ARGUIDO JULGADO NA AUSÊNCIA
NOTIFICAÇÃO PESSOAL DA SENTENÇA
INTEMPESTIVIDADE DO RECURSO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO POR MEIOS DE COMUNICAÇÃO À DISTÂNCIA
Sumário

I - Enquanto o arguido julgado na sua ausência ao abrigo do artigo 333.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, não for pessoalmente notificado da sentença condenatória, o recurso interposto pelo seu defensor não deve ser admitido e, sendo-o, não pode ser objeto de apreciação pelo Tribunal Superior.
II - Sendo, porém, o recurso interposto em tais circunstâncias (indevidamente) admitido pelo Tribunal, o respeito pelo direito ao recurso e a um processo que assegure todas as garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) impede a rejeição do mesmo por intempestividade, nos casos em que o arguido, no prazo que legalmente lhe é assinado para tanto, não retire eficácia ao ato praticado pelo seu defensor (artigo 63.º, n.º 2, do Código de processo Penal), designadamente apresentando (novo) recurso impugnando a sentença contra si proferida.
III - Sendo a presença do arguido em audiência um seu direito, mas também um seu dever, não é admissível, na ausência de razões substanciais suficientemente relevantes que o imponham, a sua participação na audiência de julgamento mediante recurso a meios de comunicação à distância.
IV - Tal vale, designadamente, para os casos em que o arguido não possua condições económicas para se apresentar em Juízo, hipótese em que, precisamente, cabe ao Tribunal, a seu pedido, proporcionar-lhe as condições necessárias para a sua deslocação a Juízo (artigo 332.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).

Texto Integral

Processo n.º: 588/19.2PAESP.P1
Origem: Juízo de Competência Genérica de Espinho (Juiz 2)

Recorrente: AA (arguido)

Referência do documento: 17679480



I
1. O aqui recorrente impugna, com o presente recurso, decisão proferida no Juízo de Competência Genérica de Espinho (Juiz 2) do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, que o condenou, «pela prática de um crime de recetação, em autoria material e na forma consumada, nos termos do n.º 1 do art.º 231.º do código penal, na pena de 02 anos e 06 meses de prisão».
2. Este é, na parte aqui relevante, o texto da decisão recorrida (acrescentou-se a numeração dos parágrafos da «Motivação quanto à matéria de facto», para facilitar a sua referência subsequente):
«I. Relatório:
A fls.260v a 262v, o Digno Magistrado do Ministério Público veio requerer a sujeição a julgamento, em processo Comum, e com intervenção do Tribunal Singular, dos arguidos:
AA, [...]
E
BB, [...]
Pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de recetação, p. e p. pelo art.º 231.º, n.º 1 do Código Penal, com referência aos factos descritos na Acusação, para a qual se remete e cujo teor se dá aqui por reproduzido.

* * * * *

II. Fundamentação:

Factos Provados:
Da discussão da causa, após ponderação crítica dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento, resultaram provados os seguintes factos:
1. Entre as 23:00 horas de 04.08.2019 e as 10:45 horas de 05.08.2019, desconhecidos apoderaram-se do veículo de marca PEUGEOT, modelo ... e matrícula ..-..-VF, propriedade de CC,
2. Após escalarem um muro da residência desta, sita na Rua ..., em Espinho, e, em resultado, acederem – sem que, para tal, estivessem autorizados – a um logradouro, no qual se mantinha aquele aparcado (destrancado, com a respetiva chave na ignição e com o comando do portão de acesso ao exterior).
3. Entre a mencionada circunstância de tempo e o dia 06.09.2019, num contexto que não se logrou apurar na sua inteireza, o mencionado veículo – em cujo interior se manteve depositado, designadamente, o Documento Único Automóvel com o n.º ...74, titulado por CC – veio a entrar na posse de AA,
4. Que, até 24.09.2019, o manteve depositado em sítio não concretamente apurado, utilizando-o.
5. Entre este dia 24.09.2019 e o dia 07.10.2019, num contexto que não se logrou apurar na sua inteireza, o mencionado veículo – em cujo interior se manteve depositado, designadamente, o mencionado Documento Único Automóvel – veio a ser transmitido para BB,
6. Que, pelo menos até 23.06.2020, o manteve sob sua posse e depositado na sua residência, passando a utilizá-lo diariamente nas suas deslocações.
7. Cada um ciente de que havia sido ilicitamente obtido, AA e BB, logo cada um se determinou, nas mencionadas circunstâncias de tempo e de modo não concretamente apurado (porquanto sem autorização ou intervenção de CC) a diligenciar (e não diligenciarem) pela subscrição de seguros de responsabilidade civil automóvel por si titulados – entre 06.09.2019 e 24.09.2019, subscrito pelo primeiro na Companhia de Seguros A..., S.A. (apólice n.º ...59/0); e entre 07.10.2019 e 09.01.2020, subscrito pelo segundo na Seguros B... (apólice n.º ...06),
8. Obviando a que, se encontrado na sua posse, tal detenção e condução se constatasse ilegítima e, em resultado, permitindo-lhes auferir uma vantagem patrimonial correspondente ao seu continuado uso.
9. Os arguidos agiram, cada um deles e sucessivamente, com o expresso intuito de se apoderarem de tal veículo, que diariamente utilizaram, integrando-o e detendo-o no seu património,
10. Não obstante saberem que o mesmo havia sido obtido ilicitamente, porque subtraído a CC (expressamente identificada, diga-se, no mencionado Documento Único Automóvel).
11. Cada um dos arguidos atuou com o expresso intuito, concretizado, de, porquanto o pretendia deter e utilizar, fazer suas as vantagens patrimoniais obtidas, o que lograram.
12. Os arguidos, querendo agir como agiram, sabiam que aquele bem lhes não pertencia, que atuavam contra a vontade, e em prejuízo, da sua legítima proprietária, a quem havia sido ilicitamente subtraído, mais sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
13. O arguido AA integra agregado familiar constituído, além de si, pela sua companheira e três filhos menores, com 17, 14 e 01 anos de idade.
14. Tem ainda um filho mais velho, já autónomo, com quem mantém boa relação e ainda um outro de anterior relação, com quem também mantém contacto.
15. O arguido AA aufere a quantia mensal de €600,00 a título de RSI e recebe a quantia de €160,00 mensais do abono dos filhos menores.
16. O arguido AA não revela hábitos de trabalho consistentes, encontrando-se desinserido laboralmente, subsistindo há anos com base nos apoios sociais atribuídos ao agregado.
17. Concluiu apenas o 1.º ciclo, em idade adulta.
18. O arguido BB reside em casa dos seus pais, cujo agregado é composto, além destes e daquele, da sua esposa e de uma criança de 04 anos.
19. Tem, além da referida em 18), quatro filhos, de 23, 20, 13 e 10 anos de idade, que residem com a mãe, cujo sustento não se encontra a ser assegurado pelo arguido.
20. O arguido BB encontra-se, atualmente, desempregado e é beneficiário de RSI, recebendo a quantia mensal de cerca de €174,00, acrescido de €200,00 mensais de abono da criança, tendo declarado auferir ainda a quantia média mensal de €350,00 de vendas porta a porta.
21. Contribui com cerca de € 150,00 mensais para as despesas da casa, recebendo bens alimentares de uma instituição de solidariedade social.
22. O arguido BB não tem registo de antecedentes criminais.
23. O arguido AA tem registo dos seguintes antecedentes criminais:
A. Foi julgado no Proc. n.º 676/92, que correu termos pelo extinto 2.º Juízo, 3.ª Secção do Tribunal Judicial de Matosinhos, pela prática em 11.03.1992 de um crime de tráfico de estupefacientes e condenado na pena de 07 anos e 06 meses de prisão, por acórdão proferido em 25.11.1992, transitado em julgado;
B. Foi julgado no Proc. n.º 258/99, que correu termos pelo extinto Tribunal Judicial da Póvoa de Lanhoso, pela prática em 23.07.1999 de um crime de condução perigosa e um crime de uso de arma proibida e condenado na pena única de 15 meses de prisão, por acórdão proferido em 06.03.2000, transitado em julgado;
C. Foi julgado no Proc. n.º 173/99, que correu termos pelo extinto 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Matosinhos, pela prática em 23.03.1998 de um crime de burla e condenado na pena de 15 meses de prisão, tendo sido condenado um ano sob a condição resolutiva de pagar indemnização ao ofendido, por acórdão proferido em 28.09.2000, transitado em julgado em 13.10.2000. Foi aqui efetuado cúmulo com o processo aludido em B) e aplicada a pena única de 20 meses de prisão, sendo perdoado um ano sob aquela condição, entretanto revogado em 19.09.2002 e extinta a pena em 16.06.2006;
D. Foi julgado no Proc. n.º 359/98, que correu termos pelo extinto 3.º Juízo do Tribunal Judicial do Porto, pela prática em 06.03.1997 de um crime de detenção de arma proibida e condenado na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 400$00, por sentença proferida em 12.10.2000, transitada em julgado em 03.11.2000;
E. Foi julgado no Proc.n.º8466/00.2TDPRT, que correu termos pelo extinto 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial do Porto, pela prática em 15.04.2000 de um crime de desobediência e condenado na pena de 120 dias de prisão, substituída por igual tempo de multa à taxa diária de € 2,00, por sentença proferida em 22.01.2004, transitada em julgado em 06.02.2004, extinta em 11.05.2004;
F. Foi julgado no Proc. n.º 53/09.6JDLSB, que correu termos pelo extinto Tribunal Judicial de Benavente, pela prática em 13.01.2009 de um crime de sequestro, um crime de detenção de arma proibida e um crime de roubo, e condenado na pena única de 10 anos de prisão, por acórdão proferido em 17.12.2009, transitado em julgado em 14.06.2010;
G. Foi julgado no Proc. n.º 800/08.3PFSXL, que correu termos pelo extinto 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial do Seixal, pela prática em 13.07.2008 de um crime de furto qualificado, na forma tentada e condenado na pena de 01 ano e 08 meses de prisão, por sentença proferida em 05.12.2011, transitada em julgado em 17.01.2012, tendo aqui sido efetuado cúmulo com a pena aplicada no processo aludido em F) e aplicada a pena única de 11 anos de prisão;
24. Foi concedida ao arguido AA liberdade condicional no Proc.n.º5691/10.1TXLSB-A por decisão de 11.05.2017, transitada em julgado em 12.06.2017, pelo tempo de prisão que, a contar da sua libertação, lhe faltaria cumprir, ou seja, até 12.01.2020, por referência ao processo aludido em 23) G).

