, também reconheceu ter desferido um soco na cara do ofendido e quatro golpes com a sua navalha nas costas do mesmo, após o que saiu do local, sendo que o NR também saiu do local, ao volante do seu veículo automóvel.
Aliás, pelo ofendido NR foi referido, igualmente, que para fugir do arguido, meteu-se no seu veículo automóvel, conduzindo-o cerca de 1 km, após o que telefonou para a PSP, que foi em seu auxílio, facto corroborado, igualmente, pelo depoimento da testemunha P…, agente da PSP, os quais chamaram o INEM, conforme teor de fls. 181 a 187, que transportaram o ofendido para o hospital (cfr. fls. 11).
Pelo arguido foi dito que foi o ofendido quem se lhe dirigiu, querendo que ele lhe vendesse produto estupefaciente e como o arguido disse que não tinha, insistiu que este ligasse a alguém para lhe arranjar produto, o que o arguido negou. Perante tal, o ofendido apelidou-o de “filho da puta”, tendo o arguido lhe dito para este o repetir, o que o ofendido fez, apelidando de novo o arguido de “filho da puta” e após levantou a mão para lhe desferir um murro, tendo o arguido se desviado e lhe dado um soco na cara. Após, o ofendido levantou a mão para lhe desferir outro soco, mas o arguido desviou-se do mesmo, colocou-se nas suas costas e desferiu-lhe com a navalha que trazia com ele os quatro golpes nas costas do ofendido para se defender.
Porém, o ofendido negou ter apelidado o arguido de “filho da puta”, bem como de o ter tentado agredir com murros, afirmando que foi o arguido quem o abordou para lhe vender produto estupefaciente, descrevendo os factos de forma coerente e compatível com as lesões sofridas – golpes mais profundos na região lombar quando o arguido os desfere de frente para si e golpes menos profundos na face posterior do tórax quando, já de costas para o arguido, o ofendido tenta fugir do mesmo e sair do local.
Por outro lado, não se compreende como o arguido, de frente para o ofendido, se conseguiria desviar do mesmo, colocando-se nas suas costas, desferindo-lhe quatro golpes de faca, sem que o ofendido se tentasse virar de frente para o mesmo, de forma a defender-se e/ou a tentar perceber o que é que o arguido estava a fazer à sua retaguarda, sendo certo que o ofendido nunca atingiu o arguido.
Acresce que, ao contrário do referido pelo arguido, de que o ofendido neste dia estava alcoolizado e drogado, suando como quem está a ressacar, a verdade é que dos depoimentos das testemunhas P…., agente da PSP, e C..., inspectora da PJ, o mesmo não lhes pareceu estar alcoolizado, nem drogado, apresentando um discurso coerente.
Por outro lado, no local dos factos não foi detectado nenhum vestígio de produto estupefaciente, nem de bebidas alcoólicas, conforme teor do Auto de Diligência a fls. 88, cujo conteúdo foi confirmado pelo depoimento da testemunha C….
Por último, ao contrário do referido pelo arguido, não existe uma manifesta desproporção de tamanho entre o arguido e o ofendido, o que teria motivado a sua “conduta defensiva”, pois o arguido e o ofendido têm sensivelmente a mesma altura – o arguido 1,79 m e o ofendido 1,78 m (cfr. prints a fls. 58 e 339), tendo o arguido 28 anos e o ofendido 46 anos aquando dos factos, sendo o ofendido apenas mais gordo do que o arguido, o que também não o torna mais ágil.

Assim, o Tribunal valorou a versão do ofendido, em detrimento da versão do arguido, dando como não provados os factos descritos em a), c), d) e) e f).
Por outro lado, das declarações do ofendido NR e do arguido resultou unânime que o arguido não lhe desferiu um golpe com a faca na face, nem o mesmo apresentava um ferimento dessa natureza na face aquando da sua admissão no serviço de urgência do ..., quando nessa mesma noite foi assistido pelas 03:42 (cfr. episódio de urgência a fls. 202 a 204). Por outro lado, o ofendido referiu que nunca viu a navalha na mão do arguido, só se apercebendo que este teria uma faca na sua mão direita quando este lhe desferiu o segundo golpe nas costas, pelo que o Tribunal deu como não provado o facto descrito em b).
Relativamente aos factos provados descritos em 6), 7) e 8), os mesmos resultam do depoimento do ofendido NR, bem como do teor do episódio de urgência a fls. 202 a 204 e do Auto de Exame Médico a fls. 229 a 231.
Relativamente ao facto provados descrito em 9), o mesmo decorre do Auto de Apreensão a fls. fls. 16, da fotografia a fls. 82 e do Auto de Exame a fls. 104.
No que concerne aos factos descritos em 10), 11) e 12), designadamente quanto à intenção do arguido ao agir da forma descrita, tal emerge do facto de este ter utilizado uma navalha com 6,5 centímetros de lâmina, desferindo com a mesma quatro golpes a curta distância nas costas do ofendido, atingindo-o na face posterior do tórax e na região lombar, causando-lhe duas feridas na face posterior do tórax de 3 cm de comprimento e 2 cm de profundidade, e duas feridas com 4 cm de profundidade na região lombar, atingindo-o numa zona que aloja órgãos vitais, sendo que a conduta tinha a potencialidade de os atingir e assim provocar a morte do ofendido.
Acresce que, os golpes de faca desferidos pelo arguido não foram superficiais, muito pelo contrário, pois dois deles, os desferidos na região lombar, tinham 4 cm de profundidade, de onde emerge que ao desferi-los o arguido não quereria apenas magoar o ofendido.
Por outro lado, o arguido utilizou uma navalha com 6,5 centímetros de lâmina, que trazia consigo, conhecendo necessariamente as características da navalha que detinha, bem sabendo que a mesma era idónea, ao ser utilizada, a causar lesões corporais, mormente a morte do visado com a mesma. Aliás, cumpre realçar que o arguido espetou cerca de dois terços da lâmina nas costas do ofendido por duas vezes.
Assim, ao executar os quatro golpes, de onde emerge uma elevada energia criminosa e uma intenção redobrada, o arguido previu necessariamente que pudesse vir a atingir NR numa zona vital e provocar-lhe a morte, conformando-se com essa possibilidade.
Por outro lado, atento o contexto dos factos e as declarações do ofendido NR, o arguido agiu motivado pelo facto de aquele se ter negado a comprar-lhe produto estupefaciente, sendo que o caracter intempestivo e impulsivo do arguido, o qual decorre do teor do relatório social, das declarações da testemunha R…, bem como da forma como prestou declarações em sede de primeiro interrogatório judicial e em julgamento, credibilizam as declarações do ofendido.
Quanto ao facto provado descrito em 13), a consciência da natureza penal dos factos corresponde ao conhecimento que qualquer cidadão possui e que o arguido necessariamente não podia deixar de ter, considerando a natureza dos factos que praticou, a sua idade e experiência de vida.
Relativamente ao facto provado descrito em 14), o mesmo resulta do episódio de urgência a fls. 202 a 204 e da factura a fls. 312.
Relativamente ao facto provado descrito em 15), o mesmo resulta do print a fls. 339.
No que concerne aos antecedentes criminais o Tribunal baseou-se no teor do Certificado de Registo Criminal a fls. 350 a 352 e da certidão a fls. 374 a 381 e, relativamente à situação socioecónomica do arguido, o Tribunal teve em conta o teor do relatório social elaborado pela DGRSP junto a fls. 358 a 360 e do documento a fls. 330 a 334 (factos provados descritos em 16) a 32)).”

