IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
LIBERDADE SEXUAL
CRIME DE VIOLAÇÃO
CONCURSO REAL
PLURALIDADE DE CRIMES
Sumário

1.–Não impugna corretamente a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente que se limita:
- a indicar os pontos que considera terem sido mal julgados; e, - a pôr em causa a credibilidade do depoimento de determinadas testemunhas,
sem, no entanto:
- especificar a decisão que, em seu entender, devia ter sido proferida sobre a concreta factualidade impugnada;
- proceder à análise crítica e conjugada de quaisquer provas ou, sequer, indicar as concretas provas em que alicerça a sua discordância relativamente à decisão da 1.ª instância;
- indicar as partes dos depoimentos e declarações gravadas que este tribunal de recuso deveria ouvir, não sendo, obviamente suficiente para o efeito, a mera remissão para tais elementos de prova na sua totalidade.
2.–Não há alteração substancial dos factos quando a prova conduz a uma qualificação jurídica diferente, mas a condenação ocorre por factos integralmente constantes da acusação pública.
3.–No conceito de “violência” tanto se inclui a violência física, como a violência psicológica, traduzindo-se esta, no caso concreto, no medo que o arguido incutia na vítima, sua filha menor de idade, de lhe bater e/ou provocar discussões, e que foi idóneo para a constranger a manter relações sexuais consigo, contra a vontade dela.
4.–Pratica o crime de violência doméstica o arguido que atenta contra a liberdade sexual da sua filha e a molesta, durante vários anos, num quadro doméstico no âmbito do qual dela abusa física e psicologicamente, inferiorizando-a, vexando-a, pressionando-a, intimidando-a e cerceando-lhe a liberdade.
5.–Tratam-se de comportamentos do arguido que não podem subsumir-se apenas à prática do crime de violação, antes devendo ser punidos em concurso real com o crime de violência doméstica.
6.–Existindo hiatos temporais entre a prática de cada um dos crimes de violação perpetrados pelo arguido na pessoa da sua filha, entende-se que, de cada vez que abordou a vítima para a prática de um acto sexual, renovou a sua resolução criminosa, traduzindo-se cada resolução numa nova lesão do bem jurídico protegido e, como tal, na prática de um novo crime.
7.–O legislador afastou da punição como crime continuado, os ilícitos penais cometidos contra bens eminentemente pessoais, ou seja, os crimes previstos no Título I da parte especial do Cód. Penal, onde se incluem os crimes contra a liberdade sexual e, entre estes, o crime de violação.
8.–Derivando o ressarcimento dos danos não patrimoniais da violação de direitos fundamentais, deve, em definitivo, numa visão moderna, atualista e europeísta, abandonar-se um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes.
9.–Na tradução quantitativa dos danos de natureza não patrimonial há que ter em conta que a indemnização deve ser significativa de modo a representar uma efetiva compensação pelos prejuízos sofridos pela vítima.
(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1– Relatório

