CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
RELAÇÃO DE NAMORO
RELAÇÃO VIRTUAL
Sumário

I - Apesar do seu sentido comum a relação deve ser concretizada com a descrição nos factos provados dos elementos identificadores da natureza da relação existente de modo a evitar um mero juízo valorativo.
II - Uma relação amorosa não fortuita ou de carácter puramente sexual, onde a intimidade dos afectos está associada a alguma continuidade na ligação, é uma relação de namoro.
III - Não deixa de manter a natureza de relação de namoro aquela que se inicia e se prolonga durante alguns meses apenas em registo virtual.

Texto Integral

Proc. n.º 1496/21.2PIPRT.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este – Juízo Local Criminal do Porto – Juiz



Sumário:
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Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular n.º 1496/21.2PIPRT, a correr termos no Juízo Local Criminal do Porto, Juiz 2, por sentença de 25-05-2023, foi decidido, entre o mais:
«Julga-se a acusação pública procedente, por provada e, em consequência, decide-se:
A) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica (após convolação de dois para um), p. e p. pelo art.º 152º, n.º1, b), e 2, a), do Código Penal, conjugado com o art.º73º, n.º1, a), e b), do mesmo diploma, por aplicação do disposto nos art.ºs 1º e 4º do DL n.º 401/82, de 23 de Setembro, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período, acompanhado por regime de prova.
B) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de contacto com a vítima, pelo período de 9 (nove) meses, nos termos do disposto no art.º152º, n.º4 e 5, do C. Penal.»