Factos Não Provados:
Não se provou:
A. Que no circunstancialismo de 4) supra, o arguido AA tenha depositado o veículo na sua residência e que a frequência da sua utilização por si tenha sido diária.

III. Motivação quanto à matéria de facto:
[1] O Tribunal fundou a sua convicção na totalidade dos meios de prova produzidos em sede de audiência de julgamento e nos documentos juntos aos autos, avaliados à luz da experiência comum.
[2] Foram relevantes, então, os documentos:
[3] - De fls.2/3 [auto de notícia, referente ao furto da residência de CC do veículo automóvel supra identificado nas circunstâncias supra provadas em 1) e 2), teor esse confirmado pelo depoimento daquela, que se nos afigurou digno de credibilidade e que, pese embora não nos permita ter um vislumbre da identidade de quem cometeu o ilícito ali descrito, sempre já possibilita a afirmação de que o veículo foi subtraído ilicitamente, ou seja, contra a sua vontade e através de furto];
[4] - De fls.33/34 (auto de reportagem fotográfica incidente sobre a propriedade da ofendida e de onde, segundo a própria descreveu, com foros de seriedade, foi subtraído veículo pertença sua. Com efeito, dali se afere que se trata de um muro que, sem esforço adicional, não permite o vislumbre para o seu interior, no entanto, desde que haja tal esforço – e quem furta, como é da experiência comum, assim age, vencendo a normal resistência de portas fechadas ou muros altos – é possível aferir da existência, designadamente, de um veículo no interior do espaço da residência da ofendida, apetecível porquanto com a chave na ignição e aberto, não se percecionando o alcance da referência por parte da Defesa do arguido AA de que, porque o muro era alto, não seria plausível que alguém reparasse na existência do veículo, o que, como vimos, e reconhecendo credibilidade à ofendida, sucedeu);
[5] - De fls.42 [aditamento a auto referente a um avistamento do veículo supra aludido em 1) em 13.08.2019, em ..., Abrantes, ocupado por dois indivíduos de identidade não concretamente apurada];
[6] - De fls.49 e 50 a 53 [aditamento e reportagem fotográfica de onde se vislumbra o veículo que a ofendida reconheceu como sendo o seu e onde é possível ver um indivíduo do sexo masculino de identidade não concretamente apurada como seu condutor];
[7] - De fls.54/55 (extrato de movimentos referentes a passagens em portagens da Ascendi e Brisa, não pagas, pelo veículo em causa, durante o mês de outubro de 2019, todas referentes à área entre ..., ..., Via ..., no caso de fls.54; e, no de fls.55, com relevo, a passagem com entrada em ... e saída em ..., no dia 05.08.2019, e de 12.08.2019 a 24.09.2019 a circulação pela zona de ..., ..., ..., ..., ... e ..., compatível com a área de residência do arguido AA, sendo plausível a sua utilização por este);
[8] - De fls.60 (aditamento a auto n.º13, que dá nota, com sentido consentâneo com as declarações do arguido BB e com o depoimento da testemunha DD, de que o veículo em causa foi interveniente em acidente de viação no Porto em 25.01.2020, em que foi interveniente aquele arguido e que este revelou ao agente que vimos de referir, quando interpelado, que sabia que o veículo pertencia a uma senhora de Espinho e que tinha sido vendido por indivíduo que afirmou conhecer, mas não querer identificar, o que contraria o que o arguido disse no início das suas declarações em sede de audiência de julgamento, pois ali afirmou que não o conhecia previamente);
[9] - De fls.62 (auto de apreensão do veículo em causa e ainda do documento único automóvel, da chave, da ficha de inspeção e da apólice do seguro titulada pelo arguido BB);
[10] - De fls.67/68 (extrato de passagens em portagem da Ascendi, não pagas, em 02.12.2019 e 05 a 08 e 27 e 29.01 e 07.02.2020, já quando o veículo estava na posse do arguido BB);
[11] - De fls.75/76 (apólice de seguro na “Seguros B...”, em que é titular o aqui arguido BB, com validade entre 07.10.2019 e 06.01.2020);
[12] - De fls.78 (apólice de seguro na Companhia de Seguros A..., sobre o mesmo veículo, em que é titular o arguido AA, com validade entre 06.09.2019 e 01.10.2019. Com efeito, tal período é pequeno, no entanto, tal não é suficiente para concluir, como o faz a Defesa do arguido AA, que este fazia da venda de automóveis sua profissão e que, por isso, contrataria seguros com tão pouca duração; e assim é pois, desde logo, não resulta dos autos, concretamente, do relatório social que aquele tivesse essa concreta ocupação);
[13] - De fls.80 (consulta de histórico de seguros referentes ao veículo aqui em causa, de onde resulta que o arguido AA foi titular de seguro sobre aquele de 06.09.2019 a 24.09.2019 e o arguido BB de 07.10.2019 a 09.01.2020, constando apenas mais uma pessoa como titular de seguro sobre o veículo que é bem a sua legítima proprietária CC);
[14] - De fls.263 a 268 e 269 (CRC dos arguidos);
[15] - De fls.292 (informação da companhia de seguros no sentido de que a Seguros B... não solicita documentação, designadamente, referente à propriedade do veículo, aquando da contratação do seguro);
[16] - De fls.294 (informação no sentido de que a A... não obriga ao preenchimento de proposta inicial, não havendo registo de documentos para a realização do contrato, porquanto – acrescentam a fls.300 – não obriga à entrega dos documentos da viatura, o que se afigura relevante porquanto o arguido BB aludiu a tal facto dizendo que procurou as seguradoras que não exigiam documentação, o que adensa a convicção de que teria conhecimento da proveniência ilícita do veículo, senão porque teria esse cuidado ao invés de contratar com uma companhia de seguros que não exigisse, designadamente, o registo da titularidade do veículo segurado? Ser-lhe-ia indiferente, certamente).
[17] - O relatório social c/ a ref.ª n.º13865820, de onde se extraem os factos provados de 13) a 17).
[18] Em complemento e conjugação com os documentos que vimos de elencar, foram relevantes as declarações do arguido BB e os depoimentos das testemunhas EE, FF, DD, CC e GG.
[19] O arguido BB relatou que colocou um veículo seu à venda e que foi contactado por alguém que se identificou como AA dizendo-lhe que, por seu turno, tinha uma viatura para dar à troca e ainda lhe dava mais algum dinheiro, acrescentando que achou um bom negócio e que marcaram encontro no ... shopping e ali fizeram o negócio.
[20] Com relevo, referiu ainda que o AA ficou de lhe enviar a documentação do veículo e que nunca mais o fez.
[21] Concretizando, referiu que tinha um BMW 520 para vender, de 2000, referindo não se recordar do valor, mas que o deu à troca e ainda recebeu, além do veículo pertencente a CC, mais € 1.800,00 ou € 2.800,00.
[22] Reconheceu – aliás, o documento de fls.80 não lhe permitiria dizer algo diverso – que o veículo que recebeu tinha uma senhora como tomadora do seguro.
[23] Referiu, ainda, que não conhecia o seu interlocutor no negócio antes.
[24] Quanto ao contrato de seguro, referiu, com interesse, que fez pela “Seguros B...”, não sendo necessária ou a presença do proprietário ou qualquer documento deste e disse que «naqueles seguros» assim é porque noutras seguradoras, de que cita o exemplo da Tranquilidade, não dá, o que denota que o arguido pretendeu celebrar o respetivo contrato em companhia que não lhe exigisse documento da titularidade da propriedade ou outro que justificasse a sua posse, o que adensa a convicção de que teria conhecimento que a proveniência da viatura não seria lícita e que teria, efetivamente, sido furtado ou teria ido parar às mãos do coarguido mercê da prática de crime contra o património.
[25] Tal conhecimento decorre ainda da circunstância de referir que andou 09 meses sem receber a declaração de venda do veículo porque se «sentiu burlado», acrescentando, contudo, que não apresentou queixa.
[26] Ora, se esse foi o seu sentimento porque não apresentou queixa?
[27] Num primeiro momento, referiu não saber explicar o porquê, mas, posteriormente, acrescentou que lhe contaram – concretizando, ao dizer que foi um familiar seu de Lisboa – que o AA era uma pessoa complicada e que não quis entrar em confusões com ele, o que muito se estranha porque, lá atrás, tinha referido não o conhecer previamente e, se ambos eram da mesma etnia – como admitiu – o mais provável era que, caso não se conhecessem previamente, tirasse informações sobre uma pessoa que não conhecia e com a qual iria fazer um negócio – especialmente, quando esta era da zona de Lisboa onde, cfr o arguido BB admitiu, tinha familiares, um dos quais, lhe disse que o AA era complicado.
[28] De modo não convincente, porquanto não consentâneo com as regras da experiência comum, referiu que não o fez em momento prévio ao negócio; ademais, referiu que já comprou outros veículos antes e que sempre houve transmissão no ato dos documentos inerentes à venda, mas que, desta vez, confiou no seu interlocutor, exceção que muito se estranha porquanto, cfr o próprio o referiu no início da prestação das suas declarações, não o conhecia antes.
[29] Referiu também que nunca contactou a proprietária do veículo para conseguir o documento para não entrar em confusões com o AA, o que, igualmente, se estranha, pois a sua afirmação tem implícito o conhecimento ou, pelo menos, a possibilidade de conhecimento e consequente localização da proprietária, o que adensa a convicção de que este arguido saberia da proveniência, ao menos, geográfica, do veículo.
[30] Mais referiu que utilizava a viatura no seu dia-a-dia e que, inclusive, chegou a passar por algumas portagens sem pagar, justificando que o fez para prejudicar o AA, o que não se alcança pois aquele admitiu saber que no documento do veículo constava outra pessoa, de Espinho.
[31] Ainda referiu que entre o primeiro contacto e o encontro onde se concretizou a venda, não terão passado mais do que dois dias e que já ao telefone o AA lhe disse que era da zona de Lisboa, tendo ali e logo percebido também que era da etnia cigana.
[32] No mais prestou declarações quanto às suas condições socioeconómicas com aparência verosímil, o que permitiu a prova dos facos de 18) a 21).
[33] EE é agente da PSP que elaborou o auto de fls.2 referente ao furto da viatura, confirmando o seu teor, descrevendo a situação em sentido consentâneo com o respetivo teor e o depoimento de CC, proprietária do veículo.
[34] FF é agente da PSP em Tomar desde 2007 e referiu-se à situação em que o veículo foi avistado naquela zona, onde estavam três indivíduos, de etnia romani, na casa dos 40 anos de idade.
[35] Mais não sabe referir, designadamente, identificar os aqui arguidos.
[36] DD é agente da PSP que exerceu funções na investigação criminal aludindo a uma série de acontecimentos que se prolongaram no tempo, porquanto o veículo continuou a circular com a própria matrícula.
[37] Acrescentou que no dia do furto, o veículo em causa fez um abastecimento na estação de serviço da ..., de Espinho, não se tendo conseguido identificar o indivíduo seu condutor.
[38] Mais alude a ocorrências em Abrantes e Tomar, à passagem por várias portagens e à intervenção em acidente de viação no Porto, já na mão do arguido BB, a cuja residência se deslocou e referiu, com foros de seriedade, assim confirmando o aditamento n.º13 supra elencado, que este lhe disse que tinha adquirido a viatura a um amigo que não quis identificar, o que, além das contradições per se nas declarações do arguido BB, o contraria totalmente quanto à sua afirmação de que não conhecia o arguido AA anteriormente.
[39] Acrescenta que o arguido BB, à data, lhe disse que o veículo pertencia a uma senhora de Espinho, o que denota conhecimento de que o veículo não pertencia a quem lho “vendeu” e faz emergir a convicção de que este arguido admitiu a ideia de que o veículo poderia ser furtado ou adquirido por maneira ilegítima (quer, caso não conhecesse previamente o arguido AA através das circunstâncias apuradas supra, quer, caso o conhecesse, sendo sabedor do currículo criminal deste).
[40] CC relatou o furto em sentido consentâneo com o teor do auto de fls.2, nada mais sabendo adiantar quanto à autoria pelos arguidos ou de quem quer que seja do referido furto.
[41] Com relevo, referiu que deixou a carteira e o documento único automóvel no tablier e tinha deixado uma das chaves na ignição.
[42] Ao contrário do relatado pelo arguido BB para justificar que o negócio celebrado foi vantajoso, referiu que, após recuperar o veículo, o vendeu por €600,00, sendo que, mesmo com algum dano adveniente do acidente, nunca, à data do furto, valeria os € 3.500,00 a que o arguido BB aludiu como sendo o seu valor.
[43] Ora, se o valor de venda anunciado do seu BMW foi, como o próprio disse, de €5.000,00, ao receber €1.800,00 e um veículo que veio a valer pouco tempo depois €600,00 em troca do seu veículo (a que fez corresponder o preço de €5.000,00), não se pode considerar que o negócio tenha sido vantajoso ou atrativo em termos patrimoniais, pelo que é outro argumento no sentido de se concluir que o arguido BB teria conhecimento da proveniência ilícita do bem em causa, não oferecendo credibilidade a versão contada por este.
[44] GG é testemunha abonatória do arguido BB e seu vizinho, descrevendo-o como respeitado e trabalhador bem como cuidador e amigo dos pais, fazendo sacrifícios para ajudar os pais, com quem vive.
[45] Por fim, quanto à factualidade não provada, além do que fomos referindo, assim resultou da ausência de prova em sentido contrário.