No processo nº 1907/22.0PBBRR do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Almada - Juiz 1, consta da parte decisória do acórdão datado de 21/07/2023, o seguinte:
“Pelo exposto, acordam as Juízas que compõem este Tribunal Coletivo em julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, decidem:
a)- Declarar extinto o procedimento criminal relativamente a 7 (sete) dos crimes de violação, previstos e punidos, à data dos factos, pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, que vinham imputados ao arguido;
b)- Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e, em concurso real, na pessoa da ofendida BB, de:
i)- 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão;
ii)- 1 (um) crime de violação agravado, previsto e punido, à data dos factos, pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e 6 do Código Penal e presentemente pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea a) e 7 do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão;
iii)- 28 (vinte e oito) crimes de violação agravados, previstos e punidos, à data dos factos pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5 do Código Penal e presentemente pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão, cada um;
iv)- 13 (treze) crimes de violação agravados, previstos e punidos, à data dos factos, pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, cada um;
v)- 1 (um) crime de violação agravado, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
vi)- 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
c)- Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e, em concurso real, na pessoa da ofendida CC, de 151 (cento e cinquenta e um) crimes de abuso sexual de criança agravados, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alíneas a), b), Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um;
d)- Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA, na pena única de 15 (quinze) anos de prisão;
e)- Absolver o arguido dos demais crimes que lhe vinham imputados na acusação;
*
f)- Condenar o arguido na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 18 (dezoito) anos, nos termos do artigo 69.º-B, n.º 2 do Código Penal;
g)- Condenar o arguido na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores (em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança), pelo período de 18 (dezoito) anos, nos termos do artigo 69.º-C, n.º 2 do Código Penal;
h)- Condenar o arguido AA nas penas acessórias de proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima BB e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do artigo 152.º, n.º 4 e 5, do Código Penal;
*
i)- Condenar o arguido AA a pagar à ofendida BB o montante de 40.000 € (quarenta mil euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A, n.º 1 e 67.º-A, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal e no artigo 16º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015 de 04/09;
j)- Condenar o arguido AA a pagar à ofendida CC o montante de 15.000 € (quinze mil euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A, n.º 1 e 67.º-A, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal e no artigo 16º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015 de 04/09; (…)”
*
Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
I.– Vem o presente recurso interposto do douto acórdão de fls… dos autos, proferido pelo J1 do Juízo Local Criminal de Almada do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, com intervenção do tribunal colectivo, no âmbito do Processo n.º 1907/22.0... que, nos termos da fundamentação nele constante, condenou o ora recorrente, AA pela prática em autoria material e, em concurso real, na pessoa da ofendida BB de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão; 1 (um) crime de violação agravado, previsto e punido, à data dos factos, pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e 6 do Código Penal e presentemente pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea a) e 7 do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão; 28 (vinte e oito) crimes de violação agravados, previstos e punidos, à data dos factos pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5 do Código Penal e presentemente pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão, cada um; 13 (treze) crimes de violação agravados, previstos e punidos, à data dos factos, pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, cada um; 1 (um) crime de violação agravado, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão; 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
II.– E na pessoa da ofendida CC de 151 (cento e cinquenta e um) crimes de abuso sexual criança agravados, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alíneas a), b), Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um.
III.– E em cúmulo jurídico, vindo a condenar o arguido AA, na pena única de 15 (quinze) anos de prisão;
IV.– Mais decidiu condenar o arguido nas penas acessórias de Proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 18 (dezoito) anos, nos termos do artigo 69.º-B, n.º 2 do Código Penal, Proibição de assumir a confiança de menores (em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança), pelo período de 18 (dezoito) anos, nos termos do artigo 69.º-C, n.º 2 do Código Penal e Proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima BB e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do artigo 152.º, n.º 4 e 5, do Código Penal;
V.– E ainda, condenar o arguido AA a pagar:
VI.– À ofendida BB o montante de 40.000 € (quarenta mil euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A, n.º 1 e 67.º-A, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal e no artigo 16º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015 de 04/09;
VII.– À ofendida CC o montante de 15.000 € (quinze mil euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A, n.º 1 e 67.º-A, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal e no artigo 16º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015 de 04/09;
VIII.–Quanto à ofendida BB, e por referência aos crimes de violação agravados, aplicados in casu nos termos previstos, à data dos factos pelo art.º 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 1, al. a), e presentemente nos art.ºs 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a) (e com a previsão dos n.º 6 e 7, consoante a idade), entende-se haver erro na determinação da norma aplicável, devendo ao invés ser aplicada a norma prevista no art.º 164.º, n.º 1, al.a) do CP(versão actual- e sempre por aferição ao correspondente preceito legal à data dos factos, que à data correspondia ao n.º 2), aos pontos 4 a 8 e 10 a 21 da matéria de facto provada;
IX.–Assim, as referidas condutas dever-se-iam, no máximo, integrar no âmbito do n.º 1 do citado preceito legal, e não no n.º 2 (versão actual), como veio a fazer o douto tribunal a quo;
X.–Ainda que os actos descritos, possam ser aqui ainda ser integrados e na senda do propugnado inicialmente na acusação pública, como crime de abuso de crianças (pontos 4) a 9) da matéria de facto provada no douto acórdão) e de menores dependentes ou em situação vulnerável (pontos 10) a 19)) , p.p. nos art.ºs 171.º, n.º 2 e 172.º, n.º 1, als. a) e b) do CP, e neste último preceito legal;
XI.–Pelo que, da prova produzida, infra aduzida, verifica-se, assim, existir erro na determinação da norma aplicável, impondo decorrente e necessariamente, decisão diversa da recorrida;
XII.–O arguido veio igualmente a ser condenado pela prática por referência à ofendida BB de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
XIII.–Sendo que, a ter sido condenado pela prática sobre a mesma ofendida dos crimes de violação agravados, os pontos 24) da matéria de facto provada, sempre teriam que estar numa relação de concurso aparente, e não concurso real, porquanto decorrendo uma relação de subsidiariedade entre ambos, devendo, ao invés, o agente ser punido pela globalidade dos factos, apenas pelo crime de violação, por ser o mais grave;
XIV.–E no mais, para este efeito, de passível integração de condutas por banda do arguido em crime autónomo, mas se arreado da esfera sexual, dever-se ia ater apenas nos factos assentes nos pontos 24) 25) e 26) da matéria de facto provada, concretamente neste último, que, em nosso ver, integram autonomamente, apenas um crime de ofensa à integridade física simples, e não de violência doméstica;
XV.–O arguido veio a ser condenado pela prática em autoria material e, em concurso real, na pessoa da ofendida BB de 1 (um) crime de violação agravado, previsto e punido, à data dos factos, pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e 6 do Código Penal e presentemente pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea a) e 7 do Código Penal, 28 (vinte e oito) crimes de violação agravados, previstos e punidos, à data dos factos pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5 do Código Penal e presentemente pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal,; 13 (treze) crimes de violação agravados, previstos e punidos, à data dos factos, pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, , cada um e de 1 (um) crime de violação agravado, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;
XVI.–Assim, os factos dos autos caracterizando-se, como crimes de violação agravada, pela sua homogeneidade, identidade na forma de execução, proximidade e continuidade temporal, permitirão a sua unificação numa única conduta criminosa, devendo, ao invés, o arguido ser condenado, pela prática, no que tange aos crimes de violação agravados, de um único crime de trato sucessivo, nos termos do art.º 30.º, n.º 3 do CP;
XVII.–Na pessoa da ofendida CC o arguido veio a ser condenado pela prática, como autor material e em concurso real de 151 (cento e cinquenta e um) crimes de abuso sexual criança agravados, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alíneas a), b) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um;
XVIII.–Considerando no douto acórdão recorrido, nos pontos 28 a 30 da matéria de facto dada como provada, que no decurso do ano de ..., ainda que em data não apurada, o mesmo se viria a determinar manter contactos de natureza sexual com a ofendida CC, prosseguindo a sua conduta até ..., ou seja, até a menor perfazer os 13 anos de idade;
XIX.–Sendo que discordamos quanto a estes concretos pontos de facto, cujas provas impunham decisão diversa da recorrida, porquanto assim incorrectamente julgados;
XX.–Também as penas de prisão aplicadas mostram-se, em face atentas as exigências de prevenção feral e especial in casu e a primariedade do arguido AA, muito elevadas;
XXI.–Entende-se, assim, que a dosimetria da pena em cada um dos crimes de violação agravados, pelos quais o arguido AA veio a ser condenado, se mostra muito agravada pelo douto tribunal a quo, devendo ser em cada crime punível de per si, atentos os factores supra, o grau de culpa, ilicitude e razões de prevenção geral e especial, aplicável uma pena perto dos seus limites mínimos;
XXII.–O mesmo a referir quanto à medida da pena aplicada ao crime de violência doméstica;
XXIII.–Razões porque se entende que as penas aplicadas o deveriam ter sido em limite inferior àquele pelo qual vieram a ser aplicadas, e mais próximo dos seus milites mínimos;
XXIV.–Por referência à ofendida CC, urge referir que o arguido veio a ser punido por cada um dos 151 crimes de abuso sexual de menores, p.p. pelo n.º 1 do art.º 171.º e 177.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CP, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um, mas cujo limite mínimo seria 1 ano e 4 meses e o máximo 10 anos e 8 meses;
XXV.–Mostrando-se assim muito elevada a dosimetria penal aplicada in casu, devendo aferir-se a pena mais próximo dos seus limites mínimos;
XXVI.–Assim, como se têm por excessivamente agravantes, as penas acessórias aplicadas, devendo, por decorrência do eventual abaixamento da dosimetria penal das penas aplicadas ao arguido, quanto a ambas as ofendidas, as mesmas serem reduzidas;
XXVII.–Assim como quanto ao quantum indemnizatório arbitrado, que deverá ser computado em montante inferior ao estabelecido;
XXVIII.–Quanto ao cúmulo jurídico, importa referir que a pena única de 15 anos de prisão porque veio a ser condenado, se apresenta outrossim como demasiado agravada, aferindo-se o seu limite mínimo pela mais grave das penas parcelares fixadas, que é de 5 anos e 8 meses de prisão;
XXIX.–Porquanto, com base nos parâmetros a considerar pelo tribunal, e em face da prova produzida, teriam que levar necessariamente a uma pena única abaixo da efectivamente aplicada.
*
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
*
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido, sem formular conclusões, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do acórdão recorrido.
*
Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, nos seguintes termos:
“Recurso próprio e tempestivo, sendo correto o efeito e o regime de subida que lhe está atribuído.
Por acórdão de ........2023, proferido no P.1907/22.0..., decidiu o Tribunal:
a)-Declarar extinto o procedimento criminal relativamente a 7 (sete) dos crimes de violação, previstos e punidos, à data dos factos, pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, que vinham imputados ao arguido;
b)-Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e, em concurso real, na pessoa da ofendida BB, de:
i)- 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão;
ii)- 1 (um) crime de violação agravado, previsto e punido, à data dos factos, pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e 6 do Código Penal e presentemente pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea a) e 7 do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão;
iii)- 28 (vinte e oito) crimes de violação agravados, previstos e punidos, à data dos factos pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5 do Código Penal e presentemente pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão, cada um;
iv)- 13 (treze) crimes de violação agravados, previstos e punidos, à data dos factos, pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, cada um;
v)- 1 (um) crime de violação agravado, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
vi)- 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
c)- Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e, em concurso real, na pessoa da ofendida CC, de 151 (cento e cinquenta e um) crimes de abuso sexual de criança agravados, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alíneas a), b), Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um;
d)- Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA, na pena única de 15 (quinze) anos de prisão;
e)-Absolver o arguido dos demais crimes que lhe vinham imputados na acusação;
*
f)-Condenar o arguido na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 18 (dezoito) anos, nos termos do artigo 69.º-B, n.º 2 do Código Penal;
g)-Condenar o arguido na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menores (em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança), pelo período de 18 (dezoito) anos, nos termos do artigo 69.º-C, n.º 2 do Código Penal;
h)- Condenar o arguido AA nas penas acessórias de proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima BB e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do artigo 152.º, n.º 4 e 5, do Código Penal;
i)- Condenar o arguido AA a pagar à ofendida BB o montante de 40.000 € (quarenta mil euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A, n.º 1 e 67.º-A, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal e no artigo 16º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015 de 04/09;
j)- Condenar o arguido AA a pagar à ofendida CC o montante de 15.000 € (quinze mil euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º-A, n.º 1 e 67.º-A, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal e no artigo 16º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015 de 04/09;
O arguido AA vem interpor recurso do acórdão condenatório, concluindo que:
-Quanto à ofendida BB, e por referência aos crimes de violação agravados, aplicados in casu nos termos previstos, à data dos factos pelo art.º 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 1, al. a), e presentemente nos art.ºs 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a) (e com a previsão dos n.º 6 e 7, consoante a idade), entende-se haver erro na determinação da norma aplicável, devendo ao invés ser aplicada a norma prevista no art.º 164.º, n.º 1, al.a) do CP(versão actual- e sempre por aferição ao correspondente preceito legal à data dos factos, que à data correspondia ao n.º 2), aos pontos 4 a 8 e 10 a 21 da matéria de facto provada;
- Assim, as referidas condutas dever-se-iam, no máximo, integrar no âmbito do n.º 1 do citado preceito legal, e não no n.º 2 (versão actual), como veio a fazer o douto tribunal a quo;
- Ainda que os actos descritos, possam ser aqui ainda ser integrados e na senda do propugnado inicialmente na acusação pública, como crime de abuso de crianças (pontos 4) a 9) da matéria de facto provada no douto acórdão) e de menores dependentes ou em situação vulnerável (pontos 10) a 19)) , p.p. nos art.ºs 171.º, n.º 2 e 172.º, n.º 1, als. a) e b) do CP, e neste último preceito legal;
- Pelo que, da prova produzida, infra aduzida, verifica-se, assim, existir erro na determinação da norma aplicável, impondo decorrente e necessariamente, decisão diversa da recorrida;
- O arguido veio igualmente a ser condenado pela prática por referência à ofendida BB de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
- Sendo que, a ter sido condenado pela prática sobre a mesma ofendida dos crimes de violação agravados, os pontos 24) da matéria de facto provada, sempre teriam que estar numa relação de concurso aparente, e não concurso real, porquanto decorrendo uma relação de subsidiariedade entre ambos, devendo, ao invés, o agente ser punido pela globalidade dos factos, apenas pelo crime de violação, por ser o mais grave;
- E no mais, para este efeito, de passível integração de condutas por banda do arguido em crime autónomo, mas se arreado da esfera sexual, dever-se ia ater apenas nos factos assentes nos pontos 24) 25) e 26) da matéria de facto provada, concretamente neste último, que, em nosso ver, integram autonomamente, apenas um crime de ofensa à integridade física simples, e não de violência doméstica;
- O arguido veio a ser condenado pela prática em autoria material e, em concurso real, na pessoa da ofendida BB de 1 (um) crime de violação agravado, previsto e punido, à data dos factos, pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e 6 do Código Penal e presentemente pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea a) e 7 do Código Penal, 28 (vinte e oito) crimes de violação agravados, previstos e punidos, à data dos factos pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5 do Código Penal e presentemente pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal,; 13 (treze) crimes de violação agravados, previstos e punidos, à data dos factos, pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, cada um e de 1 (um) crime de violação agravado, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;
- Os factos dos autos caracterizando-se, como crimes de violação agravada, pela sua homogeneidade, identidade na forma de execução, proximidade e continuidade temporal, permitirão a sua unificação numa única conduta criminosa, devendo, ao invés, o arguido ser condenado, pela prática, no que tange aos crimes de violação agravados, de um único crime de trato sucessivo, nos termos do art.º 30.º, n.º 3 do CP;
- Na pessoa da ofendida CC o arguido veio a ser condenado pela prática, como autor material e em concurso real de 151 (cento e cinquenta e um) crimes de abuso sexual criança agravados, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alíneas a), b) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um;
- Considerando no douto acórdão recorrido, nos pontos 28 a 30 da matéria de facto dada como provada, que no decurso do ano de ..., ainda que em data não apurada, o mesmo se viria a determinar manter contactos de natureza sexual com a ofendida CC, prosseguindo a sua conduta até ..., ou seja, até a até a menor perfazer os 13 anos de idade;
- as penas de prisão aplicadas mostram-se, em face atentas as exigências de prevenção feral e especial in casu e a primariedade do arguido AA, muito elevadas;
-A dosimetria da pena em cada um dos crimes de violação agravados, pelos quais o arguido AA veio a ser condenado, se mostra muito agravada pelo douto tribunal a quo, devendo ser em cada crime punível de per si, atentos os factores supra, o grau de culpa, ilicitude e razões de prevenção geral e especial, aplicável uma pena perto dos seus limites mínimos;
- O mesmo a referir quanto à medida da pena aplicada ao crime de violência doméstica;
-Por referência à ofendida CC, o arguido veio a ser punido por cada um dos 151 crimes de abuso sexual de menores, p.p. pelo n.º 1 do art.º 171.º e 177.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CP, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um, mas cujo limite mínimo seria 1 ano e 4 meses e o máximo 10 anos e 8 meses;
-Mostrando-se assim muito elevada a dosimetria penal aplicada in casu, devendo aferir-se a pena mais próximo dos seus limites mínimos;
-Assim, como se têm por excessivamente agravantes, as penas acessórias aplicadas, devendo, por decorrência do eventual abaixamento da dosimetria penal das penas aplicadas ao arguido, quanto a ambas as ofendidas, as mesmas serem reduzidas;
- Assim como quanto ao quantum indemnizatório arbitrado, que deverá ser computado em montante inferior ao estabelecido;
- Quanto ao cúmulo jurídico, importa referir que a pena única de 15 anos de prisão porque veio a ser condenado, se apresenta outrossim como demasiado agravada, aferindo-se o seu limite mínimo pela mais grave das penas parcelares fixadas, que é de 5 anos e 8 meses de prisão, pelo que o tribunal deveria aplicar pena inferior.
- Entende o recorrente que a decisão recorrida incorreu em violação do disposto nos artºs art.ºs 30.º, n.º 3, 164.º, n.º 1, al.a) ( com correspondência na versão à data dos factos no art.º 164.º, n.º 2), 171.º, n.º 2, 172.º, n.º 1, als. a) e b) e 71.º do C. Penal, pelo que deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que medidas da penas, pena única, penas acessórias e quantum indemnizatórios inferiores.
O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, referindo que as alegações do recorrente não colocam em crise os fundamentos que sustentam a decisão contida no acórdão recorrido, para o qual remete e reproduz, e defende a improcedência do recurso e a consequente manutenção do acórdão recorrido.
Em primeiro lugar, entendemos a decisão recorrida não incorreu em qualquer erro de qualificação jurídica, estando bem identificados os crimes imputados ao arguido, em face da prova produzida.
1.Quanto à alegação de que os factos dos autos caracterizando-se, como crimes de violação agravada, pela sua homogeneidade, identidade na forma de execução, proximidade e continuidade temporal, permitirão a sua unificação numa única conduta criminosa, devendo, ao invés, o arguido ser condenado, pela prática, no que tange aos crimes de violação agravados, de um único crime de trato sucessivo, nos termos do art.º 30.º, n.º 3 do CP, entendemos não assistir razão ao recorrente.
Como bem refere o acórdão recorrido, posição que também sufragamos No tocante ao número de vezes que o arguido preencheu a conduta típica, sufraga-se, a este propósito, a posição vertida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/05/2017 afastando-se a possibilidade de reconduzir os factos imputados ao arguido a um único crime (atento o afastamento da figura designada por “crime de trato sucessivo”).
Nesse Acórdão do STJ, pode-se ler no seu sumário: 2 Proc 110/14.7JASTB.E1.S1; Rel. Helena Moniz, in www.dgsi.pt “VII - Porém, ideia de sucessão de condutas que parece querer-se atingir com a designação de “trato sucessivo” implica necessariamente que haja uma sucessão de tipos legais de crime preenchidos e, portanto, segundo a lei, uma punição em sede de concurso de crimes. A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada acto sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei, desde logo, por não aplicação do regime do concurso de crimes. Isto é, não podendo unificar-se a prática de todos aqueles actos no crime continuado, previsto no art.º 30.º, n.º 2, do CP, por força do disposto no art.º 30.º, n.º 3, do CP, então apenas nos resta aplicar o disposto no art.º 30.º, n.º 1, do CP. Entender que tendo sido o mesmo tipo legal de crime preenchido diversas vezes pela conduta do arguido, ainda assim devemos entender como estando apenas perante um único crime, será decidir contra legem. VIII - Além do mais, a designação de “trato sucessivo” constitui uma designação com um significado juridicamente muito preciso e decorrente do Código de Registo Predial (cf. art.º 34.º) pretendendo-se documentar o trato, a traditio da coisa, sucessivamente; ora, num crime sexual não há traditio.
IX - E crime exaurido ou consumido dá a ideia de que logo no primeiro acto se consuma, tornando irrelevantes os actos sucessivos. Ora, o exaurimento do crime assume importância em todos aqueles casos em que, após a consumação, ocorre a terminação do crime, sendo relevante a desistência da tentativa entre um e outro momento. Mas a prática de um crime sexual seguida da de outros crimes sexuais não impede a consumação de um crime sexual em cada um dos actos. X - O “crime de trato sucessivo” tal como tem sido caracterizado pela jurisprudência corresponde ao crime habitual, ou seja, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual” (Figueiredo Dias). No entanto, o entendimento de um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal (art.º 29.º, n.º 1, da CRP), do tipo legal de crime previsto na lei. XI - A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada acto, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto nos art.ºs 171.º e 172.º, ambos do CP. XII - Em parte alguma os tipos legais de crime de abuso sexual de criança e de abuso sexual de menor dependente permitem que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida em diversos dias, ao longo de vários anos — mais de 10 —, em momentos temporalmente distintos, e fundada em sucessivas resoluções criminosas, de diversos actos sexuais de relevo(…)
Assim sendo o arguido, o arguido cometeu, não um, mas sim os crimes de violação agravada pelos quais foi condenado.
2.–Quanto à alegação de que o arguido não deveria ter sido condenado pela prática por referência à ofendida BB de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, por se verificar cuma relação de concurso aparente com o crimes de violação, e não concurso real, porquanto decorrendo uma relação de subsidiariedade entre ambos, devendo, ao invés, o agente ser punido pela globalidade dos factos, apenas pelo crime de violação, por ser o mais grave, também nos parece não lhe assistir razão.
Tal como resulta da douta decisão recorrida
Resultou provado relativamente à ofendida que o arguido em número não concretizado de vezes, mas entre os anos de ... e ..., desferiu sobre o corpo BB pancadas, não só quando aquela se recusava a manter consigo relações sexuais ou praticar sexo oral, mas também sempre que suspeitava que a mesma tinha um namorado ou havia conhecido alguém do seu interesse ou sempre aquela lhe pedia para sair e estar com amigos e o arguido a proibia de o fazer. Assim, tal aconteceu quando BB transitou para o 10.º ano de escolaridade e começou a frequentar a ..., quando o arguido suspeitou que a mesma tinha namorado. Noutra ocasião, quando BB já frequentava a Faculdade, no decurso de um treino, no parque ..., o arguido, motivado pela desconfiança de que a mesma tinha um namorado, tentou atingi-la na face com a mão e como a ofendida se desviou e caiu ao chão, o arguido atingiu-a com pontapés que na zona do abdómen quando esta se encontrava caída no solo.
Tais comportamentos - descritos nos pontos 24) a 27) - são claramente aptos a atingir a integridade psíquica e emocional da ofendida e a pôr em causa a sua dignidade.
Acresce a atuação do arguido ocorria com consciência e vontade de lhe causar as ofensas físicas e psíquicas descritas na factualidade dada como provada – factos do ponto 35), configurando, deste modo, um dolo direto.
Pelo exposto, conclui-se que o arguido praticou o crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea e) e n.º 2, alínea a) do Código Penal que, por referência à ofendida BB.
Ou seja, várias as agressões do arguido contra a ofendida BB, ocorreram em momentos temporais diversos em relação à prática dos actos integradores dos crimes de violação, sendo comportamentos totalmente autonomizáveis, pelo que, não poderia o arguido deixar de ser condenado pelo crime de violência doméstica agravado, em concurso efetivo.
Consequentemente, também se afasta a alegação de que o arguido cometeu apenas, um crime de ofensa à integridade física simples, e não de violência doméstica.
3.Quanto à alegação de que as penas parcelares e pena única em que foi o arguido foi condenado se mostram excessivas, cremos que também não assiste razão ao recorrente.
Como bem resulta do acórdão recorrido:
No que concerne às necessidades de prevenção geral dos crimes sexuais, sobretudo quando praticados sobre menores são elevadíssimas provocando grande “perturbação e comoção social, designadamente em face dos riscos (e danos) para bens e valores fundamentais que causam e da insegurança que geram e ampliam na comunidade.
Por seu turno, não está só em causa a liberdade e autodeterminação sexual, como também o livre desenvolvimento da personalidade da criança ou do jovem menor de certa idade, na esfera sexual, bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal. A acrescer, a circunstância de estar normalmente associado a este tipo de agressores um padrão repetitivo, o que suscita forte alarme social.
As exigências de prevenção geral são igualmente muito elevadas quanto ao crime de violência doméstica que sofreu uma evolução em que transparece uma reflexão sobre tais comportamentos e uma crescente perceção da repercussão social negativa dos mesmos, frequentemente assinalado pela jurisprudência.
São, assim, muito fortes as exigências da prevenção geral neste tipo de criminalidade, extremamente reprovada pela comunidade e pelo legislador.
*
Considerando agora os critérios parametrizadores enunciados no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, e reportando-nos aos fatores concretos concernentes à execução dos factos evidenciam-se as seguintes circunstâncias com relevo para a correspondente ponderação:
- O grau de ilicitude dos factos praticados é elevado, atento o tipo de ilícitos em apreciação, sendo mais acentuado quanto aos crimes de violação cometidos contra a ofendida BB quando a mesma tinha idade inferior a 16 anos, sendo filha do arguido, concorrendo duas agravantes nestes ilícitos, a última das quais deve ser ponderada na medida da pena;
- O grau de culpa do arguido no cometimento dos factos é elevado, tendo agido com dolo direto, atuando com total desprezo pela idade e inexperiência das menores e pelas consequências nefastas que poderiam advir para a sua formação e desenvolvimento sexual, numa atitude altamente censurável, quando o arguido deveria constituir para as ofendidas um reduto de segurança e proteção;
- Nada há apontar quanto à conduta do arguido anterior aos factos, sendo que não regista antecedentes criminais;
- As condições pessoais do arguido sugerem que o mesmo se encontra socializado, tendo mantido, ao longo da sua vida, um percurso regular ao nível profissional, na área da construção civil com vista à manutenção de uma condição sócio económica equilibrada no seu agregado familiar, sendo que manifestou intenção de manter acompanhamento psicológico;
- O arguido, de … de idade, evidencia falta de capacidade de autocritica e de consciencialização quanto ao desvalor dos seus comportamentos, que apenas parcial e limitadamente reconheceu, sendo que a sua conduta sugere um comportamento dirigido à satisfação das suas necessidades sexuais sem expressão de afeto, pese embora adote um discurso de reconhecimento face à ilicitude e gravidade do bem jurídico em causa, temendo eventuais consequências penais.
Assim, perante a elevada gravidade da conduta do arguido, o elevado número de crimes cometidos, o seu cometimento prolongado ao longo de anos, as graves consequências físicas e psicológicas para as ofendidas, suas filhas menores, a falta de consciência crítica demonstrada e de consciencialização quanto ao desvalor dos seus comportamentos, quer as penas parcelares determinadas, quer a pena única de 15 anos de prisão em que foi condenado, não merecem qualquer censura, sendo que a pena única de 15 anos de prisão de mostra-se a mais adequada e proporcional ao caso.
4.Finalmente, quanto à alegação de que as penas acessórias são excessivas e que os valores das indemnizações fixados também são excessivos, devendo ser reduzidos os seus quantuns, também não assiste razão à recorrente, a nosso ver, encontrando-se a decisão recorrida bem fundamentada a este respeito.
Emite-se, pois, parecer no sentido da manutenção do acórdão recorrido nos seus precisos termos, o qual não merece qualquer censura, e pugna-se pela improcedência do recurso.”
*
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.
*
Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
*
2 – Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
À luz destes considerandos, são as questões que cumpre decidir:
- Erro de julgamento sobre a matéria de facto;
- Qualificação jurídica dos factos apurados;
- Concurso de crimes;
- Medida da pena;
- Montante indemnizatório a pagar pelo arguido às vítimas.
*
3Fundamentação:
3.1.–Fundamentação de Facto
3.1.A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:
1.1)- Matéria de facto provada
1)-O arguido AA é pai de BB, nascida em ... de ... de 2000 e de CC, nascida em ... de ... de 2007.
2)-O arguido AA reside, pelo menos desde o ano de ..., conjuntamente com a sua mulher DD, os seus filhos BB, CC, EE e FF, na ....
3)-A partir de data não concretamente apurada mas posterior ao dia .../.../2011, quando BB frequentava o 6.º ano de escolaridade e tinha, pelo menos, 12 anos de idade, o arguido determinou-se a manter com ela contactos de natureza sexual.
4)-Para o efeito, no interior da residência sita na ..., num sábado de manhã, depois das 7 horas, o arguido aproveitando-se da ausência de sua mulher DD, que saíra de casa para trabalhar, dirigiu-se ao quarto onde dormia BB, deitou-se junto a esta, despiu-a da cintura para baixo e, em seguida, com o seu pénis ereto penetrou-o na vagina da sua filha, o que fez parcialmente, provocando-lhe dor intensa.
5)-Como BB sentiu dores fortes empurrou o arguido, afastando-o, tendo aquele, irado por não prosseguir o ato sexual que iniciara, lhe desferido uma chapada, atingindo-a na face, provocando-lhe dor, ao mesmo tempo que afirmava que voltariam a tentar.
6)-A partir desse momento, o arguido, aproveitando-se do ascendente emocional, do temor que lhe causava, em consequência da agressão que lhe infligira e da sua força física, manteve com a sua filha BB, sempre contra a vontade desta, relações sexuais, introduzindo o seu pénis na sua vagina, esfregando-se nessa até ejacular ou praticando coito oral com ela.
7)-Volvidas algumas semanas, o arguido manteve o propósito de praticar com BB relações sexuais e em data não apurada mas seguramente quando a mesma frequentava o 6.º ano de escolaridade e tinha, pelo menos, 12 anos de idade, num sábado de manhã, entre as 9 e as 11 horas, o arguido aproveitando-se da ausência de DD, dirigiu-se ao quarto onde dormia BB, determinou a que o acompanhasse até ao quarto do casal, onde a deitou na cama e despiu da cintura para baixo.
8)-O arguido colocou o seu corpo em cima do de sua filha BB e já com o pénis ereto introduziu-o na vagina daquela aí se esfregando, determinando o rompimento do hímen e sangramento, pois aquela não havia antes mantido relações sexuais.
9)- Entre o mês de ... e ... de ... de 2014, o arguido, quando a sua filha BB, então com 13 anos de idade, ia tomar banho, entrava na casa de banho, observava-a nua e mantinha com esta contactos físicos mais próximos, sob pretexto de um cumprimento ou abraço esfregava o seu corpo contra o corpo daquela, o que fazia com o propósito de obter estímulo sexual.
10)-Após .../.../2014, quando BB já tinha completado 14 anos de idade, até .../.../2016 no período escolar, o arguido manteve com a mesma relações sexuais aos sábados de manhã, pelo menos uma vez por mês, aproveitando a ausência da mãe.
11)-Para o efeito, durante esse período o arguido chamava BB para o seu quarto, despia-a e deitava-a na cama, introduzia o seu pénis na vagina daquela, efetuando movimentos oscilantes, até ejacular, para fora do seu corpo.
12)-No período das férias escolares, os factos referidos em 11) e 12) tinham lugar uma vez em cada dois meses.
*
13)-Entre os anos de ... e 2016 BB, com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, frequentou a ..., no 7.º, 8.º e 9.º ano de escolaridade, tendo repetido o 8.º ano de escolaridade, sendo que nesse período tinha no seu horário, uma vez por semana, uma pausa de duas horas para almoço.
14)-Na referido hiato temporal, o arguido pelo menos uma vez por mês, determinava a BB que, após almoçar na escola, se dirigisse a casa, onde ficava sozinha com aquele.
15)-Nessas circunstâncias e, pelo menos, uma vez em cada dois meses, o arguido ordenava a BB que se despisse, beijava-lhe o corpo, penetrava-a na sua vagina, efetuando movimentos oscilantes, até ejacular, o que fazia sobre o corpo daquela.
16)-Nas referidas ocasiões, o arguido, sempre que assim o desejava, ordenava a BB que colocasse a boca daquela no seu pénis, obtendo desse modo prazer sexual.
17)-No período compreendido entre .../.../2014 até ao final do 9.º ano letivo, em .../.../2016 em casa, durante a referida hora de almoço, o arguido manteve com a sua filha BB, então com 14, 15 e 16 anos de idade, relações sexuais que consistiram em cópula e coito oral, pelo menos uma vez de dois em dois meses.
*
18)-No decurso dos anos de 2016 a ..., tendo à data BB idade compreendida entre os 16 e os 18 anos de idade e frequentando o 10.º, 11.º e 12.º ano de escolaridade, como aquela não podia já deslocar-se a casa à hora de almoço, visando satisfazer a sua libido, o arguido ainda assim manteve a conduta descrita.
19)- Para o efeito, uma vez de dois em dois meses, procurava a sua filha BB, nas manhãs de sábado, ordenando-a a despir-se e conforme sua vontade, sujeitando-a a coito oral, bem como penetrando-a na sua vagina, efetuando movimentos oscilantes, até ejacular, o que fazia sobre o corpo daquela.
*
20)-No decurso do ano de ... e até o ano de ..., em número não concretizado de vezes e de forma esporádica, quando BB tinha entre 19 e 22 anos de idade, o arguido, aproveitando-se do ascendente emocional, do temor que lhe causava - em consequência das vezes que a agredira antes - e da força física, desferindo-lhe pancadas no corpo quando aquela se negava, manteve com a sua filha, sempre contra a vontade desta, relações sexuais, praticando coito oral e introduzindo o seu pénis na vagina daquela, esfregando-se até ejacular.
21)-Em data não concretamente apurada mas seguramente entre os dias ... de ... de 2022, entre as 14 e as 15 horas, o arguido, chegado a casa, instou BB a acompanha-lo à casa de banho e ali chegada, ordenou, mais uma vez, que se despisse e, contra a vontade desta, exercendo força sobre o seu corpo, colocou-a contra a porta, de costas para si, tendo em seguida introduzido o seu pénis ereto na vagina daquela, efetuando movimentos oscilantes até ejacular.
22)-O arguido nas relações sexuais que manteve com a sua filha BB, desde os 14 anos até aos 22 anos de idade daquela, nunca utilizou preservativo.
23)-De modo a evitar que a sua filha engravidasse, e visando controlar o ciclo menstrual daquela, o arguido determinou BB a apontar num caderno as datas em que menstruava e a dar-lhe disso conhecimento.
24)-O arguido em número não concretizado de vezes, mas entre os anos de ... e ..., desferiu sobre o corpo BB pancadas, não só quando aquela se recusava a manter consigo relações sexuais ou praticar sexo oral, mas também sempre que suspeitava que a mesma tinha um namorado ou havia conhecido alguém do seu interesse ou sempre aquela lhe pedia para sair e estar com amigos e o arguido a proibia de o fazer.
25)-Assim, tal aconteceu quando BB transitou para o 10.º ano de escolaridade e começou a frequentar a ..., quando o arguido suspeitou que a mesma tinha namorado.
26)-Noutra ocasião, quando BB já frequentava a Faculdade, no decurso de um treino, no parque ..., o arguido, motivado pela desconfiança de que a mesma tinha um namorado, tentou atingi-la na face com a mão.
27)- Como BB se desviou e caiu ao chão, o arguido atingiu-a com pontapés que a atingiram na zona do abdómen quando esta se encontrava caída no solo.
28)-O arguido, em data não apurada, mas no decurso do ano de ..., quando CC tinha 10 anos de idade, determinou-se a manter com aquela contactos de natureza sexual, sendo que para o efeito colocava a sua mão por dentro das calças daquela e, por cima das cuecas, apalpava-a na vagina.
29)-O arguido, no interior da residência sita na ..., na concretização da conduta descrita, em determinadas ocasiões chamava a sua filha CC para o quarto do casal ou para a casa de banho, sempre fechando a porta.
30)-Nas referidas circunstâncias, em número não determinado de vezes, pedindo a CC para que não olhasse, tocava-lhe na vagina por cima das cuecas, colocava o pénis ereto de fora das calças, esfregava-o entre as pernas daquela até ejacular sobre o seu corpo.
31)-O arguido prosseguiu a conduta descrita sobre a menor CC, em número não concretizado de vezes, pelo menos com frequência semanal, após ... e até ..., desde que esta tinha 10 anos de idade até perfazer os 13 anos.
*
32)-O arguido agiu da forma descrita em 4), 5), 6), 7), 8), 9), conhecendo a idade de BB, ciente que a mesma não tinha capacidade e desenvolvimento para ser sujeita a tais práticas, quis e conseguiu satisfazer os seus desejos sexuais ao manter com esta contacto sexual e depois cópula, molestando-a sexualmente, prejudicando-a no desenvolvimento da sua personalidade, ofendendo a enquanto criança e colocando em causa o seu normal e são desenvolvimento psicológico, afetivo e sexual.
33)-O arguido com a conduta descrita de 10) a 16) e 17) a 19) quis e conseguiu manter relações sexuais, designadamente cópula e coito oral com BB, o que fez entre os seus 14 e 18 anos, idade que conhecia, com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais, utilizando para tanto a menor, sua filha, aproveitando-se da sua imaturidade e inexperiência, da proximidade familiar e do facto de a mesma consigo coabitar e a si estar entregue, e além do mais para tanto, exercendo a força física, indiferente a tais circunstâncias e às consequências de tal atuação sobre a mesma, prejudicando-a no seu normal e são desenvolvimento psicológico, afetivo, emocional e sexual.
34)-O arguido ao agir como supra descrito sabia que BB não pretendia manter relações sexuais com este e, ainda assim, quis e conseguiu através do recurso ao temor, força física e, em determinadas ocasiões, violência, desferindo-lhe sobre o corpo pancadas, contra a vontade daquela, manter relações sexuais, em concreto cópula e coito oral, com intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos, o que alcançou.
35)-O arguido com a conduta descrita em … a … quis e conseguiu molestar BB no seu corpo e saúde, controlar as suas relações e amizades, cerceando na sua liberdade, livre e são desenvolvimento, atingindo-a na sua dignidade de pessoa humana.
*
36)- O arguido ao agir do modo descrito de 28) a 31), enquanto CC tinha entre os 10 e 13 anos, idade que aquele conhecia, quis e conseguiu manter os atos sexuais descritos, ciente que a mesma não tinha capacidade e desenvolvimento para ser sujeita a tais práticas, quis e conseguiu satisfazer os seus desejos sexuais molestando-a sexualmente, prejudicando-a no desenvolvimento da sua personalidade, ofendendo-a enquanto criança e colocando em causa o seu normal e são desenvolvimento psicológico, afetivo e sexual.
37)- O arguido não ignorava que BB e CC, haviam nascido a ... de ... de 2000 e a ... de ... de 2007 respetivamente, que eram suas filhas, que com elas coabitava, cumprindo-lhe protegê-las, respeitá-las, prestar-lhes cuidados e assistência e que em virtude dessa relação aquelas de si dependiam, em si confiavam e a si obedeciam.
38)-O arguido mais sabia que não lhe era permitido constrangê-las a qualquer ato de cariz sexual e, em concreto com BB manter relações sexuais, copula vaginal e coito oral.
39)-Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
Das condições pessoais do arguido
40)- O arguido é natural de ..., onde decorreu o seu processo de socialização, integrado no agregado de origem de condição socioeconómica modesta e composto pelos pais e seis filhos, sendo o arguido o mais velho de seis irmãos.
41)- Veio para Portugal há cerca de 23 anos, junto com a esposa, onde também se encontra uma irmã mais velha e a mãe, estando esta hospitalizada após sofrer de um AVC.
42)- O pai já faleceu.
43)- Em ... tem os restantes irmãos.
44)- A nível escolar, que frequentou no país de origem, o arguido terminou o ensino secundário, após o qual iniciou atividade profissional na área da construção civil.
45)- O arguido manteve um relacionamento afetivo do qual tem três filhos que permanecem em ..., que são já adultos e com vida autónoma.
46)- Costumava, antes da sua prisão, contactar telefonicamente com uma das filhas.
47)- O arguido refere manter ligação afetiva com a esposa há cerca de 27 anos e com a qual tem quatro filhos, sendo as filhas, as duas do meio, as ofendidas nos autos.
48)- Tem beneficiado de visitas por parte da esposa com quem mantém projetos de vida futuros, ao que esta garante que tal não será possível face aos acontecimentos, apenas dando apoio por questão humanitária.
49)- O arguido mantinha aparentemente um modo de vida regular, desenvolvendo atividade laboral na área da construção civil como empreiteiro por conta própria, sem aparentes constrangimentos, a qual lhe permitia contribuir para a manutenção de condições de vida estáveis para os filhos que se encontravam todos as estudar.
50)-Após a reclusão do arguido, a mulher do mesmo procurou apoiar as filhas, (ofendidas) que mantém apoio psicológico e, após uns momentos de instabilidade, tentou que os filhos voltassem a manter as mesmas condições de vida, mas a nível económico a situação familiar ressentiu-se porque até então desenvolvia atividade profissional como cuidadora em lar de idosos e neste momento executa o mesmo trabalho mas para particulares, tendo dificuldade em suportar todas as despesas do agregado e tem recorrido aos apoios sociais.
51)- A filha mais velha anulou a sua matrícula na Universidade para poder apoiar a mãe e permitir que os irmãos mantenham alguma normalidade no seu modo de vida.
52)- O arguido é visitado com regularidade, pelo cônjuge.
53)- A mulher do arguido não pretende dar continuidade à ligação pese embora o arguido transmita alguns projetos futuros em comum.
54)- Em termos de saúde o arguido tem mostrado intenção em manter sempre que possível o acompanhamento psicológico.
55)-O arguido encontra-se, desde .../.../2022 em prisão preventiva a aguardar julgamento no presente processo, sendo a primeira vez que se encontra em situação de reclusão.
56)-No Estabelecimento Prisional da Carregueira, onde se encontra, tem mantido um comportamento adequado, mas sem exercer qualquer atividade por se encontrar na situação de preventivo.
57)-O processo teve repercussões a nível da saúde mental do arguido que atentou contra a sua vida.
58)-O arguido verbaliza ser sua intenção, na sequência do processo em causa, centrar-se no seu fortalecimento intrínseco e manter o relacionamento com a esposa que o visita no Estabelecimento Prisional.
59)-O arguido refere sentir ansiedade e pressão psicológica e necessitar de apoio psicológico, nomeadamente no que se refere a privação da sua liberdade.
60)- O arguido não regista antecedentes criminais.
*
1.2)–Matéria de facto não provada
Da audiência de discussão e julgamento não resultou provado que o arguido praticou os factos referenciados em 7) e 8) após ... de ... de 2014.
*
1.3)–Justificação da convicção do tribunal
Em obediência ao disposto no artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, cumpre expor, de forma tanto quanto possível, completa, ainda que concisa, os motivos que fundamentam a antecedente decisão fática, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
O Tribunal formou a sua convicção positiva com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento globalmente considerada, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos meios de prova, nos termos do disposto no artigo 127.° do Código de Processo Penal.
Assim, fundamentaram a antecedente decisão fáctica e contribuíram para formar a convicção do Tribunal, os seguintes elementos de prova produzidos e examinados em audiência de discussão e julgamento:
- O teor da prova documental de fls. 3/4 (participação); 30 do apenso 1093/22.5... (auto de denuncia); 624 e 625 (assentos de nascimento), 641 (Certificado de Registo Criminal) e 657 a 658 (relatório social do arguido), - cujo conteúdo não foi impugnado, tendo o seu valor probatório saído incólume da audiência de julgamento;
- O teor da prova pericial de fls. 373 a 378 (relatório da perícia médico-legal de psicologia, de CC); 381 a 386 (relatório da perícia médico-legal de psicologia, de BB); de fls. 527 a 529 (relatório da perícia de natureza sexual, de BB); fls. 531 a 533 (relatório da perícia de natureza sexual, de CC);
