MEDIDA DE COAÇÃO
PERIGO DE PERTURBAÇÃO DO DECURSO DO INQUÉRITO
Sumário

I - Na avaliação das necessidades cautelares postas por um determinado caso, devem ser sempre tidas em consideração as possíveis especificidades – entre outras que se devam considerar relevantes – sociológicas, criminológicas e, em especial, psicológicas, associadas à infração criminal que esteja em causa, tanto no que concerne ao respetivo agente e à sua conduta, como à sua vítima e ao impacto que aquela possa ter sobre esta.
II - Nas situações de violência doméstica, o ascendente que o agressor tenha sobre a sua vítima, bem como os efeitos que, para esta, decorram dos maus tratos a que porventura tenha sido sujeita (e, em especial, o temor da possível reação do agressor perante a instauração e, sobretudo, o decurso de processo), pode fundar a conclusão de que existe um efetivo perigo de perturbação do decurso do inquérito, máxime, para a aquisição, conservação ou veracidade da prova.

Texto Integral

Processo n.º: 760/23.0PIPRT-A.p1
Origem: Juízo de Instrução Criminal do Porto (Juiz 4)
Recorrente: Ministério Público
Referência do documento: 17679366




I
1. O Ministério Público impugna, no presente recurso, decisão proferida no Juízo de Instrução Criminal do Porto (Juiz 4) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que rejeitou a promovida aplicação, a suspeito da prática de crime de violência doméstica, «[d]as medidas previstas pelo art. 31º nº 1, al. a), c) e d) da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro».
2. Este é, na parte aqui relevante, o texto da decisão recorrida:
« Indiciam fortemente os presentes autos a prática pelo arguido AA, como autor material, na forma consumada, e em concurso real e efectivo, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Tal indiciação louva-se na prova constante dos autos, nomeadamente na prova descrita a fls 99 a 105, bem como da aditada a fls. 111, 115 a 121 da qual tomou o arguido conhecimento.
Está, assim, fortemente indiciada a factualidade descrita na promoção de introdução dos factos em juízo constante dos autos e cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido, por questões de saneamento e celeridade processual, e para todos os devidos e legais efeitos.
Sendo claro que os crimes de violência doméstica são de investigação particularmente delicada e difícil, havendo, por regra, que valorar as declarações das vítimas, o certo é que do alegado pelo Ministério Público resulta que os últimos factos com relevo para os presentes autos ocorreram já no mês de Maio, ou seja, há cerca de cinco meses.
Não existem nos autos quaisquer referências a posteriores contactos entre a vítima e o arguido, muito menos por iniciativa deste, sendo certo que há pelo menos cinco meses que não vivem juntos.
A aplicação das medidas de coacção tem que respeitar os princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade e da intervenção mínima, face à necessidade de conciliar o princípio de que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória com a necessidade da sua sujeição a medidas de coacção antes da condenação.
Tem ainda que se mostrar verificado na actualidade pelo menos um dos fundamentos previstos no artigo 204.º do Código de Processo Penal, que aqui se considera integralmente reproduzido.
Acresce que, os factos apurados, desde logo por permitirem afirmar a prática de um crime de violência doméstica, são graves, mas de uma gravidade relativa, atentas as concretas consequências demonstradas neste momento nos autos.
Ora, a ser assim, como claramente cremos que é e ressalvado o devido respeito por diferente opinião, não vislumbramos fundamento legal para restringir a liberdade do arguido em modo superior aquele que já resulta da sua sujeição a termo de identidade e residência, desde logo por não se mostrar verificado na actualidade pelo menos um dos fundamentos previstos no aludido artigo 204.º do Código de Processo Penal.
Repare-se que até a própria vítima, no último depoimento que prestou nos autos, refere não ter qualquer receio do arguido, não [nem?] tão pouco pretender a limitação da liberdade deste.

*
Nestes [termos?] e sem necessidade de ulteriores considerações decido que, pelo menos por agora, o Arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito unicamente às obrigações decorrentes do termo de identidade e residência, já prestado nos autos.
[...]».