2.– Objeto do recurso

O poder de cognição do Tribunal ad quem mostra-se primariamente delimitado em função das conclusões extraídas pelo recorrente da sua fundamentação de motivação, já que é nelas que se sintetizam as razões da sua discordância com a decisão recorrida (arts. 402.º;403.º;412.º/1CPP).
Contudo, está ainda o Tribunal ad quem obrigado a decidir todas as questões de conhecimento ex officio, tais quais as nulidades insanáveis, ou que não se mostrem sanadas, que afetam o processado (arts. 379.º/2;410.º/3CPP) e dos vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (art. 410.º/2CPP) e que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19outubro1995, in DR I-Série-A, de 28dezembro995 e Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2005, de 20outubro2005, in DR I-Série-A, de 7janeiro2005).
Umas e outras definem, pois, o objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior.
O recurso interposto de uma Sentença abrange toda a decisão (art. 402.º/1CPP) e mesmo que opere limitação do recurso a uma parte da decisão tal não prejudica o dever de o Tribunal ad quem retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida (art. 403.º/3CPP).
Nos termos do disposto no art. 428.º/1CPP “[a]s relações conhecem de facto e de direito” “devendo por isso, subsumir o direito aos factos”. (nesta específica expressão, Pires da Graça, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 16maio2012, NUIPC 30/09.7GCCLD.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt/jstj)
Resumindo, havendo tão só recurso em matéria de facto, a Relação conhece do objeto do recurso, e se modificar a matéria de facto, extrai as consequências jurídicas decorrentes; sendo o recurso de facto e de direito, conhece de ambos; sendo o recurso somente de direito, conhece do recurso, sem prejuízo do disposto no art. 410.º/2/3CPP.
Ou seja: a função do Tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que o convocou o Tribunal ad quem a um juízo de mérito.
Impõem os art. 368.º;369.ºCPP - por remissão do art. 424.º/2CPP -, que o Tribunal da Relação conheça das questões que constituem o delimitado objeto do recurso pela seguinte ordem: a) das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão; b) das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412.ºCPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410.º/2CPP; c) das questões relativas à matéria de direito.
Por parte do AA inexiste a invocação de questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, sendo que oficiosamente este Tribunal Superior não vislumbra que disso seja caso.
À luz destes considerandos, foquemo-nos em quais sejam as questões a decidir neste recurso, na certeza de que face à ordem de alegação, será caso de alterar a normalidade de ordem decisória somente no intuito de melhor compreensão de raciocínios que se terão que espelhar ao longo do presente acórdão. Assim o é porque a peça recursória do AA começa por nos dizer que “visa a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e versa sobre matéria de direito, como se consente no disposto pelo artº. 410º/2/als a) e c) do C.P.P”. Não obstante, certo é que nas conclusões o recorrente não segue esse rumo antes restringe quando nos diz que [o] presente recurso tem por objecto a alegação do vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal, por considerar o Recorrente que, e salvo o devido respeito, a decisão sub judice padece do vício de Erro notório na apreciação da prova“, o que importará apreciar, em especial quando as veras intenções de recurso se prendem com invocação de erro de julgamento.

Sobejam, então, para apreciar na sede de recurso.
1.ª –vícios decisórios;
2.ª –erro de julgamento;
3.ª –violação das regras de apreciação da prova;
4.ª –qualificação jurídica dos factos;
5.ª–medida da pena, se operar condenação por crime diferenciado;

1.º– vícios decisórios

Os vícios da matéria de facto que integram as categorias das als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.ºCPP, não obstante a diversidade de elementos, revertem todas as inconsistências no domínio da prova, ou mais precisamente, no processo lógico e racional de formação da convicção sobre a prova. São anomalias decisórias ao nível da confeção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. São, como tal, vícios internos da decisão, não de julgamento, umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no art. 374.º/2CPP, concretamente à exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa (ainda que concisa) dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.

Tal recurso dá ao Tribunal ad quem a possibilidade de conhecer a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a decisão de direito não encontre na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo (art. 410.º/2a) CPP); de verificar uma contradição insanável da fundamentação sempre que através de um raciocínio lógico conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos (art. 410.º/2b)CPP); de concluir por um erro notório na apreciação da prova sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo Tribunal (art. 410.º/2c)CPP).

Sobre tal matéria a seguir nos pronunciaremos, sendo que desde já se pode delinear que não obstante a peça recursória do AA começar por reportar dois vícios - os do “artº. 410º/2/als a) e c) do C.P.P” certo é que somente quanto à questão de reporte à alínea c) – erro notório – algo ali nos é dito.
Assim sendo, como o é, dado que nem no corpo da fundamentação de motivação, nem no corpo das conclusões, consta uma única alegação delimitadora da questão de reporte a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a qual somente se mostra colocada em sede de epigrafe da peça de recurso, mais não resultando, uma vez lida a decisão sob recurso e ponderando o seu sentido interno de texto, inexiste qualquer razão para oficiosamente de tal conhecer, e dai ser forçoso concluir que não resulta presente o vício da previsão do art. 410.º/2a)CPP, o que aqui se declara.
Oficiosamente o mesmo se declara por reporte ao vício da previsão do art. 410.º/2b)CPP.

a)- Erro notório na apreciação da prova

Debrucemo-nos, então, acerca do vício do erro notório na apreciação da prova (alínea c) do art 410.º/2CPP).
Este ocorre quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Existe erro notório na apreciação da prova quando o Tribunal valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, dando como provado o que não pode ter acontecido e aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de pela simples leitura da decisão não passar o erro despercebido ao cidadão comum.
É dizer, constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas e apreciada não por simples projeções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum”.

Descendo ao concreto, cumpre dizer que da leitura da decisão não resulta nos factos provados e não provados (ou seja, naqueles que são objeto do julgamento, os quais não passam necessariamente pelas ideias e/ou conjeturas do AA) algo que não possa ter acontecido ou que a prova tenha sido valorada contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados. Assim o é, desde logo, porque os factos estão descritos de forma clara e percetível, mostrando-se fundamentados de forma lógica e com base em prova produzida, estando em conformidade com a mesma. É dizer, da leitura direta do Acórdão sob recurso, apenas em si mesmo considerado, não ressalta a verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.

Concluindo – na certeza de que a presente análise não consubstancia atividade de apreciação e julgamento da prova, sim que o presente exercício se limita a verificar se a decisão contém algum ou alguns dos mencionados vícios – há que afirmar que do texto da motivação de facto resulta uma fundamentação lógica, onde é explicado o modo como se chegou à convicção a que se chegou quanto aos factos provados, sem que algum erro da gravidade em causa se lhe possa apontar, o que aqui se declara.

Improcede, pois, o recurso quanto a esta questão.

Porém, face ao teor da peça de recurso, forçoso é admitir que o AA está – certamente de forma involuntária, mas sempre em última linha - a invocar vicio do art. 410.ºCPP, in casuerro notório na apreciação da prova, por o confundir com uma divergência entre aquela que é a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o Tribunal a quo firmou sobre os factos, questões essas do âmbito do respeito pela livre apreciação da prova, como princípio inscrito no art. 127.ºCPP, pelo que sempre se dirá que, igualmente, o erro-vício também não se confunde nem com errada apreciação e valoração das provas, nem com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida, pois que, tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências, indagando-se o primeiro através da análise do texto e reconduzindo-se a última a erro de julgamento da matéria de facto, analisando-se assim em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas.

Vejamos.

Com o recurso interposto – apesar de no mesmo se reportar em concreto o art. 410.º/2CPP - , o que o AA visa é pôr em causa a factualidade apurada e a formação da convicção do Tribunal a quo, o que antes se traduz na invocação de um erro de julgamento, nos termos previstos no art. 412.º/3CPP, mas que assim não se mostra qualificado.

2.º–Erro do julgamento

O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e que, como tal, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação. O mecanismo por via do qual deverá ser invocado é o da impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412.º/3/4/6CPP, a qual envolve a reapreciação da atividade probatória realizada pelo Tribunal a quo e da prova dela resultante, mas com limites – como infra se esclarecerá -, porque, além de não se traduzir num novo julgamento, está subordinada ao cumprimento de um dever muito específico de motivação e formulação de conclusões do recurso.

In casu na ótica do AA, o erro do julgamento contém-se nos pontos de facto 2 e 12 da matéria de facto provada no Acórdão de 1.ª instância, a) da matéria de facto não provada no Acórdão de 1.ª instância e 2 e 3 da contestação por si apresentada, uma vez que entende que das suas declarações, na parte que extravasam a parcial confissão de facto, e dos depoimentos das testemunhas inquiridas, conjuntamente analisados, não se extrai prova suficiente da verificação dos factos provados, antes devendo os não provados àquela categoria passar.

De forma direta diremos que em momento algum do recurso – na sua fundamentação de motivação e nas suas conclusões – se mostram cumpridas as exigências impostas pela norma do art. 412.º/3/4/6CPP.

A especificação dos “concretos pontos de facto”(art. 412.º/3a)CPP) traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. Já a especificação das “concretas provas” (art. 412.º/3b)CPP) só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida. Finalmente, a “especificação das provas que devem ser renovadas” (art. 412.º/3c)CPP) implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no art. 410.º/2CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. art. 430.ºCPP).

No recurso interposto, como bem refere a Digníssima Procuradora-Geral Adjunta, na sede do seu parecer de reporte ao art. 416.ºCPP, [o] recorrente o que pretende com o recurso é impugnar a decisão sobre a matéria de facto, pois que faz apelo a elementos externos ao texto do acórdão, prova pessoal e documental, para concluir que o Tribunal a quo não podia ter dado como provados os factos em 2 e 12 e como não provados os factos 3 da acusação e 2 e 3 da contestação, quer porque não se provaram quer porque o Tribunal a quo, em face da prova, deveria ter ficado em estado de dúvida quanto a eles. Porém, o AA não deu satisfação, sequer mínima, a qualquer um destes três requisitos e, como tal o presente recurso não consubstancia uma forma de impugnação ampla da decisão de facto.