- As declarações para memória futura prestadas em .../.../2022 pela ofendida BB (cfr. fls. 391, refª ..., disponíveis através de “Citius Media Studio”), aos vinte e dois anos de idade, nas quais a mesma refere que sempre viveu com o seu pai na mesma casa desde que nasceu. Antes da morada atual viveram em mais duas moradas. Quando a sua mãe veio para cá, depois de nascer, começaram por viver com os seus tios (irmã da sua mãe e o marido dela) e depois, pelo que sabe, os seus pais conseguiram alugar uma casa, no ... e depois é que foram para a atual morada. Vivem nesta casa, há cerca de 18 anos, sendo que a sua irmã EE era pequena, pensa que ainda não tinha um ano. Nessa altura, vivia com os pais, com a EE e depois nasceu a CC. Os seus pais sempre trabalharam: a sua mãe em cafés, de segunda a sábado e o seu pai sempre na construção civil, de segunda a sábado, às vezes domingo e por vezes de segunda a sexta. Por volta dos seus 13 anos, o seu pai começou por se roçar em si, dando-lhe abraços de namorados, apertados e aos 14 anos perdeu a virgindade com o seu pai. Só se lembra depois de perder a virgindade, antes disso não se lembra de nada. Perdeu a virgindade provavelmente num sábado, porque era quando a sua mãe estava a trabalhar. Ele já tinha tentado tirar a virgindade antes mas ela não deixou e ele bateu-lhe, deu-lhe uma chapada na cara, disse que voltariam a tentar. Umas semanas depois, dormia no seu quarto com as suas irmãs, o seu pai foi chama-la ao seu quarto, sem acordar a sua irmã e foram para o quarto dos seus pais. Ele despiu-a da cintura para baixo, deitou-a na cama, penetrou-a, começou a sangrar. Achou que era a sua menstruação porque era irregular e falou “pai a menstruação apareceu” pediu para ir a casa de banho ele deixou-a ir e nesse dia não fez mais nada. Nesta ocasião introduziu o pénis na sua vagina, fez movimentos, mas não ejaculou. A sua mãe saia para o trabalho entre as 7 e as 8 horas, por isso isto passou-se entre as 9 e as 11 horas. Nesse dia não aconteceu mais nada. Algum tempo depois, algumas semanas, voltou a acontecer o mesmo, a maioria das vezes, sábados de manhã em que ele a ia chamar ao quarto. Depois, quando estava em horário escolar, havia anos em que tinha duas horas de almoço e como vivia perto da escola e ele dizia para ela ir para casa que ele ia lá ter consigo, acontecia e depois ela voltava para a escola. Da segunda vez que se lembra ele ejaculou, ele ejaculava nas suas coxas fora da vagina. Todas as vezes ele aproveitava a hora de almoço porque era só uma vez por semana, o que acontecia todas as semanas. Teve essa hora de almoço alargada no 7.º e 8.º ano, quando tinha 14/15 anos, mas como repetiu o 8.º ano foi até aos 16 anos. Além disso havia sexo oral, ele fazia em si e ela tinha de fazer nele algumas vezes. Acontecia por vezes ela não querer e ele bater-lhe. Aos sábados de manhã era difícil ele bater-lhe, mas quando ela recusava ele suspeitava que ela andava metida com algum rapaz da escola e chateava-se com isso e ela tinha consequências depois, dependendo do humor dele, podia zangar-se consigo ou bater-lhe. Aconteceu poucas vezes ela recusar e o seu pai bater-lhe. Durante a semana ele fazia sexo oral e também vaginal. Aos sábados para além de sexo vaginal, dependia da vontade dele, não sabe dizer ao certo mas a maioria era vaginal. Esta situação manteve-se até aos seus 22 anos, até ao mês de ... ou ..., cerca de duas semanas antes de fazer a queixa na policia, acha que num dia da semana, da parte da tarde, por volta das 13/14 horas. Estava em casa e a sua irmã EE estava a dormir porque não se estava a sentir muito bem, o seu irmão mais novo estava na sala e a sua irmã CC também. Ele tinha ido trabalhar mas foi almoçar a casa, saiu, voltou, levou-a para a casa de banho, encostou-a contra a porta e fez sexo vaginal por trás, ejaculou mas não se lembra para onde. Nunca se apercebeu de nada com a CC. Antes dos 13 anos não sabe responder, porque desde criança os pais têm o hábito de cumprimentar os filhos com um beijo e achava isso normal. A partir dos 13 anos o que a incomodou foi ele começar a observá-la no banho, abraços mais demorados, palmadas no rabo. No banho não lhe tocava só a observava. A primeira vez que houve a tentativa de penetração tinha 13 anos, não sangrou, empurrou-o, foi no seu quarto, pensa que não estava ninguém em casa. Tem um beliche e estava deitada no beliche de baixo. Ele deitou-se consigo, roçou-se em si, despiu-a da cintura para baixo, tentou penetra-la ela com a dor empurrou-o e ele bateu-lhe com a mão aberta, deu-lhe uma bofetada e desistiu. Da vez que sangrou pensava que era a menstruação, já tinha os 14 anos. Mais tarde começou a haver menos assiduidade quando entrou no 10.º ano, porque a sua escola não era tao perto, foi para a .... Até aos 18 anos mantinha-se a regularidade dos sábados, a partir dai era mais espaçado, mas mantinha-se aos sábados. Ele nunca demonstrou preocupação que viesse a engravidar, fazia-a apontar num caderno as datas e controlava o seu ciclo menstrual. Desde ... que está na faculdade, que não tem a mesma regularidade, no primeiro ano da faculdade entraram em Covid, não durou muito porque os seus irmãos também estavam em casa. Antes disso sempre tiveram uma boa relação, davam-se bem, faziam praticamente tudo juntos, sempre praticou desporto e o seu pai esteve sempre por perto, mesmo nestes anos, ela já tinha dito que não queria treinar mais com ele. O seu pai dizia que tinha ciúmes e além disso sempre teve a ideia que não podia namorar antes de terminar os estudos para não atrapalhar. Dias antes ou uma semana antes da queixa uma amiga sua de ..., colega de atletismo, tinha pedido para passar o aniversario com ela porque vinha a … Já tinha pedido o ano anterior e a sua mãe disse que da próxima vez que a sua amiga convidasse ela tinha autorização para ir. A sua amiga ligou, o seu pai estava perto do telemóvel, atendeu, falou com ela, cumprimentou-a e depois passou o telefone e ela fez-lhe o convite mas quando ela pediu autorização para ir ele disse que não, ela disse que a mãe tinha deixado ir. Por causa disso houve uma pequena briga entre os seus pais, só sabe que ele ameaçou a si e a sua mãe. Normalmente quando ele se zanga assim, pede à sua mãe para ir com ela para o trabalho, ela pediu para ir no sábado com ela, depois ela disse que já não podia ir porque se ela a levasse para o trabalho teria de a levar todos os dias para ele não lhe fazer o trabalho. Como não é a primeira vez que o arguido a ameaça e durante muito tempo teve o hábito de lhe bater e à sua mãe, deixou de lutar contra, de forma que deu consentimento sim. Conheceu uma pessoa recentemente, um jovem indiano que esta cá de ferias, ele abordou-a uma vez que foi visitar a sua irmã ao hospital, falaram durante uma semana mas deixaram de falar. Ainda saíram alguma vezes. Antes disso nunca saiu com ninguém com a ideia de avançar com isso.
A ofendida BB voltou a ser ouvida em audiência de discussão e julgamento, a fim de lhe serem tomados esclarecimentos complementares, tendo declarado nesta sede ainda que entrou para a escola com seis anos e só no oitavo ano é que reprovou. A partir do 5.º ano até ao 9.º ano de escolaridade esteve sempre na .... Pensa que o envolvimento com o seu pai começou quando tinha por volta dos 14 anos, porque ele um dia lhe disse isso, não tendo ideia da idade que tinha. Mas julga que a primeira situação aconteceu quando estava no quinto ou no sexto ano, porque ainda não tinha línguas estrangeiras, por isso não podia estar no sétimo ano. A primeira vez que o seu pai tentou não conseguiu, não sabe se ele conseguiu introduzir o pénis completamente mas sabe que doeu e por isso lhe disse para parar, sendo que ele lhe deu um estalo. Sabe que tudo começou uns meses depois do aniversário da sua irmã CC, que faz anos em .... Da primeira para a segunda vez em que tiveram relações sexuais demorou algumas semanas. Geralmente acontecia aos sábados de manhã, quando a sua mãe ia trabalhar, não acontecia todos os sábados, mas pelo menos tinham relações aos sábados uma vez por mês. Quando passou para o sétimo ano, começou a ter uma hora de almoço alargada, uma vez por semana. Sempre teve o hábito de falar com o pai com à hora de almoço desde o 5.º ano, e ligava-lhe do seu telemóvel e conversava com ele. A partir de certa altura, no 7.º ano, o pai dizia-lhe para ir a casa nos dias em que tinha a hora de almoço alargada e ela ia, pelo menos uma vez por mês. Pelo menos uma vez, de dois em dois meses, nesse período, acontecia terem relações sexuais, o que se prolongou até ao 9.º ano, no período das aulas. A partir do 10.º ano foi para a ... e deixou de ter tempo de ir a casa e a faculdade era mais longe e no 12.º ano deixou de acontecer com tanta frequência, mas tinham relações pelo menos uma vez de dois em dois meses. Durante as férias escolares não acontecia com tanta frequência, só aos fim-de-semana, mas pelo menos uma vez de dois em dois meses. Aos sábados mantinha-se a situação. A última vez que manteve relações sexuais com o seu pai foi cerca de duas semanas antes de apresentar queixa. Nas alturas em que tinham relações sexuais ele não a agredia. Uma vez, quando já estava na Faculdade ele agrediu-a durante um treino, no parque ..., bateu-lhe porque estava desconfiado que ela tinha alguém, tentou atingi-la com na cara e ao desviar-se ela caiu no chão e nessa altura ele deu-lhe pontapés que a atingiram na zona abdominal. Por volta do 9.º ano e no 10.º ano, quando foi para a escola de ..., o arguido agrediu-a por achar que ela tinha namorado. As agressões não aconteceram com muito frequência, pelo menos foram uma ou duas vezes por ano, ele tentava sempre atingi-la na cara, e agredia-a na face com chapadas de mão aberta. Em casa aconteceu ele tentar agredi-la e ela fugir. Reagiu mais do que uma vez quando ele tentava ter relações sexuais consigo e, nessas alturas ele afastava-se e dizia-lhe que ficava a pensar porque é que ela não aceitava, se tinha alguém. Aos fins-de-semana quando tinha competição isto não acontecia. A sua primeira menstruação foi aos 10 anos. Fora de casa aconteceu terem relações sexuais duas vezes numa pousada perto do aeródromo de ..., quando já estava na Faculdade, já tinha 18 anos. A sua mãe geralmente só tirava férias no final das férias escolares ou no inicio do ano letivo. Quando estavam de férias, nos meses de ... e ... acontecia terem relações sexuais uma vez em dois meses, porque os seus irmãos acordavam cedo, muitas vezes para fazerem algum programa.
- As declarações para memória futura prestadas em .../.../2022 pela ofendida CC (cfr. fls. 391, refª ..., disponíveis através de “Citius Media Studio”) aos quinze anos de idade, nas quais a mesma refere que sempre viveu na ..., com os pais, o irmão mais novo e as suas irmãs mais velhas. Houve um tempo em que os seus pais trabalhavam todos os dias da semana menos no domingo, mas isso mudou um bocado. Acha que os pais trabalhavam os dois no sábado, o pai também. A mãe saia mais cedo, de manhã e o seu pai saia por volta da hora do almoço. No sábado de manhã o seu pai estava normalmente em casa. A situação com o seu pai começou no 5.º ano, quando estava sozinha com ele, não tinha aulas a tarde e ele vinha para almoçar, ele começou com os toques indecentes, tinha 10 anos. Ele começou a tocá-la na vagina e depois continuou um tempo. Ele tocava por cima da roupa. Acontecia talvez duas ou três vezes por semana, ela fazia em todo o lado, cozinha, sala, nosso quarto, quarto dos pais, casa de banho. A maioria das vezes era quando estavam sozinhos mas acontecia mesmo quando estavam pessoas em casa: o seu irmão estava na sala a jogar, ele chamava-a para o quarto e fechava a porta. Uma vez aconteceu com toda a gente em casa, ele chamou-a para a casa de banho. Aconteceu até ao 8.º ano, podia pôr a mão por dentro das suas calças, mas por dentro das cuecas não. Ficava à superfície. Nunca lhe fez mais nada a não ser isso. Nunca fez nada com o pénis dele. Quando ele se roçava nunca fez nada com o pénis. Ele não a deixava olhar, ele ejaculava para as suas pernas. Ele esfregava o pénis dele no meio das suas pernas, começou no 5.º ano e passou-se até ao 8.º ano, devia ter 13 anos. Passou-se entre os 10 e os 13 anos. Isto passava-se 2 a 3 vezes por semana. Ele apalpava-a por cima da sua roupa e esfregava-se nas suas pernas até ejacular. Não sabe porque é que ele parou aos 13 anos mas ficou aliviada. Parou antes dela fazer 14 anos, quando acabou o ano letivo. O relacionamento não continuou o mesmo, “meio que se afastaram”, já não eram tão próximos, ele começou a ignorá-la e afastou-se dela. As vezes dizia para ela se calar, dizia “shi” e deu-lhe um ultimato, disse “se tu contas alguma coisa a nossa amizade acaba” porque na altura ela e o seu pai eram melhores amigos. Isto acontecia sempre que dizia que não queria, mas nunca lhe bateu. Relativamente à BB nunca presenciou nada, ela nunca lhe contou nada. O seu pai e a BB davam-se bem, a BB tolerava o pai, eles sempre tiveram muitas discussões, ele chateava-a por coisas inúteis e fúteis e ela estava farta disso, o pai não a deixava fazer, controlava muito a BB e ela odiava isso e sempre tentou manter o pai afastado. Umas vezes tinham discussões pequeninas, por vezes ficavam chateados durante semanas sem falar um com o outro mas depois meio que faziam as pazes, porque a BB não queria que ficassem chateados. Nunca contou nada à mãe. Na altura do confinamento continuaram os abusos.
- As declarações prestadas pelo arguido em audiência de discussão e julgamento o qual, em síntese, declarou que, em relação à sua filha BB, passavam muito tempo juntos, praticavam atletismo (400 metros planos e ela fazia 400 planos e barreira) e paraquedismo, eram federados, eram muito amigos, até um dia em que perdeu a cabeça e fez sexo com ela. Começou em ..., tinham saído de ... do paraquedismo, num domingo e na segunda feira tinha ido almoçar a casa e ela tinha o cartão da senha para o almoço na escola, abordou-a, ela não resistiu e consumou-se sexual. Isto passou-se em ..., faltavam uns dias para ela fazer 16 anos. Nunca agrediu a BB para este fim. Chateava-se com a BB por outras razoes, apesar de ter esta conduta, nunca deixou de ser pai, sentava-se com ela para fazer os TPC e quando não estava correto era verbalmente agressivo com ela. Houve uma vez (no 8.º ou 9.º ano) que viu uma mensagem no telefone da BB, de umas amigas, dizendo que “um preto devia lutar pelo menos uma vez na vida” e a partir daquele dia passou a ser mais rigoroso, metia mais limitações nas saídas, com quem ela falasse ou queria sair, sobretudo essa amiga que a incitava a lutar. Ela aborrecia-se. Quanto a agressões, podia agredi-la verbalmente, quando falava dizia asneiras, que não devia estar com essas pessoas. Fazia mais saídas familiares, quando ela queria sair com amigas, era só uma amiga que deixava que frequentasse a sua casa, filha de uma amiga da sua mulher. Já quanto a outra amiga e amigos da escola, limitava. É verdade que entrava na casa de banho, mas isso acontecia também com gente em casa, tinha uma relação muito aberta. Só quando tiveram relações sexuais pela primeira vez é que passou a dar-lhe abraços mais prolongados. A primeira vez que tiveram relações a BB estranhou, falou com ela, viu as expressões dela. Depois dela aceitar foi pacificamente, falou com ela, disse que podia fazer e ela não lhe respondeu, ela só acenou. Perguntou se queria ter sexo com ela acenou dizendo que sim, primeiro ficou apreensiva e depois acenou com a cabeça. Antes de terem a relação sexual falou com ela. Pediu para fazer e ela disse que sim. Continuaram a ter relações sexuais até à idade adulta, aos 22 anos dela, esporadicamente. Não era sempre, havia intervalos grandes, passavam semanas ou meses que não faziam nada. Não sabe precisar quantas vezes aconteceu num ano. Da primeira vez não estava ninguém em casa, acontecia sempre em casa, na maioria das vezes não estava ninguém. Tinham sempre competições aos fim-de-semana, raramente aos sábados. Quando não tinha competições ia trabalhar, de manha saia as 7:30 horas ia almoçar a casa e voltava só as cinco horas. Os filhos ficavam com a BB. Quando ia para as competições com a BB levantavam-se os dois mais cedo, os filhos ficavam a dormir. A BB não tinha pausa para o almoço, quando ela se esquecia de tirar a senha ia a casa, não tinha pausa de duas horas. A primeira vez que tiveram relações ela era virgem. Não usava preservativo, ela fazia apontamentos na agenda, de ciclo menstrual, ela dizia, tinha essa preocupação. Não foi ele que disse para apontar as datas, não sabe se foi a mãe dela quando soube perguntava. Julga que a mãe não sabia que ela tinha iniciado a vida sexual. Quando estavam sozinhos iam para o quarto, ela despia-se a si própria, entravam no quarto e despiam-se. Ejaculava para fora. Só fizeram sexo vaginal. Ela nunca lhe fez sexo oral, nem ela a ela. Também a beijava. Já houve vezes em que ela negou e não fizeram, ela dizia que não lhe apetecia, reagia normalmente, aceitava, não. Ela não podia contar a ninguém. Lamenta muito, pede perdão. Sendo adulto atribui a culpa a si. A BB não reagia, simplesmente aceitava. O motivo pelo qual ela apresentou queixa deve-se à circunstancia de não a ter deixado sair com uma amiga, a qual ligou para o telemóvel dela, que ela atendeu porque estava perto do mesmo. Houve uma situação em tiveram relações sexuais, sexo vaginal, na sala porque estava gente em casa, os outros filhos, mas estavam a dormir. Relativamente aos factos do ponto 20) não se recorda. Houve sexo na casa de banho uma ou duas vezes. Só mantinham relações no quarto, em nenhum compartimento para além do quarto e da casa de banho. Havia dias em que ia almoçar em casa e outros ia almoçar ao trabalho, não tinha dias certos. A BB chumbou um ano, acha que foi o 8.º ano, acha que foi em 2015, a reprovação não teve nada a ver com isto, foi porque ela não se aplicou. Quando a BB foi para a Faculdade ele já não controlava, só falava com ela, para ter cuidado com as amizades, para não acontecer o que aconteceu com a amiga dela. Eram muito chegados, eram muito amigos, ele empurrava e batia, em tom de brincadeira. Os pontos 4 a 9 da acusação não são verdade nessa altura. Houve uma primeira tentativa em que não concretizaram, falou com ela, estavam na sala, depois foram para o quarto, despiram-se, ele tentou mas não concretizou porque desistiu, ela não empurrou nem gritou. Foi antes dela fazer os 16 anos que começaram as tentativas. Não introduziu parcialmente o pénis, desistiu, já estavam despidos, parou disse para saírem do quarto. Da segunda vez teve a conversa com ela outra vez, disse-lhe para irem para o quarto fazerem sexo, não se lembra da conversa. Nem sempre quando ia a casa a hora de almoço e a encontrava mantinha relações sexuais com ela. Teve estes contactos com a BB (e não com as outras filhas) porque passavam muito tempo juntos. O telemóvel estava ao pé de si, então atendeu o telefone a sua filha para não se desligar. A BB era a sua filha mais próxima. Nunca teve relações sexuais com a sua filha fora de casa porque estavam sempre em grupo. Não concretizou as primeiras vezes porque tinha peso na consciência, só quando estavam seminus. Ela nunca se queixou. Ela não queria, mas ele convencia-a, falava com ela, por força dos seus argumentos. Podia acontecer de manha, acordavam mais cedo, aos sábados de manha, mesmo durante o período de ferias escolares. Não sabe se chegou a manter trezentas relações sexuais com a BB, acha que não chegou a trezentas e tal. Não mudou pelo facto da BB fazer 18 anos, não aumentou a frequência das relações sexuais. Teve conhecimento da queixa mais tarde, por intermédio da mãe dela, ela contou a mãe. Quando ela apresentou queixa já não se envolviam. Quando ela chegou a casa ela perguntou se de facto ela tinha apresentado queixa contra ele e ela disse que sim. Ajudaria acompanhamento. Comprou a arma para por termo a vida mas a sua filha não sabia. Nunca teve nenhuma conversa com ela para ela tirar a queixa. Relativamente à sua filha CC, nunca lhe fez nada por isso discorda desta acusação.
- O depoimento da testemunha DD, a qual declarou, em síntese, que viveu em união de facto com o arguido desde ... e na mesma morada há cerca de 20 anos, pelo menos desde .... Viveram os cinco, na mesma casa, ela o arguido e as três filhas de ambos. O arguido tem mais duas filhas mais velhas que não residem consigo. A filha mais velha não residiu com eles, só passava férias. Em ... ainda não trabalhava como auxiliar, trabalhava na restauração. Costumava trabalhar ao sábado, logo de manha, entrava às oito e saía às seis e meia, sete horas, sendo que estes horários se mantiveram durante doze anos. O arguido não trabalhava sempre aos sábados, por conta própria podia trabalhar, se fosse por conta de alguém não trabalhava aos sábados. Quando trabalhava ao sábado entrava sempre mais tarde que ela, por volta das dez horas e estava despachado às dezassete horas. Quando ele tinha de trabalhar os filhos ficavam sozinhos, a BB devia ter uns 12 anos. A BB andou na escola ..., depois do 10.º ao 12.º ano mudou de agrupamento para .... Ela chumbou no 7.º ou no 8.º ano. Sabe que quando chegou ao 7.º até ao 9.º ano havia alturas em que ela não almoçava na escola, conseguia ir a casa porque entrava mais tarde. As vezes o seu marido também ia almoçar a casa, quando tinha trabalhos no ... ele não levava almoço. Todos os seus filhos andaram na .... De momento não mantem a relação com o arguido. Infelizmente não sabia de nada até a data em que a sua filha fez a denuncia do pai. Depois de estar na esquadra ela telefonou para si a dizer que tinha ido fazer queixa do pai. Ela disse-lhe que tinha feito queixa ao pai por conta de troca de palavras. Tiveram uma pequena discussão, ela dizia que queria sair e ele, naquele dia, não deixou porque a menina não lhe disse nada a ele. Disse ao arguido que ela tinha 22 anos. O arguido atendeu o telefone quando a amiga ligou e ele entendia que ela lhe devia ter pedido autorização para saírem. Talvez o arguido tenha falado em tom de voz alterado mas não chamou nomes à BB. Como o pai falou em tom de ameaça, foi apresentar queixa por violência domestica. Foi à esquadra busca-la para tentar perceber, em seguida foram para um descampado em que ela lhe contou tudo a chorar o que o pai lhe fazia nas suas costas. Ela disse-lhe que devia ter 14 anos quando começou a acontecer. Começou então a perceber aquela implicância do arguido com a BB, em cima dela, mais com ela, pensava que era por ser mais velha. Aconteceu algumas vezes o arguido entrar na casa de banho, por exemplo, mas achava o comportamento normal. Depois de ter conversado com BB, confrontou o arguido e ele primeiro negou e depois confrontou-o com a BB, ele ainda tentou negar e a BB disse que já lhe tinha dito tudo e ele não disse mais nada. O arguido não falou com ela para desistir da queixa. A BB disse que o inspetor lhe disse que não ia dar em nada porque ela já devia ter apresentado queixa há mais tempo, talvez ela tenha pensado que ele a podia deixar em paz. No dia ..., a segunda vez que a BB foi chamada que ele pensava que ia haver uma desistência de queixa, telefonou para ela e disse que queria ir para casa de uma tia mais velha. Disse ao arguido que a BB tinha sido chamada pela segunda vez e que tinha sido ouvida e foi nesse dia que ele fez isso (deu um tiro). Como aquilo aconteceu com a BB, falou com as outras meninas, dessas conversas resultou que ele tinha tentado alguma coisa com a EE, ele negou e depois caiu em si. A CC é mais pequena, não sabia como havia de perguntar, no caminho de casa, disse que ia fazer uma pergunta difícil, mas que não queria que ela lhe escondesse nada. Depois perguntou-lhe se o arguido tinha tido alguma brincadeira com ela e ela disse que ele tocava nela nas partes genitais. Disse que às vezes tinham brincadeira de se porem todos em cima do pai, havia vezes que ele fazia essas brincadeiras só com ela, às vezes no quarto, ela fazia cavalitas e nessas alturas sentia ele roçar em si. Referiu ainda que fez uma vez na casa de banho, o pai chamou-a ou encontrou-a na casa de banho, tocou nela e beijou-a na boca e sentiu o pai colocar a mão na vagina. Depois dela ter contado isso, disse que ia conversar com o pai, pedir-lhe para se afastar, e que para ela lhe contar logo se acontecesse qualquer situação. Viu o pai dar bofetadas na BB, numa situação que aconteceu na escola. Mas quando aconteciam estas discussões nunca estava em casa. Houve vezes em que o arguido bateu na BB na sua ausência, quando chegava a casa tinha conhecimento. Geralmente acontecia quando ele achava que ela estava a mentir. A BB não podia ter eventos sociais, o arguido, as vezes controlava o telemóvel dela. Acha que ela nunca namorou. Achava que era timidez dela mas agora acha que era por medo do pai. A BB e o arguido andavam no atletismo no ..., eram atletas, as provas eram aos fim-de-semana e eles iam os dois. As vezes foi assistir com eles, às provas da BB. Hoje em dia não tem contactos com o arguido, nem nenhuma das filhas, só a EE é que pergunta por ele. Dizia às suas filhas para terem um caderno para anotar os dias da menstruação. No primeiro ano da faculdade o arguido ainda controlava o telemóvel da BB. Antes de repetir o ano a BB tinha boas notas. As suas filhas não têm amizades, não têm muitas amigas que lá vão a casa. Ela tinha preocupação com os estudos dos filhos. A BB disse-lhe que tinha vergonha e que tinha medo da reação dela, que se chateasse com ela. Que estava habituada e não queria chatices com o pai. Nas declarações que prestou anteriormente não afirmou que a BB gostasse de manter relações sexuais com o pai, não disse isso por essas palavras, mas que não se retraia, julga que ela se habituou de ter relações com o pai, quando o pai a chamasse para isso.
Apreciando.
Tendo presente o manancial probatório produzido e examinado em audiência de discussão e julgamento, entende-se que não poderão subsistir quaisquer dúvidas quanto à positividade dos factos dados como assentes.
Os factos constantes dos pontos 1) e 2), foram genericamente reconhecidos pelo arguido, sendo que a prova da filiação e idade das ofendidas resulta do teor dos assentos de nascimento de fls. 624 e 625.
No que concerne à relação entre o arguido e a sua filha BB – factos dos pontos 3) a 27) - o Tribunal ponderou e examinou critica e minuciosamente as declarações áudio prestadas pela ofendida, em .../.../2022, bem como os esclarecimentos que prestou em audiência de discussão e julgamento em .../.../2023, num relato que se reputou como espontâneo e sincero, apresentando diversos indícios de veracidade, designadamente, fazendo descrições concretas dos locais, notando-se que a mesma revelou cuidado na descrição das situações em que mantinham relações sexuais, restringindo as suas respostas quanto à periodicidade em que esses atos tinham lugar (distinguindo os períodos de férias escolares e quando mudou de estabelecimentos de ensino); respondeu de forma restritiva a determinadas questões que prejudicariam o arguido.
A credibilidade das declarações da ofendida BB surge ainda reforçada pelo teor do relatório de perícia médico-legal (relatório psicológico) elaborado em .../.../2022 (cfr. fls. 381 a 386), no qual se refere que a mesma, “solicitada a clarificar as práticas que descreve como abuso sexual “(…) o meu pai apalpava-me, sexo oral, os dois e penetração vaginal… se houvesse alguém em casa era quando os meus irmãos estavam a dormir e quando a minha mãe saía para o trabalho (…) nunca contei a ninguém… ele ameaçava que se eu me envolvesse com alguém me mandava para o hospital… quando achava que eu andava metida com alguém batia-me… não houve ameaças para contar… era mais controlador comigo, não podia falar com muita gente e também não saía muito… só saía com ele ou todos em família… não podia sair com amigas”(sic). Questionada sobre o eventual uso de algum método contracetivo relata que “(…) não usava nada, ele controlava o meu ciclo menstrual”(sic).
Mais se salienta que a ofendida BB:
- Se mostra “disponível e recetiva face ao processo de avaliação. Mantém uma interação adequada com a perita, executando com empenho e interesse todas as tarefas solicitadas”;
- “Apresenta um perfil cognitivo compatível com o esperado para o grupo etário”, identificando-se “competências adequadas para percecionar e interpretar acontecimentos bem como aptidões mnésicas que lhe permitem evocar experiências por si vividas”, não observando a perita médica “suscetibilidade para fantasiar sobre a realidade”;
- “Apresenta dificuldades de internalização e um perfil de personalidade marcado pela suspeição, desconfiança, sentimentos de inferioridade, inibição, falta de auto-estima e de auto-confiança, distanciamento afetivo e dificuldade em estabelecer vínculos afectivos. Apresenta confusão mental, afeto inapropriado e depressão, apatia, irritabilidade e isolamento social bem como problemas de concentração e memória, medos e fobias”, com “uma intensificação dos sintomas (geradora de incapacidade) na sequência de fatores stressantes”;
- “Apresenta pouca confiança em si, característica associada aos antecedentes de humilhações e castigos desadequados durante a infância, que impediram o desenvolvimento de uma auto-estima ajustada. Este tipo de perfil de personalidade está associado a experiências de pouca supervisão e/ou hostilidade por parte dos cuidadores principais durante o percurso de desenvolvimento”;
- “Apresenta sintomas de desajustamento, designadamente ansiedade e depressão”, identificando-se “um quadro clínico compatível com perturbação de stresse pós-traumático associado à experiência perturbadora e potencialmente traumática de ter presenciado a tentativa de suicídio do progenitor na sequência da formalização da denúncia, por si efetuada, de vitimação por abusos sexuais alegadamente perpetrados pelo seu pai durante vários anos.
Do exposto resulta que a Sra. Perita Médica considera que a ofendida não só tinha capacidade (capacidades cognitivas - intelectuais e de memória) para relatar os acontecimentos como não se revela suscetível a fantasiar sobre a realidade. Por outro lado, também ressalta dessa avaliação que a ofendida apresenta características pessoais que são normalmente associadas aos antecedentes de humilhações e castigos desadequados.
Essa credibilidade sai reforçada ainda através do depoimento prestado pela sua progenitora, DD, a qual, apesar de ter afirmado não ter conhecimento anterior acerca do comportamento do arguido, não revelou qualquer incredulidade acerca dos factos denunciados pelas suas filhas, designadamente pela BB, referindo até que os mesmos vieram a esclarecer ou lançar luz quanto a alguns dos comportamentos que o arguido adotava quanto à filha mais velha, designadamente o controlo excessivo que exercia sobre ela.
Finalmente, o próprio arguido reconheceu ter mantido contactos sexuais com a sua filha BB, embora reportando o primeiro a uns dias antes da mesma completar 16 anos e os seguintes a datas posteriores a essa idade, admitindo terem consumado relações de cópula vaginal até à idade adulta da mesma, aos 22 anos, em casa.
Concretizando.
Assim, no que se refere ao inicio dos contactos de natureza sexual com o arguido – factos dos pontos 3), 4) e 5) - a ofendida começou por referir, quer nas declarações para memória futura e mesmo em audiência de discussão e julgamento, que os mesmos se iniciaram quando tinha 14 anos de idade. No entanto, quando lhe foram solicitados, na audiência de julgamento, esclarecimentos acerca do ano de escolaridade que frequentava quando tais comportamentos se iniciaram a ofendida afirmou, de forma expressa e sem qualquer indicio de incerteza, que os mesmos tiveram lugar quando ainda não tinha começado o ensino de línguas estrangeiras, concluindo que estaria a frequentar o 5.º ou o 6.º ano de escolaridade. Por seu turno, quanto à idade que tinha nesse ano, a mesma afirmou ter iniciado a escolaridade aos seis anos de idade, pelo que não podia ter mais do que 11 ou 12 anos de idade, recordando-se que teve lugar depois do aniversário da sua irmã CC. O Tribunal valorizou essas declarações para fixação dos correspondentes factos, na medida em que a subsequentemente ofendida explicou, de forma credível e verosímil, que o motivo pelo qual sempre havia afirmado que o primeiro ato sexual com o arguido teria ocorrido quando tinha 14 anos de idade se devia ao facto dela própria já não se recordar que idade tinha e o arguido lhe ter dito que teria essa idade.
Assim, tendo em consideração as declarações da ofendida BB e sendo certo que CC celebra o seu aniversário em ..., conclui-se que a primeira situação relatada pela mesma teve lugar, pelo menos, quando ela frequentava o 6.º ano de idade, então com 12 anos de idade. Relativamente ao primeiro contacto descrito, a ofendida referiu que não sabia se o seu pai tinha conseguido introduzir o pénis completamente, mas que lhe doeu, motivo pelo qual se concluiu que, pelo menos, parcialmente, o terá introduzido. Mais afirmou sempre, quer em audiência de discussão e julgamento quer nas declarações para memória futura que disse ao seu pai para parar e que este lhe desferiu uma chapada ou bofetada com a mão aberta.
Relativamente aos demais contactos de natureza sexual mantidos com o seu progenitor, a ofendida BB explicou que os mesmos tiveram lugar ao longo dos anos, até apresentar queixa, quando tinha 22 anos, com periodicidade variável.
Considerando as declarações da ofendida, quanto ao primeiro contacto sexual que o arguido manteve com ela, o qual culminou com uma agressão física violenta na face, bem como a menção que fez a algumas situações em que recusava a manter relações ou reagia e o seu pai lhe batia ou então zangava-se consigo, não subsistiram dúvidas no Tribunal de que, em todas as ocasiões, o arguido manteve relações sexuais de cópula ou sexo oral contra a vontade da ofendida, sendo que a mesma deixou de reagir porque compreendeu que o arguido se zangava com ela se se recusasse a manter consigo esses contactos.
Tal resultou manifesto das declarações da ofendida BB, nas declarações para memória futura que prestou, quando referiu (quanto ao sexo oral) que “tinha de fazer nele” (sic), acontecendo por vezes “ela não querer e ele bater-lhe” e que como não era a primeira vez que o arguido a ameaçava e porque tinha durante muito tempo o hábito de lhe bater e à sua mãe, “deixou de lutar contra” (sic). Por sua vez, em audiência de discussão e julgamento, apesar de ter referido que, quando tinham relações sexuais, o arguido não a agredia, também afirmou que reagiu mais do que uma vez quando ele tentava ter relações sexuais consigo e, nessas alturas, o arguido se questionava acerca do motivo pelo qual ela não aceitava e se tinha alguém, o que a levava a aceitar esses contactos.
Acresce que o próprio arguido, a este respeito, disse expressamente que a ofendida “não queria”, mas que ele a convencia e acabavam por manter relações, “por força” dos seus “argumentos” (sic), o que evidencia o reconhecimento de que praticava esses factos contra a vontade da mesma.
Deste modo, adquiriu-se a convicção que a ofendida suportou, a partir desse primeiro contacto sexual em que a agrediu, os atos de cópula vaginal ou oral com o arguido ou porque este a subjugava fisicamente, batendo-lhe (conforme fez na primeira ocasião e mais tarde, de acordo com o que a ofendida referiu espontaneamente nas declarações para memória futura) ou porque a constrangia a praticar esses atos, zangando-se com ela quando os não aceitava, sob o pretexto de que a mesma mantinha alguma relação amorosa, o que a ofendida receou, pelo temor que tinha, atenta a sua relação filial e a autoridade que o arguido sobre ela exercia – factos que se positivaram no ponto 6).
Os factos que se sucederam, descritos nos pontos 7) e 8) foram descritos pela ofendida BB, nesses termos, nas declarações para memória futura e em julgamento, explicando que ocorreram passadas algumas semanas do primeiro contacto sexual e que, como sangrou, pensou que se tratasse o período menstrual, mas que acabou por concluir que foi nesse dia que “perdeu a virgindade”. Note-se que o próprio arguido reconheceu que, quando manteve pela primeira vez relações sexuais com a sua filha BB ela ainda era virgem (embora afirmando que nessa altura a mesma já tinha 16 anos).
No que respeita aos factos descritos no ponto 9), a ofendida BB, nas declarações para memória futura, refere que, por volta dos seus treze anos, o seu pai começou por se roçar em si, dando-lhe abraços de namorados, apertados”, que a observava no banho, abraços mais demorados, palmadas no rabo”, comportamentos que, conforme referiu a ofendida, a incomodavam e que apenas poderiam ter como objetivo que o arguido obtivesse algum estimulo sexual, uma vez que, para além da descrição feita pela ofendida (designadamente referindo-se a “abraços de namorados”), não poderá ser reputado como natural ou comum este tipo de contactos físicos de um pai para uma filha.
Relativamente aos ulteriores contactos de natureza sexual que manteve com o seu pai, de cópula vaginal e oral, a ofendida BB para além de os mencionar expressamente nas declarações para memória futura, em audiência de discussão e julgamento prestou ainda alguns esclarecimentos complementares relativamente à periodicidade com que tiveram lugar.
Assim, primeiramente, referiu que esses contactos tinham lugar aos sábados de manhã, quando a sua mãe saia para ir trabalhar, voltando a suceder o mesmo quando o arguido a chamava para o seu quarto. Explicou ainda que esses factos tiveram lugar pelo menos uma vez por mês, no período escolar, até ao 9.º ano de escolaridade, tendo ela reprovado no 8.º ano de escolaridade, sendo que, a partir do 10.º de escolaridade foi para outra escola, pelo que as relações sexuais deixaram de ter tanta frequência, mas pelo menos sucediam uma vez de dois em dois meses.
Assim sendo, concluiu-se, a partir da ponderação das declarações da ofendida BB que, desde a data em que completou 14 anos de idade (em .../.../2014)1, até iniciar o 10.º ano de escolaridade (em .../.../2016, em conformidade com o calendário do ano letivo de ...1.../2017), durante o período escolar, teve, pelo menos uma vez por mês, relações sexuais com o arguido, sendo que, no período das férias escolares, esses factos tinham lugar uma vez em cada dois meses – conforme consta dos pontos 10) a 12) – e que a partir do 10.º ano de escolaridade esses contactos sexuais, aos sábados, ocorriam, pelo menos, uma vez de dois em dois meses – conforme se positivou nos pontos 18) e 19).
O arguido reconheceu parcialmente estes factos, na medida em que admitiu que manteve relações sexuais com a ofendida a partir dos seus 16 anos de idade, designadamente aos sábados de manhã, mesmo no período das férias escolares.
No que concerne aos factos descritos nos pontos 13) a 17), a convicção do Tribunal assentou nas declarações prestadas pela ofendida BB, quer em declarações
1- Sendo que os factos ocorridos antes desta data não foram tidos em consideração por não se encontrarem descritos na acusação e conduzirem a uma alteração substancial de factos, a qual foi comunicada pelo Tribunal, sendo que o arguido se opôs à continuação do julgamento por estes novos factos, nos termos do artigo 359.º do Código de Processo Penal. para memória futura, quer em audiência de julgamento, em que esclareceu acerca da periodicidade com que o arguido a abordava no período da hora de almoço, a partir do 7.º ano de escolaridade2, referindo que as relações sexuais ocorriam, pelo menos, uma vez, de dois em dois meses.
Note-se, a este propósito, que o próprio arguido admite ter mantido com a ofendida BB relações nesse período (a partir dos 16 anos da ofendida), embora referindo que “nem sempre” mantinham relações sexuais quando ela ia a casa à hora do almoço.
A ofendida referiu ainda que, a partir do ano de ... e quando foi para a Faculdade, as relações sexuais com o arguido deixaram de ter a mesma regularidade, não tendo a mesma conseguido enumerar o número de vezes ou a periodicidade desses contactos, mas não deixando de referir que os mesmos se mantiveram – tendo, a partir da ponderação dessas declarações, se dado como provado os factos do ponto 20).
No que se refere ao último contacto sexual com o arguido, a ofendida BB relatou-o em sede de declarações para memória futura e em audiência de julgamento, reportando-o temporalmente a duas semanas antes de apresentar queixa. Ora, considerando que a única situação em que a ofendida apresentou queixa foi em .../.../2022 (cfr. fls. 30 do apenso A), conclui-se que tal terá ocorrido entre ... de ... de 2022, quando a mesma já tinha completado 22 anos de idade. O Tribunal baseou-se e ponderou igualmente as declarações para memória futura, bem como o teor do auto de denuncia de fls. 30-A para formar convicção positiva quanto aos factos descritos no ponto 21).
No que respeita ao facto enunciado no ponto 22) o próprio arguido admitiu não usar preservativo quando mantinha relações sexuais com a sua filha BB.
Quanto ao facto mencionado no ponto 23), decorre das declarações prestadas pela ofendida BB que era o arguido que a fazia apontar num caderno as datas em que era menstruada e controlava o seu ciclo menstrual, sendo que a mãe da ofendida também
2-Também neste particular não se consideraram os factos ocorridos antes de .../.../2014 por não se encontrarem descritos na acusação e conduzirem a uma alteração substancial de factos, a qual foi comunicada pelo Tribunal, sendo que o arguido se opôs à continuação do julgamento por estes novos factos, nos termos do artigo 359.º do Código de Processo Penal.
confirmou que ela tinha esse caderno, onde lhe dizia para apontar essas datas.
No que respeita aos factos descritos nos pontos 24) a 27), os mesmos foram relatados pela ofendida BB, a qual, nas declarações para memória futura, que o arguido, se suspeitava que ela andava com algum rapaz da escola, podia zangar-se ou bater-lhe “dependendo do humor dele”, e que durante muito tempo tinha o “hábito” de lhe bater, sendo que, em audiência de discussão e julgamento, afirmou que o arguido a agredia pelo menos uma ou duas vezes por ano, sendo que tentava sempre atingi-la na cara e muitas vezes ela fugiu. Explicou ainda que tal sucedeu quando estava no 9.º ou no 10.º ano, quando estava na ... e noutra ocasião, quando estava na Faculdade, no parque ..., o que fez dando-lhe pontapés na zona abdominal, depois dela se ter desequilibrado e caído ao chão por se ter desviado quando ele a tentou agredir na cara. Considerando a forma espontânea, mas segura como a ofendida prestou tais declarações, o Tribunal não teve dúvida em considerar positivamente os factos pela mesma narrados.
De resto, as declarações da ofendida BB acabam por ser, pelo menos parcialmente, corroboradas por DD que também fez menção a uma situação em que BB levou uma bofetada devido a uma situação ocorrida na escola, tendo tido conhecimento de outras situações em que o arguido bateu nela na sua ausência, quando chegava a casa, sendo que chegou a falar com o arguido a propósito do controlo que ele exercia sobre a mesma, mas que, apesar disso, ele mantinha o controlo do telemóvel dela no primeiro ano da faculdade.
Por seu turno, todo o discurso do arguido, tentando fazer crer que os contactos de natureza sexual com a sua filha BB tiveram lugar pacificamente, depois dele ter falado com a sua filha, só se tendo concretizado depois da mesma ter completado dezasseis anos, não só não assumem credibilidade, no confronto com os demais meios de prova, como, por si só, na medida em que, tendo presente a relação de ascendência que o arguido tinha sobre a sua filha, certamente não seria necessária toda a aludida argumentação para concretizar os seus intentos.
Por seu turno, não nos assistem dúvidas de que o arguido não poderia desconhecer a falta de voluntariedade da ofendida em manter consigo contactos sexuais, sobretudo tendo em conta que o primeiro ato sexual, de cópula vaginal, teve lugar, de acordo com o relato da ofendida, quando a mesma tinha apenas 12 anos de idade e não tinha ainda mantido relações sexuais com qualquer outra pessoa, tendo-se prolongado no tempo de forma velada e secreta.
Na verdade, não assume qualquer verosimilhança, à luz das regras da experiência comum, a suposição de que o arguido avaliasse como minimamente consensual a manutenção de uma relação que envolvia a sua mera satisfação sexual, quando, por um lado, a relação se iniciou quando a ofendida era menor de idade - não tendo por conseguinte, capacidade de autodeterminação nesse âmbito - e por outro, ele se encontrava numa posição de autoridade e ascendência em relação à ofendida, sua filha, autoridade esta que o arguido exercia, proibindo-a de sair e estar com amigos e até controlando o seu ciclo menstrual.
Aliás, o próprio arguido acabou por reconhecer que a sua filha não pretendia consumar as relações sexuais consigo e que ele a convencia por força dos seus argumentos, o que acaba por se tratar de um reconhecimento, não só da falta de voluntariedade da ofendida, como também de que os contactos sexuais ocorriam apenas para satisfação dos seus impulsos e intentos sexuais.
Por seu turno, as suas declarações contrastam com o depoimento de BB, que não revelou nas suas declarações pretender empolar nem agravar o comportamento do arguido, tendo-se, aliás, cingido, num momento inicial, a reportar o inicio dos contactos com o seu pai ao momento por ele próprio definido.
Assim sendo, o Tribunal considerou o depoimento prestado pela ofendida BB como verdadeiro e sincero e valorou positivamente todos os factos por esta relatados.
*
No que se refere aos factos descritos nos pontos 28) a 31), relativamente à ofendida CC, os mesmos foram relatados por esta, de modo claro, convicto, coerente, pormenorizado e espontâneo, e por estes motivos persuasivo, nas declarações para memória futura que prestou em .../.../2022.
Com efeito, CC explicou detalhadamente o contexto, os locais, a periodicidade e a forma como o arguido a abordou, a partir dos dez anos de idade, quando estava no 5.º ano até ao seu 8.º ano, quando tinha 13 anos de idade, afirmando que colocava a mão por dentro das calças mas não das cuecas e rocando-se até ejacular, demonstrando alívio por ele ter cessado esse comportamento, antes de fazer 14 anos, isto é, pelo menos até aos seus 13 anos de idade.
A credibilidade do relato da ofendida CC é ainda sustentada pelo teor do relatório de perícia médico-legal (relatório psicológico) elaborado em .../.../2022 (cfr. fls. 373 a 378), o especifica, quanto ao relato da mesma que “Relativamente às práticas desadequadas que o pai terá tido consigo a examinanda descreve “(…) eram toques indecentes… começou no 5º ano e acabou no 8º ano… no 9º ano disse à minha mãe … tocava-me na vagina sem o meu consentimento, às vezes dentro das calças, às vezes fora das calças”(sic). Indagada sobre o que, na sua opinião, terá contribuído para a cessação destes comportamentos afirma “(…) não sei, sinceramente” (sic). Solicitada da detalhar o momento da revelação descreve “(…) nem fui eu que iniciei a conversa, foi a minha mãe… nesse dia não fui à escola e fui com a minha mãe para o trabalho … ela perguntou… primeiro disse que não e ela insistiu e depois cedi, contei” (sic). Indagada sobre como o progenitor enquadrava as práticas mantidas com a examinanda relata “(…) ele dizia que era segredo, que íamos levar para a cova, que era uma brincadeira, que não era para dizer a ninguém porque podiam ficar com a ideia errada… ele dizia: - Se contares a nossa amizade acaba! (…) e eu valorizava muito a nossa amizade, éramos os melhores amigos” (sic).
Por seu turno, de sede de conclusões, o referido relatório pericial refere que a ofendida CC:
- “Se mostra disponível e recetiva face ao processo de avaliação”;
- “Mantém uma interação adequada com a perita executando todas as tarefas solicitadas”;
- Na dimensão cognitiva “apresenta um desempenho intelectual compatível com a média esperada para a idade”;
- Apresenta “competências adequadas para percecionar e interpretar acontecimentos bem como aptidões mnésicas que lhe permitem evocar experiências por si vividas”;
- Não apresenta sinais de “suscetibilidade para fantasiar sobre a realidade”;
- “Apresenta um perfil de personalidade marcado pelo não conformismo, impulsividade e imprevisibilidade, bem como uma atitude de desconfiança em relação ao mundo que é percecionado como frio e perigoso”;
- Apresenta também “alterações emocionais com início após os factos que determinaram o inquérito em curso, bem como sintomatologia compatível com um quadro clínico de perturbação de stresse pós-traumático, com impacto na funcionalidade da examinanda”.
Resulta, pois, da avaliação psicológica da ofendida CC que a mesma fez o relato das situações de forma essencialmente convergente com aquela a que se reportam as declarações para memória futura, tendo competências cognitivas e de memória para produzir tal relato, o qual não revela indícios de ter sido efabulado.
Deste modo, deverá considerar-se, perante as considerações e conclusões da avaliação psicológica da ofendida CC, que as suas declarações são merecedoras de crédito.
Essa credibilidade sai reforçada também através do depoimento prestado pela sua mãe, DD, a qual, a este propósito, refere que questionou a sua filha, de forma não sugestiva (perguntando se o arguido tinha tido alguma brincadeira com ela), sendo que a mesma relatou algumas situações abusivas, designadamente que ele tocava nela nas partes genitais, que sentia o seu pai roçar em si nas brincadeiras que faziam e também fez menção a uma situação em que o pai, na casa de banho a beijou e colocou a mão na sua vagina.
Neste contexto, as declarações do arguido, que negou genericamente os factos que lhe foram imputados, limitando-se a discordar dos mesmos, não assumiram qualquer relevância, nem permitiram ao Tribunal adquirir convicção diversa, uma vez que, através das mesmas, não foi possível obter qualquer explicação alternativa plausível para o comportamento e imputações feitas pela ofendida CC.
Com efeito, depois das revelações feitas pela sua irmã BB e do impacto negativo que as mesmas tiveram no seio familiar, nenhum motivo teria a menor CC para fazer denúncias desta gravidade, que, como era previsível, levaram ao afastamento do arguido.
Deste modo, os referidos factos basearam-se nos aludidos meios probatórios, tendo como ponto de partida as declarações para memória futura prestadas pela ofendida em .../.../2022, valoradas em conjugação com o relatório de avaliação psicológica de .../.../2022 e com o aludido depoimentos da testemunha DD prestado em audiência de discussão e julgamento, que se reputou como credível e persuasivo, dado que foi prestado de forma espontânea, lúcida, convicta, assertiva, coerente, sincera e descomprometida.
No que concerne à convicção acerca da atitude interior do arguido no cometimento dos factos – pontos 32) a 35) – mostra-se evidente que este não podia desconhecer a censurabilidade destes comportamentos, consciência que corresponde a um conhecimento que qualquer cidadão possui e que o arguido não podia deixar de ter, considerando a natureza dos factos que praticou, a relação parental e de proximidade que mantinha com ambas as ofendidas, suas filhas, com as quais coabitava, a sua forte censura ética e social, bem assim como a sua idade, escolaridade e experiência profissional.
O universo fáctico respeitante às condições pessoais do arguido estribou-se no teor do relatório social do arguido, elaborado pela D.G.R.S.P. a solicitação do Tribunal (cfr. fls. 657 a 658), o qual foi submetido a contraditório em audiência de discussão e julgamento.
A ausência de antecedentes criminais do arguido foi atestada pelo teor do seu Certificado de Registo Criminal atualizado (cfr. fls. 641).
*
Quanto à materialidade negativamente ajuizada, cumpre referir que a resposta do Tribunal se deve ao exame crítico do relato da ofendida BB nas declarações para memória futura prestadas em .../.../2022 e nas declarações que prestou em audiência de discussão e julgamento.
Com efeito, no que se refere ao período em que teve lugar a situação referida no ponto 7) e 8), tendo presente que a ofendida BB referiu que a mesma teve lugar algumas semanas depois o primeiro contacto sexual, que ocorreu quando a mesma frequentava o 6.º ano de escolaridade, sendo certo que, conforme decorreu das suas declarações, frequentou esse ano de escolaridade quando tinha 11 e 12 anos de idade, forçoso se mostra concluir que estes factos não poderão ter sucedido depois da mesma completar 14 anos de idade.
Deste modo, necessário se mostrou considerar negativamente a aludida factualidade.”
*