IV. Enquadramento Jurídico-penal:
Feito o enquadramento fáctico, importa, agora, proceder ao enquadramento jurídico-penal.
Vêm os arguidos acusados da prática, em coautoria material, e na forma consumada, de um crime de recetação, p. e p. pelo art.º231.º, n.º1 do Código Penal.
Preceitua o n.º1 deste normativo que “quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa ou animal que foi obtido por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.”
Com relevo, plasma o seu n.º2 que “quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa ou animal que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias.”
“A norma posta no nº 1 contém o tipo fundamental da recetação, que consiste em o agente estabelecer, através das várias modalidades de ação descritas, uma relação patrimonial com uma coisa obtida por outrem mediante um facto criminalmente ilícito contra o património, sendo a conduta guiada pela intenção de alcançar, para si ou para terceiro, uma vantagem patrimonial. O conteúdo do ilícito reside, pois, na perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica” – Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 475.
Quanto ao n.º 2, o legislador visou aqui punir “aquele que adquire ou recebe uma coisa que, por força de certas características (qualidade, preço ou condição do transmitente), faz razoavelmente suspeitar de que provém de facto ilícito típico contra o património, sempre que o agente, nessas circunstâncias, não se tenha assegurado da legítima proveniência da coisa” – autor e obra citados, pág. 486.
A nível subjetivo, ambos os dispositivos exigem o dolo do agente, mas enquanto o n.°1 do art.º231.° exige um dolo específico relativamente à proveniência da coisa, no sentido de o agente saber que a coisa provém de um facto ilícito contra o património (não tendo, contudo, de saber quais as concretas condições em que o facto referencial foi praticado ou a concreta qualificação jurídica do crime através do qual o bem objeto da recetação veio à sua posse), e à intenção de obter uma vantagem patrimonial para si ou para terceiros, no n.º2, o agente admite a possibilidade de a coisa ter tal origem e conforma-se com ela, não se assegurando da sua proveniência legítima.
Ora, vejamos o que nos diz a factualidade supra acolhida como provada quanto à qualificação jurídica da conduta de cada um dos arguidos.
Quanto ao arguido AA, resulta da prova produzida que em data posterior, mas próxima à data do furto da viatura, celebrou contrato de seguro atinente ao veículo em causa, mais dela resultando que não era este o titular do direito de propriedade sobre o mesmo; assim resulta, desde logo, das declarações do seu coarguido que admitiu saber, desde a data do negócio celebrado com aquele, que o nome que constava do documento único automóvel do veículo em causa era de uma senhora de Espinho.
Ademais, as circunstâncias e o momento temporal em que o veículo foi transmitido pelo arguido AA ao arguido BB, a que acresce a ausência de prova de que se dedicava à venda de veículos automóveis (quer nos autos, quer pelo coarguido BB), contribuem para a convicção de que, das duas uma, ou o arguido AA foi interveniente no próprio furto – o que, contudo, não se logrou aqui apurar – ou terá tido conhecimento de que o veículo adveio de um furto ou de um qualquer outro crime contra o património, pois, mal pôde, apartou-se do veículo, transmitindo-o a uma outra pessoa, bem sabendo que não era o seu proprietário.
Tal convicção não é afastada pela circunstância de o arguido AA nunca ter comparecido em julgamento de modo a poder ser pessoalmente identificado pelo coarguido pois não só o interlocutor deste se identificou por tal nome, o próprio arguido BB recolheu informações sobre ele através de terceiro de Lisboa, onde AA vive e é conhecido, ou seja, acabou por identificá-lo (caso acreditássemos que o não conhecia já!), e este tinha, afinal, em seu poder documentos do veículo onde figurava o nome de CC e do seguro em seu nome.
Portanto, cremos estarem verificados todos os pressupostos típicos objetivos deste tipo de crime, por referência ao n.º1 do preceito quanto a este arguido, bem como o dolo específico relativo à proveniência da coisa, porquanto o seu nome é o primeiro que consta como tomador do seguro sobre o veículo em causa em data próxima à do furto.
Cometeu, então, o arguido AA o crime nos moldes por que vinha acusado. Quanto ao arguido BB, idêntico caminho trilharemos.
Apurou-se que este adquiriu o veículo fruto de um furto ao arguido AA, mais resultando da análise dos meios de prova aqui produzidos que não só os arguidos se conheciam anteriormente ao “negócio” – embora o arguido BB o tenha negado a início, mas se tenha concluído pelo contrário do depoimento de DD – como decorre das suas declarações uma concreta e propositada conduta no sentido de encontrar uma companhia seguradora que não fosse exigente quanto à documentação necessária, designadamente, ao nível de documentos do proprietário do veículo a segurar.
Ora, caso este ignorasse a proveniência ilícita (de crime contra o património) do veículo que lhe estavam a propor adquirir porquê agir dessa forma, que é sinónimo de conduta com vista a facilitar a celebração de um contrato de seguro e, assim, pelo menos, aparentemente, circular com maior impunidade?
Emerge, assim, o dolo necessário quanto ao conhecimento da proveniência do veículo como advinda da prática de crime contra o património, in casu, furto; afirma-se, igualmente, a intenção de obter vantagem patrimonial para si ao adquirir a viatura naquelas condições mais vantajosas.
Pelo exposto, e não havendo elementos que excluam a ilicitude ou a culpa, conclui-se que também este arguido cometeu o crime nos moldes e qualificação jurídica por que vinha acusado.
O único reparo a fazer à qualificação jurídica é no que tange à autoria, pois do que resultou provado emerge a autoria individual, paralela, de ambos os arguidos e não a coautoria, pois, a coautoria sempre há de inferir-se de uma consciência e vontade prática de cooperação naquilo que fez de per si e com os outros, seu elemento subjetivo, mas, ainda, da adoção do resultado conjunto, enquanto elemento objetivo, o que aqui não emerge, antes se verificando autoria paralela ou concomitante.

V. Da determinação da sanção:
A conduta dos arguidos é, em moldes abstratos, punida com pena de multa de 10 a 600 dias ou com pena de prisão de 01 mês até 05 anos.
Por seu turno, e em homenagem ao princípio da subsidiariedade da intervenção penal, estabelece o art.º70.º do CP que, sendo aplicáveis, em alternativa duas penas principais (uma delas privativa e outra não privativa da liberdade), “o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
E como a aplicação de uma pena tem por objetivo a proteção dos bens jurídicos ínsitos na norma e a reintegração (vide art.º40.º do CP), dir-se-á que serão considerações de prevenção (geral e especial) a decidir da possibilidade de fazer prevalecer, in casu, uma ou outra.
Como atalha Figueiredo Dias, in “As consequências jurídicas do crime”, Aequitas, p.215, “através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.”
Fernanda Palma, (Jornadas sobre a revisão do Código Penal, AAFDL, 1998, pág. 35), refere que “a decisão sobre a pena pressupõe uma relação não linear entre a pena e a prevenção do crime, em que na avaliação do efeito de desmotivação se pondera também a igualdade e a responsabilidade da sociedade na crimogénese. (...) A medida da igualdade e da justiça no que respeita à censura do comportamento criminoso só pode radicar no conhecimento da pessoa e na sua compreensão”, isto é, a censura penal tem de atender ao agente concreto do crime e às suas circunstâncias envolventes.
Vejamos, então:
Têm-se aqui por elevadas as exigências de prevenção geral pois estamos perante um tipo legal de crime violador de direitos patrimoniais que anda associado a outros, especialmente e como é o caso dos autos, crimes contra o património, v.g. roubos e furtos, que acabam por se inserir numa cadeia criminosa complexa em que a via pela qual a recetação é cometida é o ato subsequente ao crime de furto ou de roubo e que, simultaneamente, torna mais difícil a descoberta dos autores dos crimes contra o património e propiciam a degradação e até desaparecimento do produto desses crimes.
Trata-se de conduta com alguma recorrência que importa combater, o que se fará, também, por via da ressonância social desta sentença.
Por seu turno, o grau das exigências de prevenção especial é diverso consoante os arguidos, sendo elevado no que respeita ao arguido AA, que conta já com 07 antecedentes criminais, sendo que, ainda que nenhum deles o seja em concreto pela prática do mesmo tipo legal aqui em causa, 03 deles são por crimes contra o património (roubo, furto qualificado e burla), que constituem o ponto de partida conceptual do tipo legal da recetação.
Quanto ao arguido BB, o grau é baixo porquanto não tem registo de antecedentes criminais, mas não é diminuto pois durante largos meses dispôs de um objeto que sabia não ser seu tendo admitido a sua proveniência nos moldes supra expostos, pelo que, pese embora a carência de ressocialização ser inferior à do coarguido, sempre demanda algum cuidado e investimento.
Assim, estamos em crer que a opção por uma pena não privativa da liberdade será ainda adequada ao caso concreto e consentânea com a realização das finalidades da punição quanto a este arguido, já não o sendo quanto ao arguido AA.