3. A dita «factualidade descrita na promoção de introdução dos factos em juízo constante dos autos e cujo teor (…) [foi dado] por integralmente reproduzido, por questões de saneamento e celeridade processual, e para todos os devidos e legais efeitos» era, inicialmente, a seguinte (a numeração foi acrescentada para maior facilidade de referência posteriormente):
[1] «Em Junho de 2021, a ofendida BB e o denunciado iniciaram uma relação de intimidade com coabitação, adotando residência comum na Rua ..., Porto.
[2] Ora, pelo menos desde Setembro desse mesmo ano, o denunciado associava consumos excessivos de álcool com a toma de medicação.
[3] Para além disso, o mesmo mantinha contactos sexuais com outras pessoas, para além da ofendida.
[4] E assim, em data não concretamente apurada (mas entre Setembro e Outubro de 2021) e quando a ofendida o confrontou com o recebimento de uma mensagem com imagem de uma mulher despida, o denunciado agarrou-a pelos braços, projetou-a contra uma parede e declarou-lhe «filha da puta, não penses que vais mandar na minha vida», «pensas que estás a falar com quem?», «sabes que eu sou?», «olha esta que vem-me controlar», «vai à puta que te pariu», «eu fodo- te, dou cabo de ti».
[5] Mas porque a BB ficou caída no chão, o denunciado transportou-a para a cama e, ainda assim, a culpabilizou, declarando «olha o que tu fizeste», «tu és louca».
[6] Mercê da referida agressão, a ofendida sofreu de dores, pelas quais recorreu à toma de fármacos, mas não se apresentou em qualquer Unidade médica ou hospitalar.
[7] A partir daí, o denunciado bloqueou [anotação manuscrita sobrescrita: «o acesso da»] a ofendida às redes sociais que utilizava.
[8] E este tipo de episódio de agressões verbais e físicas ocorreram mais duas vezes durante o ano de 2021, em que o denunciado empurrava a ofendida e colocava as mãos na sua boca, de modo tal que lhe provocava lacerações e hematomas.
[9] Daí que, com medo da reação do denunciado, a ofendida deixou de o confrontar com alegadas infidelidades, mas também deixou de frequentar, com o mesmo, espaços públicos, designadamente restaurantes.
[10] Na noite de 27 de Abril de 2023, no interior da referida residência e a propósito de a ofendida não o ter ajudado no transporte de alguns objetos, o denunciado – em tom exaltado – declarou para aquela: «mas quem és tu para me dar ordens, sua filha da puta», «mas tu pensas que és quem aqui?».
[11] E nessas mesmas circunstância de tempo e lugar, o denunciado agarrou a BB pelos braços. atirando-a e fazendo com que a mesma caísse desamparada sobre uma cadeira.
[12] E com esta já caída no chão, o denunciado declarou-lhe: «podes chorar, espernear», «vai fazer queixa ao DIAP», «Eu sou o AA, não é uma puta como tu que vai destruir a minha carreira de longos anos».
[13] Em face das·fortes dores, a ofendida solicitou ao mesmo que a ajudasse. No entanto, o denunciado – ao invés – empurrou-a contra uma porta e afirmou «eu vou chamar a tua família para te virem buscar, que eu não estou para te aturar».
[14] De seguida, o mesmo dirigiu-se para o quarto, alegando que ia deitar pela janela as roupas da ofendida.
[15] E já nesse compartimento, o denunciado empurrou a ofendida para cima da cama, colocou uma mão sobre a sua boca (impedindo-a de pedir socorro) e declarou-lhe – uma vez mais em tom sério, convincente e intimidatório – «eu mato-te».
[16] Como consequência direta e necessárias das agressões infligidas pelo denunciado, a BB sofreu as lesões descritas e examinadas nos relatórios constantes de fls. 18 e 95 a 97, que determinaram – para a respetiva cura – 8 (oito) dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral.
[17] Na referida data, a ofendida saiu da casa de morada da família e, em data não concretamente apurada, quando se encontrou com o denunciado (para reaver os seus pertences, em falta), o mesmo afirmou-lhe «vais ter de provar que eu te agredi, eu sou Advogado e meteste-te com a pessoa errada».
[18] O AA agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de molestar a ofendida física, psíquica e emocionalmente, agredindo-a, intimidando-a e humilhando-a e atentando contra o direito de confiança desta, no estabelecimento de uma relação de intimidade, que o que o mesmo se absteria de praticar atos daquela natureza.
[19] E o denunciado agiu, amiúde, no interior da residência comum, a coberto da reserva de intimidade que tal locus lhe proporcionava (e, portanto, sem risco de ser surpreendido), e num espaço que deveria servir de conforto e de segurança para os três ofendidos.
[20] A ofendida, ainda que tenha cessado a relação de intimidade e a coabitação com o denunciado, vive em permanente medo com o que este lhe possa fazer.
[...]».