Assim o é porque nem na fundamentação da motivação, nem nas subsequentes exigíveis conclusões (assim validando a opção infra também à luz do Acórdão do Tribunal Constitucional 320/2002, de 9julho, processo 754/01, in DR, I-A, de 7outubro2002) o AA aponta divergentes provas que imponham decisão diversa da recorrida, em cumprimento do art. 412.º/3b)/4CPP, antes simplesmente se digna a discordar do que vá além da sua parcial própria confissão, focar que o depoimento de testemunhas e o teor de documentos somente expressam dúvidas sobre os plurais factos que invoca..
Finalizando e porque esse é o caso dos autos, recorrendo às palavras de Eduarda Lobo (Acórdão do TRPorto, de 6outubro2010, NUIPC 463/09.9JELSB.P1, acessível in www.dgsi.pt) dir-se-á que“[o] recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo Tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.” Assim o é porque o AA se expressa em moldes tais que tão só pretende substituir o labor de valoração de prova e subsequente convicção do julgador, pela sua própria convicção, sem qualquer critério adequado, quão mais legal, para tal, “escolhendo” parcelas de depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, mas sem sequer especificar em que parte dos mesmos ali se podem valer. Ora tal processo não é aquele que um Estado de Direito como Portugal determina em Lei. Neste são os julgadores em 1.ª instância quem, em nome do povo e em cumprimento do comando constitucional do art. 202.ºCRP, exercendo a função jurisdicional, cumprem para tanto as regras que lhe determinam o poder/dever de apreciar livremente a prova. Apreciação que há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal – Coimbra Editora –1974, p. 202/205) A forma de descortinar o erro de julgamento não passa, pois, pela mera alegação da discordância entre a convicção próxima da justiça por mão própria em que o recorrente forma a sua – sempre indissociável - subjetiva convicção. Antes tem que passar pela demonstração inequívoca de que o Tribunal desdizeu as exigidas regras da experiência e afrontou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas, etc.). Por isso, quando o recorrente pretende apenas sindicar a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. E assim o é porque antes é obrigação do Tribunal atuar de forma livre no conferir da credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento doutros, uma vez que o faça de forma explicitada e convincente – o motive -, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos atos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defendendo-se uma outra solução, o Tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (cfr. Damião da Cunha, obr. cit., p. 37)

3.º- Violação das regras de apreciação da prova

Cumpre, desde já, esclarecer o AA que mesmo que válida fosse a sua impugnação da matéria de facto, certo é que o poder de alteração da prova deste Tribunal ad quem não se poderia alguma vez fundar na base da subjetividade do desacordo por parte do AA quanto à mesma. De facto, só quando o Tribunal ad quem puder concluir que o Tribunal a quo não podia ter concluído, como concluiu na consideração daqueles factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detetado. Contudo, se a convicção ainda puder ser objetivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador do Tribunal a quo, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova, da qual já fortemente não beneficia o Tribunal ad quem. É dizer havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida, uma vez que a decisão sob recurso se mostre devidamente fundamentada e caiba dentro de uma das possíveis soluções, face às regras da experiência comum, terá esta que prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, porquanto foi proferida em obediência ao previsto nos art.s 127.º e 374.º/2CPP.
Vejamos como assim é no caso concreto.
Considerando, desde logo o supra analisado – seja em sede de intenção (sem concretização, face ao incumprimento de elementares regras de forma) de impugnação alargada da matéria de facto (erro de julgamento), seja em sede de invocação, direta e concreta, de vício decisório (somente quanto ao caso de erro notório na apreciação da prova) – é forçoso considerar que, percorrendo o que são umas oblíquas alegações onde envereda por uma notória confusão de institutos e modos de sindicância dos mesmos, o AA mais não sustenta que a pretensão de aludir à prova produzida na audiência de discussão e julgamento, prova esta em que assentou a convicção do Tribunal a quo, para, a partir daí e em conjugação com a matéria factual assente, aferir que a mesma não suporta os factos que foram dados como provados, e outros que foram dados como não provados, mas neste caso, não por força de um erro, mas por violação de regras gerais da experiência, de regras ou princípios científicos ou de princípios atinentes à prova, que se impunham como limites à livre apreciação da prova e que só por lapso patente não foram sido considerados ou antes foram postergados, mormente por violação do princípio da presunção de inocência/ in dubio pro reo. É esta a tese final do recurso do AA, ainda que, como já se disse, deveras confusa na explanação.
Vejamos, delimitando antes de mais a concreta alegação do AA – objeto do recurso -, o qual sustenta que não se podiam ter como provados os factos
2
Aí chegado NR foi interpelado pelo arguido, tendo-se gerado uma troca de palavras entre ambos, pois o NR disse ao arguido que não lhe queria comprar produto estupefaciente.
e 12
Tendo agido motivado pelo facto de aquele se ter negado a comprar-lhe produto estupefaciente.
antes devendo ser dar como provados os factos (que consta da matéria de facto não provada)
a)
Na sequência dessa troca de palavras, NR DD chamou ao arguido “filho da puta”.
e ainda os factos (constantes da contestação)
2
No dia, hora e local dos factos, o arguido não interpelou NR para lhe vender produto estupefaciente, antes pelo contrário.
3
Foi o NR, que se mostrava com um comportamento visivelmente alterado, quem interpelou o arguido para que este lhe vendesse haxixe.
8
Já tinha reiniciado a sua marcha para se retirar quando o NR chamou-o “filho da puta”.
9
Ao ouvir esta expressão, o arguido voltou-se para trás e perguntou-lhe o que é que lhe tinha chamado.
10
Nesta altura, o NR com uma postura agressiva veio na sua direcção com o punho da mão erguido e fechado, numa clara intenção de dar um murro no arguido, ao que este esquivou-se, atingindo-o por sua vez com um soco no sobrolho.

A análise desta questão terá sempre que ser efetuada à luz da especificidade dos autos. De facto não existindo válida impugnação da matéria de facto, como supra se elucidou, qualquer eventual violação das regras de apreciação da prova e dentre estas as regras da experiência comum e livre convicção e em especial do princípio da presunção de inocência/ in dubio pro reo terá que ser vislumbrada com recurso a critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto supra elencados. É dizer, tal violação tem que resultar evidenciada no texto da decisão recorrida, só por si ou conjugado com as regras da experiência comum. (neste sentido, Inácio Monteiro, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4fevereiro2015, NUIPC 42/13.6GCMBR.C1, acessível in www.dgsi.pt/jtrl, onde se pode ler que “ [a] apreciação pelo Tribunal da Relação da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto, isto é, deve ser da análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, seguindo o processo decisório, evidenciado pela análise da motivação da convicção, se se chegar à conclusão que o Tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido.)”

a)-Princípio de presunção de inocência/in dubio pro reo

O tónica que o AA coloca no recurso é a de se insurgir sobre a apreciação da prova, invocando existir desrespeito do princípio da presunção de inocência/ in dubio pro reo, ainda que veramente se esteja a reportar à violação de regras da experiência comum e livre convicção, no tocante à valoração que o Tribunal faz do confronto entre a sua versão dos factos – pelo seu depoimento trazido à colação - e a versão do ofendido, associada a depoimentos testemunhais e documentos. Tal força à inicial apreciação deste princípio da presunção de inocência/ in dubio pro reo.
A paráfrase in dubio pro reo não é atualmente um simples brocardo, adágio ou aforismo, mas um princípio fundamental no nosso direito processual probatório, decorrendo da presunção constitucional de inocência até ao trânsito em julgado de decisão condenatória (art. 32.º/2CRP) e consiste em: na dúvida sobre os factos a provar, o Tribunal decide em favor do AA.
Existindo um laivo de dúvida, por mínimo que seja, sobre a veracidade de um facto em que se alicerça uma imputação delituosa, ninguém pode ser condenado com base nesse facto. Quando existir uma réstia de dúvida, não pode haver punição: isto é, a punição somente pode verificar-se, quando o julgador adquirir ou formar a convicção da certeza da imputação feita ao acusado, com base nas provas produzidas. Mas, para que a dúvida seja relevante para este efeito, “há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não qualquer dúvida”(…) “a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido”. (Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, I, p. 205 e 215)