3.2.Mérito do recurso
A)Erro de julgamento sobre a matéria de facto
No caso dos presentes autos invoca o arguido que ocorreu um erro de julgamento relativamente aos factos dados como provados sob os nºs 4, 8, 9 e 28 a 30, considerando que os mesmos não deveriam ter sido dados como provados.
A reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde a verificação dos mesmos tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.
No caso dos autos não foi invocado pelo recorrente a verificação de nenhum dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nem o seu preenchimento resulta da leitura da decisão recorrida, nada havendo, neste tocante, a apreciar.
Quanto à impugnação ampla da matéria de facto, o recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, constituindo apenas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova e sempre em relação aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa ( neste sentido, cf. Ac. STJ de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt).
O recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)- As provas que devem ser renovadas.”
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma.
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal.
A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/..., publicado no Diário da República, 1.ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª Instância não é absoluto, nem é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma.
Verifica-se, assim, que só se pode alterar o decidido se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida, mas já não quando tais provas apenas permitirem uma outra decisão, a par da decisão recorrida.
Neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida, se a decisão da primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções, face às regras da experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, porquanto foi proferida em obediência ao previsto nos art.ºs 127º e 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal (cf., Ac. TRL de 02.11.2021, proferido no processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt.).
Como dispõe o art.º 127º do Cód. Proc. Penal, o Tribunal deve fixar a matéria de facto de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, desde que não se esteja perante prova vinculada.
Pese embora o ato de julgar tenha sempre, necessariamente, um lado subjetivo, as regras da experiência, complementadas pelo disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, determinam que aquele acto não possa ser um acto arbitrário ou discricionário.
Verifica-se, assim, que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador, dado que a lei lhe impõe que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, devendo a avaliação da prova ser efectuada com sentido de responsabilidade e bom senso.
Em consequência, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve-se acolher a opção do julgador da 1ª instância, sobretudo porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova (cf., neste sentido, Ac. STJ de 13/02/08, proferido no processo nº 07P4729, em que foi relator Pires da Graça, in www.dgsi.pt ).
A lei não considera relevante a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal, até porque, se assim fosse, não seria possível existir qualquer decisão final.
O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova, o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional.
Para além de a lei determinar a forma como tal reapreciação deve ser pedida, estabelece também os limites da mesma, ou seja, os poderes de cognição do Tribunal de recurso.
Mesmo nos casos em que exista documentação dos atos da audiência, o recurso para o Tribunal da Relação não constitui, como já se referiu, um novo julgamento, no sentido de haver lugar à reapreciação integral da prova.
Na verdade, como se refere no Ac. deste TRL de 26/10/21 ( proferido no processo nº 510/19.6S5LSB.L1-5, em que foi relator Manuel Advínculo Sequeira, in www.dgsi.pt): «apenas séria discrepância entre o que motivou o tribunal de 1ª instância e aquilo que resulta da prova por declarações prestada, no seu todo e à luz de regras de experiência comum, pode ser de molde a inverter aquela factualidade, impondo, nas palavras da lei, outra decisão (…).
Como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado, em face do que é possível apreciar e na correspondente fase.
As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos.
Nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, perante o tribunal e durante a audiência, com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento. De resto, tal como em relação à prova em geral, especialmente no que toca à prova por declarações e muito particularmente depois a todo o seu caldeamento com a generalidade do material probatório recolhido.
Toda a sensibilidade que ali desfila, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade.
Matéria tão importante quanto impossível de captar para futura reprodução.
Só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século.
Não por acaso, a antecedente prova escrita (a velha assentada) foi obliterada do processo português, precisamente porque, eliminando o material supramencionado, facilmente permitia a afirmação judicial de inverdades e justamente na fase de recurso.
Paralelamente, é essa a razão de ser das apertadas e exíguas possibilidades de recurso sobre a matéria de facto. Maior abertura à sua restrição aumentaria, na exacta proporção, aí sim, a hipótese de erro judiciário.
Tudo para concluir ser de primordial importância saber-se que na concreta fixação da verdade do caso influem elementos determinantes que escapam por natureza a apreciação posterior.»
Assim sendo, o que o Tribunal da Relação pode e deve fazer nesta matéria, em sede de recurso, é verificar, ponto por ponto, se os concretos erros de julgamento indicados pelo recorrente, de facto existem e, na afirmativa, proceder à sua correção.
A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, quanto à reapreciação da matéria de facto, decorre do princípio da oralidade, o qual implica uma imediação, um contacto direto, pessoal e presencial entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros, timbre e entoação), que facilita a formação da livre convicção do julgador e que só existe na primeira instância.
A imediação permite que o julgador tenha uma perceção dos elementos de prova muito mais próxima da realidade do que qualquer apreciação posterior, a realizar pelo Tribunal de recurso, mesmo que este se socorra da documentação dos atos da audiência.
A imediação revela-se também de importância fulcral para aferir da credibilidade de um depoimento, pois o seu desenrolar, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou o desembaraço e todas as componentes pessoais ligadas ao ato de depor são insuscetíveis de serem registadas, mas ficam na memória de quem realizou o julgamento, são importantes na formação da convicção do julgador e são objetiváveis na fundamentação da decisão, mas não são suscetíveis de documentação para reapreciação em sede de recurso.
Impõe-se, assim, concluir que, nesta matéria, cabe apenas ao Tribunal de recurso verificar se o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho prosseguido até se chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, devendo tal apreciação ser feita com base na motivação elaborada pelo Tribunal de primeira instância e na fundamentação da sua escolha, ou seja, no cumprimento do disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. de Proc. Penal.
Para este efeito, como se escreveu no Ac. deste TRL de 11/03/2021 (proferido no processo nº 179/19.8JDLSB.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt. ): «O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os recorrentes.
Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar.»
Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» (cf. Ac. do TRP de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, se decidiu no Ac. do TRG de 28/06/2004 ( proferido no processo nº 575/04-1, em que foi relator Heitor Gonçalves, in www.dgsi.pt ), onde se refere que: “(…) Cremos que o recorrente pretende substituir essa convicção do julgador pela sua própria convicção, “escolhendo” os depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, quando é sabido que são os julgadores em primeira instância que detêm o poder/dever de apreciar livremente a prova, apreciação que, de todo o modo, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas pôr em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos actos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37).(…)”.
De tudo o exposto, impõe-se concluir que o recorrente tem que apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude.
Relativamente a esta matéria, o recorrente nas suas conclusões de recurso não cumpriu as exigências do art.º 412º, nºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal, sendo que são as conclusões que definem qual é o objecto do recurso, nos termos do nº 1 do mesmo preceito legal.
No entanto, perscrutando a motivação de recurso, verifica-se que na mesma, a este respeito, o recorrente alega que:
“(…) De igual forma, resultam discrepâncias por aferição ao ponto 9) da fundamentação do douto acórdão, por referência à prova produzida que serviu para formação da convicção do douto tribunal a quo, na medida em que, cronologicamente, ali são assinalados como tendo decorrido entre o mês a ... e ... de ... de 2014, contando a ofendida 13 anos de idade,
Quando discorre das declarações desta, para memória futura ( cfr. fls.391, ref.ª ..., disponíveis através de “ Citius Media Studio”), que por volta dos seus 13 anos, o seu pai começou por se roçar em si.
Mas resultando da apreciação do douto tribunal a quo que os contactos de natureza sexual foram “ ulteriores”.
Mostrando-se, assim, vaga e imprecisa, a discorrência de uns e outros, quer no tempo e modo, mostrando-se este ponto, a par dos pontos da matéria de facto provada 4) a 8) como incorrectamente julgados. (…)
“ Considerando no douto acórdão recorrido, nos pontos 28 a 30 da matéria de facto dada como provada, que no decurso do ano de ..., ainda que em data não apurada, o mesmo se viria a determinar manter contactos de natureza sexual com a ofendida CC, prosseguindo a sua conduta até ..., ou seja, até a menor perfazer os 13 anos de idade.
Concretizando as descritas condutas, colocando “ a sua mão dentro das calças daquela e, por cima das cuecas apalpava-a na vagina”, e “ em determinadas ocasiões chamava a sua filha CC para o quarto do casal ou para a casa de banho, sempre fechando a porta.”, “ pedindo a CC para que não olhasse, tocava-lhe na vagina por cima das cuecas, colocava o seu pénis ereto fora das calças, esfregava-o entre as pernas daquela até ejacular sobre o seu corpo.”
Sendo que, ali veio o douto tribunal a quo a considerar provado que tal sucedeu “ em determinadas ocasiões” e “ em número não determinado de vezes”, e mesmo “ em número não concretizado de vezes”.
Mas “ pelo menos com frequência semanal, após ... e até ...”.
Alicerçando a sua convicção nas declarações para memória futura prestadas em .../.../2022 pela ofendida CC ( cfr. fls. 391, ref.ª ..., disponíveis através de “ Citius Media Studio”), e no depoimento da testemunha DD, sua mãe.
Não atribuindo no mais qualquer relevância às declarações do aqui arguido, “ que negou genericamente os factos que lhe foram imputados”.
Mais considerando o douto tribunal a quo que “… depois das revelações feitas pela sua irmã BB e do impacto negativo que as mesmas tiveram no seio familiar, nenhum motivo teria a menor CC para fazer denúncias desta gravidade, que, como era previsível, levaram ao afastamento do arguido.”
Tendo o arguido em sede de julgamento, negado a prática de tais factos.
Conforme resulta do seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática (módulo H@bilus Media Studio), de 00:00:01 a 01:40:00)- o início e termo destas declarações encontram-se consignados na acta de fls… dos autos.
Tendo os referidos factos provados sido alicerçados nos aludidos meios de prova, “ valoradas em conjugação com o relatório de avaliação psicológica de .../.../2022…”.
Reputando o douto tribunal a quo tais declarações, de ambas, como claras e convictas, tornando-as persuasivas.
Sendo que discordamos quanto a estes concretos pontos de facto, cujas provas impunham decisão diversa da recorrida, porquanto assim incorrectamente julgados.
Na verdade, discorre das declarações para memória futura da ofendida CC, que quando estava sozinha com ele, a partir dos 10 anos, ele começou com “ toques indecentes”,
“ Ele começou a tocá-la na vagina e depois continuou um tempo.”
Para afirmar depois que “ acontecia mesmo quando estavam pessoas em casa”
E que “ Nunca fez nada com o pénis dele.”
Para depois dizer já que “ não a deixava olhar, ele ejaculava para as suas pernas…”
“ Ele apalpava-a por cima da sua roupa e esfregava-se nas suas pernas até ejacular.”
E que “ isto passava-se 2 a 3 vezes por semana.”
Resultando das declarações da mãe, DD, que ao questionar a filha CC, esta lhe terá dito que “ ele tocava nela nas partes genitais”, e que às vezes no quarto, ele fazia cavalitas e nessas alturas sentia ele roçar em si. Referiu ainda que fez uma vez na casa de banho, “ o pai…, tocou nela e beijou-a na boca e sentiu o pai colocar a mão na vagina.”
Resultando daqui desde logo discrepâncias.
Ademais, resulta do relatório de perícia médico-legal ( relatório psicológico) elaborado em .../.../2022 ( cfr. fls. 373 a 378), em sede de conclusões, que a ofendida “ Apresenta um perfil de personalidade marcado pelo não conformismo, impulsividade e imprevisibilidade, bem como uma atitude de desconfiança em relação ao mundo que é percepcionado como frio e perigoso”.
Ainda que tenham sido cotejadas a apresentação de “ competências adequadas para percepcionar e interpretar acontecimentos bem como aptidões mnésicas que lhe permitem evocar experiências por si vividas”.
Não podemos aqui deixar de salientar que das declarações da ofendida CC e da sua mãe, resultam imprecisões e inexactidões, quer quanto ao modo, quer quanto ao tempo e, mormente para se poder apurar com a segurança e precisão necessárias, a efectiva concretização das condutas em apreço, e respectiva frequência.
Podendo, ainda que a terem sucedido, atento, designadamente, o perfil de personalidade da ofendida, resultarem de declarações, em face ao acontecimento génese dos presentes autos, a denúncia de irmã BB, impulsivas e imponderáveis, que não coincidem com o relato que a mesma veio a fazer inicialmente à sua mãe.
Nesta senda, e discorrendo do douto acórdão, a prática pelo aqui arguido de múltiplos crimes de abuso sexual de crianças agravados, na pessoa da ofendida CC, pelo vindo de aduzir, pela fragilidade e pouca clareza probatória, se não pode extrair um mero cômputo aritmético para efeitos de vir a concluir, como veio, pela consumação efectiva de cada um dos crimes ali contabilizados, e de per si.
Não nos termos vindos de aduzir, assente na matéria de facto dada como provada, em que “ na concretização da conduta descrita”, desde logo se questiona, qual ou quais, e no período temporal aferido a “ em determinadas ocasiões” ou mesmo “ em número não determinado de vezes”, e mesmo “ não concretizado de vezes.”
Não podendo extrair-se nas provas em que alicerçou a sua convicção uma decisão como a recorrida, mas sim diversa, como, aliás, o veio a fazer quanto aos factos provados ínsitos no ponto 9) da matéria de facto provada constante do douto acórdão recorrido, e por referência à ofendida BB.
Também aqui se considerando como incorrectamente julgados estes pontos de facto.
Impondo decisão diversa, pelas discrepâncias e indeterminação, designadamente em quantum.(…)”
Ora, da mera análise desta impugnação se verifica que o recorrente não cumpriu as exigências legais da impugnação da matéria de facto supra indicadas.
Na verdade, não obstante tenha indicado os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, limitou-se a pôr em causa a credibilidade do depoimento de determinadas testemunhas, dizendo que o Tribunal a quo avaliou mal as suas declarações e não podia ter dado como provados os factos que deu com fundamento nas mesmas.
Quanto aos pontos 4, 8 e 9 o recorrente não diz em que medida é que os considera mal julgados, qual a versão dos factos que seria a correcta, em que provas se alicerçaria a versão correcta desses factos, nem que partes da gravação relativamente aos mesmos este Tribunal da Relação deveria ouvir, ficando sem se perceber qual é a razão da sua discordância relativamente a esta matéria de facto.
Já quanto aos pontos 28 a 30 da matéria de facto dada como provada, a discordância do recorrente centra-se na credibilidade que o Tribunal a quo conferiu aos depoimentos da menor CC e da sua mãe, DD, em detrimento das declarações do arguido, que negou a prática dos referidos factos em julgamento.
No entanto, não indicou o recorrente as concretas passagens desses depoimentos que, no seu entendimento, fundamentam a falta de prova dos referidos factos, quais as partes da gravação dos depoimentos é que este Tribunal de recurso deveria ouvir e que factualidade é que, em concreto, se apurou e que deveria figurar na parte dos factos provados ou não se apurou e devia figurar nos factos não provados, não bastando, para tanto, a remissão para os depoimentos na sua totalidade.
Como se deixou expresso, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àquela outra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução dos factos e entende que devia ter sido provada, como vem este recorrente aqui fazer.
No caso sub judice, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à factualidade julgada provada e não provada nos termos supra transcritos, procedendo a um resumo das declarações que considerou relevantes prestadas pelos diversos intervenientes e esclarecendo em que medida é que cada um deles foi considerado credível ou não, expondo de forma clara as razões que levaram a que se convencesse, ou não, da veracidade dos relatos, e fazendo, para o efeito, apelo às regras da razoabilidade e da experiência comum, articulando tais relatos com toda a restante prova documental e pericial produzida nos autos, sobretudo a resultante das perícias psicológicas e sexuais efectuadas às vítimas.
O Tribunal a quo teve perante si o arguido e as testemunhas, viu-os e ouvi-os, apercebeu-se de muitos pormenores de atitude e postura que só a imediação permite, tendo, segundo o princípio da livre apreciação das provas, relevado e considerado os depoimentos e declarações que, justificadamente, se lhe afiguraram mais coerentes e credíveis e não tendo ficado com a convicção de que as testemunhas pudessem ter “inventado” os factos com a finalidade de incriminar o arguido.
Por outro lado, é muito natural que se possam ter registado algumas pequenas imprecisões nos depoimentos das testemunhas inquiridas, absolutamente compreensíveis, considerando o lapso temporal que decorreu entre a prática dos factos e a prestação dos depoimentos e a tensão psicológica com que certamente as vítimas e a sua mãe depuseram, decorrente do melindre dos tipos de crime em apreço e das relações familiares que as unem ao arguido.
Tendo em conta a natureza dos crimes em causa, a idade das vítimas e a circunstância de os factos terem ocorrido num ambiente de intimidade familiar e doméstica, não era possível ao Tribunal a quo, como facilmente se compreenderá, determinar o número exacto de vezes em que tais crimes ocorreram, pelo que optou por efectuar, à luz de critérios de bom sendo e razoabilidade, um cálculo por defeito, de acordo com o depoimento das testemunhas, o que só beneficiou o arguido, mas não descredibiliza os depoimentos das vítimas, sobretudo porque nenhuma delas apontou num caderno, ou onde quer que fosse, o número de vezes em que foram abordadas sexualmente pelo seu pai, nem existem outras testemunhas que tenham assistido a esses factos.
Os depoimentos das vítimas foram, efectivamente, prestados de modo coerente e espontâneo, mostram-se consentâneos com as perícias a que se submeteram e com o depoimento da sua mãe, tendo, por isso, merecido inteira credibilidade ao Tribunal recorrido.
Não se nos oferecem dúvidas que o Tribunal a quo analisou conjugada e criticamente todos os meios de prova produzidos, encontrando-se a decisão sobre a matéria de facto em apreço profusamente motivada e suportada pela prova produzida em julgamento.
A motivação da decisão sobre a matéria de facto operada pelo Tribunal recorrido permite aos sujeitos processuais, às partes, a este Tribunal de recurso e a quem quer que seja que leia o acórdão recorrido, apreender as razões pelas quais o coletivo de juízes a quo decidiu a matéria de facto nos termos em que o fez.
É nítido o percurso lógico seguido pelos julgadores da 1ª instância, apoiado nos elementos de prova previamente indicados e devidamente explicados no texto do acórdão, mostrando aos sujeitos processuais, ao Tribunal ad quem e, sobretudo, aos cidadãos, o raciocínio lógico em que apoiou a decisão sobre a matéria de facto.
O Tribunal a quo esclareceu as razões de credibilidade e da força decisiva que reconheceu aos concretos meios de prova indicados, devidamente analisados conjugada e criticamente, para acabar por decidir como decidiu a matéria de facto.
Acresce que fez uso, com inteiro a propósito, das regras da ciência, da lógica, da experiência, daquilo que é normal, sob pena de as coisas não fazerem qualquer sentido.
Pelo contrário, o recorrente limita-se a manifestar, na motivação do recurso, o seu desacordo quanto à leitura que o Tribunal recorrido fez de parte da prova produzida, tecendo considerações genéricas sobre essa prova e tentando sobrepor a sua interpretação quanto à prova produzida, nomeadamente testemunhal e por declarações, àquela que foi a interpretação do Tribunal a quo, sem estabelecer qualquer relação entre os factos que considera mal julgados e o conteúdo específico de cada meio de prova que considera suscetível de impor decisão diversa, em manifesto incumprimento do ónus exigido pelo art.º 412º, nºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal.
Termos em que, sem necessidade de mais considerandos, se julga improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