4. Entretanto, o Ministério Público, na sequência da busca e apreensão da arma a seguir indicada,
«Adit[ou] ainda a seguinte factualidade [a numeração foi acrescentada para facilitar a referência à matéria em questão], escudada nos elementos de prova constantes de fls. 111, 115 a 121, que também se aditam, e que comprometem igualmente o arguido com a prática de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea ar), e 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, em autoria material, na forma consumada e em concurso real e efectivo com o crime de violência doméstica:
[21] No dia 6 de Outubro de 2023, pelas 07:20 horas, o arguido detinha na sua residência, sita na Rua ..., nesta Cidade do Porto, mais propriamente no interior do armário do quarto, 1 (uma) espingarda de caça, de marca “FIAS”, com o n.º ...19, Calibre 12.
[22] Actualmente, o arguido não é titular de licença ou autorização que lhe permita a detenção de quaisquer armas, e bem assim, não é titular de licença de uso e porte de arma válido.
[23] O arguido detinha a arma em apreço sem qualquer autorização para o efeito, bem sabendo que a detenção da mesma apenas é permitida a quem estiver legalmente autorizado, o que quis e concretizou.
[24] Também neste tocante, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente dos seus actos.
[25] Sabia que tal conduta era proibida e punível por Lei.
[...]».


5. O recorrente verbera à transcrita decisão recorrida (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado):
«1 – O arguido encontra-se indiciado pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica agravado previsto e punido pelo art. 152º nº 1 al. b) e nº 2 al. a) do Código Penal e, em concurso, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86º nº 1 al. c) da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro;
2 – Não obstante ter dado como indiciados factos ocorridos no lapso temporal entre 2021 e 2023, o último dos quais já após a cessação da relação de intimidade, o Mmo. Juiz de Instrução desconsiderou a existência de perigo para a vítima, focando-se na circunstância de o arguido e a vítima já não coabitarem há cinco meses e classificando o crime em apreço como de «gravidade relativa» (esquecendo que estamos perante criminalidade violenta e atentatória dos direitos humanos fundamentais); e
3 – esquecendo, também, que, de acordo com a jurisprudência do TEDH, existe um dever do Estado, de devida diligência reforçada nos casos de violência doméstica, onde se pressupõe (desde logo) um perigo iminente, sob pena de, ao ter de se aguardar esta verificação em concreto, poder ser tarde demais…
4 – «Na realidade, o Acórdão Buturagä v. Romania (2020) enfatizou a necessidade de uma devida diligência especial para os casos de violência doméstica, considerando que as suas especificidades, "reconhecidas na Convenção de Istambul", (…) "devem ser levadas em consideração no contexto dos procedimentos internos"».
5 – «Em termos realistas, na fase de "risco imediato" para a vítima, muitas vezes é tarde de mais para o Estado intervir. Além disso, a recorrência e a escalada inerentes à maioria dos casos de violência doméstica tomam de alguma forma artificial, até mesmo, deletério, exigir uma imediação do risco. Mesmo que o risco não seja iminente, já é um risco sério quando está presente».
6 – Numa outra ordem de considerações, deixar para a vítima a responsabilidade sobre a sua própria proteção (conhecidas que são as inúmeras dependências desta em relação ao agressor) afigura-se-nos ser um caminho perigoso (que já demonstrou ter maus resultados) e um enviesamento do poder/dever do Estado (num crime que assumiu de natureza pública).
Pelo que:
Atentas as considerações aduzidas supra, pugna-se pela revogação da decisão judicial sub judice, aplicando-se ao arguido as medidas previstas pelo art. 31º nº 1, al. a), c) e d) da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro.
[...]».