Conexionando-se com a matéria de facto, atua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito - tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objetivo e tipo subjetivo -, quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação (tipos justificadores), quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.
Dai que, como refere Agostinho Torres (Acórdão desta 5.ª Secção do TRLisboa, de 1fevereiro2011, NUIPC 153/08.0PEALM.L1-5, acessível in www.dgsi.pt/jtrl) “[o] princípio in dubio pro reo, é um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto (…); traduz o correspetivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos típicos, é um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido”.
Este quadro deve estar sempre presente na mente do julgador, mas a este, em cada caso concreto, designadamente quando está em causa a mediação e oralidade da prova, pautado pelo princípio da livre apreciação da prova, cabe-lhe a apreciação crítica que faz dos vários elementos probatórios e em que termos os conjuga, valorando e credibilizando uns em detrimento de outros. Tal exame crítico (expressamente imposto com a revisão do CPP operada pela Lei 59/98-25agosto, através do aditamento da expressão “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal” apenas deu formato de lei àquilo que era já o entendimento e a prática diária forense; a discussão passou agora para a abrangência que aquela expressão pode comportar) mais não consiste do que na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o Tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo Tribunal e das razões da sua convicção. Dir-se-á, contudo, que o rigor e a suficiência do exame crítico haverão de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo imprescindível, mas do mesmo modo bastante, que sejam percetíveis as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte. Mas como é evidente, a lei “não obriga os julgadores a uma escalpelização de todas as provas produzidas e muito menos a uma reprodução do tipo gravação magnetofónica dos depoimentos prestados na audiência, o que levaria a uma tarefa incomportável com sadias regras de trabalho e eficiência, e ao risco de falta de controlo pelos intervenientes processuais da transposição feita para o acórdão”(Lourenço Martins, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30janeiro2002, processo 3063/01-3, acessível in www.stj.pt) do mesmo modo que “a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada finte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível”. (José Adriano, Acórdão desta 5.ª Secção do TRLisboa, de 2outubro2018, NUIPC 36/14.4JBLSB.L1-5, acessível in www.dgsi.pt/jtrl)
Decorre do dito que o princípio in dubio pro reo se acha intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (art. 127.ºCPP) do qual constitui faceta, e este último apenas comporta as exceções integradas no princípio da prova legal ou tarifada ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum.
Para a sua concreta violação, em síntese, seria necessário no caso concreto dos autos, que o Tribunal perante somente a versão do AA, ou uma versão de sentido único de prova que fosse similar à apresentada pelo AA no seu depoimento, tivesse dado como provado algo diferente.
Não foi esse o caso, pois duas versões se apresentam, e uma teve o Tribunal a quo como aquela que reporta o facto ocorrido, dando-a como provada. Tal nada tem a ver com violação do princípio da presunção de inocência/ in dubio pro reo, sim situa-se no puro campo das regras de sobre a apreciação da prova e não naquela específica faceta.

b)-Apreciação da prova

Quanto à validade da prova, tal qual à sua recolha, o CPP cuida das mesmas de forma específica entre os arts. 124.º e 190.º frisando ab initio que “constituem objeto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis” (art. 124.º/1CPP).
A administração e valoração das provas cabe, em primeira linha, ao Tribunal perante o qual foram produzidas, que apreciará e decidirá sobre a matéria de facto segundo o princípio estabelecido no art. 127.ºCPP: “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente.”
Significa isto, no rigor das coisas, que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o Tribunal apreciá-los de acordo com a experiência comum, com o distanciamento, a ponderação e a capacidade crítica, na “liberdade para a objetividade” (cfr. Teresa Beleza, in Revista do Ministério Público, Ano 19.º, p. 40; cfr. sobre a génese do princípio, quadro histórico, fundamentos e conteúdo, António Alberto Medina de Seiça, in O Conhecimento Probatório do Co-arguido, Studia Iuridica, Universidade de Coimbra, 42, p. 162ss)
Acresce que a convicção sobre a matéria de facto dada como provada terá, em regra, que resultar da prova produzida ou examinada em audiência (art. 355.ºCPP).
Tal livre valoração da prova não é uma atividade exclusivamente subjetiva assente numa inexplicável certeza no julgador causada por sentimentos ou impressões sem consistência. Esse dom inexiste. Do que aqui se fala é da viabilidade e aptidão de explicação de acordo com critérios que traduzam racionalidade, lógica e crítica, decorrentes da experiência comum, do saber científico das ciências exatas e das ciências sociais, e também da experiência profissional e pessoal do julgador.
Não se descure, contudo, que existe sempre um fator humano envolvido na função jurisdicional, necessariamente a incutir em cada decisão uma vertente subjetiva inerente ao decisor (singular ou coletivo) dado que cada um coopera com o seu saber e experiência para o resultado que a final se produz. E daí a alusão do referido art. 127.ºCPP à “livre convicção” com a significância de que o julgador, obedecendo a estas regras, não aprecia a prova de forma arbitrária ou com uma valoração puramente subjetiva, pois os factos dados como provados e não provados, com base neste princípio, devem ter fundamentação suficiente com apoio na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção, como um dos requisitos da sentença, exigidos pelo art. 374.º/2CPP. É dizer, importa o mesmo a sujeição a critérios lógicos e objetivos que determinam uma convicção racional, concreta e transmissível, pelo que o decisor tem que explicar as razões da sua decisão, e estas têm que ser sindicáveis pelo destinatário e, nesta sede, pelo Tribunal de recurso.
Como linha mestra, seguem-se as palavras de Armando Leandro (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26janeiro2000, processo 197/99-3, acessível in www.stj.pt) quando nos diz que [a] fundamentação da decisão da matéria de facto, imposta pelo art. 374.º, n.º 2, do CPP, assume função intraprocessual e também extraprocessual muito relevante, ligada ao exercício do direito de recurso - que torna necessária a apreensão do essencial do processo lógico-formal do julgador que determinou a decisão recorrível - e à aceitação das decisões judiciais pela comunidade, a pressupor a compreensibilidade das mesmas, fonte indispensável do seu prestígio e legitimação. O dever de fundamentação deve, pois, ser cuidadosamente cumprido em harmonia com essas importantes funções, ainda que equilibradamente, por forma compatível com a natureza do princípio da livre apreciação da prova - art. 127.º, do CPP -, que pressupõe uma convicção não totalmente explicável, mas que não se confunde nunca com apreciação arbitrária da prova e não reconduzível a um mera impressão ou convencimento subjetivos do julgador. No fundo, as já referidas razões “extraídas do princípio do Estado de direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais” que Gomes Canotilho e Vital Moreira reportam.
E.R. Vadill (La actividadd probatória en el processo penal español in La prueba en em processo penal, Centro de Estúdios Judiciales – Col. Cursos, vol 12, Ministerio de Justicia, Madrid, 1993, p. 108.) diz-nos que “Un juez profesional (…) no puede basar su sentencia en una pura e íntima conviccíon, en uma especie de corazonada, no exteriorizable ni controlable en otras instancias.” Por isso mesmo, dir-se-á que na vida judiciária há a verdade dos Arguidos e a verdade dos Ofendidos, que filtram a sua intervenção nos factos através da subjetividade inerente à qualidade humana. Há, também, a verdade das testemunhas que, assistindo, sem intervenção direta, aos factos, não se encontram menos imunes à subjetividade e afeições do que os atores principais, quantas vezes de forma inconsciente. Há, por seu turno, a verdade do julgador, que deflui das anteriores e da sua pessoal perceção, contínua e sólida visão do sentido de regra de experiência de vida, a designada verdade processual, a qual é, não raras vezes, o máximo denominador comum e de tempero das anteriores, única certeza obtida, quando a inverosimilhança destas não arreda do acolhimento do Tribunal, na sua busca incessante da verdade material histórica, que surge como a desejada perfeição no julgamento da matéria de facto.
Para tal desiderato, na audiência, o Tribunal é confrontado com um concreto caso, delimitado pelo princípio do acusatório, e com vista à apreciação do mesmo são apresentados diversos meios de prova que, pela sua natureza, serão apreciados de formas distintas.
Vários critérios, operam neste campo.
O do momento da obtenção distingue entre a prova pré-constituída (recolhida no processo em momento anterior ao julgamento) e aquela cuja produção ocorre no decurso da sede de audiência. Na primeira tem sede a “prova científica”, produzida a partir de vestígios recolhidos e que traduz, sobre os mesmos, uma resposta à luz dos critérios científicos vigentes. Igualmente ali se estabelece a “prova documental”, cuja valoração pode estar, ou não, condicionada de acordo com a natureza e suporte do documento (escrito, áudio, vídeo, físico ou virtual/digital). Por último, aqui também se enquadrará a “prova” decorrente dos objetos apreendidos e juntos ao processo, estejam eles examinados ou não. Ao nível da prova produzida em audiência, a mais varela das provas é a “prova testemunhal”, pelo pendor de subjetividade que a sua ponderação acarreta, à qual se junta a apreciação da “prova por declarações” dos sujeitos processuais - Arguidos, Assistentes e Demandantes.
Num outro critério, o de proveniência, distingue-se a prova entre prova pessoal (a que emerge da atividade de uma pessoa - declarações e depoimentos), prova real (a que emana da observação ou da própria existência nos autos da coisa em si - documentos ou instrumentos utilizados no crime) - e prova pericial (advém da perceção e apreciação dos factos por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos).
Por seu turno, os meios de prova não subtraídos à livre apreciação do julgador são a prova testemunhal (inquirição de pessoa sobre factos de que possua conhecimento direto); as declarações do arguido, do assistente e das partes civis; a prova por acareação; a prova por reconhecimento; a reconstituição do facto; e a prova documental (em geral). Já os meios de prova subtraídos à livre apreciação do julgador são a confissão integral e sem reservas no julgamento; o valor probatórios dos documentos autênticos e autenticados; a prova pericial (esta ainda que com exceção).
E daí que se apontem diferentes níveis ao juízo sobre a valoração da prova.
A inicial linha mestra de valoração, e também mais reveladora, resulta da credibilidade conferida ao meio de prova em causa. O que aquela concreta testemunha ou declarante disse não é de per si bastante para lhe conferir credibilidade. De facto a lei adjetiva não prevê qualquer regra de corroboração necessária e, exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento do julgado depende de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.
É dizer, para esta surgir essencial é a imediação e o que da mesma resulta através da forma como se sucedem questões e respostas, os tempos e a forma destas, as reações de quem responde, a consistência do dito, as explicações que emergem para discrepâncias, omissões ou certezas, tudo a imprimir no decisor uma convicção que nem sempre assume uma fácil explicação racional. Num segundo momento, cabe ao julgador valorar o resultado da produção desse meio de prova. Aqui, através dum sempre necessariamente correto raciocínio, têm intervenção as deduções, inferências, aplicação das regras da lógica ou dos princípios da experiência, de conhecimentos científicos, das ciências exatas ou sociais, e quais os resultados que essa análise produz, tudo se podendo reduzir à expressão “regras da experiência”.
Importa ainda anotar que a objetividade da verdade material dos factos que aqui importa nunca é plena. É sim a objetivamente alcançável. Na expressão de Figueiredo Dias, “a convicção da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável”(in Curso de Processo Penal, II, Verbo, Lisboa, 1993. p. 111) (sobre a questão de verdade material objetivamente pretendida, cfr. Júlio Pinto, Acórdão do TRGuimarães, de 6dezembro2021, NUIPC 152/21.6PBBGC.G1, acessível in www.dgsi.pt/jtrg onde se faz completa referência à explicitação de Castanheira Neves in Sumários de processo criminal, 1967 – 1968 edição policopiada, 1968)
Distinguindo, diz-nos Costa Pereira (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18janeiro2001, proc. 3105/00-5, acessível in www.stj.pt) que “[o] princípio contido no art. 127.°, do CPP, estabelece três tipos de critérios para a apreciação da prova com características e natureza completamente diferentes: haverá uma apreciação da prova inteiramente objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, já de carácter eminentemente subjectiva e que resulta da livre convicção do julgador. III — É certo que tudo isto se poderá conjugar, e também é certo que a prova assente da livre convicção poderá ser motivada e fundamentada, mas neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão. IV — Seja como for, a motivação probatória compete sempre aos julgadores e não pode ser posta em confrontação com as convicções pessoais do recorrente.