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Inconformado com o assim decidido, o arguido AA interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença recorrida e da sua condenação, apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1. É o presente Recurso interposto da sentença proferida pelo tribunal a quo que condenou o recorrente pela prática, de um crime de violência doméstica. Contudo não pode o recorrente concordar com tal condenação.
2. O tribunal deu como provado toda a acusação do MP, dado que não foi cumprido a enumeração matéria de facto, nos termos do n.º 2 do artigo 374 CPP, o recorrente na presente recurso enumerou os factos para uma mais fácil compreensão.
3. Para fundamentar a matéria assente o tribunal teve como suporte as declarações da ofendida -BB
4. Sucede que do seu depoimento não resulta os factos dados como provados.
5. No início do seu depoimento a ofendida refere que conheceu o recorrente pelo Instagram, nunca referindo que “o mesmo se tornou «seguidor» ativo da sua página. Ao minuto 2;40 a mesma refere que se tratava de um “namoro virtual”, e ao minuto 4;44 que o arguido deixava de lhe responder durante um mês.
6. No seu depoimento a ofendida refere que por uma única vez o recorrente referiu que iria mostrar a fotografia ao progenitor, nunca que “sempre que a ofendida mostrava desagrado na relação e declarava pretender acabar o namoro, o AA declarava-lhe que, caso o fizesse, enviaria a referida fotografia para os progenitores desta.
7. Salienta-se que do seu depoimento resulta que a sua cara não era visível na fotografia.
8. O tribunal deu ainda como provado, no ponto 7, que por iniciativa do arguido a ofendida fugiu na instituição, contudo isso não resulta das declarações da mesma, ao minuto 6.2 e ao minuto 8;40 a ofendida refere que “passado uma semana e meia fugi e fui ter com o AA”
9. O tribunal a quo na matéria assente mistura conclusões com factos, ao longo do seu depoimento a ofendida não refere que o recorrente repudiou as suas amizades nem a impedir de usar as redes sociais (ponto9)
10. Relativamente aos pontos 14/15/16, a ofendida apenas mencionou que por não ter gostava do recorrente ter fechado a porta do elevador na sua cara, abriu-a e deu-lhe um estalo ( 18:40-18:55)
11. Assim a matéria dado como provada não corresponde ao relatado pela ofendida.
12. Relativamente ao terceiro episódio relatado no depoimento convém salientar o minuto 21:10, a ofendida expressamente refere que do seu telemóvel tinha acesso ao instagram do recorrente.
13. A ofendida refere ao minuto 21:20 que entrou no Instagram do recorrente, leu as suas mensagens pessoais, nomeadamente uma mensagem do recorrente a pedir droga a uns amigos.
14. Do exposto resulta que a ofendida tinha uma posição de controlo sobre o recorrente, dado que tinha acesso as suas redes sociais.
15. Mais à frente ao minuto 22:30 refere que estava muito nervosa e quando regressou ao quarto deu-lhe um estalo, o que despoletou uma reação de legítima defesa por parte do recorrente.
16. Assim sendo o referido nos ponto 21 e 22 não pode ser dado como provado dado que não corresponde ao relatado pela ofendida, sendo que as outras duas testemunhas não presenciaram qualquer facto (cfr. Depoimento da testemunha CC 00:18 a 00:20 e da testemunha DD (00:30 a 00:35) que afirmaram que não conhecem o arguido)
17. O mesmo sucede com os factos vertidos nos pontos 19 e 20, não há nenhum meio de prova para esses factos.
18. As fotografias das mensagens não podem ser utilizada como meio de prova, seria necessário provar que as mesmas foram enviados pelo aqui recorrente o que não se verificou, mais ficou a constar que o ofendida tinha acesso às redes sociais pessoais do aqui recorrente, pelo que a autoria das mensagens não lhe pode ser exclusivamente atribuída.
19. Assim sendo deve dar-se como não provado os seguintes factos – 2º parte do ponto 2, ponto 5, ultima parte do ponto 7, 1 parte do ponto 8, e os pontos 9, 12, 14, 15, 16, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 26 e 27 (enumerados na motivação do presente recurso)
20. Por outro lado, considera o recorrente que a relação que manteve com a ofendida não pode ser classificado como namoro.
21. O Acórdão da Relação de Évora de 26.07.2018 refere que “A alínea b) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal inclui na previsão legal do crime de violência doméstica as relações de namoro; Estas terão que ser relações sentimentais, afetivas, íntimas e tendencialmente estáveis ou duradouras, que ultrapassam a mera amizade ou relações fortuitas, não se exigindo, todavia, um projeto futuro de vida em comum, na medida em que as relações de namoro não têm, em princípio, a pretensão de preencher todas as características associadas conjugalidade, como seja o futuro de vida em comum; A existência de duas pessoas numa relação de namoro exige a dualidade, por parte dos seus dois membros, da aceitação e vontade real de participação e permanência nesse vínculo sentimental e afectivo, não bastando que só um dos intervenientes o pretenda e aceite”
22. Não se provou que por parte do arguido havia qualquer vontade de participar num vínculo sentimental com a ofendida, não interesse como os mesmos eram visto, nem como a ofendida definia a relação, o tribunal devia ter averiguado, para aplicação dessa norma, se o arguido considerava que se encontrava a namorar, a estabelecer um vínculo afectivo com caracter de permanência com a ofendida, contudo esse facto não foi provado.
23. Acresce ainda que dos comportamentos do aqui recorrente não se pode retirar que o mesmo violou a dignidade da ofendida.
24. O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra menciona que “O bem jurídico protegido no tipo legal de crime de violência doméstica reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se todos os comportamentos que lesem essa dignidade.
25. E o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01-07-2013 dispõe que “…há a prática do crime de violência doméstica ….. quando em face do comportamento demonstrado, globalmente considerado, for possível formular o juízo de que o agente demonstrou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima
26. Ora o recorrente não afetou a dignidade humana da ofendida, conforme consta do depoimento desta última, ao minuto 17, “não tinham onde dormir” e que o recorrente lhe disse para se entregar à polícia, uma vez que seria entregue à instituição, onde teria sitio para dormir, comer e tomar banho.
27. Efetivamente o recorrente e a ofendida viveram, durante um período temporal, sem local certo de repouso, sem qualquer tipo de meios financeiros para efetuarem as mais básicas necessidades, mas isso não significa que a responsabilidade desse facto fosse do recorrente, o mesmo à data desses factos tinha 17/18 e evidentemente não tinha capacidade financeira nem maturidade para sustentar outra pessoa.
28. Face ao supra mencionado verifica-se erro notório na apreciação da prova nos termos da alínea a) e c) do n.º 2 do artigo 410º CPP, sendo que a sentença recorrida violou o artigo 152º CP e o artigo 32 do CRP»
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da sentença recorrida.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, acompanhando e desenvolvendo a resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1.ª Instância, emitiu parecer também no sentido de que deverá ser julgado totalmente improcedente o recurso e confirmada a sentença recorrida.
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Cumprida a notificação a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, não foi apresentada resposta.
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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
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II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- Erro de julgamento quanto aos pontos 2 (2.ª parte), 5, 7 (última parte), 8 (1.ª parte), 9, 12, 14, 15, 16, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 26 e 27 da matéria de facto provada, que deviam ter sido dados como não provados;
- Erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no art. 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPPenal;
- Erro de julgamento quanto à qualificação jurídica.

Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes da sentença recorrida (transcrição[2]):

«II – FUNDAMENTAÇÃO

A – FACTOS PROVADOS:
Da audiência de discussão e julgamento, com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
(1) A ofendida BB nasceu a ../../2005 (tendo completado 16 anos de idade apenas a 2 de Novembro de 2021).
(2) Em Fevereiro de 2020 (e, portanto, contando apenas com 14 anos), a ofendida conheceu o arguido AA através da rede social denominada «Instagram», pois que o mesmo se tornou «seguidor» ativo da sua página.
(3) Nessa época, o arguido alegou estar a residir na Bélgica, pelo que solicitou à ofendida uma fotografia onde se mostrasse apenas em lingerie (roupa interior).
(4) Tendo-se assumido como namorados, face à sua imaturidade e por ter acreditado e confiado naquele, a BB satisfez tal pretensão.
(5) A partir daí, e sempre que a ofendida mostrava desagrado na relação e declarava pretender acabar o namoro, o AA declarava-lhe que, caso o fizesse, enviaria a referida fotografia para os progenitores desta.
(6) Em Dezembro de 2020 o arguido deu conta à ofendida pretender encontrar-se com ela em Portugal, pelo que a mesma – no dia 8 de Janeiro seguinte – fugiu da casa dos seus avós (a quem tinha sido atribuída a sua tutela e com quem residia), passando a coabitar com o AA na morada do pai deste, sita na Rua ..., ..., no Porto.
(7) Em Fevereiro de 2021, a ofendida foi institucionalizada no «...», na cidade do Porto, de onde fugiu - por iniciativa do arguido – passados que foram cerca de dez dias.
(8) A partir daí e no propósito comum de a ofendida não ser encontrada, passaram a pernoitar em casas de amigos ou mesmo na rua.
(9) A partir daí, o arguido passou a manter, com a menor, relações sexuais.
Também a partir daí, o arguido passou a exercer domínio e controlo sobre a ofendida, repudiando as amizades desta, obstando que a mesma usasse redes sociais e controlando a sua forma de vestir.
(10) E o mesmo chegou a afirmar que matava o primeiro que olhasse para ela.
(11) Em data não concretamente apurado, nos finais do mês de Maio de 2021, no interior da habitação de amigos (onde, à data, pernoitavam) – sita nas imediações da ..., em Vila Nova de Gaia – e no decurso de uma discussão por ciúmes, o arguido agarrou a ofendida pelos braços (com força tal que a mesma ficou com marcas) e, ao mesmo tempo que declarava que a ia matar, encostou-a contra uma parede.
(12) Também nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido apelidou a BB de «porca» e «mentirosa».
(13) À data, a ofendida chegou a passar vários dias sem conseguir efetuar qualquer refeição.
(14) Na manhã de 5 de Junho de 2021, no interior de uma residência sita no ... (onde, à data, pernoitavam) e perante a recusa da menor ofendida em ter relações sexuais, o arguido exaltou-se, apelidou-a de «porca» e declarou-lhe «não vales nada».
(15) Este estado de exaltação do arguido durou o tempo de se arranjarem e saírem do interior da habitação, onde – ainda na zona comum do prédio e, em concreto, no elevador – o mesmo continuou a humilhar a BB, apodando-a de «puta», «mentirosa». «maluca» e «psicopata».
(16) Cansada de tais destrates, a menor reagiu e desferiu uma bofetada no arguido que, de imediato, lhe declarou que a ia matar e a agrediu com vários socos e pontapés, ao ponto de aquela ter fugido e ter-se refugiado num estabelecimento comercial das redondezas.
(17) Após estes factos, a menor deu por terminada a relação de namoro com o arguido e regressou à residência dos seus avós, sita na Rua ..., em ..., Porto.
(18) Cessado este ciclo de violência por parte do arguido sobre a ofendida e porque a mesma voltou a confiar que aquele passaria a abster-se de tal tipo de condutas, a 26 de Julho de 2021 e, desta vez, por iniciativa própria, a BB voltou a fugir e contactou com o arguido.
(19) Nessa data, e a expensas da própria ofendida, foram pernoitar na residencial sita na Rua ..., no Porto, onde o arguido terá gravado imagens desta, em lingerie.
Já cerca das 22:45 horas, o AA – deixando no quarto a menor, a quem instou para se entregar na Polícia – dirigiu-se à receção da referida unidade hoteleira, alegou ter de se ausentar por falecimento da avó e exigiu a restituição do preço pago. (20) E perante a recusa, o mesmo declarou para o gerente que lhe ia partir o carro e ali voltaria para causar danos no local.
Também nessa noite, o AA – aproveitando o facto de a ofendida estar a dormir – retirou-lhe a quantia monetária de € 60,00 (sessenta euros).
(21) Ao aperceber-se disso, cerca das 04:00 horas da madrugada seguinte, a ofendida saiu para a via pública no sentido de impedir que o arguido gastasse o referido montante em droga.
Cerca das 06:00 horas, ofendida regressou ao quarto, onde encontrou o arguido, onde iniciaram uma discussão e onde a mesma foi agredida por este, que lhe apertou o pescoço com as mãos e que a empurrou para cima da cama, onde se colocou por cima e a manietou.
(22) Nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o AA declarou para a ofendida – em tom sério, convincente e intimidatório – «vou-te matar» e «vou chamar a polícia e vais voltar à instituição», ao mesmo tempo que a apelidava de «puta» e «mentirosa».
Daí que a ofendida tenha reagido e fugido do local, tendo o arguido aproveitado para lhe subtrair a quantia de € 95,00 (noventa e cinco euros), correspondentes às suas poupanças bancárias.
(23) Nessa data, a menor regressou a casa dos seus avós, na Rua ..., ..., no Porto.
(24) Não obstante, o arguido continuou a estabelecer contactos com a BB, instando-a a reatar o namoro e a não o denunciar, sob pena de publicar os vídeos íntimos nas redes sociais e de os remeter aos familiares desta.
(25) Acresce que, entre Julho e Setembro de 2021, o AA escreveu e endereçou à ofendida as mensagens (entre outras) com os dizeres:
- «Es uma puta chavala»;
- «és uma porca já andas a dar em cima dos meus tropas»;
- «Chavalo a cona da tua mãe putaaa»;
- «Puta és tu oh badalhoca»;
- «Meto já as tuas nudes no FB oh puta»;
- «Nem apareça a Nha frente vou te furar»;
- «E agora sim te digo nem 1 euro vais levar vai la pinar quem tu quiseres agre nt quem se ri por último ri melhor»;
- «Vou gasta lo a dar eu uma foda numa pensão kkkkkkkkk»;
- «Quem te quer?»;
- «Andei te a foder 6 meses kkkkkk»;
- «PQ eu tmb só te andei a foder mm dsd do primeiro dia q te vi nn tive interesse nenhum kkkk»;
- «amor só de mãe meu amor putas como tu anda o mundo cheio»;
- «vou foder até ao pescoço filha»; «*foder-te»;
- «Pias muito vai direto para as redes sociais oh puta badalhoca»;
- «E chamas aquilo bater filha esconde te nem te toquei».