6. Em resposta, o arguido, fundando-se no raciocínio desenvolvido pelo Tribunal recorrido, conclui que «[n]ão poderia ser outra a decisão a tomar senão a que foi tomada atento todo o circunstancialismo e as razões aduzidas».
7. O Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se nos termos a seguir reproduzidos:
«[...]
A questão levada a conhecimento e controvertida, em síntese, é se deveria o MMº JIC aplicar outras medidas de coacção promovidas pelo MºPº.
Ou seja,
No decurso de um inquérito, em que é imputado, pelo MºPº ao arguido AA a prática de crime de violência doméstica agravado e um crime de detenção de arma proibida, este titular da acção penal emitiu mandados de detenção para interrogatório judicial e aplicação de medida de coacção.
Nessa diligência, promoveu esse Magistrado que fossem aplicadas as seguintes medidas de coacção, para além de TIR:
[…]”a) Não adquirir, não usar ou entregar, de forma imediata, armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a continuação da atividade criminosa;” “c) Não permanecer nem se aproximar da residência onde o crime tenha sido cometido, onde habite a vítima ou que seja casa de morada da família, impondo ao arguido a obrigação de a abandonar; d) Não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou certos meios, bem como não contactar, aproximar-se ou visitar animais de companhia da vítima ou da família;[…]”, nos termos do disposto no art. 31º, nº1, alíneas a) c) e d) da L. nº 112/2009, de 16 de Setembro.
Porém, o MMº JIC entendeu suficiente que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo unicamente com Termo de Identidade e Residência.
É desta decisão que Ministério Publico interpôs recurso para este Tribunal da Relação.
Afigura-se-me que nenhuma circunstância obsta ao conhecimento do recurso, devendo manter-se o efeito que lhe foi atribuído, não devendo o mesmo ser rejeitado e não existindo causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo ou seja o único motivo dos recursos.
*
Os factos imputados ao arguido, tal como constam do requerimento de aplicação de medidas de coacção, não foram postos em causa em sede de recurso pelo MºPº. Contudo, este considera que, na perspetiva de protecção da vítima, o arguido deveria onerado ainda com as medidas de coação referidas.
Em contrapartida, e como é afirmado no despacho judicial em crise, no momento em que foi realizado o interrogatório do arguido tinham decorrido 5 meses sem que o arguido por qualquer forma tivesse contactado a vítima, e a própria referiu que não tinha medo dele.
Por outro lado, como igualmente consta dos autos, a arma que o arguido possuía, de forma ilícita, foi apreendida, e não consta que alguma vez a tivesse usado para ameaçar, constrangir, coagir a vítima, nem isso foi alegado.
Ora, para aplicação de uma qualquer medida de coacção impõe-se estarem preenchidos os requisitos expressos no art. 204º do CPP, o que, tal como consta no despacho do MMº JIC, não sucede, e justifica-o. Na verdade, não vemos como é que o arguido apresenta indícios de perigo de fuga, perturbação do inquérito, ou de continuação de actividade criminosa, estando social e profissionalmente integrado, e sem contactos com a queixosa.
Atento o teor do despacho recorrido, e pelas razões supra sinteticamente indicadas, sou de parecer que o recurso não merece provimento.»