Aqui chegados, cientes da forma como tem que laborar o Tribunal em moldes de apreciação da prova, atendendo às provas que em concreto foram produzidas na audiência realizada no Tribunal a quo, considerando o modo como o mesmo fundamentou a prova em sede decisória e cientes que o que o AA pretende é impor uma decisão diversa pela via da criação da dúvida, não sobre a prática dos factos, sim sobre razões que levaram à prática dos factos – daí retirando efeitos com vista à desqualificação da sua ação e, consequentemente alterando a dosimetria da pena - , invocando para tanto o desrespeito pelo princípio in dubio pro reo, há que relembrar, como já supra se delineou, que a apreciação por este Tribunal Superior sobre a eventual violação do dito princípio se encontra dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto, designadamente erro notório na apreciação da prova, i.e., deve ser da análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, seguindo o processo decisório, evidenciado pela análise da motivação da convicção, se se chegar à conclusão que o Tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o AA. Tal não significa, porém e como já supra se explicou, que se pode incluir no erro notório na apreciação da prova a eventual discordância do recorrente quanto ao modo como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si, em audiência, em conformidade com o disposto no art. 127.º do CPP. (sobre a distinção, Raul Borges, no já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8julho2020, NUIPC 142/15.8PKSNT.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt/jtrg, onde de forma incisiva se diz “[e]nquanto a valoração da prova, que compete aos julgadores, e só a eles, obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é necessariamente prévia à fixação da matéria de facto, o vício da alínea c), bem como os demais constantes das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, só surge perante o texto da decisão proferida em matéria de facto, que resultou daquela valoração da prova.(…) Estamos perante duas realidades que correspondem a dois passos distintos, sequenciais, tendo uma origem na outra: o de aquisição processual em resultado do julgamento; um outro, posterior, de consignação do que se entendeu ter ficado provado e não provado, no exercício final de um juízo decisório que se debruçou sobre a amálgama probatória carreada para os autos e dissecada/ponderada/avaliada após o exame crítico das provas, no seu conjunto e interligação, no jogo dialéctico das conexões, proximidades, desvios, disfunções, antagonismos. (…) Não se pode confundir o vício de erro notório na apreciação da prova com a valoração desta. Enquanto esta obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é prévia à fixação da matéria de facto, aquele – bem como os demais vícios constantes das alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP – só surgem perante o texto da decisão em matéria de facto que resultou daquela valoração da prova”. (igualmente neste sentido, cfr. Recursos Penais, Manuel Simas-Santos e Manuel Leal-Henriques, 9.º ed., p. 81) . Uma coisa é o grau de exigência que se coloca no critério de aferição, outra coisa é a inclusão. E não se confundem.
Delimitando.
O Tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou as razões da sua convicção, de forma lógica e global, com o mínimo de consciência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, conjugado com as demais provas, alicerçou uma convicção adequada e suficiente sobre a verdade dos factos?
É este, então, o caminho a seguir.
In casu,temos como patente que o Tribunal a quotomou específica e concreta posição sobre todos os factos essenciais e relevantes para a apreciação do preenchimento dos elementos do crime e dos factos que foram alegados e/ou resultaram da discussão da causa. Lendo a decisão recorrida, à saciedade se constata que o Tribunal a quo percecionou as condutas do AA e do Ofendido, tal qual produziu as provas a tal conducentes apreciadas na sede de audiência, que valorou criteriosamente.
De facto, a grande questão colocada pelo AA prende-se com a sua pretensão de “substituição” do facto 2 da acusação, dado como facto 2 provado, ou seja, que foi o AA quem interpelou o Ofendido, mas sim que, como alega nos pontos 2 e 3 da sua contestação, foi o ofendido quem interpelou o AA. No mais, pretende que o facto 11 da contestação, só ter sido dado parcialmente como facto 12 provado, não contendo a afirmação de que o ofendido teria chamado “filho da puta”[e daí o facto não provado a)] ao AA, motivo esse que despoletou a ação de esfaqueamento, ato este o AA não nega na existência, somente no concreto modo e motivação pela via dos factos 8 a 10 da contestação.
E toda a pretensão do AA se funda, na parte admissível (pois outras inadmissíveis o mesmo coloca e sobre as mesmas este Tribunal ad quem não se debruçará, uma vez que mais não são do que opiniões e conjeturas, tais quais as que poderiam resultar duma pretensa diligência/meio de obtenção de prova que não se terá levado a cabo em sede de inquérito) na tentativa de descrédito das declarações do Ofendido, em especial quando olhado versus o seu depoimento como AA, para assim lograr afirmar que tudo se despoletou pela atitude daquele de o apodar de “filho da puta”, atitude que originou a sua atitude concretizada na ação de lhe tentar tirar a vida, mas já não de forma qualificada.
Ou seja, o quanto o AA aqui está a por em causa, em termos de avaliação e de apreciação da prova, consubstancia aquilo que se chama de atuação por contra indícios. Sobre a questão, Santos Cabral (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7abril2011, NUIPC 936/08.0JAPRT.S1, acessível in www.dgsi.pt/jstj) diz-nos que “A avaliação dos indícios pelo juiz implica uma especial atenção que devem merecer os factos que se alinham num sentido oposto ao dos indícios culpabilizantes, pois que a sua comparação é que torna possível a decisão sobre a existência, e gravidade, das provas. Os factos que visam o enfraquecimento da responsabilidade do arguido, sustentada na prova indiciária, são de duas ordens – uns impedem absolutamente, ou pelo menos dificilmente permitem que se atribua ao acusado o crime (estes factos recebem muitas vezes o nome de indícios da inocência ou contra presunções); os outros debilitam os indícios probatórios, e consubstanciam a possibilidade de afirmação, a favor do acusado, de uma explicação inteiramente favorável sobre os factos que pareciam correlativos do delito, e davam importância a uma convicção de responsabilidade criminal. Denominam-se de contra indícios e emergem em função da necessidade de contrapor aos indícios culpabilizantes outros factos indício que aniquilem a sua força à face das regras de experiência. Tal como perante os indícios, também para o funcionamento dos contra indícios é imperioso o recurso às regras da experiência e a afirmação de um processo lógico e linear que, sem qualquer dúvida, permita estabelecer uma relação de causa e efeito perante o facto contra indiciante infirmando a conclusão que se tinha extraído do facto indício. Dito por outras palavras, o funcionamento do contra indício, ou do indício de teor negativo, tem como pressuposto básico a afirmação de uma regra de experiência que permita, perante um determinado facto, a afirmação de que está debilitada a conclusão que se extraiu dos indícios de teor positivo.”
Dai que pretenda o AA não propriamente firmar a sua inocência, sim firmar que uma explicação dos factos que lhe diminua a censurabilidade da ação.
Como argumentos para tanto, o AA, depois de discorrer sobre a dinâmica dos factos, olhando e valorando as provas produzida em sede de audiência, infere que não se pode dar credibilidade às declarações do Ofendido porque o mesmo «consegue fazer o enquadramento espácio-temporal dos factos, descrever minuciosamente toda a dinâmica dos mesmos, admite que já tinha bebido alguma coisa nessa noite, mas quando lhe é perguntado se havia consumido nessa noite, responde defensivamente que não se lembra, dizendo que foi uma noite traumática e “acho que ainda não tinha consumido nada”»,
Ou seja, porque o Ofendido – ainda que ajuramentado e obrigado a dizer a verdade - não se lembrou de algo, o AA apoda este depoimento de “memória seletiva dos factos” e daí parte para a conclusão de que a versão do Ofendido, ao contrariar a do AA quando diz “que o ofendido abordou-o e aparentava estar embriagado e ter estado a consumir (que sendo filho de um pai toxicodependente reconhecia bem os sintomas).”não merecia a credibilidade que o Tribunal lhe deu. Seguidamente, tece considerações sobre o iluminar de faróis do carro, em que o Ofendido se deslocou, sobre as caraterísticas do local ermo e elabora questões sobre as suas pessoais dúvidas. E continua, alegando em pergunta a si mesmo, sobre qual as razões duma agressão sem prévia provocação, vindo a terminar com a conclusão de que a si, AA, não foi apreendido qualquer produto estupefaciente.
E perante tudo o dito, conclui que [t]odas as questões supra levantadas não foram devidamente respondidas pelo Tribunal a quo na motivação da matéria de facto, limitando-se na sua fundamentação a conferir credibilidade às declarações da testemunha NR, ofendido nos autos, em detrimento das prestadas pelo Recorrente, sem explicar o raciocínio lógico dedutivo utilizado da motivação da matéria de facto.”
Ora, dir-se-á, antes de mais que o princípio do acusatório, com espelho constitucional no art. 32.º/1CRP estabelece que “[a] jurisdição não intervém oficiosamente (nemo iudex sine actore) nem pode alargar o seu poder de julgar a pessoas e factos distintos daqueles que são objecto da acusação (sententia debet esse conformis libelo).”(Germano Marques da Silva in Obr. Cit., I.º Volume, p. 68) Tal autossuficiência da acusação, através dos factos na mesma constantes e delimitadores do objeto do processo – thema decidendum - vale para efeitos de salvaguarda e garante dos direitos de defesa do AA, assim como contende com a vinculação temática que circunscreve a abrangência da cognição do Tribunal. Com efeito, ainda que opere latitude ao nível do princípio do acusatório, na sua conjugação com o princípio da investigação da verdade material, certo é que a flexibilidade do objeto do processo se mostra limitada pelo instituto da alteração substancial dos factos. Significa isto que à luz da acusação e da contestação não se vislumbra onde vai o AA agora buscar razões suficientes, bastantes e adequadas pera esta quadrupla questão que atormenta a sua pessoal, subjetiva e intencional convicção.
Diremos, então, que só através duma arreliadora leitura menos atenta, da fundamentação e exame crítico de provas efetuada pelo Tribunal a quo, por parte do AA o mesmo pode apodar o Acórdão de ausente de “raciocínio lógico dedutivo utilizado da motivação da matéria de facto”.