A. Da medida de pena concreta a aplicar ao arguido:
Cumpre, então, aferir da medida da pena concreta a aplicar aos arguidos.
Serão, então, a culpa e a prevenção os dois termos do binómio com que se há-de construir o modelo da medida da pena, havendo de temperá-los com as demais circunstâncias que rodearam o cometimento do crime por que vem a arguida acusada (art.º71.º, n.º2 do Código Penal).
Nos termos do art.º71.º, n.º1 CP, a determinação da medida da pena é efetuada em razão da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes.
Para tanto, e cfr. estabelece o n.º2 do referido artigo, deverão ainda ser consideradas todas as circunstâncias gerais que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, em particular o grau da ilicitude do facto, o modo de execução deste, a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, os fins ou motivos que determinaram o crime e a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime, bem como as condições pessoais do agente e a sua situação económica.
Para avaliar da medida da pena no caso concreto, a Prof.ª Anabela Miranda Rodrigues, in A determinação da pena privativa da liberdade, Coimbra Editora, 1995, pág.658 e seg.s, entende que há que indagar fatores que se prendem com o facto praticado e com a personalidade do agente que o cometeu.
Como fatores atinentes ao facto e por forma a efetuar-se uma graduação da ilicitude do facto, podem referir-se ao modo de execução deste, o grau de ilicitude e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, o grau de perigo criado e o seu modo de execução.
Para a medida da pena e da culpa, o legislador considera como relevantes os sentimentos manifestados na preparação do crime, os fins ou os motivos que o determinaram, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, as circunstâncias de motivação interna e os estímulos externos.
Assim, neste caso, e como fatores de graduação da pena importa considerar:
- As especiais necessidades de prevenção no que se refere a este tipo legal de crime em concreto, por forma a evitar a lesão de bens jurídicos particularmente caros à sociedade, como sejam o património e demais direitos patrimoniais e, ainda que reflexamente, também a segurança jurídica.
- A imagem global do facto, de relevância.
- O registo de 07 antecedentes criminais, três deles por crimes contra o património (roubo, furto qualificado e burla) por parte do arguido AA.
- A ausência de hábitos de trabalho consistentes do arguido AA.
- O dolo dos arguidos foi de alguma intensidade, porque necessário e específico cfr a norma o exige.
- A postura em audiência do arguido BB, sinónimo da necessidade de interiorização convincente do desvalor da conduta.
- A circunstância de o arguido AA ter praticado este crime quando em situação de liberdade condicional.
Em seu benefício:
- O facto de ambos os arguidos estarem familiarmente integrados.
- A circunstância de o arguido BB ter alguns hábitos de trabalho e de não ter registo de antecedentes criminais.
Ponderadas todas estas circunstâncias, entende este Tribunal por adequada pela prática do crime de recetação a pena de 02 anos e 06 meses de prisão ao arguido AA e a de 250 dias de multa ao arguido BB.
No que respeita ao quantitativo diário da pena de multa, este é fixado pelo Tribunal em função da situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais, único critério que a lei impõe na fixação deste montante diário, no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, sendo que, nos termos desta disposição legal “(...) cada dia de multa corresponde a uma quantia entre €:5,00 e €: 500,00.”
A tais critérios, acrescenta a jurisprudência, de forma unânime, que a aplicação de uma pena de multa não pode consistir numa forma disfarçada de dispensa da pena ou mesmo de absolvição, mas, antes, tem que constituir um verdadeiro e real sacrifício para o condenado, ainda que, tendo em consideração o mínimo necessário e indispensável à satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar (cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.10.1997, in Coletânea da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, ano V, tomo 3, página 183).
Assim, e levando em consideração o apurado quanto às condições socioeconómicas do arguido BB, entende o Tribunal adequado fixar-lhe a taxa diária em € 6,00.

A. Da possibilidade de aplicação de pena de substituição quanto ao arguido AA:
Impõe-se determinar se é caso de optar por pena de substituição. É tendo em vista a ideia de prevenção especial (finalidade de socialização), aliada à expectativa razoável de que a pena de substituição ainda pode ser eficaz relativamente ao comportamento futuro dos arguidos, que se justifica a sua escolha, na medida em que a mesma ainda se mostre suficiente não só para evitar que o arguido reincida (dissuadir o agente da prática de novos crimes), como também para satisfazer aquele limiar mínimo da prevenção geral da defesa do ordenamento jurídico.
E desde logo, em face da medida concreta da pena aplicada ao arguido AA, já não se afigura como abstratamente passível de ser substituída por pena de multa ou por prestação de trabalho a favor da comunidade.
Resta-nos, então, a aferição da possibilidade de suspensão da sua execução.
Preceitua o art.º50.º n.º1 do diploma legal que vimos citando que “o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Este preceito consagra um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos. Para este efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena serão paliativos suficientes para o afastar provavelmente da prática de novos crimes, mediante um processo de renovação de um projeto de vida compatível com o respeito, que é seu dever, pelos valores cuja ofensa integra crimes, e com a possibilidade, como é seu interesse, de uma realização pessoal e comunitária positiva.
Este juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido pode assentar numa expectativa razoável (imbuída de um risco prudente) de que a simples ameaça da pena de prisão será suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização (em liberdade) do arguido, ou dito de outro modo, a suspensão da execução da pena “deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime” – vide acórdão do STJ, de 25/05/2001, P.º 01P1092, in http://www.dgsi.pt.
In casu, estamos perante um arguido que tem já um longo e expressivo registo de antecedentes criminais, pautado pela prática de vários crimes contra o património, de detenção de arma proibida e com ligações ao tráfico de estupefacientes, que, apesar de se encontrar familiarmente inserido, não perpetua tal inserção, desde logo, ao nível laboral, resultando, claramente, do relatório social feito a seu respeito que «não revela hábitos de trabalho consistentes, encontrando-se desinserido laboralmente», mais dali resultando que a prática dos factos em discussão neste processo terá «ocorrido no decurso do cumprimento da liberdade condicional, o que é indiciador da não interiorização do desvalor das suas condutas anteriores e atuais».
Ora, cfr resulta do facto provado em 24) em conjugação com as datas constantes dos factos provados em 3) e 4) assim é. E, sendo-o, a conclusão do juízo de prognose a ser feito nesta sede é, clara e infelizmente, negativa, não existindo terreno fértil para se concluir que a mera ameaça de pena de prisão seja ainda suficiente para que este se mantenha e siga doravante os trilhos do Direito.
Pelo exposto, não se suspenderá a execução da pena de prisão ora aplicada, não sendo, igualmente, possível, atenta a moldura concreta da mesma, cogitar o seu cumprimento em regime de permanência na habitação, a qual, ademais e caso fosse possível, sempre, em concreto, não acautelaria as finalidades da presente punição.

VI. Dispositivo:
Pelo exposto, decide o Tribunal:
1. CONDENAR O ARGUIDO AA PELA PRÁTICA DE UM CRIME DE RECETAÇÃO, EM AUTORIA MATERIAL E NA FORMA CONSUMADA, NOS TERMOS DO N.º1 DO ART.º231.º DO CÓDIGO PENAL, NA PENA DE 02 ANOS E 06 MESES DE PRISÃO.
2. CONDENAR O ARGUIDO BB, EM AUTORIA MATERIAL, NA FORMA CONSUMADA, NOS TERMOS DO ART.º231.º, N.º1 DO CÓDIGO PENAL, NA PENA DE 250 DIAS DE MULTA, À TAXA DIÁRIA DE € 6,00;
3. CONDENAR AMBOS OS ARGUIDOS NO PAGAMENTO DAS CUSTAS DO PROCESSO, FIXANDO- SE A TAXA DE JUSTIÇA, PARA CADA UM, EM DUAS (02) UC;
* * * * *

3. O recorrente verbera a esta decisão (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado):
«1. Não lhe foi dada a possibilidade de ser ouvido em audiência de julgamento, queria contraditar a prova produzida em audiência e queria apresentar a sua versão e responder às questões que lhe fossem formuladas.
2. Invocando a sua incapacidade económica, requereu a sua participação no julgamento por videoconferência — o que lhe foi negado com a justificação de que a lei o não permite (quando a jurisprudência, dos vários Tribunais das Relações, refere a prática da audição de arguidos pelo sistema de videoconferência durante a audiência de julgamento).
3. O Tribunal tinha o dever de lhe garantir o direito a um processo equitativo consagrado no nº 4 do artigo 20º da nossa Constituição e no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (vinculativa pelos artigos 8º e 16º da CRP e Lei 65/78).
4. No caso presente, o arguido não pôde (por razões económicas) estar presente na audiência de julgamento e foi-lhe negado a requerida audiência por meio do sistema de videovigilância pelo que não lhe foi garantido um processo equitativo onde pudesse invocar as suas razões, controlar as provas produzidas na audiência de julgamento, exercer o contraditório e pronunciar-se sobre os factos e sobre os vários depoimentos
5. E isso não é uma simples irregularidade pois é o Estado que tem de garantir permanentemente que o processo seja sempre equitativo — o seu incumprimento constitui a violação de um direito fundamental e é insanável, impondo-se a nulidade dos actos posteriores e a repetição do processo justo e equitativo
6. Os factos constantes dos números 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12 da matéria de facto provada não estão apoiados em qualquer prova efectiva e devem ser eliminados, nos termos que acima foram explanados e que aqui se dão por reproduzidos.
7. Não existe qualquer prova contra o arguido AA, limitando-se a douta sentença a especular sobre o que poderia ter sido (mas não se sabe se foi).
8. Quer o Mº Pº na acusação, quer o tribunal na sentença assentam tudo num pressuposto errado — só é possível contratar um seguro automóvel na qualidade de proprietário do veículo — concluindo, apenas por isso, o dolo na receptação
9. O que é absolutamente falso pois qualquer pessoa pode contratar um seguro automóvel desde que seja condutor e queira transferir a responsabilidade civil do automóvel (é a prática habitual de qualquer vendedor de carros usados que adquire licitamente um carro usado, mas não regista a propriedade do mesmo pois o número de proprietários registados influencia e desvaloriza o valor comercial do veículo).
10. O arguido AA foi condenado apenas pelo seu registo criminal (e não pelos actos concretamente praticados e provados em julgamento).
11. Neste caso concreto, não se provou nem o dolo específico ou directo, nem o dolo eventual, culposo ou negligente. Com efeito, Não existe qualquer prova de que o arguido AA sabia da proveniência do veículo como tendo sido furtado — desconhece-se em absoluto em que circunstâncias o veículo foi parar a Lisboa, um mês depois, e entrou na posse do AA, pelo que não se pode aplicar o nº 1 do artigo 231º por ausência de dolo específico. E também não se pode dar como provado que o arguido AA tinha a obrigação de suspeitar da origem criminosa do veículo (não se sabe quem foi o disponente, sua condição, o preço proposto e demais circunstâncias que pudessem apontar para uma suspeita fundada), pelo que não se pode aplicar o nº 2 do artigo 231º por ausência de dolo eventual
12. Os arguidos foram tratados de forma muito desigual, apesar de, na ótica do tribunal, terem praticado os mesmos actos: o AA é punido com 2 anos e seis meses de prisão e o BB com 250 dias de multa, à taxa diária de 6 meses — o que constitui um incompreensível tratamento desigual (que o registo criminal não pode justificar, até porque nunca foi condenado por receptação).