8. Cumpridos os legais trâmites importa decidir.

II
9. O presente recurso merece parcial provimento.
10. 1. Tendo em consideração a natureza específica da infração criminal que se investiga nos autos e, bem assim, a matéria de facto dada por indiciada pelo Tribunal recorrido, verifica-se, no caso, e pelo menos, perigo de perturbação do inquérito, especialmente na sua vertente de perigo para a conservação e/ou veracidade da prova.
11. a) É indiscutível que a legitimidade da aplicação de uma medida de coação – por implicar uma restrição do espaço de liberdade que a todo e qualquer cidadão é constitucional e legalmente reconhecido num momento em que ainda não foi proferido um juízo definitivo quanto à eventual responsabilidade criminal pela prática de determinados factos – exige que ocorram razões precisas e relevantes que justifiquem o recurso a tal tutela cautelar, que assim se desenvolve (se deve desenvolver) exclusivamente em função das necessidades específicas que com elas se visa salvaguardar e que, portanto, também deverá cessar quando essas necessidades deixam de a exigir (vd., salientando-o precisamente, v. g., Agostino De Caro, Presupposti e criteri applicativi, em Giorgio Spangher (dir.), Trattato di Procedura Penale, vol. 2, t. II, pág. 57).
12. Isto assente, é também importante não olvidar, ao avaliar as necessidades cautelares postas por um determinado caso, as possíveis especificidades – entre outras que se devam considerar relevantes – sociológicas, criminológicas e, em especial, psicológicas, associadas à infração criminal que esteja em causa, tanto no que concerne ao respetivo agente e à sua conduta, como à sua vítima e ao impacto que aquela possa ter sobre esta; para este efeito, dir-se-á que nem todos os crimes são, necessariamente iguais, e muito menos devem ser entendidos e tratados de idêntica maneira pelo sistema de Administração da Justiça Penal.
13. Um bom exemplo disso mesmo é o que ocorre com as situações de violência doméstica (lato sensu), nas quais a literatura especializada identifica um conjunto de características (natureza crónica do abuso, tendência a espraiar-se no tempo, envolvimento dos elementos da díada num específico «ciclo de violência», etc.: vd., a este propósito, a síntese de, v. g., Bryan K. Payne, s. v. Intimate Partner Violence, em Bonnie S. Fisher/Steven P. Lab (eds.), Encyclopedia of Victimology and Crime Prevention, vol. 1, págs. 495-496) que as distinguem das situações consistentes na mera prática (mesmo que reiterada) dos genéricos crimes (especialmente «contra as pessoas») que nelas também se pode identificar, desaconselhando assim uma abordagem que as perspetive como um (ou as dissolva num) conjunto de eventos violentos isolados e sem ligação entre si (a partir, isto é, de um estrito «violent incident model», na terminologia de, e com o sentido que lhe atribui, Evan Stark) e que ignore as específicas relações que se estabelecem entre o agressor e a sua vítima, especialmente o «ambiente» de coerção que o agressor cria com as suas condutas e os efeitos que para a vítima daí decorrem (vd., a este propósito, Evan Stark, Looking Beyond Domestic Violence: Policing Coercive Control, em Journal of Police Crisis Negotiations, vol. 12(2), pp, 199 e segs., 203 e segs., e 206, e segs., e, mais recentemente, Id., Coercive Control: How Men Entrap Women in Personal Life, 2.ª ed., particularmente págs. 248 e segs.; Cheryl Hanna, The Paradox of Progress: Translating Evan Stark’s Coercive Control Into Legal Doctrine for Abused Women, em Violence Against Women, vol. 15(12), pp. 1458 e segs.).
14. b) O Tribunal recorrido entendeu inexistir «fundamento legal para restringir a liberdade do arguido em modo superior aquele que já resulta da sua sujeição a termo de identidade e residência, desde logo por não se mostrar verificado na actualidade pelo menos um dos fundamentos previstos no aludido artigo 204.º do Código de Processo Penal», recordando, a propósito, «que até a própria vítima, no último depoimento que prestou nos autos, refere não ter qualquer receio do arguido, não [nem?] tão pouco pretender a limitação da liberdade deste».
15. Porém, lida a matéria de facto considerada indiciada pelo Tribunal a quo e o depoimento da queixosa aludido na decisão recorrida à luz das considerações antecedentes, afigura-se-nos que esta conclusão se mostra precipitada, e de modo algum autorizada por todos os elementos relevantes para a realização do juízo sobre a verificação, no caso concreto, dos requisitos legalmente exigidos para a imposição de medidas de coação.