B)Qualificação jurídica dos factos apurados

B.1.)Quanto ao crime de violação
Vem também o recorrente impugnar a qualificação jurídica que o Tribunal recorrido fez relativamente aos crimes de violação agravada na pessoa da ofendida BB, considerando que não resulta dos factos provados que os crimes possam agora ser qualificados como crimes de violação agravada, quando antes da comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos apenas poderiam consubstanciar a prática de crimes de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes.
Vejamos se lhe assiste razão.
Analisando a acta da Audiência de Discussão e Julgamento, datada de .../.../2023, constata-se que nessa audiência a Mmª Juiz presidente proferiu o seguinte despacho:

“Realizada a audiência de discussão e julgamento e, após deliberação, entendeu o Tribunal Coletivo que os factos descritos no despacho de acusação são suscetíveis de integrar a prática pelo arguido, na pessoa da ofendida BB, dos seguintes crimes:
- 1 (um) crime de violação, previsto e punido, à data dos factos pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 7 do Código Penal;
- 1 (um) crime de violação, previsto e punido, à data dos factos pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5 do Código Penal e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal;
- 27 (vinte e sete) crimes de violação, previstos e punidos, pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5 do Código Penal e desde 24/09/2015 e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal;
- 18 (dezoito) crimes de violação previstos e punidos, à data dos factos pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;
- 3 (três) crimes de violação, previstos e punidos pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, alíneas a) e b), todos do Código Penal;
- para além do crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1 alínea a) e b) do Código Penal e do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea e), n.º 2, alínea a), n.º 4, 5, e 6 do Código Penal que já lhe vinham imputados.
Por se tratar de uma mera alteração da qualificação jurídica de factos o Tribunal procede à comunicação a que alude o disposto no artigo 358.º, n.º 1 e 3 do Código de Processo Penal ao arguido.
*
Entende ainda o Tribunal, após deliberação, que da prova produzida, designadamente das declarações prestadas pela ofendida BB em audiência de discussão e julgamento, decorre a indiciação dos seguintes factos:
1.-A partir de data não concretamente apurada mas posterior ao dia .../.../2011, quando BB frequentava o 6.º ano de escolaridade e tinha, pelo menos, 12 anos de idade, o arguido determinou-se a manter com ela contactos de natureza sexual.
2.-Para o efeito, no interior da residência sita na ..., num sábado de manhã, depois das 7 horas, o arguido aproveitando-se da ausência de sua mulher DD, que saíra de casa para trabalhar, dirigiu-se ao quarto onde dormia BB, deitou-se junto a esta, despiu-a da cintura para baixo e, em seguida, com o seu pénis ereto penetrou-o na vagina da sua filha, o que fez parcialmente, provocando-lhe dor intensa.
3.-Como BB sentiu dores fortes empurrou o arguido, afastando-o, tendo aquele, irado por não prosseguir o ato sexual que iniciara, lhe desferido uma chapada, atingindo-a na face, provocando-lhe dor, ao mesmo tempo que afirmava que voltariam a tentar.
4.-A partir desse momento, o arguido, aproveitando-se do ascendente emocional, do temor que lhe causava, em consequência da agressão que lhe infligira e da sua força física, manteve com a sua filha BB, sempre contra a vontade desta, relações sexuais, introduzindo o seu pénis na sua vagina, esfregando-se nessa até ejacular ou praticando coito oral com ela.
5.- Volvidas algumas semanas, o arguido manteve o propósito de praticar com BB relações sexuais e em data não apurada mas seguramente quando a mesma frequentava o 6.º ano de escolaridade e tinha, pelo menos, 12 anos de idade, num sábado de manhã, entre as 9 e as 11 horas, o arguido aproveitando-se da ausência de DD, dirigiu-se ao quarto onde dormia BB, determinou a que o acompanhasse até ao quarto do casal, onde a deitou na cama e despiu da cintura para baixo.
6.- O arguido colocou o seu corpo em cima do de sua filha BB e já com o pénis ereto introduziu o na vagina daquela aí se esfregando, determinando o rompimento do hímen e sangramento, pois aquela não havia antes mantido relações sexuais.
7.- Até .../.../2014, quando BB ainda não tinha completado 14 anos de idade, pelo menos uma vez por mês, aos sábados de manhã, o arguido na ausência da mãe da menor, acordava-a e conduzia a mesma até ao seu quarto onde a despia, introduzia o pénis ereto na vagina daquela e efetuava movimento oscilantes até ejacular para fora da vagina.
8.- Entre o mês de ... e ... de ... de 2014, o arguido, quando a sua filha BB, então com 13 anos de idade, ia tomar banho, entrava na casa de banho, observava-a nua, mantinha com esta contactos físicos mais próximos, sob pretexto de um cumprimento ou abraço esfregava o seu corpo contra o corpo daquela, o que fazia com o propósito de obter estímulo sexual.
9.- Após .../.../2014, quando BB já tinha completado 14 anos de idade, até .../.../2016 no período escolar, o arguido manteve com a mesma relações sexuais aos sábados de manhã, pelo menos uma vez por mês, aproveitando a ausência da mãe.
10.- Para o efeito, durante esse período o arguido chamava BB para o seu quarto, despia-a e deitava-a na cama, introduzia o seu pénis na vagina daquela, efetuando movimentos oscilantes, até ejacular, para fora do seu corpo.
11.- No período das férias escolares, os factos referidos em 11) e 12) tinham lugar uma vez em cada dois meses.
12.- Entre os anos de ... e 2016 BB, com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, frequentou a ..., no 7.º, 8.º e 9.º ano de escolaridade, tendo repetido o 8.º ano de escolaridade, sendo que nesse período tinha no seu horário uma vez por semana, uma pausa de duas horas para almoço.
13.- Na referido hiato temporal, o arguido pelo menos uma vez por mês, determinava a BB que, após almoçar na escola, se dirigisse a casa, onde ficava sozinha com aquele.
14.- Nessas circunstâncias e, pelo menos, uma vez em cada dois meses, o arguido ordenava a BB que se despisse, beijava-lhe o corpo, penetrava-a na sua vagina, efetuando movimentos oscilantes, até ejacular, o que fazia sobre o corpo daquela.
15.- Nas referidas ocasiões, o arguido, sempre que assim o desejava, ordenava a BB que colocasse a boca daquela no seu pénis, obtendo desse modo prazer sexual.
16.-Assim, no período compreendido entre o ano de ... e .../.../2014, em casa, durante a referida hora de almoço, o arguido manteve com a sua filha BB, então com 12 e 13 anos de idade, relações sexuais que consistiram em cópula e coito oral, pelo menos uma vez de dois em dois meses.
17.- No período compreendido entre .../.../2014 até ao final do 9.º ano letivo, em .../.../2016 em casa, durante a referida hora de almoço, o arguido manteve com a sua filha BB, então com 14, 15 e 16 anos de idade, relações sexuais que consistiram em cópula e coito oral, pelo menos uma vez de dois em dois meses.
18.-No decurso dos anos de 2016 a ..., tendo à data BB idade compreendida entre os 16 e os 18 anos de idade e frequentando o 10.º, 11.º e 12.º ano de escolaridade, como aquela não podia já deslocar-se a casa à hora de almoço, visando satisfazer a sua libido, o arguido ainda assim manteve a conduta descrita.
19.- Para o efeito, uma vez de dois em dois meses, procurava a sua filha BB, nas manhãs de sábado, ordenando-a a despir-se e conforme sua vontade, sujeitando-a a coito oral, bem como penetrando-a na sua vagina, efetuando movimentos oscilantes, até ejacular, o que fazia sobre o corpo daquela.
20.- Em data não concretamente apurada mas seguramente entre os dias ... de ... de 2022, entre as 14 e as 15 horas, o arguido, chegado a casa, instou BB a acompanha-lo à casa de banho e ali chegada, ordenou, mais uma vez, que se despisse e, contra a vontade desta, exercendo força sobre o seu corpo, colocou-a contra a porta, de costas para si, tendo em seguida introduzido o seu pénis ereto na vagina daquela, efetuando movimentos oscilantes até ejacular.
21.- O arguido desferiu pancadas no corpo de BB quando a mesma transitou para o 10.º ano de escolaridade e começou a frequentar a ..., quando o arguido suspeitou que a mesma tinha namorado.
22.- Noutra ocasião, quando BB já frequentava a Faculdade, no decurso de um treino, no parque ..., o arguido, motivado pela desconfiança de que a mesma tinha um namorado, tentou atingi-la na face com a mão.
23.- Como BB se desviou e caiu ao chão, o arguido atingiu-a com pontapés que a atingiram na zona do abdómen quando esta se encontrava caída no solo.
24.- O arguido ao agir como supra descrito sabia que BB não pretendia manter relações sexuais com este e, ainda assim, quis e conseguiu através do recurso ao temor, força física e, em determinadas ocasiões, violência, desferindo-lhe sobre o corpo pancadas, contra a vontade daquela, manter relações sexuais, em concreto cópula e coito oral, com intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos o que alcançou.
Uma vez que os factos supra descritos nos pontos 1. a 4., 8 a 15. e 17. a 24. consubstanciam uma mera alteração não substancial de factos, procede-se à sua comunicação ao arguido, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 358.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
*
Entendeu ainda o Tribunal coletivo, após deliberação, que se indicia uma alteração substancial dos factos descritos na acusação quanto:
- Aos factos indiciados e descritos nos pontos 5. e 6. supra, os quais são suscetíveis de integrar a prática de 1 (um) crime de violação, previsto e punido, à data dos factos pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 7 do Código Penal;
- Aos factos indiciados e descritos no ponto 7. supra, os quais são suscetíveis de integrar a prática, pelo arguido, de 20 (vinte) crimes de violação, previstos e punidos à data dos factos pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 7 do Código Penal;
- Aos factos indiciados e descritos no ponto 16. supra, os quais são suscetíveis de integrar a prática, pelo arguido, de 7 (sete) crimes de violação, previstos e punidos à data dos factos pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 7 do Código Penal.
Pelo exposto, procede-se à comunicação da alteração substancial dos referidos factos ao Ministério Público e ao arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal.
Mais se comunica que, caso o arguido e/ou o Ministério Público não estejam de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, o Tribunal atenderá à qualificação jurídica dos factos anteriormente comunicada.
***
Dada a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público e à Ilustre Defensora do arguido, no seu uso, pelas mesmas foi dito que requerem prazo de 5 (cinco) dias para a preparação da defesa.
***
Após o que a Mmª Juiz Presidente proferiu o seguinte:

DESPACHO
Ao abrigo do disposto no artigo 358.º, n.º 1 e 359.º, n.º 4 do Código de Processo Penal concede-se ao arguido e ao Ministério o requerido prazo de cinco dias para preparação da defesa, designando-se para a continuação da audiência o próximo dia ... de ... de 2023, pelas 09:15 horas.
Notifique.”
Pretende o recorrente que esta situação configura uma alteração substancial dos factos, pelo que o Tribunal a quo deveria tê-lo condenado à luz da qualificação dos factos constante da acusação, face ao disposto no art.º 359º do Cód. Proc. Penal.
Consta da acusação, datada de .../.../2023, além do mais, o seguinte:
O MINISTÉRIO PÚBLICO, para julgamento sob a forma de PROCESSO COMUM, perante TRIBUNAL COLECTIVO, acusa:
AA, filho de AA e de GG, nascido em ... de ... de 1971, natural de ..., Solteiro, residente na ..., atualmente em PRISÃO PREVENTIVA à ordem do presente inquérito, no E.P. do .... porquanto indiciam suficientemente os autos que
1.-O arguido AA é pai de BB, nascida em ... de ... de 2000, e de CC, nascida em ... de ... de 2007.
2.-O arguido AA reside, pelo menos desde há 18 anos, conjuntamente com a sua mulher DD, os seus filhos BB, CC, EE e FF, na ....
3.- Desde data não apurada, mas seguramente entre o mês de ... e ... de ... de 2014, o arguido, quando a sua filha BB, então com 13 anos de idade, ia tomar banho, entrava na casa de banho, observava nua, mantinha com esta contactos físicos mais próximos, sob pretexto de um cumprimento ou abraço esfregava o seu corpo contra o corpo daquela, o que fazia com o propósito de obter estímulo sexual.
4.-Entre o mês de ... e o dia ... de ... de 2014, o arguido determinou-se a manter com BB, então com 13 anos de idade, contactos de natureza sexual.
5.-Para o efeito, no interior da residência sita na ..., em dia não apurado, mas seguramente num sábado de manhã, depois das 7 horas, o arguido aproveitando-se da ausência de sua mulher DD, que saíra de casa para trabalhar, dirigiu-se ao quarto onde dormia BB, deitou-se junto a esta, despiu-a da cintura para baixo e, em seguida, com o seu pénis ereto penetrou-o na vagina da sua filha, o que fez parcialmente, provocando-lhe dor intensa.
6.-Como BB sentiu dores fortes empurrou o arguido, afastando-o, tendo aquele, irado por não prosseguir o acto sexual que iniciara, lhe desferido uma chapada, atingindo-a na face, provocando-lhe dor, ao mesmo tempo que afirmava que voltariam a tentar.
7.-Volvidos alguns dias, em data não apurada, mas seguramente após ... de ... de 2014, o arguido manteve o propósito de praticar com BB relações sexuais.
8.-Assim, em dia não apurado, mas após ... de ... de 2014 num sábado de manhã, entre as 9 e as 11 horas, o arguido aproveitando-se da ausência de DD, dirigiu-se ao quarto onde dormia BB, determinou a que o acompanha-se até ao quarto do casal, onde a deitou na cama e despiu da cintura para baixo.
9.-O arguido colocou o seu corpo em cima do de sua filha BB e já com o pénis ereto introduziu o na vagina daquela aí se esfregando, determinando o rompimento do hímen e sangramento, pois aquela não havia antes mantido relações sexuais.
10.-Após algumas semanas, o arguido, mas mais uma vez, durante a manhã de sábado, na ausência da mãe da menor, acordou-a conduziu-a até ao seu quarto onde lhe ordenou que se despisse da cintura para baixo, se deitasse na cama, o que aquela anuiu.
11.-O arguido colocou o seu corpo em cima do de BB e já com o pénis ereto introduziu o na vagina daquela, efetuando movimentos oscilantes, até ejacular, o que fez sobre as suas coxas.
12.-Entre os anos de 2014 e ..., BB, com idade compreendida entre os 14 e 16 anos, frequentou a ..., no 7.º e 8.º ano de escolaridade, este último que repetiu, tendo, no seu horário, uma vez por semana, uma pausa de duas horas para almoço.
13.-O arguido, no referido hiato de tempo, determinava a BB que após almoçar na escola se dirigisse a casa, onde ficava sozinha com aquele.
14.-Nessas circunstâncias, o arguido ordenava a BB que se despisse, beijava-lhe o corpo, penetrava-a na sua vagina, efectuando movimentos oscilantes, até ejacular, o que fazia sobre o corpo daquela.
15.-Nas referidas ocasiões, o arguido, sempre que assim o desejava, ordenava a BB que colocasse a boca daquela no seu pénis, obtende desse modo prazer sexual.
16.-Assim, o arguido manteve com BB, no decurso de 3 anos, com uma frequência semanal, durante a hora de almoço, relações sexuais que consistiram em cópula e coito oral.
17.-No decurso dos anos de ... a ..., tendo à data BB a idade compreendida entre os 16 e os 18 anos de idade, como aquela não podia já se deslocar a casa à hora de almoço, visando satisfazer a sua libido, o arguido ainda assim manteve a conduta descrita.
18.-Para o efeito, com uma frequência semanal, procurava a sua filha BB, nas manhãs de sábado, ordenando a despir-se, e conforme sua vontade, sujeitando-a a coito oral, bem como penetrando-a na sua vagina, efectuando movimentos oscilantes, até ejacular, o que fazia sobre o corpo daquela.
19.-No decurso do ano de ... e até o ano de ..., em número não concretizado de vezes e de forma esporádica, quando BB tinha entre 19 e 22 anos de idade, o arguido, aproveitando-se do ascendente emocional, do temor que lhe causava - em consequência das vezes que a agredira antes - e da força física, desferindo-lhe pancadas no corpo quando aquela se negava, manteve com a sua filha, sempre contra a vontade desta, relações sexuais, praticando coito oral e introduzindo o seu pénis na vagina daquela, esfregando-se até ejacular.
20.-em data não concretamente apurada mas seguramente entre os dias ... de ... de 2022 pelas 15 horas, o arguido, chegado a casa, instou BB a acompanha-lo à casa de banho e ali chegada, ordenou, mais uma vez, que se despisse e, contra a vontade desta, exercendo força sobre o seu corpo, colocou-a contra a porta, de costas para si, tendo em seguida introduzido o seu pénis ereto na vagina daquela, efectuando movimentos oscilantes até ejacular,
21.-O arguido nas relações sexuais que manteve com a sua filha BB, desde os 14 anos até aos 22 anos de idade daquela, nunca utilizou preservativo.
22.-Então o arguido, de modo a evitar que a sua filha engravidasse, e visando controlar o ciclo menstrual daquela, determinou BB a apontar num caderno as datas em que menstruava e a dar - lhe disso conhecimento.
23.-O arguido em número não concretizado de vezes, mas entre os anos de ... e 2022, desferiu sobre o corpo BB pancadas, não só quando aquela se recusava a manter consigo relações sexuais ou praticar sexo oral, mas também sempre que suspeitava que a mesma tinha um namorado ou havia conhecido alguém do seu interesse ou sempre aquela lhe pedia para sair e estar com amigos e o arguido a proibia de o fazer.
24.-O arguido, em data não apurada, mas no decurso do ano de ..., quando CC tinha 10 anos de idade, determinou-se a manter com aquela contactos de natureza sexual, sendo que para o efeito colocava a sua mão por dentro das calças daquela e, por cima das cuecas, apalpava a na vagina.
25.-O arguido, no interior da residência sita na ..., na concretização da conduta descrita, em determinadas ocasiões chamava a sua filha CC para o quarto do casal ou para a casa de banho, sempre fechando a porta.
26.-Nas referidas circunstâncias, em número não determinado de vezes, pedindo a CC para que não olhasse, tocava-lhe na vagina por cima das cuecas, colocava o pénis ereto de fora das calças, esfregava-o entre as pernas daquela até ejacular sobre o seu corpo.
27.-O arguido prosseguiu a conduta descrita sobre a menor CC, em número não concretizado de vezes, pelo menos com frequência semanal, após ... e até ..., desde que esta tinha 10 anos de idade até perfazer os 13 anos.
28.- O arguido agiu da forma descrita de 3. a 6., conhecendo a idade de BB, na data com 13 anos, ciente que a mesma não tinha capacidade e desenvolvimento para ser sujeita a tais práticas, quis e conseguiu satisfazer os seus desejos sexuais ao manter com esta contacto sexual e depois cópula, molestando-a sexualmente, prejudicando-a no desenvolvimento da sua personalidade, ofendendo a enquanto criança e colocando em causa o seu normal e são desenvolvimento psicológico, afectivo e sexual.
29.-O arguido com a conduta descrita de 7. a 18. quis e conseguiu manter relações sexuais, designamente cópula e coito oral com BB, o que fez entre os seus 14 e 18 anos, idade que conhecia, com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais, utilizando para tanto a menor, sua filha, aproveitando-se da sua imaturidade e inexperiência, da proximidade familiar e do facto de a mesma consigo coabitar e a si estar entregue, e além do mais para tanto, exercendo a força física, indiferente a tais circunstâncias e às consequências de tal actuação sobre a mesma, prejudicando-a no seu normal e são desenvolvimento psicológico, afectivo, emocional e sexual.
30.- O arguido ao agir como descrito em 19. e 20. sabia que BB não pretendia manter relações sexuais com este e, ainda assim, quis e conseguiu através do recurso ao temor, força física e, em determinadas ocasiões, violência, desferindo-lhe sobre o corpo pancadas, contra a vontade daquela, manter relações sexuais, em concreto cópula e coito oral, com intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos o que alcançou.
31.- O arguido com a conduta descrita em 23 quis conseguiu molestar BB no seu corpo e saúde, controlar as suas relações e amizades, cerceando na sua liberdade, livre e são desenvolvimento, atingindo-a na sua dignidade de pessoa humana.
32.- O arguido ao agir do modo descrito de 24. a 27., enquanto CC tinha entre os 10 e 13 anos, idade que aquele conhecia, quis e conseguiu manter os actos sexuais descritos, ciente que a mesma não tinha capacidade e desenvolvimento para ser sujeita a tais práticas, quis e conseguiu satisfazer os seus desejos sexuais molestando-a sexualmente, prejudicando-a no desenvolvimento da sua personalidade, ofendendo a enquanto criança e colocando em causa o seu normal e são desenvolvimento psicológico, afectivo e sexual.
33.- O arguido não ignorava que BB e CC, haviam nascido a ... de ... de 2000 e a ... de ... de 2007 respectivamente, que eram suas filhas, que com elas coabitava, cumprindo-lhe protegê-las, respeitá-las, prestar-lhes cuidados e assistência e que em virtude dessa relação aquelas de si dependiam, em si confiavam e a si obedeciam.
34.-O arguido mais sabia que não lhe era permitido constrangê-las a qualquer acto de cariz sexual e, em concreto com BB manter relações sexuais, copula vaginal e coito oral.
35.- Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Pelo exposto, o arguido incorreu, em autoria material, em concurso real, na forma consumada, na prática de
- 1 crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo artigo 171.º, n. 1, agravado pelo disposto no artigo 177.º, n.º1 alínea a) e b) do Código Penal na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro;
- 1 crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo artigo 171.º, n. 2, agravado pelo disposto no artigo 177.º, n.º1 alínea a) e b) do Código Penal na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro;
- 2 crimes de abuso sexual de menores dependentes p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, agravado pelo disposto no artigo 177.º, n.º 1 alínea a) e b) do Código Penal na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro;
- 156 crimes de abuso sexual de menores dependentes p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, agravado pelo disposto no artigo 177.º, n.º 1 alínea a) e b) do Código Penal até 24 de Setembro de 2015, na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, todos do Código Penal, desde 24 de Setembro de 2015 p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, agravado pelo disposto no artigo 177.º, n.º 1 alínea a) e b) do Código Penal , com pena acessória p. e p. pelo artigo 69.ºB, n.º 2 e artigo 69.ºC, n.º 2 todos do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 103/2015, de 24/08;
- 156 crimes de abuso sexual de menores dependentes p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, agravado pelo disposto no artigo 177.º, n.º 1 alínea a) e b) do Código Penal, com pena acessória p. e p. pelo artigo 69.ºB, n.º 2 e artigo 69.ºC, n.º 2 todos do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 103/2015, de 24/08;
- 1 crime de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º2, alínea a), agravado pelo artigo 177.º, n.º1 alínea a) e b), com pena acessória p. e p. pelo artigo 69.ºB, n.º 1 e artigo 69.ºC, n.º 1 todos do Código Penal;
- 1 crime de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º1, alínea a), agravado pelo artigo 177.º, n.º1 alínea a) e b), com pena acessória p. e p. pelo artigo 69.ºB, n.º 1 e artigo 69.ºC, n.º 1 todos do Código Penal;
- 1 crime de violência doméstica p. e p.e pelo artigo 152.º, n.º1 alínea e), n.º2 alínea a), n.º 4, 5, e 6 do Código Penal;
- 199 crimes de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, artigo 177.º, n.º1 alínea a), b) com pena acessória p. e p. pelo artigo 69.ºB, n.º 2 e artigo 69.ºC, n.º 2 todos do Código Penal. (…)”
Segundo o previsto no art.º 1º, alínea f) do Cód. Proc. Penal, a alteração substancial dos factos consiste no seguinte:
“Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.”
Vista a factualidade descrita na acusação, facilmente se constata que o acórdão recorrido não condenou o arguido nem por mais factos, nem por factos diferentes, daqueles pelos quais vinha acusado.
Na verdade, ocorreu apenas uma especificação relativamente à periodicidade dos contactos sexuais havidos entre o arguido e a sua filha BB durante os períodos de férias escolares desta, como descrito em 12 dos factos provados, em moldes que até beneficiam o arguido, porquanto aí se prevê uma diminuição da frequência dos actos do arguido durante esses períodos, mas que são factos já contidos nos descritos na acusação pública.
O mesmo sucedeu na descrição dos factos constantes dos números 25, 26 e 27, que mais não são do que a concretização de duas situações de agressão física do arguido para com a sua filha BB, já genericamente mencionadas no número 24 dos factos provados, reproduzindo este último ponto o descrito na acusação pública, não havendo aqui também a condenação do arguido por factos novos ou diferentes daqueles pelos quais vinha acusado.
Durante a audiência de discussão o Tribunal a quo alterou a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação pública, mas não procedeu a qualquer alteração desses factos.
Pese embora uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal seja a designada “vinculação temática do tribunal”, significando que o objecto do processo penal é o objeto da acusação, o qual delimita e fixa os poderes de cognição do Tribunal e o âmbito do caso julgado, não está de todo vedado ao juiz de julgamento proceder a uma alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação.
Mas, a ocorrer, deve obedecer aos termos regulados pelo sistema processual penal, nomeadamente através da alteração não substancial dos fatos prevista no art.º 358º do Cód. de Proc. Penal e assegurando sempre os direitos de defesa do arguido (cf. neste sentido, acórdão do TRC datado de 6/10/2021, proferido no processo nº 251/19.4PBCLD.C1, em que foi relator Luís Teixeira, in www.dgsi.pt).
No caso dos autos foi cumprido o disposto no art.º 358º, nºs 1 e 3 do Cód. Proc. Penal, tendo sido comunicada a alteração da qualificação jurídica ao arguido, ora recorrente, tendo o mesmo requerido tempo para preparação de nova defesa, que lhe foi concedido.
Não há, assim, que falar em factos novos, tendo simplesmente ocorrido uma apreciação distinta dos factos já fixados na acusação, cuja prova conduziu a uma qualificação jurídica diferente, com aplicação de um tipo legal diferente.
Esta circunstância insere-se nos poderes decisórios do juiz, a quem não pode ser imposta uma qualificação jurídica dos factos com a qual ele não concorde.
Não existindo alteração do objecto, o juiz apenas tem que cumprir o contraditório, com a obrigação de comunicar ao arguido a sua decisão, concedendo-lhe prazo para defesa, se ele assim o solicitar (cf. neste sentido, Fernando Gama Lobo, in “Código de Processo Penal Anotado”, 4ª edição, Almedina, pág. 799 a 810 ).
Neste sentido dispõe ainda o art.º 339º, nº 4 do Cód. Proc. Penal, onde se prevê que: “Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º”.
Por tudo o exposto, verifica-se que também neste segmento não assiste razão ao recorrente.
Mais entende o recorrente que a factualidade provada não é subsumível ao crime de violação previsto no art.º 164º, nº 2 do Cód. Penal, para cujo preenchimento, para além do constrangimento, previsto no nº 1 da norma, se exige que o agente empregue violência, ameaça grave, torne a vítima inconsciente ou a ponha na impossibilidade de resistir.
Alega, para tanto, que não resulta das suas declarações e das declarações da ofendida BB que em todas as circunstâncias previstas no acórdão recorrido em que com a mesma veio a manter relações sexuais, estas tenham sido suportadas pela ofendida porque o arguido a subjugava fisicamente, batendo-lhe, ou porque a constrangia a praticar esses atos, zangando-se com ela quando os não aceitava.
Mais alega que, ainda que tenha resultado das declarações da ofendida, que, numa primeira circunstância, ao empurrar o pai, este lhe terá desferido uma chapada, acto que veio a cessar imediatamente, nas vezes que lhe sucederam, não resultam evidentes actos de constrangimento, designadamente o uso de violência, tendo a chapada sido apenas uma demonstração de frustração.
Para o recorrente o que resulta das declarações da ofendida é que, nas alturas em que tinham relações sexuais, ele não a agredia e que a mesma reagiu mais do que uma vez quando ele tentava ter relações sexuais com ela, mas, nessas alturas, ele afastava-se e dizia-lhe que ficava a pensar porque é que ela não aceitava e se tinha alguém.
Alega ainda que também pela mãe da ofendida, DD, foi dito que a BB lhe afirmou que gostava de manter relações com o pai e que a prática dessas relações era um hábito e não um constrangimento.
Conclui o arguido que a sua conduta é apenas subsumível no disposto no art.º 164º, nº 1, al. a) do Cód. Penal, assumindo que, de forma abusiva, exercia autoridade de direito e de facto sobre a vítima, levando-a a praticar os actos descritos.
Apreciando a pretensão do arguido, impõe-se, antes de mais, relembrar que não se procedeu a qualquer alteração da matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, tendo-se entendido não existir qualquer erro de julgamento, conforme supra se deixou expresso.
Quanto ao preenchimento do crime de violação pelas condutas do arguido, decidiu o Tribunal a quo que:
“(…) Dispunha o artigo 164.º, n.º 1 do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5/8 que:
1–Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a)- A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b)- A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.”
A mesma exata redação com igual moldura penal, mantém-se atualmente no n.º 2 do mesmo normativo, na redação introduzida pela Lei n.º 101/..., de 6/9, que introduziu ainda, no mesmo normativo legal o n.º 3 que estabelece:
“Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima”.
O Capítulo V do Código Penal – em que o presente tipo penal se insere – diz respeito aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, dedicando uma secção a cada um dos bens jurídicos.
Ambos se prendem com a esfera sexual da pessoa e a razão de ser da distinção recai no facto de no primeiro se proteger a liberdade e/ou autodeterminação sexual de todas as pessoas, enquanto no segundo se dirige a proteção a casos que ou não seriam crime se praticados entre adultos ou o seriam dentro de limites menos amplos, ou assumiriam, em todo o caso, menor gravidade e estende-a em razão da idade da vítima – uma criança ou um menor de certa idade.
Neste último caso, o bem jurídico protegido é também a liberdade e autodeterminação sexual, mas ligado a um outro bem jurídico constituído pelo livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual.
Assim, na II Secção do Capítulo V, consagram-se condutas de natureza sexual ou fatores agravantes que, em consideração da pouca idade da vítima podem prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade.
É o caso previsto no artigo 177.º do Código Penal, onde se estabelecia, na redação vigente a partir da entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 04/09:
1– As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a)- For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b)- Se encontrar numa relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
2– As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos do n.º 2 do artigo 163.º, do n.º 2 do artigo 164.º, da alínea c) do n.º 2 do artigo 169.º e da alínea c) do n.º 2 do artigo 175.º
3– As penas previstas nos artigos 163.º a 167.º e 171.º a 174.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o agente for portador de doença sexualmente transmissível.
4– As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 174.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se dos comportamentos aí descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima.
5– As penas previstas nos artigos 163.º, 164.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos.
6– As penas previstas nos artigos 163.º, 164.º, 168.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.
7– Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.”
Difere tal redação da introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24/08 por ter sido introduzida, na alínea b) do n.º 1, a coabitação como agravante e uma nova circunstância agravante no n.º 48, o que levou a que as circunstâncias agravantes previstas no n.º 5 e 6, passassem a integrar os n.ºs 6 e 7.
Por sua vez, a Lei n.º 101/..., de 06/09, introduziu uma alínea c) no n.º 1 que estabelece como agravante tratar-se a vítima de “pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez”.
4– As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 175.º, nos n.os 1 e 2 do artigo 176.º e no artigo 176.º-A são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas.”
Por seu turno, a Lei n.º 40/2020, de 18/08, também introduziu alterações no número 7 do artigo 177.º, excluindo o artigo 174.º do seu âmbito de aplicação.
O conteúdo da ação prevista no tipo penal de violação é a cópula (entendendo-se por esta a penetração da vagina pelo pénis), o coito anal (penetração do ânus pelo pénis), coito oral (penetração da boca pelo pénis), ou a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos.
Impõe este preceito que seja o agente a ter cópula, coito anal ou oral com a vítima, quer esta assuma a posição ativa ou passiva, não se considerando a hipótese de a levar a tê-los com terceiros.
O tipo pressupõe ainda o constrangimento da vítima por um dos meios aí previstos (a violência, a ameaça grave, ou a colocação num estado de inconsciência ou impossibilidade de resistir), impondo-se a existência de um nexo causal entre a prática dos atos sexuais referidos e o meio utilizado para alcançar esse fim.
No tocante ao conceito de violência, defende Jorge de Figueiredo Dias que: “Como tal deverá ser considerado (…) apenas o uso da força física (…) destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada. (…) Não é necessário que a força usada deva qualificar-se de pesada ou grave, mas será em todo o caso indispensável que ela se considere idónea, segundo as circunstâncias do caso (...) a vencer a resistência efectiva ou esperada da vítima”.
Já quanto ao conceito de ameaça, refere o mesmo autor que “deve por tal entender-se a manifestação de um propósito de causar um mal ou um perigo se a pessoa ameaçada não consentir no acto sexual”, entrando neste conceito a violência psíquica, impondo-se que essa ameaça seja grave, no seu conteúdo, medida e intensidade, podendo o mal da ameaça ser dirigido contra o agente ou contra terceiro, desde que represente para o agente essa ameaça grave.
Para aferir da gravidade da ameaça há-de sempre atender-se à perspetiva da vítima, designadamente à sua maturidade pessoal, ao grau de conhecimento que esta tem quanto à possibilidade de o agente concretizar o mal ameaçado, etc.
Relativamente ao elemento subjetivo do tipo, exige-se no normativo em análise, a verificação de dolo, ainda que eventual.
*
No caso dos autos, resultou provado, quanto à ofendida BB, nascida em .../.../2000, filha do arguido e com ele coabitava - cfr. pontos 1), 2):
i)- Quando a ofendida tinha 12 anos de idade e frequentava o 6.º ano de escolaridade, num sábado de manhã, depois das 7 horas, o arguido dirigiu-se ao quarto onde ela dormia, deitou-se junto a esta, despiu-a da cintura para baixo e, em seguida, com o seu pénis ereto penetrou-o na vagina da sua filha, o que fez parcialmente, provocando-lhe dor intensa, sendo que nessa ocasião a ofendida sentiu dores fortes empurrou o arguido, afastando-o, tendo aquele, irado por não prosseguir o ato sexual que iniciara, lhe desferido uma chapada, atingindo-a na face, provocando-lhe dor, ao mesmo tempo que afirmava que voltariam a tentar – factos dos pontos 4) e 5).
Nesta ocasião a ofendida não tinha mais de 12 anos de idade (que completou em .../.../2012) porquanto ainda frequentava o 6.º ano de escolaridade - sendo que passou a frequentar o 7.º ano de escolaridade ainda com 12 anos, conforme resulta dos factos descritos no ponto 13).
Por seu turno, o arguido usou da força física para concretizar os seus intentos, despindo a sua filha e penetrando, ainda que parcialmente a mesma, com o pénis, contra a vontade desta que, sentido dor, o empurrou, tendo reagido a tal com uma bofetada na face da mesma. Considerando a dinâmica dos acontecimentos, não subsistiram dúvidas para o Tribunal que o arguido, naquele contexto, até para a própria concretização da penetração, teve de fazer uso da força física contra a ofendida que se debateu, obtendo como resposta uma bofetada na face e uma promessa do arguido de que voltaria a tentar praticar estes factos.
ii)- Volvidas algumas semanas, quando a ofendida frequentava o 6.º ano de escolaridade e tinha 12 anos de idade, num sábado de manhã, entre as 9 e as 11 horas, o arguido aproveitando-se da ausência da progenitora, dirigiu-se ao quarto onde a mesma dormia BB, determinou a que o acompanhasse até ao quarto do casal, onde a deitou na cama e despiu da cintura para baixo, tendo colocado o seu corpo em cima do da ofendida e com o pénis ereto introduziu-o na vagina daquela aí se esfregando, determinando o rompimento do hímen e sangramento, pois aquela não havia antes mantido relações sexuais - factos dos pontos 4) e 5).
iii)- A partir de .../.../2014, quando a ofendida completou 14 anos de idade, até .../.../2016 (antes de perfazer 16 anos de idade), o arguido manteve com a mesma relações sexuais de cópula vaginal ou oral, aos sábados de manhã, pelo menos uma vez por mês e, pelo menos uma vez em cada dois meses no período de férias escolares - factos dos pontos 10), 11) e 12).
Assim, considerando o período compreendido entre .../.../2014 até .../.../2016 e ponderando as interrupções das férias escolares (entre .../.../2014 e .../.../2014, .../.../2014 a .../.../2015, .../.../2015 e .../.../2015, .../.../2015 e .../.../2015, .../.../2015 e .../.../2015, .../.../2015 e .../.../2016, .../.../2016 a .../.../2016) contabilizam-se nesse período, pelo menos 18 (dezoito) ocasiões em que o arguido sujeitou a ofendida a relações sexuais e cópula vaginal ou oral contra a sua vontade.
iv)- A partir de .../.../2014, quando a ofendida completou 14 anos de idade, até .../.../2016 (antes de perfazer 16 anos de idade), o arguido manteve com a mesma relações sexuais de cópula vaginal ou oral, durante a semana, no período escolar, aproveitando a hora de almoço, pelo menos uma vez em cada dois meses - factos dos pontos 13), 14), 15), 16) e 17).
Assim, considerando o período compreendido entre .../.../2014 até .../.../2016 e ponderando as interrupções das férias escolares (entre .../.../2014 e .../.../2014, .../.../2014 a .../.../2015, .../.../2015 e .../.../2015, .../.../2015 e .../.../2015, .../.../2015 e .../.../2015, .../.../2015 e .../.../2016, .../.../2016 a .../.../2016) contabilizam-se nesse período, pelo menos, 9 (nove) ocasiões em que o arguido sujeitou a ofendida a relações sexuais e cópula vaginal ou oral contra a sua vontade.
v)- A partir de .../.../2016, quando a ofendida completou 16 anos de idade até ao final do 9.º ano de escolaridade (.../.../2016), o arguido manteve com a mesma relações sexuais de cópula vaginal ou oral, aos sábados de manhã, pelo menos uma vez por mês e, pelo menos uma vez em cada dois meses no período de férias escolares - factos dos pontos 10), 11) e 12).
Assim, considerando o período compreendido entre .../.../2016 até .../.../2016 e ponderando as interrupções das férias escolares (entre .../.../2016 e .../.../2016) contabilizam-se nesse período, pelo menos, 3 (três) ocasiões em que o arguido sujeitou a ofendida a relações sexuais e cópula vaginal ou oral contra a sua vontade.
vi)- A partir de .../.../2016, quando a ofendida completou 16 anos de idade até ao final do 9.º ano de escolaridade (.../.../2016, o arguido manteve com a mesma relações sexuais de cópula vaginal ou oral, durante a semana, no período escolar, aproveitando a hora de almoço, pelo menos uma vez em cada dois meses - factos dos pontos 13), 14), 15), 16) e 17).
Assim, considerando o período compreendido entre .../.../2016 até .../.../2016 contabiliza-se nesse período, 1 (uma) ocasião em que o arguido sujeitou a ofendida a relações sexuais e cópula vaginal ou oral contra a sua vontade.
vii)- Quando a ofendida frequentava o 10.º, 11.º e 12.º ano de escolaridade, no decurso dos anos de 2016 a ..., tendo à data BB idade compreendida entre os 16 e os 18 anos de idade o arguido procurava-a, nas manhãs de sábado, ordenando-a a despir-se e conforme sua vontade, sujeitando-a a coito oral, bem como penetrando-a na sua vagina, efetuando movimentos oscilantes, até ejacular, o que fazia sobre o corpo daquela, uma vez de dois em dois meses – factos dos pontos 18) e 19).
Assim, considerando o período compreendido entre .../.../2016 (correspondente ao início do 10.º ano de escolaridade) até .../.../2018 (data anterior à que a ofendida completou 18 anos de idade) contabilizam-se nesse período, pelo menos, 9 (nove) ocasiões em que o arguido sujeitou a ofendida a relações sexuais e cópula vaginal ou oral contra a sua vontade.
viii)- A partir de .../.../2018, quando a ofendida completou 18 anos de idade até aos 19 anos de idade, o arguido procurava-a, nas manhãs de sábado, ordenando-a a despir-se e conforme sua vontade, sujeitando-a a coito oral, bem como penetrando-a na sua vagina, efetuando movimentos oscilantes, até ejacular, o que fazia sobre o corpo daquela, uma vez de dois em dois meses – factos dos pontos 18) e 19).
Assim, considerando o período compreendido entre .../.../2018 até .../.../2019 (data anterior a que a ofendida completa 18 anos de idade) contabilizam-se nesse período, pelo menos, 5 (cinco) ocasiões em que o arguido sujeitou a ofendida a relações sexuais e cópula vaginal ou oral contra a sua vontade.
ix)- A partir de .../.../2019, quando a ofendida completou 19 anos de idade, o arguido manteve com ela, sempre contra a vontade desta, relações sexuais, praticando coito oral e introduzindo o seu pénis na vagina daquela, esfregando-se até ejacular – factos do ponto 20).
Neste particular, não se tendo apurado o numero nem a periodicidade desses contactos, apenas se poderão contabilizar 2 (duas) ocasiões em que o arguido sujeitou a ofendida a relações sexuais e cópula vaginal ou oral contra a sua vontade.
x)- Finalmente, em data não concretamente apurada mas entre os dias ... de ... de 2022, entre as 14 e as 15 horas, o arguido, chegado a casa, instou BB a acompanha-lo à casa de banho e ali chegada, ordenou, mais uma vez, que se despisse e, contra a vontade desta, exercendo força sobre o seu corpo, colocou-a contra a porta, de costas para si, tendo em seguida introduzido o seu pénis ereto na vagina daquela, efetuando movimentos oscilantes até ejacular – factos do ponto 21).
Em todas as sobreditas situações o arguido usou de violência, sendo que, a partir da primeira situação, referenciada em i), agiu com aproveitamento do ascendente emocional e do temor que causava na ofendida BB, em consequência da agressão que lhe infligira e da promessa que fizera, da sua força física e manteve com a mesma, sempre contra a vontade desta, relações sexuais, introduzindo o seu pénis na sua vagina, esfregando-se nessa até ejacular ou praticando coito oral com ela, sabendo que BB não pretendia manter relações sexuais com este e, ainda assim, quis e conseguiu através do recurso ao temor e à força física, contra a vontade daquela, manter relações sexuais, em concreto cópula e coito oral, com intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos o que alcançou – factos dos pontos 8), 33) e 34).
Verifica-se, pois, que resultou provado que o arguido praticou sobre a ofendida atos de cópula vaginal e oral e que o fez num contexto de violência física (depois de uma primeira agressão sexual, recorrendo à força física e depois desferindo pancadas sobre o seu corpo) e de violência psicológica (aproveitando-se do ascendente emocional, do temor que lhe causava).
Finalmente, resultou ainda provado que o arguido, pai da ofendida BB, conhecia perfeitamente a idade da mesma e sabia que as suas condutas eram suscetíveis de pôr em causa o seu são desenvolvimento e liberdade de determinação, quer como pessoa quer como mulher, atuando nos termos descritos com intenção de por meio do corpo da ofendida, aproveitando-se da sua superioridade física, da relação e ascendente familiar e da incapacidade da ofendida para evitar que concretizasse os seus intentos, se satisfazer sexualmente e estando bem ciente do caracter ilícito da sua conduta – factos dos pontos .
Tal traduz o preenchimento do elemento subjetivo do tipo penal, na forma agravada, na modalidade de dolo direto.(…)”
Atenta a factualidade apurada, verifica-se que o Tribunal recorrido procedeu a uma valoração correcta da mesma e à sua adequada subsunção no crime de violação agravado, tendo em conta quer a violência exercida pelo arguido sobre a sua filha BB, quer a ameaça de sobre a mesma exercer essa violência, como ocorreu nas vezes em que a BB se recusou a ter relações sexuais com aquele.
Na verdade, no conceito de “violência” tanto se inclui a violência física, como a violência psicológica, traduzindo-se esta, no caso concreto, no medo que o arguido incutiu na sua filha BB de lhe bater ou de provocar discussões, medo este que foi idóneo a constranger a vítima a manter relações sexuais com o arguido contra a sua vontade.
Em face do exposto, concorda-se com a qualificação jurídica que o Tribunal recorrido fez dos factos, pelo que, também nesta parte, se julga improcedente o recurso.