Termos em que deve ser provido o presente recurso e o arguido absolvido do crime.»


4. Em resposta, concluiu o Ministério Público junto da 1.ª instância:
«1) Quanto à omissão de audição por videoconferência, o arguido AA vem insurgir-se contra uma questão apreciada e indeferida por despacho de 16- 11-2022, não tendo merecido reação por via de recurso no prazo legal, pelo que a invocação de tal questão em sede de recurso da decisão final é extemporânea, devendo o recurso deve ser rejeitado nesta parte – cf. artigos 411.º, n.º 1, alínea a), e 420.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
2) Sem prejuízo do que antecede, o arguido não lançou mão do disposto no artigo 332.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, nem no artigo 333.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
3) Assim, a omissão da audição do arguido deve-se exclusivamente a si, pois entendeu não fazer uso dos mecanismos processuais previstos na lei para o efeito, pelo que não ocorreu, por parte do Tribunal, qualquer violação de direito de defesa, nem violação do direito a processo equitativo, nos termos do disposto no artigo 20.º, nº 4, da nossa Constituição da República Portuguesa, e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
4) No que se refere à impugnação da matéria de facto dada como provada nos pontos 4, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, o recurso não cumpre os ónus previstos no artigo 412.º, n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal, pelo que o Tribunal superior não tem de conhecer o recurso nesta parte.
5) Ainda que assim se não entenda, não há qualquer erro de julgamento na matéria de facto, que se encontra devidamente sustentada, pelos fundamentos acima aduzidos, para os quais se remete e se dá por reproduzidos;
6) A fundamentação da matéria de facto provada, designadamente a imputação da factualidade à arguida, está ancorada em prova documental, designadamente na relativa aos contratos de seguro de responsabilidade civil celebrados, e nas passagens de Via Verde; na falta de autorização de utilização da viatura por terceiros por parte da legítima proprietária; na persistência do Documento Único Automóvel no porta luvas do veículo até à data da sua apreensão pelas autoridades policiais; nas declarações do arguido BB, em integral observância do regime disposto no artigo 345.º, n.º 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal; e, bem assim, em inferências lógicas a partir de factos conhecidos, usando das regras das presunções naturais e da experiência comum, sem que exista ambiguidade nos indícios, conforme acima melhor aduzido e concretizado, para onde se remete.
7) Não ocorre na decisão recorrida qualquer violação do princípio da igualdade na aplicação das penas, porquanto o Tribunal valorou deviamente as circunstâncias de:
a. o arguido AA possuir três antecedentes criminais por ilícitos contra o património (roubo, furto qualificado e burla), tendo o crime em causa nos presentes autos sido cometido durante período de liberdade condicional (ao contrário do arguido BB, que não tem antecedentes criminais);
b. o arguido AA não ter hábitos de trabalho consistentes, conforme o seu relatório social (ao contrário do arguido BB, que trabalha).
c. não existir qualquer elemento a valorar a favor do arguido AA na escolha e aplicação da pena (ao invés do caso do arguido BB).
8) Não foi violada qualquer das normas referidas pelo recorrente.


Termos em que deve o recurso interposto pelo arguido AA ser julgado integralmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida nos seus exatos termos.»


5. O Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se nos termos a seguir reproduzidos:
«[...]
É que assenta basicamente o recorrente na discordância quanto à matéria de facto dada como provada – e não provada – entendendo que alguns pontos de tal matéria deverão ser eliminados.
Desde já se adianta que o que efectivamente foi feito na douta sentença, mais não foi do que fundamentar, e bem, a responsabilidade jurídico-penal do aqui Recorrente.
E, no fundo, o que está aqui em causa, é uma mera desconformidade entre o pensamento do julgador e o do próprio Recorrente, carecendo este último, obviamente, de qualquer relevância jurídica.
E isto porque, tratando-se de uma mera discordância, olvida quase que por completo a “ratio essendi” da bem estruturada sentença, ora em crise.
Com efeito, após escalpelizar demoradamente a matéria probatória dada como provada, analisa e explana demorada e exaustivamente, quer a convicção do Tribunal, quer o enquadramento jurídico-penal, para a final se deter na escolha e determinação da medida da pena, o que é feito correctamente, e absolutamente isento de qualquer reparo.
Tal é devidamente assinalado, e bem, pelo Exmo. Colega na primeira instância, e com a qual concordamos, ao referir que “… No caso em apreço, analisada a motivação de recurso, bem como as respetivas conclusões, verifica-se que o recorrente AA não indica, afinal, que concretas provas impõem decisão diversa quanto aos pontos 4, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 da decisão de facto, insistindo em proclamar que, no seu entender, tais factos devem ser eliminados.
Em concreto, para sustentar a impugnação da matéria de facto, o recorrente argumenta sistematicamente que nenhuma testemunha referiu o nome do arguido AA e verberou contra as inferências efetuadas pelo Tribunal.
(…)
Exige-se a indicação de concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, não sendo admissível a indicação abstrata de testemunhas cuja valoração de depoimentos permitiriam uma diferente decisão.
Salvo o devido respeito por diferente entendimento, o recorrente limita-se a aludir genericamente ao que (não) terão dito testemunhas em audiência de julgamento – sem indicar sequer o nome de qualquer uma delas ou o dia em que prestaram depoimento – e a fornecer a sua interpretação sobre os elementos de prova documental existentes nos autos e que serviram para formar a convicção do julgador, conforme transparece na motivação da matéria de facto.”.
O recorrente põe em causa, ao longo do recurso apresentado, a forma como o Mº Juiz a quo analisou toda a prova indicada nos autos.
Contudo, fê-lo no âmbito dos poderes que se lhe encontram legalmente atribuídos, designadamente no artigo 127º do Código de Processo Penal, atribuindo e deixando de atribuir credibilidade, conforme correctamente assinalou na decisão recorrida.
Aquela norma processual dispõe que “(...) a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Livre convicção essa que não pode ser arbitrária, nem discricionária, sendo obrigatoriamente limitada pelo dever de fundamentar de uma forma razoável a decisão em causa, o que, no presente caso, se verifica sem margem para dúvidas.
Como bem refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra:
“I - Através da fundamentação da matéria de facto da sentença deverá ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal.
II - O exame crítico das provas tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo.” (Cfr. Proc. nº 66/15.1GAMIR.C1, de 27.09.2017, in www.dgsi.pt))
Tal está devidamente plasmado na douta Sentença, e cabalmente explicitado o “iter” que levou à decisão condenatória.
A convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados e não provados, foi obtida através da apreciação crítica da prova produzida, nomeadamente a constante nos autos, em conjunto com a demais prova produzida em audiência de julgamento.
A sentença recorrida de forma coerente, lógica e devidamente fundamentada enunciou o que esteve na origem da creditação da prova, razão pela qual entendemos inexistir o apontado vicio.
E, sempre se adiantará, que:
“I – O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos juntos aos autos.
II – O erro notório na apreciação da prova tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média, e nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento.” (AC RC, de 06.02.2019, Proc. nº 72/18.1GTCBR.C1, in www.dgsi.pt)
Nas conclusões da motivação do recurso verifica-se que o recorrente apresenta a sua interpretação sobre a prova produzida e o seu entendimento sobre qual deveria ser a decisão do Tribunal.
Limita-se a atacar a convicção do Tribunal recorrido sendo que este está vinculado ao principio da livre apreciação da prova e ás regras da experiência e lógica comum.
A convicção do Tribunal, pessoal, objectiva e motivada só pode ser modificada pelo Tribunal de recurso quando a mesma violar os seus fundamentos vinculados ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da lógica e da experiência comum.
O principio da livre apreciação da prova e o seu exercício é indissociável da oralidade e da imediação em que decorre o julgamento contribuindo de forma essencial para a convicção do julgador aqui avultando actividade puramente cognitiva conjugada com elementos não racionalmente explicáveis e elementos de índole emocional apenas apreendidos devido aos aludidos princípios.
No caso vertente o Tribunal, de forma justificada e na sequência de apreciação critica da prova entendeu valorizar determinada linha de depoimento, formulando-se um juízo sobre o cometimento de certos factos e de se dar como provada determinada factualidade.
Não será legítimo ao Tribunal de recurso alterar o julgamento feito em primeira instância quando a decisão encontrada, devidamente fundamentada for, face ao factualismo dado como provado, compatível com as regras da experiência comum.
Efectivamente, conforme tem vindo a ser decidido repetida e uniformemente:
“Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.” Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6-3-2002, proferido no Processo nº 0111381.
Quanto ao principio do in dubio pro reo, conforme se decidiu no Ac. Rel. Évora de 9.10.2012: “O princípio “in dubio pro reo”, que decorre, como corolário, da presunção de inocência, consagrada no art. 32.º, n.º 2, da CRP, tem repercussões, na verdade, ao nível do direito processual penal, com o significado de que, existindo dúvida relevante, séria, fundada e inultrapassável, terá sempre de ser valorada em favor do arguido. No entanto, essa dúvida, para ter esse efeito, não pode ser meramente ligeira ou subjectiva. Ao invés, tem de resultar, objectivamente, do carácter inconclusivo da prova, que obste a que o tribunal atinja a convicção para além de toda a dúvida e capaz de impor-se aos outros.”.
Na matéria em apreço o Tribunal recorrido não expressou ou manifestou qualquer dúvida quanto a qualquer facto, resultando os factos dados como provados de um processo de avaliação critica da prova, não tendo surgido no espírito do julgador qualquer dúvida quanto à sua verificação e configuração.
*
No mais, louvamo-nos nas considerações expendidas pelo Exmo. Colega da primeira instância, que aqui se dão por reproduzidas, e com as quais se concorda na íntegra.
*
Em conclusão, somos de parecer que:
- a prova foi devidamente apreciada e valorada;
- a sentença está devida e acertadamente fundamentada, e não padece que qualquer erro ou vício;
-não houve violação de lei;
- o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a sentença nos seus precisos termos.».