Vejamos, o porquê desta afirmação, bastando para tal aqui relembrar o dito pelo Tribunal a quo.
Relativamente aos factos provados descritos em 2), 3), 4) e 5) os mesmos resultaram das declarações do ofendido NR, o qual os descreveu, afirmando que ao avistar o ofendido o arguido se dirigiu a ele, questionando-o se não lhe queria comprar haxixe, o que a testemunha negou, pois antes já lhe tinha adquirido produto estupefaciente, e o mesmo era de má qualidade. Em acto contínuo, o arguido aproximou-se do NR e de frente para o mesmo, com a sua mão direita desferiu-lhe dois golpes nas costas, atingindo-o na região lombar, sendo que o ofendido não viu o que o arguido tinha na mão pois este antes de lhe desferir os golpes tinha as mãos atrás das costas. Após, o arguido com a sua mão esquerda desferiu um soco na face de NR, atingindo-o no sobrolho. Em face do sucedido e apercebendo-se perante o segundo golpe que levou nas costas que o arguido teria uma faca, pois sentiu “picar”, NR virou costas ao arguido para fugir do local, tendo o arguido ainda lhe desferido mais dois golpes nas costas, atingindo-o na face posterior do tórax, após o que abandonou o local, desfazendo-se da navalha.
Estas declarações são compatíveis com os ferimentos sofridos pelo ofendido, conforme episódio de urgência a fls. 202 a 204, Auto de Exame Médico a fls. 229 a 231 e fotografias a fls. 18 e 50, sendo certo que o mesmo foi atingido nas costas com um objecto perfurante, designadamente com a navalha apreendida a fls. 16, examinada a fls. 104 e fotografada a fls. 82 (vide reportagem fotográfica a fls. 19 a 22). A navalha apreendida nos autos foi reconhecida pelo arguido como sua, com a qual este reconheceu ter atingido o ofendido nas costas, tendo sido recuperada mediante indicações do próprio arguido, a qual tinha ADN do ofendido na respectiva lâmina, conforme exame a fls. 284 e 285.
Acresce que, o arguido, apesar com um enquadramento um pouco diverso, também reconheceu ter desferido um soco na cara do ofendido e quatro golpes com a sua navalha nas costas do mesmo, após o que saiu do local, sendo que o NR também saiu do local, ao volante do seu veículo automóvel.
Aliás, pelo ofendido NR foi referido, igualmente, que para fugir do arguido, meteu-se no seu veículo automóvel, conduzindo-o cerca de 1 km, após o que telefonou para a PSP, que foi em seu auxílio, facto corroborado, igualmente, pelo depoimento da testemunha P…, agente da PSP, os quais chamaram o INEM, conforme teor de fls. 181 a 187, que transportaram o ofendido para o hospital (cfr. fls. 11).
Pelo arguido foi dito que foi o ofendido quem se lhe dirigiu, querendo que ele lhe vendesse produto estupefaciente e como o arguido disse que não tinha, insistiu que este ligasse a alguém para lhe arranjar produto, o que o arguido negou. Perante tal, o ofendido apelidou-o de “filho da puta”, tendo o arguido lhe dito para este o repetir, o que o ofendido fez, apelidando de novo o arguido de “filho da puta” e após levantou a mão para lhe desferir um murro, tendo o arguido se desviado e lhe dado um soco na cara. Após, o ofendido levantou a mão para lhe desferir outro soco, mas o arguido desviou-se do mesmo, colocou-se nas suas costas e desferiu-lhe com a navalha que trazia com ele os quatro golpes nas costas do ofendido para se defender.
Porém, o ofendido negou ter apelidado o arguido de “filho da puta”, bem como de o ter tentado agredir com murros, afirmando que foi o arguido quem o abordou para lhe vender produto estupefaciente, descrevendo os factos de forma coerente e compatível com as lesões sofridas – golpes mais profundos na região lombar quando o arguido os desfere de frente para si e golpes menos profundos na face posterior do tórax quando, já de costas para o arguido, o ofendido tenta fugir do mesmo e sair do local.
Por outro lado, não se compreende como o arguido, de frente para o ofendido, se conseguiria desviar do mesmo, colocando-se nas suas costas, desferindo-lhe quatro golpes de faca, sem que o ofendido se tentasse virar de frente para o mesmo, de forma a defender-se e/ou a tentar perceber o que é que o arguido estava a fazer à sua retaguarda, sendo certo que o ofendido nunca atingiu o arguido.
Acresce que, ao contrário do referido pelo arguido, de que o ofendido neste dia estava alcoolizado e drogado, suando como quem está a ressacar, a verdade é que dos depoimentos das testemunhas P…, agente da PSP, e C…, inspectora da PJ, o mesmo não lhes pareceu estar alcoolizado, nem drogado, apresentando um discurso coerente.
Por outro lado, no local dos factos não foi detectado nenhum vestígio de produto estupefaciente, nem de bebidas alcoólicas, conforme teor do Auto de Diligência a fls. 88, cujo conteúdo foi confirmado pelo depoimento da testemunha C….
Por último, ao contrário do referido pelo arguido, não existe uma manifesta desproporção de tamanho entre o arguido e o ofendido, o que teria motivado a sua “conduta defensiva”, pois o arguido e o ofendido têm sensivelmente a mesma altura – o arguido 1,79 m e o ofendido 1,78 m (cfr. prints a fls. 58 e 339), tendo o arguido 28 anos e o ofendido 46 anos aquando dos factos, sendo o ofendido apenas mais gordo do que o arguido, o que também não o torna mais ágil.
Assim, o Tribunal valorou a versão do ofendido, em detrimento da versão do arguido, dando como não provados os factos descritos em a), c), d) e) e f).
Por outro lado, das declarações do ofendido NR e do arguido resultou unânime que o arguido não lhe desferiu um golpe com a faca na face, nem o mesmo apresentava um ferimento dessa natureza na face aquando da sua admissão no serviço de urgência do ..., quando nessa mesma noite foi assistido pelas 03:42 (cfr. episódio de urgência a fls. 202 a 204). Por outro lado, o ofendido referiu que nunca viu a navalha na mão do arguido, só se apercebendo que este teria uma faca na sua mão direita quando este lhe desferiu o segundo golpe nas costas, pelo que o Tribunal deu como não provado o facto descrito em b).
(…)
No que concerne aos factos descritos em 10), 11) e 12),
(…)
Por outro lado, atento o contexto dos factos e as declarações do ofendido NR, o arguido agiu motivado pelo facto de aquele se ter negado a comprar-lhe produto estupefaciente, sendo que o caracter intempestivo e impulsivo do arguido, o qual decorre do teor do relatório social, das declarações da testemunha R…, bem como da forma como prestou declarações em sede de primeiro interrogatório judicial e em julgamento, credibilizam as declarações do ofendido. “