B.2.)-Quanto ao crime de violência doméstica
O acórdão recorrido condenou o arguido pela prática de 1 crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, nºs 1 e 2 do Cód. Penal, na pena de 3 anos de prisão.
Relativamente a esta condenação, entende o recorrente que existe uma relação de concurso aparente, e não concurso real, devendo o agente ser punido apenas pelo crime de violação, por ser o mais grave.
Mais alega que, dos factos assentes nos pontos 24), 25) e 26) da matéria de facto provada decorre que o arguido terá procurado atingir BB na face com a mão, a mesma desviou-se e, ao cair, foi pontapeada, pelo que estes factos integram autonomamente apenas um crime de ofensa à integridade física simples e não de violência doméstica.
Refere ainda que se mostra parca a prova produzida quanto à configuração de um crime de violência doméstica, devendo ser o arguido absolvido do mesmo ou ser diminuída a pena concreta que lhe foi aplicada pela sua prática.
Antes de mais, cumpre novamente referir que não se procede no presente acórdão a qualquer alteração da matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, não se considerando ter havido qualquer erro de julgamento no caso em apreço.
Por outro lado, não foi validamente invocado pelo recorrente, nem decorre da leitura da decisão recorrida o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, previsto no art.º 410º, nº 2, alínea a) do Cód. Proc. Penal, pelo que nada há a referir neste tocante.
Revisitando a decisão recorrida, consta da mesma que:
“(…) Vem o arguido acusado da prática em autoria material e em concurso real de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelos artigos 152.º, n.º 1, alínea e) e n.º 2, alínea a) do Código Penal (na pessoa da ofendida BB).
Preceitua o artigo 152.º do Código Penal, nos segmentos relevantes para os presentes autos:
1– Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a)- Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b)- A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c)- A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d)- A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
e)- A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2– No caso previsto no número anterior, se o agente:
a)- Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b)- (…);
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3– (…).
Visa o tipo penal proteger dignidade da pessoa que é parte de uma relação de conjugalidade ou equiparada.
Conforme escreve Taipa de Carvalho “a ratio do tipo não está na proteção da comunidade familiar, conjugal, (...), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana.”.
Está, pois, em causa um bem jurídico complexo, que visa proteger a saúde física, psíquica, emocional, a liberdade de autodeterminação pessoal e sexual, e em última análise, garantir a existência de condições para o livre desenvolvimento da personalidade do individuo no âmbito de uma relação interpessoal de tipo familiar ou análogo.
Trata-se de um crime específico impróprio ou impuro, na medida em que pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação para com a vítima, que lhe determina um dever que funda a agravação da responsabilidade criminal.
E um crime de perigo abstrato, por contraponto com outros ilícitos penais com os quais se deteta uma relação de concurso aparente, na medida em que o seu preenchimento se basta com a aptidão da conduta do agente para pôr em causa a integridade e dignidade da pessoa inserida numa relação conjugal ou equiparada, o que vai ao encontro da clara intenção de reforço da tutela penal subjacente à previsão típica e às alterações que vem sofrendo.
Para o preenchimento do tipo objetivo de ilícito, basta que se verifique uma das seguintes condutas: maus tratos físicos (isto é, ofensas corporais simples) ou maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime ameaça, etc.) – sejam elas praticadas durante ou após a cessação da relação conjugal/familiar..
Na sequência da alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, basta um único ato para integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, ainda que isoladamente, atinja o bem jurídico protegido. Este consubstanciar-se-á, pois, na perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional da vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade relacional que se pretende igualitária.
No que concerne ao elemento subjetivo, para que este se verifique a lei exige o dolo, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, bastando-se, contudo, o dolo de perigo de afetação da saúde, aqui o bem estar psíquico e a dignidade humana do sujeito passivo.
O tipo penal comporta ainda, na alínea a) do n.º 2, dois grupos de circunstâncias agravantes, um relacionado com o local da prática dos factos (no domicílio comum ou no domicílio da vítima) e outro por referência a menores (quer porque praticado sobre menor, quer porque praticado na presença deste).
*
Atenta a materialidade ajuizada, cumpre referir que, no que concerne à vítima BB, sendo a mesma filha menor do arguido e com ele coabitando à data dos factos mostra-se preenchido o circunstancialismo a que alude o disposto no n.º 1, alínea e) do tipo de ilícito em apreço.
Resultou provado relativamente à ofendida que o arguido em número não concretizado de vezes, mas entre os anos de ... e ..., desferiu sobre o corpo BB pancadas, não só quando aquela se recusava a manter consigo relações sexuais ou praticar sexo oral, mas também sempre que suspeitava que a mesma tinha um namorado ou havia conhecido alguém do seu interesse ou sempre aquela lhe pedia para sair e estar com amigos e o arguido a proibia de o fazer. Assim, tal aconteceu quando BB transitou para o 10.º ano de escolaridade e começou a frequentar a ..., quando o arguido suspeitou que a mesma tinha namorado. Noutra ocasião, quando BB já frequentava a Faculdade, no decurso de um treino, no parque ..., o arguido, motivado pela desconfiança de que a mesma tinha um namorado, tentou atingi-la na face com a mão e como a ofendida se desviou e caiu ao chão, o arguido atingiu-a com pontapés que na zona do abdómen quando esta se encontrava caída no solo.
Tais comportamentos - descritos nos pontos 24) a 27) - são claramente aptos a atingir a integridade psíquica e emocional da ofendida e a pôr em causa a sua dignidade.
Acresce a atuação do arguido ocorria com consciência e vontade de lhe causar as ofensas físicas e psíquicas descritas na factualidade dada como provada – factos do ponto 35), configurando, deste modo, um dolo direto.
Pelo exposto, conclui-se que o arguido praticou o crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea e) e n.º 2, alínea a) do Código Penal que, por referência à ofendida BB, lhe vem imputado na acusação.(…)”
Ora, o crime de violência doméstica está tipificado no art.º 152º do Cód. Penal onde se prevê que:
1– Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a)- Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b)- A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c)- A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d)- A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
e)- A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2– No caso previsto no número anterior, se o agente:
a)- Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b)- Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3– Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a)- Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b)- A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4– Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5– A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6– Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.” (sublinhados nossos )
Quanto ao que se deva entender por violência doméstica, estabelece-se no art.º 3º, alínea b) da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de Maio de 2011, e ratificada por Portugal em ..., que: “violência doméstica” designa todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem no seio da família ou do lar ou entre os actuais ou ex-cônjuges ou parceiros, quer o infractor partilhe ou tenha partilhado, ou não, o mesmo domicílio que a vítima”.
O nosso Código Penal prevê este tipo de ilícito no título dedicado aos crimes contra as pessoas, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, sendo o bem jurídico protegido mais amplo do que o previsto na citada Convenção, pois abrange, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, punindo os comportamentos lesivos da mesma ( cf., neste sentido, Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, vol. I, págs. 329 a 339 ).
Tem-se observado, no entanto, alguma flutuação doutrinal e jurisprudencial sobre a identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica.
Porém, em geral, apontam-se como tuteladas pela citada norma a saúde e a dignidade da pessoa, entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar, sendo a estrutura “família” o que se toma como ponto de referência da normativização prevista no nº 1 do art.º 152º, sem que seja, no entanto, a “família” a figura central alvo de protecção, mas antes a pessoa que nela se insere, individualmente considerada.
(cf., neste sentido, Nuno Brandão, in «A tutela penal especial reforçada da violência doméstica», Julgar”, nº 12, págs. 9 e ss, Plácido Conde Fernandes, in «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), págs. 304 e 305, e Augusto Silva Dias, in «Crimes contra a vida e a integridade física», 2ª ed. aafdl, pag. 110).
Como se defendeu no Ac. do STJ de 20/04/17, proferido no processo nº 2263/15.8JAPRT.P1.S1, em que foi relator Nuno Gomes da Silva, in www.dgsi.pt: “A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto.
Frise-se que a ideia de perdurabilidade nada tem a ver com uma qualquer exigência de frequência ou repetição dos “actos violentos” para ter como verificado o crime.
Mas a violência doméstica pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc.
Serão estes, porventura, os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.”
O bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser atingido por todos os comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge, outro familiar ou pessoa com quem se partilhe o lar.
Fruto de uma longa evolução da consciência comunitária quanto à gravidade e censurabilidade de comportamentos que têm o ambiente familiar e as relações de intimidade por pano de fundo, o actual art.º 152º do Cód. Penal pune condutas aptas a colocar em causa bens jurídicos que são emanação directa da dignidade da pessoa, como sejam a saúde, a vida, a integridade física e a liberdade individual, para salvaguarda do direito que qualquer pessoa tem a ser tratada com dignidade, sem ser humilhada ou vexada, sejam quais forem as circunstâncias em que se encontre e as relações que tenha com outras pessoas com quem viva.
A preocupação legislativa centra-se, assim, na tutela da posição mais fraca nas relações de poder/domínio que potencialmente surgem nas formas de relacionamento de maior intimidade, designadamente na família enquanto célula social fundamental, e encontra raízes no princípio da solidariedade que enforma todo o nosso ordenamento jurídico.
Como refere Nuno Brandão, in ob cit., pág. 18, confere-se uma “(…) tutela especial e reforçada da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pela sua caracterização e motivação - geralmente associada a comportamentos obsessivos e manipuladores - constituam uma situação de maus tratos, que é por si mesma indiciadora do perigo e da ameaça de prejuízo sério frequentemente irreversível.
O preenchimento do tipo legal de violência doméstica exige, assim, uma relação de proximidade afectiva entre o agente e a vítima, actual ou entretanto terminada, familiar ou outra.
O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc.
Com particular acerto, pode ler-se do sumário do Ac. do TRG de 15.10.2012, proferido no processo nº 639/08.6GBFLG.G1, em que foi relator Fernando Monterroso, in www.dgsi.pt: “ I)- A revisão do CP de 2007 ultrapassou a querela de se saber se para o crime de violência doméstica (ou de «maus tratos», como era a epígrafe da anterior redação do artº 152º do CP) bastava a prática de um só ato, ou se era necessária a "reiteração" de comportamentos. II)- Atualmente, o segmento «de modo reiterado ou não» introduzido no corpo da norma do nº 1 do citado artº 152º do CP, é unívoco no sentido de que pode bastar só um comportamento para a condenação. III)- A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos. III)- Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima.”
Ou seja, se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa, mas não o da violência doméstica.
A doutrina tem definido o crime de violência doméstica como um crime habitual.
Refere Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 314, que: “Crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual”.
O crime de violência doméstica, tal como o antecedente crime de maus tratos, enquadra-se não só na figura de crimes habituais, mas também na categoria de crimes prolongados, protelados ou de trato sucessivo, desde que exista uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa, desde o início assumida pelo agente.
É essa unidade resolutiva, a par da homogeneidade da atuação e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos atos de trato sucessivo num só crime.
Neste sentido decidiu o Ac. do STJ de 29.11.2012, proferido no processo nº 862/11.6TAPFR.S1, em que foi relator Santos Carvalho, in www.dgsi.pt: “(…) O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal Anotado” de P. P. Albuquerque)”.
Importa ainda ter em conta, como se referiu no Ac. do TRE de 08.01.2013, proferido no processo nº 113/10.0TAVVC.E1, em que foi relator João Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt., que: “Aquilo que o legislador pretende não é - apenas - evitar que a pessoa inserida na relação de convivialidade seja «sovada», objecto de torturas, actos cruéis e vingativos, de ofensas que deixem mossas, sim que a sua dignidade individual como pessoa humana que estabeleceu voluntariamente uma relação como igual seja tratada como digno igual, evitando o tratamento como objecto de agressões, de fácil humilhação, de achincalhamento, de menosprezo pela sua dignidade individual e veja negada a sua importância familiar e social através da prática dos factos descritos no tipo. Assegurado isto, a dignidade, assegurado fica o respeito e o evitar da escalada para a crueldade.
Ou seja, a existência da crueldade não é elemento do tipo – o que ajuda a afastar a anterior jurisprudência que apostava na crueldade quer para caracterizar o acto não reiterado, quer os resultados – em sede de facto – que caracterizam uma postura desnecessariamente exigente, dos danos verificáveis.”
Conclui-se, assim, que para haver violência doméstica é necessário que haja uma agressão ou ofensa que revele o mínimo de violência sobre a pessoa, intensidade ou reiteração, que da parte do agressor haja uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento ou menosprezo, e que da parte da vítima exista o reflexo negativo e sensível na sua dignidade, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual, verificando-se ainda um desequilíbrio entre a afirmação de uma igualdade jurídica consagrada na lei e uma desigualdade de estatuto económico e social que se imponha como realidade de facto.
Conforme ficou supra referido, o Tribunal a quo deu como provado que o arguido é pai da vítima, que viviam juntos na mesma casa e que tinha sobre a vítima um ascendente moral e familiar, vivendo a vítima na sua dependência educacional e económica.
Em múltiplas ocasiões, algumas das quais no domicílio comum, o arguido bateu na ofendida, não só quando esta se recusava a ter relações sexuais consigo, mas também quando suspeitava que a mesma tinha namorados ou lhe pedia para sair com amigos.
Para além destes actos de violência física, o arguido exercia sobre a vítima BB actos de violência psicológica, como o controle do seu ciclo menstrual, o controle da sua vida social e amorosa e o medo que lhe incutia de lhe poder vir a bater em qualquer altura, provocando-lhe um sentimento permanente de temor e insegurança e impedindo-a de um crescimento e desenvolvimento psicológico saudáveis e livres de constrangimentos.
Todas estas situações de violência física e psicológica adquirem um cariz especialmente grave porquanto é suposto os pais serem figuras de protecção, orientação, educação e amparo para os filhos e o lar é suposto ser um local de protecção e descontração para as crianças, onde possam descansar e sentir-se em segurança face às agressões do mundo exterior.
Tudo isto foi vedado à criança e jovem BB, a qual tinha na sua casa e no seu pai o local e o factor de maior agressão durante fases cruciais do seu crescimento e desenvolvimento.
Perante toda esta factualidade, dúvidas não restam de que se mostra efectivamente preenchido pelo arguido relativamente à sua filha BB um crime de violência doméstica agravado, nos moldes em que foi qualificado na decisão recorrida, configurando a agressão física perpetrada pelo arguido no parque ... mais um episódio da violência que já vinha sendo exercida pelo arguido sobre a vítima, mas que não pode levar à condenação do recorrente apenas por um crime de ofensa à integridade física, como o mesmo pretende.
O elemento objectivo do tipo legal da violência doméstica, previsto no art.º 152º, nºs 1 e 2 do Cód. Penal, mostra-se preenchido através dos comportamentos do arguido que, ao longo de um largo período de tempo, se traduziram em inúmeras e reiteradas agressões físicas e psicológicas e em humilhações e vexames, lesivos da saúde e da honra da ofendida, sua filha, menor de idade e que com ele coabitava, tendo alguns dos factos ocorrido no domicílio comum.
Na medida em que se apurou que o arguido quis e conseguiu, com estas suas condutas, molestar BB, sua filha, no seu corpo e saúde, controlar as suas relações e amizades, cercear a sua liberdade, livre e são desenvolvimento e atingi-la na sua dignidade de pessoa humana, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, o mesmo preencheu o elemento subjectivo deste tipo legal de crime, na modalidade de dolo directo, nos termos do art.º 14º, nº 1 do Cód. Penal.
Em face do exposto, improcede nesta parte o recurso.

C)Concurso de crimes de violência doméstica e de violação
Entende o recorrente que existe uma relação de concurso aparente, e não de concurso real, entre os crimes de violação e de violência doméstica, devendo o agente ser punido apenas pelo crime de violação, por ser o mais grave.
Apreciemos a sua pretensão.
Prevê-se no art.º 30º, nº 1 do Cód. Penal que: “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”
Da análise desta norma decorre que o critério normativo adotado está ligado a uma conceção pessoal do ilícito, segundo a qual haverá tantos crimes quantos os ilícitos praticados, quer atendendo ao número de vezes que o agente violou determinado tipo legal, quer ao número de tipos legais violados.
Quanto a esta matéria, o STJ no seu acórdão de 24/04/2019, proferido no processo nº 308/12.2 TAABF.S1, in www.dgsi.pt, entendeu que: “ (…) Este preceito consagra um critério teleológico, e não naturalístico, para distinguir entre unidade e pluralidade de crimes. Se a conduta do agente integra um único tipo de crime constitui uma única infração; se preencher vários tipos de crime haverá várias infrações. A uma única conduta naturalística podem corresponder vários crimes, tantos quantos os tipos de crime violados; a várias condutas naturalísticas subsumíveis ao mesmo tipo legal pode corresponder um único crime. A unidade de tipo de crime avalia-se de acordo com a unidade de bem jurídico infringido.”
Segundo o critério constante do nº 1 do art.º 30º do Cód. Penal podemos, assim, concluir que:
- se várias condutas violarem o mesmo bem jurídico, o critério de distinção deve residir na existência de unidade ou pluralidade de resoluções criminosas;
- se existir uma única resolução, determinante de uma prática sucessiva de atos ilícitos, haverá lugar a um único juízo de censura penal, e portanto existirá apenas um crime;
- caso hajam sucessivas resoluções, estaremos perante uma pluralidade de juízos de censura, e portanto de infrações.
A unidade de infrações pressupõe, porém, em regra, uma conexão temporal forte entre as diversas ações naturalísticas.
É este também o entendimento perfilhado por Eduardo Correia, in “Unidade e Pluralidade de Infracções – A Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Livraria Atlântida, Coimbra, págs. 115 a 128.
Havendo violação de vários bens jurídicos pela atividade do agente, haverá sempre pluralidade de crimes, ainda que exista uma só resolução criminosa, excepto se houverem normas concorrentes que se excluam mutuamente.
Em face do exposto, pode-se dizer que há concurso real ou efetivo de crimes quando os factos praticados pelo agente são subsumíveis a normas penais que protegem bens jurídicos diferentes ou, protegendo o mesmo bem jurídico, os factos forem cometidos em ocasiões diferentes, e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes.
O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes, ou seja, se estamos perante um concurso legal ou aparente ou real ou ideal, é o do bem jurídico violado e a concreta definição do mesmo que esteja subjacente a cada tipo de crime.
Também o Tribunal Constitucional se pronunciou, nomeadamente no acórdão nº 303/2005, de 8/06/2005, proferido no processo nº 242/2005, publicado no Diário da República, II Série, n.º 150, de 5/08/2005, no sentido de que: “(…) nada impede que o legislador configure o sistema sancionatório penal quanto ao concurso de infracções em matéria criminal segundo um critério de índole normativa e não naturalística, de modo que ao "mesmo pedaço da vida" corresponda a punição por tantos crimes quantos os tipos legais que preenche, desde que ordenados à protecção de distintos bens jurídicos, como é seguramente o caso dos que prevêem a burla e a falsificação de documentos. Não ficando a protecção de lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos merecedores de tutela penal esgotada ou consumida por um dos tipos que a conduta do agente preenche, não viola o princípio da necessidade das penas e, consequentemente, o ne bis in idem material, a punição em concurso efectivo (concurso ideal heterogéneo), mediante esse critério teleológico, do crime-meio e do crime-fim, porque cada uma das punições sanciona uma típica negação de valores pelo agente.”
Como supra se deixou expresso, o bem jurídico protegido pelo crime de violação é a liberdade sexual de outra pessoa (cf., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ”, 5ª edição atualizada, UCP, pág. 734).
Já o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica, é um bem jurídico complexo, que engloba a saúde, a vida, a integridade física e psíquica, a liberdade individual, a dignidade, a honra e a autodeterminação sexual, como também supra mencionado.
No caso dos autos, o arguido não só praticou vários actos que atentaram contra a liberdade sexual da sua filha BB, como a molestou física e psicologicamente, durante vários anos, num quadro doméstico de abuso físico, inferiorização, humilhação, vexame, pressão psicológica, intimidação e cerceamento da liberdade que não se podem subsumir apenas às condutas típicas do crime de violação.
Verifica-se, assim, que as diferentes condutas do arguido são perfeitamente autonomizáveis entre si e tiveram como objectivo, conseguido, a violação de diferentes bens jurídicos, tutelados por diferentes normas penais.
A tutela da violência doméstica pode ser aplicável a uma única conduta violenta e, caso esta conduta violenta integre um crime de violação ou de ofensa corporal grave, face à regra da subsidiariedade prevista no art.º 152º, nº 1 do Cód. Penal, a punição é feita por estes últimos crimes.
Sucede que na maioria dos casos a violência é reiterada e habitual, composta atomisticamente por várias agressões físicas e psíquicas, ameaças, sequestro e ofensas sexuais.
No caso dos autos, como se refere no acórdão recorrido, os factos caracterizadores do crime de violação ocorreram no mesmo contexto espácio-temporal em que decorreu a violência doméstica, mas conseguem-se autonomizar da mesma, dando origem à verificação de um crime diverso.
Para além dos factos praticados pelo arguido que integram o crime de violação da sua filha BB, restam mais factos relativos à violência doméstica, os quais podem e devem ser punidos autonomamente como crime autónomo, em concurso real com o crime de violação.
Assim sendo, havendo vários bens jurídicos tutelados por diferentes normas, tem que se considerar que estamos perante um concurso efectivo entre os crimes de violação e de violência doméstica e julgar também nesta parte improcedente o recurso.
Neste sentido se pronunciaram, entre outros, os seguintes Acórdãos, in www.dgsi.pt:
- Acórdão do TRC, datado de 16/02/2022, proferido no processo nº 76/20.4GGCVL.C1, em que foi relator Belmiro Andrade: I- Na redação dada ao artigo 152º do C. Penal pela Lei 59/2007 de 04.09, consolidada pela Lei nº19/... de 21.02 e pela Lei 44/2918 de 09.08, o crime de violência doméstica abrange no conceito de “maus tratos físicos ou psíquicos” ou “ofensas sexuais” quaisquer ofensas à integridade física ou psíquica suscetíveis de constituir, se autonomamente consideradas, crimes puníveis com pena prisão de limite superior até 5 anos - ocorridas entre as pessoas previstas no tipo, no âmbito e por causa, precisamente, das relações aí previstas, independentemente de haver entre elas quaisquer assimetrias de poder, imparidades ou dependências.
II- Existe uma relação de concurso aparente de crimes entre o crime de violência doméstica que engloba aqueles maus tratos físicos ou ofensas sexuais e os crimes que possam prever, isoladamente, a punição de cada um dos atos englobados naquele.
III- Sem prejuízo do crime agravado pelo resultado previsto no nº3 do preceito, não são suscetíveis de integrar os “maus tratos físicos ou psíquicos” ou “ofensas sexuais”, previstos no tipo de crime de violência doméstica, atos como atentados contra a vida ou a liberdade de autodeterminação sexual puníveis com pena de prisão de limite superior a 5 anos, quer porque excluídos do tipo quer porque protegem bens jurídicos de outra dimensão e relevo social, incompatíveis com as relações previstas no tipo de crime.
IV- Existe uma relação concurso efetivo de crimes, a ser punido nos termos do art. 77º do C. Penal, entre o crime de violação e o crime de violência doméstica, não apenas porque constituem crimes dolosos puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, mas ainda porque, no caso dos autos, os factos relativos a cada um dos crimes são dotados de unidade de sentido social diferenciada e foram autonomizados, como tal, na acusação e na sentença.”;
- Acórdão do STJ datado de 24/03/2021, proferido no processo nº 69/20.1GBGDL.S1, em que foi relator Gabriel Catarino;
- Acórdão do STJ, datado de 21/11/2018, proferido no processo nº 574/16.4PBAGH.S1, em que foi relator Manuel Augusto de Matos: “(…)constitui uma evidência de que os bens protegidos com as incriminações de violência doméstica e de violação, tendo pontos de contacto, não são coincidentes. O significado social e o sentido social da ilicitude material de uma e de outra das ditas incriminações são distintos, não obstante os pontos comuns que se podem aí observar.
O juízo de censura a formular pela prática do crime de violação assume autonomia relativamente ao que deve ser formulado relativamente às ofensas unificadas na violência doméstica.
Tudo ponderado, concluímos que o crime de violação cometido pelo arguido-recorrente assume autonomia relativamente aos restantes actos ofensivos, encontrando-se numa relação de concurso efectivo com o crime de violência doméstica (…).”;
- Acórdão do TRE, datado de 1/10/2013, proferido no processo nº 258/11.0GAOLH.E1, em que foi relator Martinho Cardoso: I.– São maus tratos psíquicos, para os efeitos do disposto no art.º 152.º, n.º 1, do Código Penal (violência doméstica) o envio pelo arguido à ofendida de sms de teor manifestamente injurioso. II.– O crime de violência doméstica não consome quaisquer outros crimes praticados pelo arguido contra o resto da família da ofendida, ainda que praticados no contexto espácio-temporal em que decorreu a violência doméstica. III.– Mesmo tendo em conta que a vida é bem mais diversificada do que a previsão do legislador – não se vislumbra que numa relação de namoro ou entre cônjuges, na qual sem dúvida podem ocorrer situações de coacção sexual, p. e p. pelo art.º 163.º, n.º 1, e de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 1, possa ocorrer o crime do assédio sexual, quer na versão da coacção p. e p. pelo art.º 163.º, n.º 2, quer na da violação p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2. IV.– Por força do disposto no n.º 1 do art.º 152.º do Código Penal, em que se prescreve que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal,os factos caracterizadores do crime de violação que tenha ocorrido no contexto espácio-temporal em que decorreu a violência doméstica separam-se e dão origem à verificação do crime de violação. Se após esta separação, restarem mais factos ou outros factos relativos à violência doméstica, eles continuarão a integrar e a dar corpo a esse crime de violência doméstica e à sua respectiva punição, em concurso real com a da violação.“(…)
Também neste sentido se pronunciaram na doutrina, entre outros:
- Joana de Castilho Duarte Gato, in “Unidade e Pluralidade de infracção no crime de violência doméstica”, dissertação de mestrado, ..., em http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/32552/1/ulfd134519_tese.pdf;
- Cristina Augusta Teixeira Cardoso, in “A Violência Doméstica e As Penas Acessórias, Universidade Católica – Pólo Porto, Maios 2012, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/9686/1/Tese%20mestrado%20;
- Ana Maria Barata Brito, in “O crime de violência doméstica: notas sobre a prática judiciária. Conferência de encerramento efectuada no colóquio “Crime de Violência Doméstica: Percursos Investigatórios”, que teve lugar na PGR a 1/12/14, in http://www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS%20%20MAT%20CRIMINAL/Violencia%20Do méstica_2014-12-01.pdf”;
- Melissa Fernandes Brandão, in “A violência sexual nas relações de intimidade: o problema do concurso entre o crime de violência doméstica e o crime de violação”, Universidade Católica Portuguesa, in http://hdl.handle.net/10400.14/42221.

D)Crime continuado de violação ou concurso efectivo de crimes
Pretende também o arguido ser condenado por apenas um crime de violação, enquanto crime continuado ou de trato sucessivo, em vez dos vários crimes de violação pelos quais foi condenado, em situação de concurso real, na pessoa da ofendida BB.
Alega, para tanto, que os factos dos autos caracterizam-se pela homogeneidade de múltiplas condutas, concretizadas entre o mesmo agente e a mesma vítima, com identidade na forma de execução, proximidade e continuidade temporal, pelo que permitem a sua unificação numa mesma resolução criminosa e numa única conduta criminosa de violação agravada.
Apreciemos a sua pretensão.
Como supra se referiu, dispõe o art.º 30º do Cód. Penal que:
1- O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2- Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
3- O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.” (sublinhados nossos)
No que concerne aos crimes de natureza sexual, a maioria da jurisprudência dos Tribunais superiores tem entendido que a figura do crime de “trato sucessivo” não tem aqui aplicação, desde logo pela natureza eminentemente pessoal do bem jurídico protegido pelas normas, mas também pela atitude resolutiva do agente na execução do ilícito.
A lei não consente que a figura de continuação criminosa se aplique às situações em que o agente viola repetidamente a mesma norma de protecção, fazendo transparecer uma menorização da culpabilidade, pela facilidade com que se propicia a prática do ilícito.
No caso dos autos, verifica-se que houve hiatos temporais entre a prática de cada um dos crimes de violação pelo arguido na pessoa da sua filha BB, os quais permitem perspectivar que, de cada vez que o arguido abordou a vítima para a prática de um acto sexual, renovou a sua resolução criminosa, traduzindo-se cada resolução numa nova lesão do bem jurídico protegido.
Atenta a gravidade das condutas do arguido, a elevadíssima ilicitude dos seus comportamentos, o dolo directo com que atuou, o desrespeito manifestado para com a dignidade pessoal e a liberdade de determinação sexual da sua filha, uma menor ainda em processo de crescimento físico e psicológico, jamais seria possível perspectivar-se uma situação de diminuição da culpa do arguido, por forma a permitir a sua punição por um só crime de violação agravado, mesmo que as suas várias condutas pudessem ser tidas em conta na medida concreta da pena a aplicar-lhe.
Ou seja, embora exista alguma homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, da mesma vítima, pelo mesmo agente, há uma pluralidade de resoluções criminosas na produção do resultado, afastando-se, com isso, a punição como crime de trato sucessivo ou continuado.
No entanto, a discussão é estéril, desde logo porque o próprio legislador tomou posição ao arredar da punição como crime continuado os crimes cometidos contra bens eminentemente pessoais, que são os crimes previstos no Título I da parte especial do Cód. Penal, nos quais se incluem os crimes contra a liberdade sexual e, entre estes, o crime de violação (cf. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit. pág. 250).
Tem sido esta a orientação seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria, de forma praticamente unânime, como se pode ver no acórdão do STJ datado de 24/03/2021, proferido no processo nº 69/20.1GBGDL.S1, em que foi relator Gabriel Catarino, in www.dgsi.pt, e na jurisprudência no mesmo citada ( onde se referem, a título de exemplo os seguintes arestos: Ac. de 27/02/19, proferido no processo nº 2165/15.8JAPRT.P1.S1; Ac. STJ de 30/11/2016, Proc. 444/15.3JAPRT.G1.S1, rel. Pires da Graça; Ac. STJ de 14/12/2016, Proc. 3/15.0T9CLB.C1.S1, rel. Sousa Fonte; Ac. STJ de 4/5/2017, Proc. 110/14.7JASTB.E1.S1, rel. Helena Moniz; Ac. STJ de 13/7/2017, Proc. 1205/15.5T9VIS.C1.S2, rel. Rosa Tching; Ac. STJ de 18/1/2018, Proc. 239/11.3TALRS.L1, rel. Lopes da Mota; Ac. STJ de 22/3/2018, Proc. 467/16.5PALSB.L1-S1, rel. Souto de Moura).
Pode-se, assim, concluir que no caso de reiteração da prática do crime de violação, não há que lançar mão da figura do “trato sucessivo”, devendo cada acto de violação ser punido de forma autónoma e isoladamente, como uma lesão de um bem jurídico próprio.
Impõe-se, assim, julgar igualmente improcedente nesta parte o recurso.

E)Medida da pena
Entende também o recorrente que a medida das penas em que foi condenado foi incorrectamente decidida, quanto aos crimes de violação agravada e de violência doméstica, na pessoa da ofendida BB, e de abuso sexual de crianças, na pessoa da ofendida CC, considerando que aquelas penas são muito elevadas, devendo ser fixadas penas perto dos seus limites mínimos.
Alega para tanto que deveria ter sido melhor ponderado o facto de não ter antecedentes criminais, as suas condições pessoais e o facto de ter reconhecido, ainda que parcial e limitadamente, o desvalor dos seus comportamentos, sendo o mesmo um pai preocupado com os estudos e a educação das suas filhas.
Pretende também que as penas acessórias que lhe foram aplicadas sejam fixadas abaixo dos seus limites médios, assim como a pena única, que considera não dever ser fixada além dos 10 anos de prisão.
Vejamos se lhe assiste razão.
Quanto à determinação da medida da pena, esta deve ser apurada em função dos critérios enunciados no art.º 71º do Cód. Penal, que são os seguintes:
Artigo 71.º - Determinação da medida da pena
1A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a)- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b)- A intensidade do dolo ou da negligência;
c)- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d)- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e)- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f)- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3– Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”
Estes critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Como se refere no Acórdão do STJ de 28/09/2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, as finalidades da punição e a determinação em concreto da pena, nas circunstâncias e segundo os critérios previstos no art.º 71º do Cód. Penal, têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena.
Tais elementos e critérios contribuem não só para determinar a medida da pena adequada à finalidade de prevenção geral, consoante a natureza e o grau de ilicitude do facto tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, em função das circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão e arrependimento e permitem também apreciar e avaliar a culpa do agente.
Em síntese, pode dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, ..., Gestlegal, pág. 96).
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»
No entanto, do que se trata agora é de sindicar as operações feitas pelo Tribunal a quo com essa finalidade.
Ainda segundo Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida concreta da pena, bem como o desconhecimento ou a errónea aplicação pelo tribunal a quo dos princípios gerais de determinação da pena, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda que está plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção e a determinação do quantum exacto de pena, o qual será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.
Para este autor, na mesma obra de 1993, § 280, pág. 214 e nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»). As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».
Importa, assim, ter em conta que só em caso de desproporcionalidade manifesta na fixação da pena ou de necessidade de correcção dos critérios da sua determinação, atenta a culpa e as circunstâncias do caso concreto, é que o Tribunal de 2ª Instância deve alterar a espécie e o quantum da pena, pois, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não há que corrigir o que não padece de qualquer vício.
Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 11/12/19, proferido no processo nº 4695/15.2T9PRT.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares.”
Também no mesmo sentido se pronunciou José Souto de Moura, in “ A Jurisprudência do S.T.J. sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena”, 26 de Abril de 2010, consultável em www.dgsi.pt, onde defende que: “ Sempre que o procedimento adoptado se tenha mostrado correcto, se tenham eleito os factores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objecto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado.”