(26) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de controlar as vontades e ações da ofendida, de a humilhar, de afetar a respetiva capacidade de reação e movimentação e de a molestar física, sexual e psiquicamente, bem sabendo que atentava contra a sua saúde e contra o direito de confiança desta – no estabelecimento e restabelecimento de uma relação de intimidade – que o mesmo se absteria deste tipo de condutas.
(27) E o arguido bem sabia que a BB era menor de idade, até porque lhe declarava que a ia denunciar e, portanto, que a mesma voltaria a ser institucionalizada.
Atuando a descoberto de qualquer motivo atendível e não desconhecendo do caráter ilícito e criminalmente censurável das suas condutas.
(28) Mais se apurou que:
O arguido e a ofendida encontram-se separados, não mantendo contactos, desde o último episódio descrito supra.
Mais se provou que:
O arguido não tem antecedentes criminais.
Provou-se ainda que:
O arguido é solteiro e reside em casa de um amigo.
Tem o 7º ano de escolaridade.
O arguido trabalhou na “A..., Lda”, entre 08.08.2022 e 20.09.2022, e auferiu a última remuneração em Setembro de 2022, no valor de €564,00.
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B) FACTOS NÃO PROVADOS:
Da audiência de discussão e julgamento e com interesse para a decisão da causa, não resultaram quaisquer factos como não provados.
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C) MOTIVAÇÃO
Para a prova e não prova dos factos supra referidos, a convicção do tribunal formou-se com base na análise conjunta dos documentos juntos aos autos e das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento.
Relevaram os docs de fls. 32 a 33; os fotogramas de fls. 70 a 79 e 129 a 132; o exame pericial de fls. 162 a 165, e o exame pericial constante de fls. 168 a 171 v.
Mais relevaram as declarações para memória futura da ofendida BB, ouvidas em audiência de julgamento, das quais se extrai uma descrição circunstanciada de cada um dos episódios em causa, nos termos supra elencados. Tais declarações demonstraram ter sido prestadas de forma serena, coerente e vivenciada, trazendo à audiência uma imagem clara do sucedido, pelo que mereceram total credibilidade.
A testemunha CC, dono do estabelecimento de alojamento local sito na Rua ..., prestou um depoimento que em nada relevou para o apuramento dos factos, na medida em que, pese embora ter negado a pernoita do arguido e da assistente no seu estabelecimento no dia em causa, não juntou aos autos, como lhe foi ordenado, o registo desse dia, quer quanto à existência ou não de uma pernoita daqueles, quer quanto ao respectivo pagamento ou falta dele, não infirmando, portanto, as declarações prestadas pela assistente, que descreveu, de forma plena, o sucedido nesse local.
A testemunha DD, avó da ofendida, mostrou nada ou pouco saber dos factos em concreto, descrevendo um relacionamento entre si e a assistente algo alheado da vivência da neta, confirmando, contudo, que durante um período de tempo relativamente longo, apenas intercortado uma ou outra vez, a assistente saiu de casa e foi viver para outro lugar, junto com o namorado, disse, o que vem confirmar – como a assistente descreveu - o facto de, naquele período a assistente ter vivido com o arguido nos termos apurados.
A inexistência de antecedentes criminais resultou do CRC de fls.365
A situação socioeconómica do arguido resultou dos elementos por si fornecidos em sede de 1ºinterrogatório Judicial e TIR (a fls. 179, 192 e 193) e das informações fornecidas pela Segurança Social, a fls.346»
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Vejamos então as questões suscitadas por ordem de precedência lógica.
Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPPenal)
É pacífico o entendimento de que quanto à impugnação da matéria de facto pode o recorrente seguir um de dois caminhos: ou invoca os vícios de lógica da sentença previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, devendo, neste caso, ater-se apenas ao texto da decisão e às incoerências que aí possam ser encontradas, ou apresenta uma impugnação alargada, que lhe permite analisar a prova produzida em julgamento, extrapolando o espaço limitado do texto da decisão recorrida.
Em qualquer das opções impõe-se ao recorrente o cumprimento de regras para que o recurso possa ser apreciado e tenha viabilidade de sucesso em termos formais.
Quanto à primeira perspectiva, que abarca, em abstracto, os invocados vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova, com referência ao art. 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPPenal, respectivamente, reitera-se que são defeitos que têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.
Relativamente ao vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, podemos dizer que o mesmo corresponde a uma «carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura»[3], devendo também ser patente da decisão em causa que o Tribunal a quo podia e devia ter indagado outros factos de modo a tornar o elenco dos factos provados e não provados aptos a uma sustentada solução de direito.
Por seu turno, o erro notório na apreciação da prova é uma falha que resulta, como se referiu, do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum, e traduz-se numa deficiência lógica na apreciação da prova, num «erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio.»[4]
É o caso, por exemplo, de as provas tal como se descrevem na decisão apontarem em determinado sentido e depois se concluir em termos opostos, o que revela um juízo ilógico e é passível de ser detectado por qualquer pessoa de mediana formação[5].
Contudo, a mera divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida e a convicção do Tribunal não configura qualquer um dos vícios em apreço[6].
Ora, da leitura da motivação do recorrente resulta patente que o mesmo se insurgiu reiteradamente contra a concreta avaliação da prova levada a cabo pelo Tribunal a quo e não contra qualquer tipo de falha de lógica que tenha contaminado o seu raciocínio.
Insurgiu-se ainda quanto à subsunção jurídica dos factos, mas neste caso situamo-nos no campo do erro de julgamento em sede de direito.
Na verdade, o recorrente apenas apela a estes vícios através da seguinte expressão com que remata a sua motivação: «[f]ace ao supra mencionado verifica-se erro notório na apreciação da prova nos termos da alínea a) e c) do n.º 2 do artigo 410º CPP, sendo que a sentença recorrida violou o artigo 152 º CP e o artigo 32º CP», frase que também usa como última conclusão do recurso, salvo a indicação ao art. 32.º do CPenal que é substituído pela referência ao art. 32.º da CRP.