16. Assim, e antes de mais, decorre da factualidade considerada indiciada pelo Tribunal recorrido que «[a] ofendida, ainda que tenha cessado a relação de intimidade e a coabitação com o denunciado, vive em permanente medo com o que este lhe possa fazer» (facto indiciado n.º 20), o que está, aliás, de acordo com o que é (infelizmente) «normal» suceder quando estão em causa situações de violência doméstica e tendo em consideração o impacto que tais situações têm sobre as respetivas vítimas, em especial quando estão em causa incidentes envolvendo violência física e/ou verbal, conduzindo à criação de um ambiente em que a vítima convive quotidianamente com o receio da ocorrência de novos fenómenos violentos, como se referiu atrás, que naturalmente não desaparece apenas pela cessação da coabitação, quando esta existe.
17. Sendo assim, as declarações da queixosa nos autos em sentido aparentemente contrário têm de ser entendidas com algum cuidado, porque ela também refere, do mesmo passo, «[q]ue alterou os seus hábitos quotidianos por causa dos factos praticados pelo denunciado, não frequentando determinados espaços [em?] que aquele possa estar presente» – o que não pode deixar de significar que tem receio de o encontrar e com ele partilhar os mesmos espaços – e que «teve necessidade de tomar medicação para enfrentar o pânico diário» – o que revela que as situações de violência e abuso que terá enfrentado às mãos do aqui arguido deixaram marcas psicológicas inequívocas, desvalorizando, assim, a ideia de que não teme, já, de modo algum, pela sua segurança.
18. Até porque a queixosa deixou bem claro, do mesmo modo, «[n]ão concordar com a eventual suspensão provisória do processo, mediante a aplicação de certas injunções ou normas de conduta ao denunciado» e que «[c]aso se venha a concluir estarmos perante crimes de natureza particular ou semipública, pretende a prossecução, deseja procedimento criminal», ou seja, mediante a posição que assumiu processualmente, está, de alguma forma, a sujeitar o arguido a um escrutínio judicial da sua (alegada) conduta que, à medida que o inquérito avance, mais incentivo lhe proporcionará para tentar evitar a colaboração da queixosa com as autoridades policias e judiciais.
19. Considerando a totalidade das declarações da queixosa, pois, fica claro que a violência e abuso que sofreu continuam a influenciar o seu quotidiano e a produzir efeitos sobre o seu bem-estar psicológico e a sua estabilidade emocional e que, portanto, continua ela, de alguma forma, ainda suscetível à influência do arguido, ainda que já não coabite com ele e aparentemente não mantenham contacto.
20. Para além disso, considerando a específica dinâmica das relações entre agressor e vítima de violência doméstica (que a teoria do ciclo de violência, sugerido inicialmente por Lenore Walker e hoje em dia geralmente aceite como uma descrição válida e útil das situações de violência doméstica, procura descrever e explicar: vd., a propósito, v. g., Sue Cote Escobar, s. v. Theory of Cycle of Violence, em Bonnie S. Fisher/Steven P. Lab (eds.), cit., pág. 256 e segs.), não deixa de existir o risco – que a experiência judicial quotidiana mostra ocorrer infindavelmente na prática – de que uma fase de «reaproximação» («lua-de-mel»), ainda que sem o regresso da coabitação, venha a evitar que a queixosa nos autos preste depoimento, impedindo assim a cabal investigação (e/ou prova) da conduta do arguido e a sua eventual responsabilização por ela, se vier a comprovar-se que a mesma teve lugar.
21. Neste contexto, que nos autos não esteja demonstrada a ocorrência, entrementes, de contactos (ou tentativa de contactos) entre o arguido e a aqui queixosa, se pode servir para afastar a ocorrência, em concreto, de um perigo de continuação da atividade criminosa, não é de todo decisivo para concluir pela não verificação do perigo a que se alude na alínea b) do n.º 1 do artigo 204.º do Código de Processo Penal, justificando, assim, que mediante a aplicação de adequadas medidas de coação, se assegure, à queixosa no processo, um espaço de segurança que evite a contaminação da atividade de investigação e probatória que deverá desenvolver-se no âmbito do inquérito de que estes autos são apenso.