Voltando ao caso dos autos, o acórdão recorrido fundamentou a aplicação ao arguido das penas em apreço pela seguinte forma:
“(…) Os crimes de abuso sexual de crianças agravados, previstos pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1 alínea a) e b) do Código Penal são punidos com pena de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão.
O crime de violação agravado, previsto, à data dos factos, pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) e pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e 6 do Código Penal e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), e pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e 7 do Código Penal é punido com pena de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão.
Os crimes de violação agravado, previstos e punidos, à data dos factos pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) e pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5 do Código Penal e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal é punido com pena de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão
O crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea e), n.º 2, alínea a), n.º 4, 5, e 6 do Código Penal é punido com pena de 2 a 5 anos de prisão.
*
Dentro das molduras acima indicadas, deverão as penas ser agora determinadas em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção.
O modelo mais adequado de determinação da pena é aquele que comete à culpa a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral de integração a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo coincide com a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e cujo limite mínimo corresponde às irrenunciáveis exigências de defesa do ordenamento jurídico e, por último à prevenção especial de integração a função de encontrar, dentro da moldura de prevenção, o quantum exato de pena que melhor sirva as exigências de socialização.
No que concerne às necessidades de prevenção geral dos crimes sexuais, sobretudo quando praticados sobre menores são elevadíssimas provocando grande “perturbação e comoção social, designadamente em face dos riscos (e danos) para bens e valores fundamentais que causam e da insegurança que geram e ampliam na comunidade”. (Cfr. proc. 114/18.2TELSB.S1 in www.dgsi.pt)
Por seu turno, não está só em causa a liberdade e autodeterminação sexual, como também o livre desenvolvimento da personalidade da criança ou do jovem menor de certa idade, na esfera sexual, bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal. A acrescer, a circunstância de estar normalmente associado a este tipo de agressores um padrão repetitivo, o que suscita forte alarme social.
As exigências de prevenção geral são igualmente muito elevadas quanto ao crime de violência doméstica que sofreu uma evolução em que transparece uma reflexão sobre tais comportamentos e uma crescente perceção da repercussão social negativa dos mesmos, frequentemente assinalado pela jurisprudência.
São, assim, muito fortes as exigências da prevenção geral neste tipo de criminalidade, extremamente reprovada pela comunidade e pelo legislador.
*
Considerando agora os critérios parametrizadores enunciados no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, e reportando-nos aos fatores concretos concernentes à execução dos factos evidenciam-se as seguintes circunstâncias com relevo para a correspondente ponderação:
- O grau de ilicitude dos factos praticados é elevado, atento o tipo de ilícitos em apreciação, sendo mais acentuado quanto aos crimes de violação cometidos contra a ofendida BB quando a mesma tinha idade inferior a 16 anos, sendo filha do arguido, concorrendo duas agravantes nestes ilícitos, a última das quais deve ser ponderada na medida da pena;
- O grau de culpa do arguido no cometimento dos factos é elevado, tendo agido com dolo direto, atuando com total desprezo pela idade e inexperiência das menores e pelas consequências nefastas que poderiam advir para a sua formação e desenvolvimento sexual, numa atitude altamente censurável, quando o arguido deveria constituir para as ofendidas um reduto de segurança e proteção;
- Nada há apontar quanto à conduta do arguido anterior aos factos, sendo que não regista antecedentes criminais;
- As condições pessoais do arguido sugerem que o mesmo se encontra socializado, tendo mantido, ao longo da sua vida, um percurso regular ao nível profissional, na área da construção civil com vista à manutenção de uma condição sócio económica equilibrada no seu agregado familiar, sendo que manifestou intenção de manter acompanhamento psicológico;
- O arguido, de … anos de idade, evidencia falta de capacidade de autocritica e de consciencialização quanto ao desvalor dos seus comportamentos, que apenas parcial e limitadamente reconheceu, sendo que a sua conduta sugere um comportamento dirigido à satisfação das suas necessidades sexuais sem expressão de afeto, pese embora adote um discurso de reconhecimento face à ilicitude e gravidade do bem jurídico em causa, temendo eventuais consequências penais.
Tudo visto e ponderado, entende-se equilibrado aplicar ao arguido as seguintes penas:

Relativamente à ofendida BB:
- Pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1 alínea a) e b) do Código Penal a pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão;
- Pela prática de 1 (um) crime de violação agravado, previsto e punido, à data dos factos pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e 6 do Código Penal e presentemente pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea a) e 7 do Código Penal, a pena de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão;
- Pela prática de 28 (vinte e oito) crimes de violação agravados, previstos e punidos, à data dos factos pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5 do Código Penal e presentemente pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e n.º 6 do Código Penal a pena de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão, cada um;
- Pela prática de 13 (treze) crimes de violação agravados, previstos e punidos, à data dos factos, pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) e presentemente pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, a pena de 5 (cinco) anos de prisão, cada um;
- Pela prática de 1 (um) crime de violação agravado, previsto e punido, pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, a pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- Pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea e), n.º 2, alínea a), n.º 4, 5, e 6 do Código Penal a pena de 3 (três) anos de prisão.

Relativamente à ofendida CC:
- 151 crimes de abuso sexual de criança agravados, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alíneas a), b), Código Penal, a pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um.
*

2.3)–Da pena unitária
Atentos os crimes imputados e preenchidos pelo arguido, dir-se-á que estamos perante um concurso efetivo, verdadeiro ou puro, em que a ilicitude de um dos tipos legais não abrange a ilicitude contida no outro, pelo que as duas normas concorrem paralelamente na aplicação concreta.
Ora, esta aplicação concreta, tem lugar na nossa lei, através do sistema do cúmulo jurídico, consagrado no artigo 77.º do Código Penal.
De acordo com este preceito legal, dever-se-á proceder à fixação das penas parcelares respeitantes a cada um dos crimes em concurso. Posteriormente, somam-se as penas parcelares e obtém-se o limite superior da moldura abstrata aplicável, dentro dos limites absolutos agora expressamente previstos no n.º 2. O limite mínimo é constituído pela mais grave das penas parcelares fixadas.
Encontrada desta forma a moldura abstrata, a pena única é determinada, nos termos da última parte do n.º 1, isto é, considerando “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, assim se respeitando o essencial da pena unitária.
Considerando os parâmetros a que alude o artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, entende-se que se deverá salientar, com relevância para a determinação da pena única a aplicar ao arguido:
- O arguido tem … anos de idade;
- Os factos praticados pelo arguido contra a autodeterminação e à liberdade sexual da ofendida BB foram realizados diariamente, num período temporal relativamente longo (que se prolongou por cerca de dez anos), tendo caráter invasivo (cópula vaginal e oral), atenta a natureza dos ilícitos praticados, tendo sido cometidos de forma essencialmente homogénea e quanto à ofendida menor CC também se prolongaram por um período de tempo considerável (cerca de três anos), sendo menos intrusivos (com apalpação vaginal sobre as cuecas e toque do pénis até ejaculação, por cima da roupa da menor), também de modo essencialmente homogéneo;
- Com o seu comportamento o arguido revelou a mais profunda indiferença pelo desenvolvimento psicológico das suas filhas, o que evidencia qualidades muito desvaliosas da sua personalidade, sendo que apenas parcialmente apenas quanto à sua filha BB reconheceu os factos;
- A ausência de antecedentes criminais;
- O facto do arguido, à data da sua detenção, se encontrar integrado profissionalmente.
A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão sendo o seu limite mínimo de 5 anos e 8 meses de prisão.
Face ao exposto, operando o cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77.º do Código Penal e considerados em conjunto os factos e a personalidade do arguido, atentas as fortes razões de prevenção geral e especial acima salientadas, tendo presente o período de tempo em que os factos ocorreram, o número de vezes em que os mesmos ocorreram, o lapso de tempo por que decorreram, praticados sobre duas vítimas diferentes, o Tribunal reputa como ajustada a pena única de 15 (quinze) anos de prisão.
*

3)–Da pena acessória de proibição do exercício de funções por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual – artigo 69.º- B do Código Penal
Vem ainda o arguido acusado nos termos do artigo 69.º-B, n.º 2 do Código Penal que estabelece:
“É condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.”
Assinala Paulo Pinto de Albuquerque (Cfr. “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 3ª Edição, p. 354) que o pressuposto formal de aplicação desta pena acessória é a condenação por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, independentemente da pena principal aplicada e que o pressuposto material é a “conexão do facto criminoso com a função exercida pelo agente e a concreta gravidade do facto”, defendendo o autor que a lei exige que “a concreta gravidade da conduta contra a liberdade ou a autodeterminação sexual revele a indignidade do agente” para exercer tal atividade.
Contudo, a referida pena acessória é de aplicação obrigatória quando a vítima seja menor.
No caso vertente, mostram-se inequivocamente preenchidos os pressupostos de aplicação da referida pena acessória, uma vez que o arguido deverá ser punido pela prática de crimes previstos no artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal sendo as vítimas menores.
Considerando a gravidade dos factos praticados pelo arguido que incidiram sobre duas filhas menores, entende-se suficiente e adequada às finalidades de prevenção e à culpa do arguido a fixação da pena acessória em apreço pelo período de dezoito anos.
*

4)–Da pena acessória de proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais – artigo 69.º- C do Código Penal
À conduta do arguido vem ainda imputada a pena acessória prevista no artigo 69.º-C, n.º 2 do Código Penal que preceitua:
“É condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.”
A este propósito Paulo Pinto de Albuquerque (Cfr. “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 3ª Edição, p. 354) assinala que o pressuposto formal de aplicação desta pena acessória é também a condenação por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, independentemente da pena principal aplicada, sendo pressuposto material desta pena acessória a “conexão do facto criminoso com a função exercida pelo agente e a concreta gravidade do facto”, exigindo a lei apenas que “a concreta gravidade da sua conduta contra a liberdade ou a autodeterminação sexual revele a indignidade do agente para assumir a confiança de menores ou exercer as suas responsabilidades parentais”.
Sendo a vítima menor, a pena acessória em apreço é de aplicação obrigatória.
No caso vertente, mostram-se inequivocamente preenchidos os pressupostos de aplicação da referida pena acessória, uma vez que o arguido deverá ser punido pelos crimes previsto nos artigos 164.º e 171.º, n.º 1 do Código Penal, sendo as vítimas menores.
Considerando a gravidade dos factos praticados pelo arguido, que incidiram sobre ambas as suas filhas menores, entende-se suficiente e adequada às finalidades de prevenção e à culpa do arguido a fixação da pena acessória em apreço pelo período de dezoito anos.
*

5)–Das penas acessórias previstas nos artigos 152.º, n.º 4 e 5 do Código Penal
Vem ainda o arguido acusado nos termos do artigo 152.º, n.º 4 e 5 do Código Penal, que prevê as penas acessórias aplicáveis aos crimes de violência doméstica, estabelecendo:
4- Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5- A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”
Da pena acessória de proibição de contactos e afastamento das vítimas.
Estabelece o artigo 152.º, n.º 4 do Código Penal que, em caso de condenação pelo crime de violência doméstica, pode ser aplicada a pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de seis meses a cinco anos.
No caso dos autos, considerando todos os fatores supra expostos, designadamente a gravidade concreta dos factos que incidiram sobre a vítima BB e a ausência de autocritica do arguido relativamente ao seu comportamento, importa garantir a ausência de contactos entre o mesmo e a ofendida, afastando também o perigo de violência associado a este tipo de criminalidade.
Crê-se, por isso, que, atenta a gravidade dos factos cometidos pelo arguido, deverá ser imposta a pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de cinco anos.
Tal medida, nos termos do n.º 5 do mesmo normativo, incluirá, caso se mostre necessário (uma vez que o arguido foi condenado em pena privativa da liberdade) o afastamento do arguido relativamente à residência e ao local de trabalho da vítima, a fiscalizar, conforme aí imposto como regra, por meios de vigilância eletrónica (cfr. artigo 152.º, n.º 5 do Código Penal).
*

Da pena acessória de proibição de uso e porte de arma
A aplicabilidade desta pena acessória mostra-se igualmente prevista no artigo 152.º, n.º 4 do Código Penal.
No caso dos autos, tendo resultado provado que o arguido assumiu vários comportamentos violentos e considerando a ausência de crítica revelada pelo arguido importa o risco de voltar a recorrer a comportamentos de natureza violenta, entende-se necessária à satisfação dos fins de prevenção a imposição ao arguido da pena acessória de proibição de uso e porte de arma, pelo período de cinco anos. (…)”
Analisada a decisão recorrida, verifica-se que o Tribunal a quo aplicou correctamente os princípios gerais de determinação da medida das penas, não ultrapassou os limites da moldura da culpa do agente e teve em conta os fins das penas nos quadros da prevenção geral e especial.
Na verdade, as razões e necessidades de prevenção geral positiva são muito elevadas, fazendo-se especialmente sentir neste tipo de crimes geradores de grande e forte sentimento de repúdio pela comunidade, a necessidade de uma resposta punitiva firme, para assegurar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas e na realização da justiça.
Regista-se também que no caso dos autos é muito elevado o grau de ilicitude com que foram praticados os factos, atento o largo período de tempo em que ocorreram os factos subsumíveis ao crime de violência doméstica e dado que os crimes sexuais foram praticados através da prática de coito oral e vaginal.
Ao contrário do alegado pelo arguido, a sua ausência de antecedentes criminais e as suas condições pessoais e sociais foram tidas em conta na determinação das penas aplicadas.
No entanto, pondera muito negativamente a sua ausência de compaixão pelas vítimas, a quem cabia proteger, o seu egoísmo na satisfação desenfreada dos seus apetites sexuais, sem qualquer inibição, e alguma desculpabilização dos comportamentos que adoptou para com a filha BB.
São também muito elevadas as exigências de prevenção especial positiva que no caso se fazem sentir, pois, não obstante a ausência de antecedentes criminais e a sua inserção social, o arguido, ao praticar estes crimes ao longo de mais de uma dezena de anos, demonstrou grande dificuldade no controlo dos seus impulsos sexuais, possuir uma personalidade violenta, com pouca empatia pelas vítimas, e dificuldades de interiorização das regras de convivência social, o que leva a concluir que são sérias as suas necessidades de socialização.
Assim sendo, face à culpa do agente e à gravidade dos factos pelo mesmo praticados, as penas aplicadas são de manter, não sendo compreensível pela sociedade e pelo sentir comunitário qualquer redução das mesmas, quer no que concerne às penas principais, quer quanto às penas acessórias em que o arguido foi condenado, termos em que, também nesta parte, o recurso não pode deixar de improceder.

F)Montante indemnizatório a pagar pelo arguido às vítimas
Invoca ainda o recorrente que é excessivo o quantum das indemnizações fixadas, determinado por força do arbitramento oficioso de reparação às vítimas, atento o acompanhamento psicológico que se verifica estar já a ser prestado às ofendidas e as condições económicas do arguido, devendo ser fixados valores a ambas as ofendidas abaixo do montante estabelecido.
A este respeito decidiu o Tribunal recorrido que:
“(…) Do arbitramento oficioso de reparação às vítimas
Nos termos dos artigos 16.º n.º 2 do Estatuto da Vítima e artigo 82.º-A n.º 1 do Código de Processo Penal impõe-se ainda aferir oficiosamente da verificação ou não ou dos pressupostos da responsabilidade civil para eventual condenação do arguido no ressarcimento dos danos que hajam sido provocados aos ofendidos nestes autos.
Nos termos do artigo 82.º-A do Código do Processo Penal, o Tribunal em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.
O Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04/09, no n.º 2 do seu artigo 16.º estabeleceu que há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
Por seu turno, o artigo 67.º-A, n.º 1, alínea b) e 3 do Código de Processo Penal (introduzido pela Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro) define o que se deverá entender por “vítima especialmente vulnerável”, sendo aquela cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social, estabelecendo ainda que as vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta – conceitos concretizados no artigo 1.º, alínea j) e l) do mesmo Código - são sempre integradas nesse conceito.
A reparação, prevista no aludido normativo legal, tem em vista a pretensão, por parte do legislador, de atalhar a uma situação de urgência, a qual poderá abranger, não só as vítimas em sentido estrito, mas todos os que reclamem particulares exigências de proteção em virtude do cometimento do crime.
Acresce que o arbitramento de indemnização, nos termos do artigo 82.º-A do Código do Processo Penal, poderá ser reconduzido aos fins das penas, ou “encarada como instrumento que garante com probabilidade de sucesso a ressocialização do delinquente, uma vez que este toma real consciência da repercussão que os factos praticados tiveram na vítima e, ao assumir a sanção, interioriza mais correta e profundamente o valor da norma penal, a sua responsabilidade pela prática dos factos, assim restabelecendo, pelo menos em parte, a ordem jurídica violada”(Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/10/2011, Proc. 88/09.9PESNT.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt.).
Por seu turno, nos termos do artigo 129.º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil, ou seja, de acordo com as normas previstas nos artigos 483.º, 496.º, 562.º a 564.º e 566.º do Código Civil.
Preceitua o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil que “aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer outra disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
São, pois, pressupostos da responsabilidade civil extracontratual: a violação de um direito, a ilicitude, o vínculo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. (Cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, I, pág. 356 e Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 3.ª ed., pág. 367.)
Verificados que estejam tais requisitos nasce para o responsável a obrigação de indemnizar.
Com a indemnização, procura-se ressarcir todos os danos causados, patrimoniais e não patrimoniais, por forma a reconstituir a situação em que o lesado se encontraria se não tivesse acontecido a lesão.
Os danos de natureza não patrimonial definem-se por referência a “valores de ordem espiritual, ideal ou moral”(Cfr. Almeida Costa in “Direito das Obrigações”, Almedina, 1991, p. 478 liberdade, a honra, a reputação e o bom-nome.), constituindo “prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado” como a saúde, o bem-estar, a
Na fixação do montante indemnizatório pelos danos não patrimoniais, deve atender-se ao disposto no artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil que, enquanto princípio geral para a responsabilidade civil, estabelece “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. Por sua vez, o n.º 3 daquele preceito legal preceitua que “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º” – isto é: o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste, a situação económica do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
*
No caso dos autos, é evidente a ocorrência de acentuados danos de natureza não patrimonial na esfera das ofendidas BB e CC.
No que se refere à ofendida BB, tendo presente o período de tempo em que decorreu a atividade delituosa do arguido (cerca de dez anos), a intensidade e gravidade da mesma (envolvendo a prática continuada de atos sexuais de cópula vaginal e oral), os laços familiares diretos que os ligam, o grau de violência utilizado pelo arguido, no que se refere à vivência familiar (que envolveu a sobre vigilância sobre os comportamentos da ofendida, de modo a controlar e limitar os seus contactos sociais, exercendo violência física e psíquica sobre a mesma, sob a forma de ameaças e de agressões na face e com pontapés), entende-se que os danos sofridos pela mesma são muito profundos e incomensuráveis.
Com efeito, em consequência de tal conduta a ofendida foi afetada na sua integridade e esfera sexual de forma contínua, reiterada sendo conhecido o efeito e impacto que tais abusos, sofridos desde fases precoces do desenvolvimento, poderão ter no futuro e na forma como a vítima se irá relacionar com os outros, designadamente ao nível sexual, pelo que não poderão deixar de se considerar muito graves e intensas as lesões provocadas na sua esfera e integridade pessoal e psíquica.
Por seu turno, atendendo ao grau de culpa evidenciado pelo arguido, muito acentuado, bem como as suas condições económicas, entende-se fixar, a título de reparação pelos prejuízos sofridos pela ofendida, a quantia de 40.000 € (quarenta mil euros), a suportar pelo arguido.
No que concerne à vítima CC, são igualmente graves os factos praticados pelo arguido, atento o seu grau de parentesco e a idade precoce da ofendida, tendo-se igualmente prolongado por um período de tempo considerável (3 anos), com grande regularidade (semanal), embora não assumam um grau tão invasivo como aqueles que tiveram lugar quanto a sua irmã mais velha.
Deste modo, tendo presente o impacto significativo que a conduta do arguido provocou na esfera íntima da menor, a qual certamente terá efeitos nefastos no seu desenvolvimento, psíquico e social entende-se equitativo fixar, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados, o montante de 15.000 € (quinze mil euros).(…)
Da análise desta parte da decisão recorrida decorre que foram bem ponderadas as circunstâncias que qualificam os danos sofridos pelas vítimas em resultado da conduta do arguido, como as condições económicas deste último, ao contrário do referido pelo mesmo.
De acordo com o disposto no art.º 129º do Cód. Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.
Quanto à responsabilidade civil por factos ilícitos, dispõem os arts.º 483º, nº 1, 486º e 563º do Cód. Civil que tem a mesma os seguintes pressupostos:
a)-o facto ilícito, enquanto acção voluntária, ou omissão, violadora de bens jurídicos patrimoniais ou pessoais de terceiros;
b)-o nexo de imputação do facto ao lesante;
c)-a existência de um dano ou prejuízo causado pelo facto ilícito;
d)-o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
Segundo o disposto no art.º 496º, nº 1 do mesmo diploma, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve-se atender aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Ainda segundo o previsto no art.º 562º do Cód. Civil, a obrigação de indemnizar tem em vista a reconstituição da situação que existiria na esfera patrimonial do lesado se não tivesse ocorrido o facto causador da lesão.
A indemnização por danos morais, visando uma compensação do lesado pelo sofrimento, é fixada segundo critérios de equidade, nos termos previstos nos arts.º 496º, nº 4 e 566º, nº 3 do Cód. Civil, e actualizada ao momento do julgamento (cf., neste sentido, Ac. STJ de 14/3/91, in BMJ 405, pág. 443 ).
Importa, no entanto, determinar quais são os danos não patrimoniais indemnizáveis.
Conforme é hoje unanimemente entendido, a gravidade do dano não patrimonial mede-se por um padrão objetivo, consoante as circunstâncias do caso concreto, devendo ser afastados fatores suscetíveis de traduzir uma sensibilidade exacerbada ou requintada do lesado (cf., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 499, nota 1).
O dano indemnizável deve ser assim um dano de tal modo grave que mereça a tutela do direito e justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado, não relevando para efeitos de indemnização os simples incómodos ou contrariedades (cf., neste sentido, Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª Edição, pág. 606).
A gravidade do dano deve, pois, aferir-se com recurso a critérios objectivos, como sejam a dignidade e o valor intrínseco do bem ou interesse jurídico violado.
Não é, no entanto, possível estabelecer um paralelismo absoluto entre a gravidade do dano e a dignidade do bem jurídico violado, havendo outros factores que podem conferir gravidade ao dano, como por exemplo a intensidade da lesão, quer em termos temporais, quer em termos de afectação do bem ou interesse em causa, e a censurabilidade da conduta do agente, apta a justificar a qualificação como grave de um dano que pelos critérios da dignidade e da intensidade poderia ficar sem protecção.
Na determinação dos danos não patrimoniais indemnizáveis cabem ainda os decorrentes de uma especial sensibilidade do lesado, como sejam a doença, a idade e a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais.
Não são, no entanto, atendíveis os meros incómodos e pequenas contrariedades, que na perspectiva do lesado mereceriam a tutela do direito, mas que não passam no crivo de uma avaliação objectiva ou de mero bom senso.
Quanto à definição de quais sejam os danos não patrimoniais indemnizáveis, destaca-se o dano moral em sentido próprio ou subjectivo, ou seja, a humilhação, a angústia, a vergonha e a ansiedade, nele se incluindo também a própria dor, que no direito português abrange quer a dor física, quer o sofrimento moral.
É ainda possível a ofensa de bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico e insuscetíveis de avaliação pecuniária, como sejam a integridade física, a saúde, a correcção estética, a liberdade, a honra ou a reputação.
A ofensa objectiva destes bens tem, em regra, um reflexo subjectivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou moral (cf. neste sentido, Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 6ª Edição, Coimbra Editora, 1989, pág. 375).
Também Antunes Varela identifica os danos não patrimoniais com os prejuízos, como as dores físicas, os desgosto morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação e os complexos de ordem estética, que não são susceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome, pelo que não integram o património do lesado e apenas podem ser compensados pecuniariamente (in “Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Edição, Almedina, ..., pág. 602 e seguintes).
Na senda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem-se vindo também a autonomizar do dano moral em sentido estrito, o dano não patrimonial derivado da lesão da dignidade humana, decorrendo esta autonomização do reconhecimento de que os actos atentatórias da dignidade humana provocam angústia, amargura e desespero (cf. neste sentido “Danos Não Patrimoniais”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, FDUC, Vol. III, Direito das Obrigações, 2007, págs. 505 a 512).
No entanto, como sustenta Vaz Serra, in BMJ, vol. 83º, pág. 85: “ (…) a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão; trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de avaliação”.
Assim sendo, uma vez que o ressarcimento dos danos não patrimoniais deriva da violação de direitos fundamentais, deve-se abandonar um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes indemnizatórios.
A decisão recorrida encontra-se, também neste tocante, bem fundamentada de facto e de direito.
Os danos morais sofridos pelas vítimas em resultados dos sucessivos actos do arguido, tendo em conta a sua duração e intensidade, são de tal modo graves que merecem, efectivamente, a tutela do direito, impondo-se atribuir-lhes uma indemnização compensatória pelo sofrimento dos mesmos.
Uma vez que não existe a possibilidade de quantificar os danos morais, a sua ressarcibilidade tem que ser feita com recurso à equidade, ou seja, através de um critério de razoabilidade, ditado pelo bom senso.
Face aos danos de natureza não patrimonial em apreço há que ter em conta que a indemnização deve ser significativa de modo a representar uma efetiva compensação pelos prejuízos sofridos, mas sem representar um enriquecimento injustificado das lesadas à custa do lesante.
Analisando a decisão recorrida e a factualidade apurada, considera-se justo e proporcional condenar o arguido a pagar à ofendida BB o montante de 40.000 € (quarenta mil euros) e à ofendida CC o montante de 15.000 € (quinze mil euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais sofridos, tendo em conta as diferenças de violação dos bens jurídicos entre ambas registadas.
No caso concreto, face a tudo quanto antecede, à luz da equidade, entende-se que as quantias em apreço são justas, adequadas e proporcionais, mostrando-se, de acordo com as especificidades do caso concreto, perfeitamente consentâneas com os valores atribuídos e os critérios seguidos pela jurisprudência dos nossos Tribunais superiores em casos que com este têm alguma similitude.
Por conseguinte, também nesta parte o recurso tem que improceder.
Por todo o exposto, impõe-se concluir que a decisão recorrida se mostra bem fundamentada de facto e de direito e não violou nenhum dos preceitos legais invocados pelo recorrente, pelo que terá o recurso que ser julgado totalmente improcedente e a decisão recorrida integralmente confirmada.
*
4.Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto nos autos por AA e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Uc´s.

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2024

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco
(Relatora)
Manuel Advínculo Sequeira
Sara Reis Marques
(Adjuntos)