Ou seja, o Tribunal a quo perante as provas apresentadas, as quais começa por descrever na fundamentação, a esta dando corpo, faz a leitura da globalidade das mesmas e com o exigido espírito critico conjuga-as e analisa-as. E fá-lo in casu até com explicação, facilmente percetível, duma exposição do normal do acontecer à luz da oposição parcial das declarações dum AA presumivelmente inocente em comparação com as dum Ofendido.
E, neste particular de discrepância, o Tribunal a quo teve a preocupação de ir à procura das regra de vida, do acontecer, e perante uma das versões convenceu-se, sendo que se convenceu de forma lógica.
Veja-se, para tanto, a especificidade da descrição do modo de ação frontal e pelas costas, com concreta exposição de possibilidades e inerentes possibilidades de consequência, a inexistência de agressão mútua, assim como a perceção do empolamento da desproporção corporal que, afinal, inexiste.
Todo este labor o Tribunal a quo fez no percurso de valoração da prova captada para assim estabelecer a razão do seu convencimento, sendo que podia fazê-lo, como o fez, pois a regra testis unus, testis nullius inexiste, pelo que mesmo perante um singular depoimento, se convincente o mesmo o for, como o foi o do Ofendido, pode atingir a suficiência. (cfr. sobre o conceito, João Lee Ferreira, Acórdão do TRLisboa, de 11setembro2019, NUIPC 1365/12.7PBFUN.L3-3, acessível in www.dgsi.pt/jtrl e, em especial Cruz Bucho, Acórdão do TRGuimarães, de 12abril2010, NUIPC 42/06.2TAMLG.G1, acessível in www.dgsi.pt/jtrg onde expressamente se pode ler que “[o] velho aforismo “testis unus testis nullus”, carece, pois, de eficácia jurídica num sistema como o nosso em a prova já não é tarifada ou legal mas antes livremente apreciada pelo Tribunal [sobre aquela regra unus testis, testis nullius, cujas origens remontam a Moisés, as criticas que lhe foram sendo dirigidas ao longo da história (De Arnaud, Blackstone, Bentham, Meyer, Bonnier), a sua abolição e a possibilidade de um único depoimento, nomeadamente as declarações da vítima, poderem ilidir a presunção de inocência e fundamentarem uma condenação, cfr., desenvolvidamente, Aurélia Maria Romero Coloma, Problemática de la prueba testifical en el proceso penal, Madrid, 2000, Cuadernos Civitas, págs. 69 a 91; muito antes, no domínio do processo civil português, Alberto dos Reis afirmara que “No seu critério de livre apreciação o Tribunal pode dar como provado um facto certificado pelo testemunho duma única pessoa, embora perante ela tenham deposto várias testemunhas” (Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimp., Coimbra, 1981, pág. 357)].”.
Serve tal para dizer que a existência de duas versões contraditórias - a do Ofendido, acolhida pelo Tribunal a quo que conjugou com outros elementos de prova, apreciados e relacionados de forma crítica com as circunstância em que os factos ocorreram, e a versão do AA que aceitou ter sido o autor da lesão, diferindo nas razões da sua grave ação - não implica necessariamente a aplicação do princípio in dubio pro reo,dando como não provado o crime imputado ao AA. O princípio in dubio pro reo tem de resultar de um juízo positivo de dúvida resultante de um impasse probatório, o que não é o caso dos autos, uma vez que o Tribunal a quo se convenceu, com raciocínio lógico e à luz das provas produzidas e analisadas, que os factos ocorreram nos moldes descritos pelo Ofendido.
Lendo a explanação de convicção que o Acórdão de 1.ª instância expressa, a conclusão imediata é a de que o mesmo expôs de modo claro o raciocínio que seguiu para a conjunta analise de todos os elementos de prova, fazendo deles uma apreciação crítica, racional, global e conjugada, sequencial e sem hiatos de vazio, sem recorrer, nessa apreciação, ao mínimo uso de qualquer arbítrio, capricho ou preconceito.
De facto, e ao contrário do que o AA quer fazer crer através da sua subjetiva apreciação, em moldes de justiça em causa própria, assim demonstrando que se fosse ele o julgador a prova seria não a de apreciação isenta, sim a de valoração tendenciosa, o Tribunal não errou ao valorar as declarações do Ofendido e ao conjugar as mesmas com o próprio depoimento do AA, doutras testemunhas e prova documental existente.
Pelo que quanto ao dito pelo AA mais não há a declarar que não o reconhecer que se está perante a sua subjetividade de apreciação, mas nunca perante deficiente atuação de valoração pelo Tribunal de 1.ª instância.
Tudo o AA faz, porém, sem que a tal seja apto – desde logo pela forma apresentada - à finalidade por si procurada, muito mais quando desprovido está de razão, pois perante a fundamentação do Acórdão este modo de discordância de nada vale, uma vez se impõe o estatuído no art. 127.ºCPP, tendo sido usado e aplicado tal princípio com efetiva lógica e sustentação, em moldes tais que se pode afirmar que adequada e justificadamente se impõe que se sobreponha às interessadas, infundadas e subjetivas convicções pessoais reveladas pelo AA.
Ou seja, lida a decisão em apreço, temos para nós que o colético de Juízes que interveio na audiência no Tribunal a quo, no exercício do poder e dever de julgar segundo a sua livre apreciação assentou a decisão numa fundamentação muito consistente e pormenorizada, não deixando azo a dúvidas e afastando o arbítrio.
O AA não concorda, é certo.
Contudo, como já várias vezes foi dito em Acórdãos desta 5.ª Secção “só sabemos que o recorrente, se fosse o julgador, teria fixado os factos de modo diferente”. E daí que fazendo jus ao que escreve Souto Moura (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15julho2008, processo 08P418-5.ª, acessível in www.dgsi.pt/jstj) I- Uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se faz da prova e outra é detetarem-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório. II- Por outro lado também não pode esquecer-se tudo aquilo que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite: basta pensar no que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir. III- O trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizados em 1.ª instância, e da fundamentação feita na decisão por via deles, traduz-se fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado como provado o que se deu por provado – cf. Acs. de 15-02-2005 e de 10-10-2007, Procs. n.ºs 4324/04 - 5.ª e 3742/07 - 3.ª, respectivamente.”