22. 2. Ponderando os considerandos que antecedem, justifica-se a imposição, ao arguido nos autos, da proibição de contactar, seja por que meio for, por si ou por intermédio de interposta pessoa, com a aqui queixosa (a acrescer às obrigações que sobre ele já recaem em virtude do termo de identidade e residência que prestou ele nos autos).
23. a) A indicada medida de coação afigura-se necessária e suficiente para esconjurar o perigo identificado no ponto anterior, e implica, se bem se vê, uma restrição mínima da liberdade do arguido nos autos, permitindo, por outro lado, garantir o sossego da queixosa e a sua plena liberdade para colaborar com a atividade (de investigação e de recolha de prova) que ainda há que desenvolver no âmbito dos autos, bem como assegurar, em concreto, um mais rápido e eficiente concurso da força pública (e das próprias autoridades judiciárias) para evitar (ou reagir a) eventuais reaproximações à mesma por parte do arguido.
24. Trata-se, ademais, de medida que, no fundo, a queixosa já implementa por sua iniciativa, como se viu, sendo certo que, não tendo sido ela quem praticou os factos em causa neste processo, não se vislumbra razões para que seja ela a arcar com a responsabilidade de evitar, por sua conta e risco, eventuais contactos da parte do, ou com o, arguido.
25. b) Pelo contrário, já não se antolha justificado, tendo o arguido sido entretanto privado da arma que mantinha em situação ilegal na sua residência (que não foi utilizada para a prática de qualquer dos factos aqui em causa), e não havendo notícia de que tenha ele quaisquer outras armas (tudo como a própria queixosa esclareceu no seu depoimento), sujeitá-lo, ainda, à medida prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 31.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, como pretende o recorrente.
26. Por outro lado, estando o arguido e a aqui queixosa separados, residindo em habitações diferentes, também não se vislumbra qual o interesse na aplicação, ao arguido, da medida de coação prevista na alínea c) do aludido preceito legal.
27. Não se esquece, com isto, o preceituado no n.º 2 do artigo 31.º da aludida Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro; apenas se reconhece que a queixosa – que entretanto retirou todos os seus pertences da habitação que partilhava com o arguido nos autos – demonstrou já não ter interesse em regressar àquela que era a casa de morada comum com o arguido, sendo que, inexistindo necessidade de tutela, nenhum espaço existe para a imposição de medidas cautelares (de coação), como se referiu já. Para além disso, e se vier a ser o caso, sempre esta questão poderá ser reponderada, ao poder (dever) sempre a resposta cautelar acompanhar a dinâmica da situação concreta em causa nos autos.
28. c) No objeto que, alfim, fixou ao seu recurso, não insiste o recorrente no recurso aos meios referidos no artigo 35.º, n.º 1, do citado diploma legal, para fiscalizar o cumprimento da proibição de contactos que irá ser decretada, sendo certo que a queixosa nos autos já rejeitou a possibilidade de ser acompanhada por teleassistência e esta Relação não dispõe de elementos que lhe permitam decidir da necessidade de ultrapassar a sua falta de consentimento para o uso daqueles meios (e, eventualmente, dependendo da posição que a tal respeito adote, do arguido) por recurso à faculdade contida no n.º 7 do mesmo preceito legal. Sendo assim, e quanto a essa matéria, poderá, eventualmente, a 1.ª instância decidir posteriormente, se e na medida em que lhe seja requerido que o faça.
29. 3. No caso, não há lugar à fixação de quaisquer custas (artigos 513.º, n.º 1, a contrario, e 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).


III

30. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em, julgando parcialmente procedente o presente recurso, impor, ao arguido nos autos, a acrescer às obrigações que sobre ele já recaem em virtude do termo de identidade e residência que prestou no processo, a proibição de contactar, seja por que meio for, por si ou por intermédio de interposta pessoa, com a aqui queixosa.

31. Sem custas (artigos 513.º, n.º 1, a contrario, e 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).



Porto, 24 de janeiro de 2024.

Pedro M. Menezes
Lígia Trovão
Pedro Donas Botto
(acórdão assinado digitalmente).