6. A este «Parecer» respondeu o arguido, em síntese, reiterando (após aprofundamento de algumas questões) as posições por si já assumidas nos autos.
7. Cumpridos os legais trâmites importa decidir.

II
8. O presente recurso merece parcial provimento.
9. 1. A inoportunidade da apresentação do presente recurso não determina a sua respetiva extemporaneidade.
10. A título de questão prévia, importa apreciar a questão da eventual extemporaneidade do presente recurso, porquanto, como resulta dos autos, foi ele apresentado (em 06/03/2023) após a leitura da sentença proferida (em 31/01/2023) pelo Tribunal recorrido na sequência da realização da audiência na ausência do arguido e ora recorrente nos moldes previstos no artigo 333.º, n.ºs 1, a contrario, e 2, do Código de Processo Penal, mas antes que a este fosse a mesma sentença pessoalmente notificada, como exige o n.º 5 do mesmo preceito legal (o que ocorreu apenas em 18/10/2023).
11. A jurisprudência tem entendido uniformemente que, nestes casos, o recurso apresentado não deve ser admitido, e, se admitido, não deve ser objeto de conhecimento pelo Tribunal Superior, porquanto o prazo para a sua interposição só se inicia a partir do momento em que ao arguido é notificada a sentença (cf. artigo 333.º, n.º 5, segunda parte, do Código de Processo Penal; vd., ainda, o preceituado no artigo 113.º, n.º 10, do corpo de normas aludido, que estabelece que, designadamente, a sentença deve ser notificada «[...] ao advogado ou defensor nomeado, sendo que, neste caso, o prazo para a prática de ato processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar»), pelo que só então pode haver lugar à impugnação da decisão proferida.
12. A razão pela qual isto é assim, por seu turno, já merece respostas distintas. Para uma parte da jurisprudência, estamos perante uma situação de extemporaneidade do recurso interposto antes do início do decurso do prazo para a sua interposição (veja-se, neste sentido, o acórdão desta mesma Relação de 25/01/2023, tirado no processo n.º 39/99.7PAPVZ.P1, bem como as demais decisões em que se louva, nele citadas); para outra parte, particularmente preponderante no Tribunal da Relação de Guimarães, está em causa, apenas, a falta de um pressuposto processual, sc., a falta de notificação pessoal da sentença ao arguido (veja-se, neste sentido, o acórdão da Relação de Guimarães de 25/05/2020, tirado no processo n.º 11/15.1GAAMR.G1, bem como as decisões aí citadas em abono da tese perfilhada no mesmo aresto; o texto de ambas as decisões aludidas pode ser consultado nas bases de dados respetivas, disponíveis em www.dgsi.pt).
13. Esta Relação não tem, porém, de decidir definitivamente esta questão para chegar à resposta a dar à questão prévia indicada.
14. No caso dos presentes autos, o recurso apresentado pelo defensor do recorrente após a leitura da sentença foi admitido (cf. despacho que constitui o documento com a referência n.º 127223690 (11/05/2023)) tendo-lhe o Ministério Público junto da 1.ª instância respondido (cf. documento com a referência n.º 14719548 (18/06/202.)), após o que o processo ficou a aguardar a notificação da sentença ao recorrente; uma vez este notificado da decisão que o condenou nos moldes já aludidos, aguardou-se o decurso do prazo que legalmente lhe assiste para interpor recurso, após o que, nada tendo sido apresentado, se ordenou a notificação da resposta entretanto junta ao processo pelo Ministério Público à defesa e ao arguido, e, uma vez esta efetuada, a subsequente subida dos autos a esta Relação (cf. despacho que constitui o documento com a referência n.º 130227830 (28/11/2023)).
15. Não tendo este Tribunal a certeza de que o arguido e ora recorrente contactou o seu defensor para que este apresentasse, em seu nome, recurso da decisão proferida nos autos, o certo é que também não pode afastar tal possibilidade, bem como a possibilidade de o mesmo defensor lhe ter dado conhecimento de que já o havia apresentado, dentro do prazo geral para o efeito, assim levando à sua inação a esse respeito.
16. Por outro lado, ao recorrente também não foi dado conhecimento do recurso apresentado pelo seu defensor, não lhe tendo assim sido dada a possibilidade de, ainda no decorrer do prazo em que podia recorrer da decisão contra si proferida, esclarecer se ratificava o ato praticado pelo seu defensor, de molde a aproveitar o recurso por este apresentado (um direito que inequivocamente lhe assiste, considerando o preceituado no artigo 63.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
17. Finalmente, neste quadro de coisas, uma interpretação do complexo normativo formado pelas disposições constantes dos artigos 333.º, n.º 5, e 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido de considerar extemporâneo (e, portanto, fundamento para a sua respetiva rejeição) um recurso apresentado antes da notificação pessoal, ao arguido julgado na sua ausência, da sentença contra ele proferida, amontaria a uma violação do direito ao recurso e a um processo respeitador de todas as garantias de defesa, tal como assegurado pelo artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, já que daí resultaria, na prática, volente nolente, uma denegação da possibilidade de ver a sua condenação reapreciada por um Tribunal Superior (vd., a este propósito, as considerações tecidas no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08/02/2021, tirado no processo n.º 322/19.7PBVCT.G1, consultável na aludida base de dados).
18. Sendo assim, conclui-se que o presente recurso não é intempestivo, havendo, por isso, que apreciá-lo.
19. 2. A decisão de indeferimento da participação do arguido em audiência por meio de videoconferência encontra-se transitada, o que impede a sua reapreciação nesta sede.
20. a) Como corretamente refere o Ministério Público junto da 1.ª instância na sua resposta ao recurso interposto pelo arguido e ora recorrente, este, após o indeferimento da sua pretensão de participar na audiência de discussão e julgamento à distância, não atacou a (arguindo a invalidade, ou recorrendo, da) decisão tomada pelo Tribunal a quo.
21. Sendo as coisas assim, não pode este Tribunal conhecer de tal questão, por se ter tornado definitiva a decisão em referência.
22. b) Sem prejuízo do suprarreferido, sempre se dirá que o respeito pelos direitos de defesa do recorrente não impunha, nem impõe, que pudesse ele participar da audiência de discussão e julgamento realizada no âmbito dos presentes autos através de meios de comunicação à distância, razão pela qual nunca ocorreria, no caso, a nulidade prevista no artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal.
23. Contrariamente ao que ocorre com outros sujeitos e intervenientes processuais (cf., a propósito, os artigos 158.º, n.º 2, 275.º-A, n.º 1, 318.º, n.º 8, e 350.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), o nosso ordenamento processual penal não prevê a possibilidade de o arguido participar na audiência com recurso a meios de comunicação à distância, nomeadamente por videoconferência; o citado artigo 275.º-A é, aliás, claro na exclusão desta possibilidade no decurso do inquérito, e do artigo 332.º, n.º 1, do mesmo corpo de normas decorre até, explicitamente, para o arguido, (também) o dever de estar presente (portanto: fisicamente) na audiência.
24. Esta opção não se mostra irrazoável ou arbitrária, pois responde ao interesse de assegurar (objetivo que abre mesmo a possibilidade de adoção de medidas coercitivas para assegurar a sua concretização prática: cf. artigos 116.º, n.º 2, 254.º, n.º 1, alínea b), 332.º, n.º 4, 335.º, n.º 3, e 337.º, do Código de Processo Penal), a presença do arguido nas diligências onde haja de participar – e em especial na audiência de discussão e julgamento – com vista, não apenas à adequada realização da justiça criminal, como, e sobretudo, de se assegurar ao próprio arguido os seus direitos de defesa e a um processo justo e equitativo (o que exige, além do mais, tenha ele a possibilidade, tão irrestrita quanto possível – e mesmo porventura contra a sua vontade –, de acompanhar o decurso daquelas diligências e, através da sua intervenção nas mesmas, contribuir, em pé de igualdade com os demais sujeitos processuais, na determinação da factualidade relevante para a apreciação da sua eventual responsabilidade criminal pela prática dos factos que lhe sejam imputados e, comprovada esta, na conformação das consequências que lhe devam legalmente corresponder).
25. Neste contexto, não prevendo a lei a participação do recorrente na audiência de discussão e julgamento realizada no âmbito dos presentes autos, ainda que pelos motivos por ele invocados, através de meios de comunicação à distância, e havendo interesse na sua presença física nessa mesma audiência pelas razões apontadas, nenhuma censura merece o Tribunal a quo por ter indeferido, por falta de fundamento legal, a pretensão que por aquele lhe foi formulada.
26. Do que vem de expor-se não deve retirar-se a conclusão de que a falta de expressa previsão legal deve impedir sempre, de forma absoluta, o recurso a meios de comunicação à distância para garantir a (adequada) presença de um acusado em audiência de discussão e julgamento onde e quando tal se mostre inequivocamente necessário; casos haverá em que a efetiva realização do seu direito a «estar presente» no seu julgamento porventura o poderá exigir (em especial, quando for a única forma viável de acautelar aquele direito), ou em que motivos de força maior (incluindo necessidades especiais de segurança, por exemplo) o justificarão.
27. O que se diz é, apenas, que, por via de regra, sendo a presença física do acusado em julgamento obrigatória e – sobretudo – preferível, a derrogação de tal obrigação (e do direito que a acompanha) só pode ocorrer excecionalmente e quando razões suficientemente ponderosas o justifiquem, o que, no caso concreto, não ocorre, ou pelo menos o recorrente não indica qualquer razão válida para que o Tribunal recorrido interpretasse o regime legal relativo à participação em audiência por intermédio de videoconferência no sentido por ele propugnado.
28. Naturalmente, não se ignora que, da perspetiva do respeito pelos direitos de defesa dos arguidos, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos teve já a oportunidade de concluir que «o direito a estar presente no julgamento é um dos direitos fundamentais de um arguido» («the right to be present at the trial is one of the cornerstone rights of an accused», Golubev v. Russia, de 09/11/2006; a tradução é nossa), salientando, repetidamente, o dever de os tribunais adotarem as condições necessárias a assegurar tal presença, no sentido abrangente em que entende este conceito: «o dever de garantir o direito de um arguido a estar presente na sala de audiências constitui um dos requisitos essenciais do artigo 6.º [da Convenção Europeia dos Direitos Humanos] e está profundamente imbricado nesse preceito» («[t]he duty to guarantee the right of a criminal defendant to be present in the courtroom ranks as one of the essential requirements of Article 6 and is deeply entrenched in that provision»: Stoichkov v. Bulgaria, de 24/03/2005, e respetiva progénie; de novo, tradução nossa).