Ao longo das suas alegações, o recorrente em momento algum invoca erros de lógica resultantes do disposto no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, recorrendo sempre a uma apreciação da prova que extravasa os factos provados e não provados, motivação do Tribunal e a subsunção dos factos ao direito.
Assim, não só o recurso é omisso na concretização de qualquer um dos invocados vícios como, tendo presente os contornos legais dos vícios imputados, compulsado o texto da sentença recorrida e vista a matéria de facto provada e não provada e respectiva motivação, e a decisão que sobre aqueles recaiu, não se detecta qualquer falha lógica evidente, qualquer interferência no percurso lógico do texto que seja patente à leitura pelo cidadão mediano e que leve a concluir pela existência de uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou um erro notório na apreciação da prova.
Em face do exposto, e porque não se detecta que a decisão padeça de qualquer falha de lógica, impõe-se concluir pela improcedência do recurso quanto à invocação dos vícios indicados, sendo de manter na íntegra, por esta via, a sentença recorrida.
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Erro de julgamento quanto aos pontos 2 (2.ª parte), 5, 7 (última parte), 8 (1.ª parte), 9, 12, 14, 15, 16, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 26 e 27 da matéria de facto provada, que deviam ter sido dados como não provados
Criticando a análise da prova produzida que o Tribunal a quo levou a cabo, em especial a concreta valoração efectuada quanto às declarações da ofendida, considera o recorrente que não ficaram demonstrados os factos inscritos sob os mencionados pontos da matéria de facto provada, os quais, entende, deviam ter sido levados ao elenco dos não provados.
Na análise deste segmento do recurso importa ter presente que resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.
As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração realizada pelo Tribunal a quo, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.
Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo, é necessário que essa versão seja a única admissível. E, na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
É necessário que os recorrentes demonstrem que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada, e não à consignada pelo Tribunal, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada.
E na análise da prova que apresentam na sua impugnação da matéria de facto têm os recorrentes de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.

Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[7]:
«I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».
II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»

E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.
Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[8]:
«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.
II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.»

Contextualizado, de forma sumária, o quadro legal e jurisprudencial em que assenta o reexame da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, apreciemos a argumentação do recurso.
Aponta o recorrente algumas incorrecções à matéria de facto provada por não encontrarem respaldo na prova produzida, suportada, em especial, nas declarações da ofendida para memória futura.
Realça-se que, embora a técnica jurídica, em face das exigências do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPPenal, pudesse ser aprimorada, não deixa de cumprir os critérios mínimos ali exigidos, sendo certo que, tratando-se em algumas situações de apurar se a ofendida abordou ou não determinada ocorrência ou dinâmica dos acontecimentos, sempre se impunha que o Tribunal de recurso ouvisse na íntegra aquelas declarações.
Assim, invoca o recorrente que no início do seu depoimento a ofendida refere que conheceu o recorrente no Instagram, nunca referindo que “o mesmo se tornou «seguidor» ativo da sua página. Ao minuto 2;40 a mesma refere que se tratava de um “namoro virtual”, e ao minuto 4;44 que o arguido deixava de lhe responder durante um mês
No seu depoimento a ofendida refere que por uma única vez o recorrente referiu que iria mostrar a fotografia ao progenitor, nunca que “sempre que a ofendida mostrava desagrado na relação e declarava pretender acabar o namoro, o AA declarava-lhe que, caso o fizesse, enviaria a referida fotografia para os progenitores desta.
Saliente-se que do seu depoimento resulta que a sua cara não era visível na fotografia.
Esta alegação, depreende-se, estará ligada ao pedido de alteração, para não provados, dos pontos 2, 2.ª parte, e 5 da matéria de facto provada.
Refere o ponto 2 da matéria de facto provada que «[e]m Fevereiro de 2020 (e, portanto, contando apenas com 14 anos), a ofendida conheceu o arguido AA através da rede social denominada «Instagram», pois que o mesmo se tornou «seguidor» ativo da sua página.»
E o ponto 5 que «[a] partir daí, e sempre que a ofendida mostrava desagrado na relação e declarava pretender acabar o namoro, o AA declarava-lhe que, caso o fizesse, enviaria a referida fotografia para os progenitores desta.»
No que concerne ao ponto 2, 2.ª parte, resulta das declarações para memória futura prestadas pela ofendida que conheceu o arguido pelas redes sociais, concretamente pelo Instagram, afirmando que começámos a falar…começamos a ser próximos...fazíamos chamada. Fala em namoro virtual, como se refere na alegação (00:02:05 a 00:03:10).
Todavia, mais adiante, a ofendida aceitou como correcto o contexto apresentado em pergunta formulada pela Senhora Juiz de que começaram a relacionar-se [ela e o arguido] através do Instagram (00:03:14 a 00:03:28) e de que foi através das conversas que tinham no Instagram que o arguido pediu à ofendida para tirar uma fotografia em lingerie (00:03:53 a 00:03:58).
Em face deste enquadramento, não se mostra evidenciada qualquer desconformidade entre as declarações da ofendida e a matéria de facto provada consignada no ponto 2 (2.ª parte), que deve ser mantido.