Tais conclusões do Tribunal a quo relativas à matéria de facto estão em consonância com a prova produzida e a sua convicção está devidamente fundamentada, expressa num raciocínio lógico expresso na motivação, sem que mereça reparo, com enquadramento legal no art. 127.ºCPP. De acordo com as regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do homem médio, como demonstra e aprecia criticamente a motivação, é razoável e acertado o entendimento do Tribunal a quo quanto à valoração da prova e à fixação da matéria de facto. As provas existem para a decisão tomada e não se vislumbra qualquer violação ou contrariedade às normas de direito probatório, nada se revela errado, no que se incluem as regras da experiência e/ou da lógica que ensinam que está fora de qualquer dúvida razoável concluir que o AA foi autor dos factos pelos quais se mostrava acusado, que se deram como provados e que se entendeu integrarem o crime de homicídio qualificado, p. p. pelos art.s 22.º; 23.º, 131.º e 132.º/1/2e)CP.

Nesta parte, improcede também o recurso.

4.º- crime de homicídio (desqualificação)

Aponta o AA à desqualificação do crime de homicídio qualificado, p. p. pelos art.s 22.º; 23.º, 131.º e 132.º/1/2e)CP pelo qual o Tribunal de 1.ª instância o condenou, pretendendo tratar-se dum crime de homicídio, p. p. pelos art.s 22.º; 23.º, 131.ºCP.
De toda a pretensão recorrente supra, percebe-se que a finalidade da mesma só foi, e sempre foi, a de perante ganho da tese de erro de julgamento se alterarem os factos provados, seguindo-se o disposto no art. 431.ºCPP. Só que o AA não encetou tal técnico caminho o que não permitiu a este Tribunal ad quem qualquer apreciação, quão mais modificação factual à luz de fatores externo ao Acórdão.
Também não logrou o AA a modificação de factos, pela via do art. 426.ºCPP, uma vez que não se mostra constante do texto do Acórdão qualquer erro, quão mais de gravidade a subsumir a vício do art. 410.º/2CPP.
E, por último, analisada a questão de direito de reporte ao cumprimento das regras de valoração de prova, não se encontrou qualquer razão para discordar do Tribunal a quo.
Tudo para dizer que os factos em apreço – provados e não provados - são processualmente imutáveis, restando – em respeito pela delimitação de objeto do recurso - uma breve nota sobre o seu enquadramento jurídico, o que cumpre fazer independentemente de ser certo que a pretensão de desqualificação do crime pretendido pelo AA parte sempre do pressuposto da queda dos factos provados e da eleição dos factos não provados.
Não tendo o AA logrado ganho neste seu objeto de recurso, resta dizer que a subsunção dos factos ao direito feita no Acórdão de 1.ª instância é linear. Merece a nossa inteira adesão o raciocínio exposto pelo Tribunal a quo e, como tal, sempre é tão fastidioso quão desnecessário – por nada haver a acrescentar – aqui mais dizer.
Como tal, independentemente de prejudicada estar a análise e conhecimento da questão de desqualificação jurídica, sempre se dirá oficiosamente que a condenação do recorrente pela prática do crime de homicídio qualificado, p. p. pelos art.s 22.º; 23.º, 131.º e 132.º/1/2e)CP deve, pois, manter-se, nada havendo a alterar na decisão recorrida.

5.º- medida da pena (se operar desqualificação)

Concordando com o modo como o Tribunal a quo fixou a dosimetria da pena, na pretensão de desqualificação do crime de homicídio e no caso de a mesma operar, efetua o AA uma mera pretensão de alteração da dosimetria da pena, como que em regra de três simples.
De facto, o recorrente condiciona o conhecimento deste pedido à procedência dum outro pedido. Não discute os fatores que o art. 71.ºCP manda considerar relativamente à pena que o art. 132.ºCP manda aplicar. Limita-se a dizer que (fls. 23 da peça de recurso) que “[o] Tribunal a quo efectuou a qualificação jurídica dos factos como um crime de homícidio qualificado na forma tentada, p.p. pelos artigos 22º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 al. e), do Código Penal, a que corresponde em abstracto a pena de prisão de 12 a 25 anos, pena especialmente atenuada, nos termos do disposto no artigo 73º, nº 1, alíneas a) e b), do Código Penal, com a moldura penal abstracta de pena de prisão de 2 anos 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses. E, obedecendo aos normativos correspondentes à determinação da medida da pena nos termos do disposto no Art. 71º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, decidiu tribunal a quo aplicar ao arguido uma pena de de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, ou seja, aplicou uma pena próxima do ¼ da medida abstracta da pena. O QUE SE PROPÕE: A) Já acima se defendeu o enquadramento jurídico dos factos provados no crime de homícidio na forma tentada previsto e punido nos artigos 22º, 23.º e 131.º, todos do Código Penal, a que corresponde uma pena abstracta de 8 a 16 anos de pena de prisão, pena especialmente atenuada, nos termos do disposto no artigo 73º, nº 1, alíneas a) e b), do Código Penal, com a moldura penal abstracta de pena de prisão de 1 anos 6 meses e 10 anos e 6 meses. (…) Nesta conformidade e aderindo ao raciocínio expendido pelo tribunal a quo para determinação da medida da pena, [que aqui dá por reproduzido para todos os efeitos], em obediência dos critérios contidos nos artigos 40.º e 71º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código Penal, que fixou a pena concreta próximo do ¼ da medida da pena abstracta, entende o Recorrente que deverá ser-lhe aplicada uma pena de 3 anos e 9 meses de prisão.”(sublinhado nosso)

Cumpre, porém, dizer que na certeza de que caso tivesse o AA obtido ganho de causa na questão de desqualificação do crime, igualmente aqui se pode afirmar que este Tribunal ad quem teria então que proceder à ponderação de alteração da dosimetria da pena, o que faria à luz das regras da Lei e não da matemática.
Mantida a condenação pela autoria de homicídio qualificado, p. p. pelos art.s 22.º; 23.º, 131.º e 132.º/1/2e) CP, prejudicada fica a questão, por inexistente objeto. Assim é, porquanto nestes casos, caindo a pretensão de conduta de homicídio simples, base para a moldura concreta da pena ser reduzida, a premissa do silogismo passa a falsa, pelo que não vindo posta em crise a pena para o crime efetivamente cometido, limitado que está o recurso pelas conclusões do recorrente, não cabe aqui exercer qualquer censura acerca da pena aplicada. (neste sentido, Nunes da Cruz, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2novembro1995, processo 47738, in CJ-STJ, ano XX, T3, p. 218)

Consequentemente, improcede, também, esta questão.

III–DECISÃO

Nestes termos, em conferência, acordam os Juízes que integram a 5.ª Secção Penal deste Tribunal da Relação de Lisboa:
a.-em negar provimento ao recurso interposto pelo AA e, consequentemente, confirmar na íntegra a decisão do Tribunal a quo.
b.-em fixar custas criminais a cargo do AA, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS, nos termos dos art.s 513.º/1;514.º/1;524.ºCPP e Tabela III anexa de reporte aos art.s 1.º;2.º;3.º/1;8.º/9, acrescidas dos encargos previstos no art. 16.º, ambos RCP (DL34/2008-26fevereiro e alterações subsequentes).
Notifique (art. 425.º/6CPP).
D.N.


Lisboa, 06-02-2024


• o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários; com datação eletrónica –art. 153.º/1 CPC e com aposição de assinatura eletrónica - art. 94.º/2 CPP e Portaria 593/2007-14 maio


Relator: Juiz Desembargador Manuel José Ramos da Fonseca
1.º Adjunto: Juiz Desembargador Paulo Duarte Barreto Ferreira
2.ª Adjunta: Juíza Desembargadora Carla Francisco