29. Também por isso, o mesmo tribunal vem adotando uma posição cautelosa, no essencial restritiva, relativamente ao uso de meios de comunicação à distância como forma de participação dos acusados na audiência de julgamento (vd., a propósito, o sumário preparado pelos serviços do referido Tribunal, Article 6 (criminal limb): Hearings via video link, disponível online em https://ks.echr.coe.int/documents/d/echr-ks/ hearings-via-video-link).
30. De igual modo, e a propósito da questão da presença do arguido em julgamento, o Tribunal Constitucional português, pelo menos desde os seus acórdãos n.ºs 394/89 e, sobretudo, 212/93 (tirados antes da revisão constitucional de 1997 e publicados no Diário da República, Série II, de 14/09/1989 e 01/06/1993, respetivamente), vem considerando o direito do acusado a estar presente na audiência como essencial não só para a correta administração da justiça penal, como também para a concretização das «garantias de defesa, do contraditório e da imediação da prova – esta constante no princípio do Estado de direito democrático» (cita-se o segundo dos mencionados arestos), embora a doutrina a este respeito fixada tenha perdido alguma da sua prévia inflexibilidade, face ao que agora dispõe o n.º 6 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
31. Ora, para o caso que nos ocupa, é a própria lei processual penal a prever, expressamente, no n.º 3 do artigo 332.º do Código de Processo Penal, que «[a] requerimento fundamentado do arguido, cabe ao tribunal proporcionar àquele as condições para a sua deslocação».
32. Dito de outro modo, ainda quando se possa aceitar que ao Tribunal poderá caber, de acordo com as circunstâncias de cada caso, um dever de, ativamente, diligenciar pela criação das condições necessárias a assegurar a deslocação do arguido a tribunal, independentemente de qualquer iniciativa do mesmo nesse sentido (entre nós, parece caminhar nessa senda Tiago Caiado Milheiro, nas suas anotações ao artigo 332.º no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, t. IV, 2.ª ed., especialmente § 12, pp. 318-319), o certo é que o Tribunal não pode substituir-se a um arguido na determinação das condições em questão e no modo como as mesmas deverão ser supridas (designadamente, escolhendo pelo arguido um meio de transporte, determinando a rota a seguir por ele, os horários em que deverá viajar, etc., etc., etc.). Tudo isto são decisões em que o arguido tem de tomar, de acordo com as suas necessidades e interesses, cabendo depois ao Tribunal adotar (em colaboração com o arguido) as medidas necessárias a garantir a deslocação no dia, hora e pelo meio, mais adequados à situação concreta.
33. Para além disso, o arguido esteve sempre representado por profissional forense devidamente habilitado para assegurar a sua defesa, com quem, de forma manifesta, mantinha contacto (só assim se compreende que este tenha requerido a participação em audiência do arguido por meio de videoconferência, nos termos em que o fez), e que obviamente não desconhecia o direito aplicável, como demonstra com as suas copiosas referências ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e respetiva jurisprudência – e, em especial, o preceituado no artigo 332.º, n.º 3, do Código de Processo Penal – podendo assim, se tivesse querido, ter solicitado ao Tribunal a quo a criação das condições indispensáveis à deslocação do arguido a julgamento e a garantir a sua efetiva presença no mesmo, o que não fez, por razões que só a ele coube ponderar para decidir como decidiu.
34. Perante o que, manifestamente, se antolha como demonstração reiterada de elevada preparação técnica, não tinha o Tribunal recorrido, nem tem esta Relação, qualquer razão para supor que as tomadas de posição (ou falta delas) que processualmente protagonizou o defensor do recorrente não correspondessem à estratégia que decidiu ele, como é natural, juntamente com o mesmo recorrente, seguir quanto à defesa deste em julgamento.
35. Em suma, pois, tendo-se o arguido e ora recorrente conformado com o indeferimento da pretensão deste de participar na audiência de discussão e julgamento realizada no âmbito dos presentes autos por meio de videoconferência, e não oferecendo – mesmo nesta instância – quaisquer razões (minimamente discriminadas) que poderiam desaconselhar o recurso à (ou impedi-lo de lançar mão da) faculdade que lhe é conferida pelo artigo 332.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, também não se vê como poderia o Tribunal recorrido ter-se-lhe substituído no exercício dessa mesma faculdade.
36. Até porque, entender as coisas de outro modo implicaria desresponsabilizar por completo o arguido e ora recorrente de curar dos seus próprios interesses no processo e, o que é mais importante, do seu defensor, a quem cabe, precisamente, garantir a defesa do arguido e o respeito pelos seus direitos no âmbito do processo criminal (vd. os artigos 60.º e segs., e em especial os artigos 63.º e 64.º, todos do Código de Processo Penal), desresponsabilização essa que, a nosso ver, e numa situação como a vertente, não poderia, de todo o modo, ser suprida, pelo menos sem o concurso da vontade do arguido, pelo Tribunal, em especial o de julgamento, uma vontade que, de todo em todo, faltou.
37. 3. O Tribunal recorrido não cumpriu adequadamente a obrigação de fundamentação da convicção que formou quanto à matéria de facto relevante para a decisão do presente feito crime, tal como decorre das disposições conjugadas dos artigos 97.º, n.º 5, e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no tocante aos factos provados relativos à atuação do ora recorrente.
38. a) Como contraponto à ampla liberdade que legalmente lhe é concedida no tocante à valoração da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal), está o julgador obrigado a proceder a uma «apreciação crítica», «tanto quanto possível completa, ainda que concisa» (artigo 374.º, n.º 2, do corpo de normas aludido) das provas que perante si foram produzidas e que contribuíram para a formação da sua convicção no tocante à matéria de facto.
39. Isto significa que o Tribunal deve, assim, valorar todo o material probatório que esteja à sua disposição e que lhe permita esclarecer todos os pontos de vista que possam razoavelmente considerar-se relevantes para a decisão que lhe cabe proferir, e isso deve refletir-se inequívoca e explicitamente na fundamentação que ele ofereça para a convicção que formou relativamente aos factos que considerou assentes e não assentes (cf., a propósito, e por todos, Günther Sander, em Löwe/Rosenberg, Die Strafprozeßordnung und das Gerichtsverfassungsgesetz, § 261, n. m. 56 e segs., especialmente n. m. 58).
40. Isto mesmo decorre, também, da obrigação que sobre o julgador recai de formar, mesmo que de ofício, a base fáctica indispensável à sua decisão (cf. artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que não faria sentido se, depois do esforço probatório desenvolvido em audiência, o Tribunal pudesse, pura e simplesmente, ignorar, no todo ou em parte, a prova perante si produzida, ou que produziu por sua própria iniciativa (vd. Günther Sander, cit., n. m. 14).
41. Por isso mesmo, é, por regra, mister que o Tribunal de julgamento avalie individualmente, de forma criteriosa e tão completa quanto possível (ainda que, como sublinha o legislador, concisa), cada um dos elementos de prova à sua disposição (naturalmente, quando relevantes), sempre na sua integralidade, tomando ainda em consideração, nessa valoração, todas as circunstâncias, tanto intrínsecas como extrínsecas, suscetíveis de influenciar (confirmando ou infirmando) o valor probatório desses elementos e, por aí, a decisão do julgador (no tocante à matéria de facto).
42. Para além disso, é ainda necessário que o Tribunal, ademais dessa análise individual dos vários elementos de prova disponíveis, proceda a uma valoração global e abrangente de todos eles, não se limitando, no fundo, a «encaix[á-los] por simples união mecânica», mas explorando as suas interdependências e inter-relações, criando, ao final, «um quadro conjunto harmónico, consequente e dotado de sentido» (Erich Döhring, La prueba. Su práctica y apreciación, reimpr., 1998, pág. 407).
43.b) No caso dos autos, e se em relação ao arguido BB o Tribunal recorrido, sobretudo quando discorre sobre as declarações por este prestadas em audiência, não deixou de justificar adequadamente a convicção que formou quer quanto ao comportamento, quer quanto ao estado subjetivo em que o mesmo atuou, já quanto ao ora recorrente, pelo contrário, limitou-se a referências esparsas, não fazendo menção expressa aos elementos probatórios que valorou (já que trabalhou essencialmente com prova indiciária, ou seja, por indução, a partir, v. g., da circunstância de o recorrente (1) ter tido na sua posse o veículo em causa nos autos, demonstrada pela celebração de seguro de responsabilidade civil, (2) de o veículo em apreço ter circulado em zonas compatíveis com a residência do recorrente, (3) ter vendido ao seu coarguido, como se pode retirar das declarações deste, a viatura, (4) não ter adquirido o veículo, cujo documento único permaneceu no respetivo interior, à sua proprietária constante do registo, apontando para uma detenção irregular do mesmo, e assim por diante), sem estabelecer entre eles quaisquer relações ou explicitando, de forma clara, o raciocínio seguido para alcançar as conclusões que levou à matéria de facto que considerou assente no tocante aos elementos objetivos e subjetivos da infração criminal por que responde no processo.
44. Importa, por isso, que, nessa parte, seja a sentença proferida corrigida, mediante prolação de nova decisão que respeite as exigências de fundamentação suprarreferidas e que, na decisão recorrida, foram preteridas.
45. Com isto, importa sublinhá-lo, esta Relação não se está a pronunciar sobre o acerto ou desacerto das conclusões a que chegou o Tribunal recorrido quanto a qualquer dos factos, provados e não provados (ou – adiante-se – os demais a que não se fez referência) respeitantes ao recorrente; o que se afirma é, apenas, que o percurso seguido para as alcançar carece de melhor explicação, de modo a que possa ser adequadamente compreendido e valorado, sendo que isso constitui, precisamente, o núcleo essencial, e o objetivo precípuo, da fundamentação legalmente exigida, sem o qual não pode, pois, afirmar-se que ela existe.
46. 4. O incumprimento da obrigação de fundamentação que recaía sobre o Tribunal a quo tem como consequência a nulidade da sentença proferida, implicando a baixa dos autos à 1.ª instância para que possa a invalidade em apreço ser remediada pelo M.mo Juiz que presidiu ao julgamento (artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do corpo de normas citado). Isso, pois, o que se decidirá a final.
47. 5. Face à decisão que irá ser proferida, não são devidas, nesta instância, consequentemente, quaisquer custas (artigos 513.º, n.º 1, e 515.º, n.º 1, alínea b), ambos a contrario, do Código de Processo Penal).