O mesmo já não acontece com o fixado no ponto 5.
Com efeito, a ofendida esclareceu que ele [arguido] «deixava de me responder p’raí durante um mês» e que «passado um mês mandava uma mensagem. Então eu acabei com ele». E quando isso aconteceu ele [arguido] ameaçou que mandava a fotografia dela em lingerie para o seu pai (00:04:37 a 00:04:56)
E ainda esclareceu que depois disso deixaram de falar durante muitos meses (00:05:35 a 00:05:38).
Assim, no que se refere a este ponto 5, impõe-se corrigir a matéria de facto provada, no sentido de apenas ter ocorrido uma vez tal tipo de declaração por parte do arguido nesta fase do namoro e de na mesma haver referência ao envio da fotografia somente ao pai da ofendida, ficando, pois, com a seguinte redacção:
«Numa ocasião, meses antes de Dezembro de 2020, a ofendida mostrou desagrado na relação e acabou com o namoro, o que levou AA a declarar que caso o fizesse enviaria a referida fotografia para o pai desta.»
Consequentemente, deve ser levado ao elenco dos factos não provados, sem prejuízo do que ficou agora consignado, que a partir daí, e sempre que a ofendida mostrava desagrado na relação e declarava pretender acabar o namoro, o AA declarava-lhe que, caso o fizesse, enviaria a referida fotografia para os progenitores desta.
O recorrente questiona também a redacção do ponto 7 da matéria de facto (em Fevereiro de 2021, a ofendida foi institucionalizada no «...», na cidade do Porto, de onde fugiu - por iniciativa do arguido – passados que foram cerca de dez dias), na parte em que se refere que a ofendida fugiu por iniciativa do arguido.
Mais uma vez, tem razão. Com efeito, nas suas declarações, a ofendida, após descrever que mudou de casa dos bisavós para casa dos avós paternos e desta para a casa do pai e depois para uma instituição, afirmou que «eu quis fugir de casa» (00:06:15 a 00:06:17) e ainda que «no primeiro dia em que ele veio para Portugal foi quando eu saí de casa e fugi de casa e desde aí fiquei sempre com ele» (00:06:27 a 00:06:34).
Em momento algum das suas declarações é referido que foi o arguido quem teve a iniciativa da fuga, sendo certo que o contexto de vida exposto pela ofendida – de aparente ausência de residência permanente e recente institucionalização – é perfeitamente compatível com a resolução, pela própria, de fuga.
Deve, pois, suprimir-se do ponto 7 o segmento invocado, passando a ter a seguinte redacção:
«Em Fevereiro de 2021, a ofendida foi institucionalizada no «...», na cidade do Porto, de onde fugiu passados que foram cerca de dez dias.»
Deve ser fixado como não provado que a fuga referida neste ponto 7 ocorreu por iniciativa do arguido.

Também no que concerne ao ponto 9 da matéria de facto provada (a partir daí, o arguido passou a manter, com a menor, relações sexuais. Também a partir daí, o arguido passou a exercer domínio e controlo sobre a ofendida, repudiando as amizades desta, obstando que a mesma usasse redes sociais e controlando a sua forma de vestir) o recorrente invoca desconformidades face às declarações da ofendida, alegando que ao longo do seu depoimento a ofendida nunca referiu que o arguido repudiou as suas amizades nem a impediu de usar as redes sociais.
Mais uma vez tem razão.
Nas suas declarações, a ofendida dá nota dos sucessivos locais por onde foram vivendo (ela e o arguido), até que, a dada altura, explica, foram para casa de uns amigos dele…em Gaia e aí tudo começou a ser mais instável, porque os amigos dele também estavam sempre a beber e a fumar droga, e começaram a discutir, o que não era habitual. Nessa altura «ele foi ficando mais coiso, tipo não me deixava usar saias, não me deixava usar calções, dizia que se eu usasse calções o primeiro que olhasse ele ia matá-lo» (00:11:15 a 00:12:00).
Porém, nem nesse segmento das declarações nem em qualquer outro momento ao longo da sua narrativa a ofendida referiu qualquer constrangimento por parte do arguido quanto ao uso de redes sociais ou manutenção de amizades.
Assim, também essas menções devem ser retiradas do ponto 9 que passa a ter a seguinte redacção:
«A partir daí, o arguido passou a manter, com a menor, relações sexuais.
Também a partir daí, o arguido passou a controlar a sua forma de vestir
E deve passar a constar do elenco dos factos não provados que a partir daí o arguido passou a exercer domínio e controlo sobre a ofendida, repudiando as amizades desta, obstando que a mesma usasse redes sociais.

O recorrente critica ainda o consignado nos pontos 14 a 16 da matéria de facto por não corresponder ao relato da ofendida, reconhecendo apenas que a mesma disse (00:18:40 a 00:18:55) que, por não ter gostado que o recorrente lhe fechasse a porta do elevador na cara, abriu-a e deu-lhe um estalo.
De acordo com os referidos pontos de facto:
(14) Na manhã de 5 de Junho de 2021, no interior de uma residência sita no ... (onde, à data, pernoitavam) e perante a recusa da menor ofendida em ter relações sexuais, o arguido exaltou-se, apelidou-a de «porca» e declarou-lhe «não vales nada».
(15) Este estado de exaltação do arguido durou o tempo de se arranjarem e saírem do interior da habitação, onde – ainda na zona comum do prédio e, em concreto, no elevador – o mesmo continuou a humilhar a BB, apodando-a de «puta», «mentirosa». «maluca» e «psicopata».
(16) Cansada de tais destrates, a menor reagiu e desferiu uma bofetada no arguido que, de imediato, lhe declarou que a ia matar e a agrediu com vários socos e pontapés, ao ponto de aquela ter fugido e ter-se refugiado num estabelecimento comercial das redondezas.