III
48. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em, julgando parcialmente procedente o presente recurso, anular a decisão recorrida e determinar a baixa do processo ao Tribunal recorrido para que seja proferida, pelo M.mo Juiz que presidiu ao julgamento, nova decisão que observe as exigências de fundamentação supra assinaladas.
49. Sem custas (artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).

Porto, 24 de janeiro de 2024.
Pedro M. Menezes
Eduarda Lobo (vencida, nos termos da declaração que junta) [Declaração de voto: Com todo o respeito que merece a posição que fez vencimento e a qualidade da argumentação em que assenta, dela discordo pelas seguintes razões:
Acerca do recurso interposto pelo arguido julgado na ausência, em conformidade com o disposto no artigo 333º, nºs 2 e 3 do CPP, e admitido sem que o arguido tenha sido notificado pessoalmente da sentença, a jurisprudência tem vindo a pronunciar-se, por forma uniforme, no sentido de que o recurso é intempestivo pelo facto de o prazo de recurso do arguido ainda não se ter iniciado. Assim, neste sentido, pese embora com fundamentação não inteiramente coincidente, vide v. g. Decisões Sumárias da R. Coimbra de 10.05.2017, Proc. nº 18/11.8TAOFR.C1; de 15.05.2013, Proc. nº 414/10.8TAMGR.C1; 21.03.2012, Proc. nº 83/08.5JAGRD.C1; e 08.02.2012, Proc. nº 161/03.7GAMIR.C2; e de 06.02.2013, Proc. nº 93/12.8PFLRA.C1; Ac RE de 08.05.2018, Proc. nº 86/17.9GBODM.E1; Ac. RL de 28.01.2014, Proc. nº 445/09.OGASXL.L1; Ac. R. Porto de 18.10.2006, Proc. nº 0643261; Ac. R. Guimarães de 23.03.2009, Proc. nº 2546/08-2; Ac. R. Lisboa de 11.12.2008, Proc. nº 8876/2008-9, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
No caso em apreço, o recurso foi interposto pelo ilustre defensor oficioso do arguido muito antes de este ter sido pessoalmente notificado da sentença condenatória. De acordo com a jurisprudência acima citada, não temos dúvidas de que o recurso então interposto era manifestamente intempestivo uma vez que, como se disse, a prática do ato processual de impugnação da sentença pelo arguido julgado na ausência estava condicionado à verificação de um outro ato anterior, a saber, a efetivação da notificação pessoal da sentença ao arguido.
Tendo, entretanto, ocorrido essa mesma condição (de notificação pessoal do arguido), a questão que se coloca consiste em saber se o recurso então interposto pelo seu defensor oficioso (cerca de 7 meses antes da referida notificação) pode ser admitido e tramitado, mesmo perante a inércia do arguido.
Entendemos que não!
Em primeiro lugar, se o recurso era intempestivo quando foi interposto e não podia como tal ser recebido, não passa a ser tempestivo pelo facto de entretanto se ter iniciado o prazo para recorrer.
Em segundo lugar, a interposição desse recurso (intempestivo) não é compatível com o desconhecimento pelo arguido dos fundamentos da sentença condenatória e do seu direito legalmente reconhecido de interpor recurso depois de ser notificado pessoalmente da mesma. Só depois dessa notificação, o arguido estará em condições de decidir, em consciência, se pretende ou não impugnar a decisão, optar por constituir novo mandatário no processo e com ele conferenciar sobre as eventuais vantagens na aludida impugnação. Aceitar o anterior recurso, impondo-o ao arguido, sem que o mesmo saiba até da sua interposição ou alguma vez tenha tido algum contacto com o defensor que o interpôs, poderia constituir mesmo uma violação das suas garantias de defesa.
Aliás, o silêncio do arguido desde que foi notificado pessoalmente da sentença até à data em que os autos subiram a esta Relação, pode mesmo ser interpretado como renúncia ao direito ao recurso.
Interrogamo-nos mesmo se, em caso de improcedência do aludido recurso, poderá o arguido vir a ser responsabilizado pelo pagamento das respetivas custas, para as quais nunca deu qualquer contributo.
Em terceiro lugar, admitir que o recurso interposto anteriormente se mantém válido e eficaz, traduzir-se-ia numa extensão incomensurável do prazo de interposição de recurso, desde o momento em que a sentença é depositada até ao termo do prazo de recurso ordinário após a notificação pessoal da sentença ao arguido.
Poderia mesmo admitir-se o absurdo de considerar que viessem a ser interposto dois recursos, tendo por objeto a mesma decisão, atribuíveis ao mesmo sujeito processual. Ou seja, seria simultaneamente válida a interposição do recurso anterior e o que o arguido entendesse vir a interpor após ser notificado da sentença, o que contraria manifestamente o princípio da preclusão interprocessual (ou efeito intraprocessual da preclusão), segundo o qual uma vez praticado determinado ato ele adquire foros de definitivo no processo, ficando precludida a possibilidade de renovar a prática do ato. Ora, do disposto no artº 335º nº 5 do C.P.Penal, conclui-se que o legislador não pretendeu atribuir qualquer eficácia a eventual recurso interposto antes da notificação da sentença. Se assim fosse, não atribuiria ao arguido o direito de interpor recurso após a referida notificação, pois já poderia estaria precludido o direito de o fazer, sob pena de violação do princípio da preclusão.
Em quarto lugar, como se decidiu no Ac. deste Tribunal da Relação do Porto de 07.07.2010[1] outra interpretação seria violadora do princípio da perentoriedade dos prazos, tendo presente que como escreve o Prof. Germano Marques da Silva “Os prazos peremptórios estabelecem o período de tempo dentro do qual o ato pode ser praticado (terminus intra quem). Se o ato não for praticado no prazo perentório, também chamado preclusivo, não poderá mais, em regra, ser praticado. Exemplos de prazos perentórios são os prazos para arguir nulidades e irregularidades, requerer a instrução ou interpor recursos”[2].
Também o Prof. Cavaleiro Ferreira escreve que, “O tempo em que deve ser praticado um ato processual pode consistir diretamente na indicação dum período dentro do qual o ato pode ser praticado. É o que se chama um prazo.
O prazo tem um início e um termo («dies a quo», «dies ad quem»). Entre o seu início e o seu termo se conta a sua duração.
(…)
Quanto à sua função, os prazos distinguem-se em dilatórios e peremptórios.
O prazo peremptório, destina-se, pelo contrário, a acelerar o andamento do processo; é o período dentro do qual deve ser praticado o ato processual.
(…)
O prazo é peremptório quando a inobservância do prazo torna inadmissível o ato posterior, porque é afetado de caducidade o direito ou faculdade de o praticar. Extinguiu-se, caducando, o poder de causar efeitos jurídicos através do ato que só era possível dentro do prazo”[3].
Este entendimento foi também sufragado no Ac. do STJ de 09.10.2003, (igualmente citado no Ac.RP supra referido), ao apreciar o prazo de interposição de um recurso de fixação de Jurisprudência, “não é exato pretender-se que o prazo peremptório só estabelece o seu termo ad quem (…) podendo ser validamente antecipada a prática do ato para antes da ocorrência do termo a quo (…). Esses prazos representam, pois, o período de tempo dentro do qual podem ser levados a efeito os respectivos actos, o referido terminus intra quem, e a sua fixação funciona como instrumento de que a lei se serve em ordem a levar as partes a exercer os seus poderes-ónus segundo um determinado ritmo, a adoptar um determinado comportamento processual e, consequentemente, praticar o acto dentro dos limites de tempo que lhe são assinalados (cfr. Anselmo de Castro, op. cit., pág. 78) e não do limite final.
As razões prendem-se com os princípios de economia processual e da tramitação unitária do recurso e com a necessidade de evitar uma dupla apreciação do recurso, primeiro por iniciativa do defensor e depois por iniciativa do arguido.
Não ignoramos que a jurisprudência dos tribunais superiores quanto a esta questão não tem sido uniforme, como nos dá conta o Ac. Rel. Guimarães de 08.02.2021, proferido no Proc. nº 322/19.7PBVCT.G1, citado pelo Relator do presente acórdão.
Consideramos, porém, que a validade e eficácia do recurso interposto antes de o arguido ter sido notificado do acórdão não pode ficar dependente da interposição ou não de recurso pelo arguido ou do eventual recurso ao disposto no artº 63º nº 2 do C.P.Penal.
A possibilidade de retirada de eficácia, pelo arguido, a atos praticados pelo defensor pressupõe, em nossa opinião, que tais atos tenham sido válida e tempestivamente praticados e vinculem o arguido. Ora, o recurso interposto antes da notificação da sentença ao arguido não pode ser, como vimos supra, considerado válido e eficaz relativamente ao arguido.
Aliás, se o legislador pretendesse atribuir qualquer efeito à interposição do recurso anterior, teria previsto uma situação idêntica à do artº 411º nº 7 do C.P.Penal ("o requerimento de interposição de recurso que afete o arguido julgado na ausência, ou a motivação anteriores à notificação da sentença, são notificados àquele quando esta lhe for notificada, nos termos do nº 5 do artigo 333º") e não teria afastado a regra geral do prazo de interposição de recurso prevista no artº 411º nº 1 al. b), criando antes a norma especial contida no artº 333º nº 5 do C.P.Penal.
Considero, assim, que o recurso interposto em 06.03.2023 pelo ilustre defensor oficioso do arguido é manifestamente intempestivo e não devia ter sido admitido na 1ª instância. Não obstante a sua admissão, deveria o mesmo ser rejeitado nesta Relação, nos termos dos artºs. 414º nºs 2 e 3 e 420º nº 1 al. b) do C.P.Penal..]
Luísa Arantes
(acórdão assinado digitalmente).

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[1] Proferido no Proc. nº 1349/06.4TBLSD.P1, Des. Jorge Simões Raposo, disponível in www.dgsi.pt.
[2] In Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 59, Editorial Verbo 2008.
[3] In Curso de Processo Penal I, Lisboa, 1981, págs.252/253.