Este episódio vem relatado pela ofendida entre os minutos 00:16:50 e 00:19:05 das declarações prestadas para memória futura e delas resulta que o arguido chamou “porca” à ofendida porque esta lhe contou que um velho se tinha feito mim e ele disse porque tu és uma porca e dás confiança a esses velhos (00:17:36 a 00:17:46).
Resulta ainda desse segmento das declarações da ofendida que antes deste episódio ele queria ter relações sexuais e como ela disse que não, ele ficou chateado e disse-lhe que não precisava dela, que ela não era ninguém e que estava farto dela (00:17:47 a 00:18:33).
Na sequência desta troca de palavras, e porque o arguido lhe fechou por duas vezes a porta (de casa e do elevador) na cara, a ofendida desferiu um estalo no arguido e este começou aos pontapés e socos e a dizer que a ia matar, tendo esta fugido (00:18:34 a 00:19:05).

Em face destas declarações da ofendida nenhuma alteração se impõe introduzir ao ponto 16 da matéria de facto provada.
Contudo, os pontos 14 e em especial o ponto 15 da matéria de facto provada devem ser alterados nos seguintes termos:
(14) «Na manhã de 5 de Junho de 2021, no interior de uma residência sita no ... (onde, à data, pernoitavam) e perante a recusa da menor ofendida em ter relações sexuais, o arguido ficou chateado e disse-lhe que não precisava dela, que ela não era ninguém e que estava farto dela».
(15) «Ainda nessa manhã, a ofendida contou ao arguido que um velho se tinha feito a ela, tendo ele respondido porque tu és uma porca e dás confiança a esses velhos.
Chateado, o arguido ainda lhe fechou por duas vezes a porta na cara».

E deve dar-se como não provado que na manhã de 5 de Junho de 2021, perante a recusa da menor ofendida em ter relações sexuais, o arguido apelidou-a de «porca e que, no elevador, o mesmo continuou a humilhar a BB, apodando-a de «puta», «mentirosa», «maluca» e «psicopata».

Seguidamente, o recorrente alega que «[r]elativamente ao terceiro episódio relatado no depoimento da ofendida convém salientar ao minuto 21:10 que a mesma expressamente referiu que do seu telemóvel tinha acesso ao instagram do recorrente.
A ofendido refere ao minuto 21:20 que entrou no Instagram do recorrente, leu as suas mensagens pessoais, nomeadamente uma mensagem do recorrente a pedir droga a uns amigos.
Do exposto resulta que a ofendida tinha uma posição de controlo sobre o recorrente, dado que tinha acesso as suas redes sociais! E não o oposto.»

Esta alegação não vem associada a qualquer pedido de alteração da matéria de facto em concreto, embora o Tribunal de recurso esteja habilitado para o fazer, ao abrigo do disposto no art. 431, al. b), do CPPenal.
No entanto, da referida circunstância não pode ser retirada a ilação pretendida, pois não sabemos em que contexto foi instalado o acesso ao Instagram do arguido no telemóvel da ofendida, se efectivamente era essa a realidade por esta descrita.
De todo o modo, também não ficou provado que o arguido controlasse as redes sociais da ofendida, o que deixa esta alegação um pouco sem enquadramento.

O recorrente afirma ainda que «[m]ais à frente ao minuto 22:30 refere que estava muito nervosa e quando regressou ao quarto deu um estalo ao recorrente, o que lhe espoletou uma reação de legítima defesa.
Assim sendo o referido nos pontos 21 e 22 não pode ser dado como provado dado que não corresponde ao relatado pela ofendida, sendo que as outras duas testemunhas não presenciaram qualquer facto (cfs. Depoimento da testemunha CC 00:18 a 00:20 e da testemunha DD que afirmaram que não conhecem o arguido)».

É verdade que a ofendida reconheceu ter desferido um estalo no arguido ao regressar ao quarto, depois de ele lhe ter levado € 60, e que lhe disse que nunca mais mexia no dinheiro dela (00:22:23 a 00:22:36), e esse facto deve ser acrescentado ao ponto 21 da matéria de facto provada. Todavia, tudo o mais é de manter por se mostrar conforme ao relato prestado pela ofendida entre os minutos 00:22:37 e 00:23:36 das declarações para memória futura.
Assim, o ponto 21 da matéria de facto deve passar a ter a seguinte redacção:
«Ao aperceber-se disso, cerca das 04:00 horas da madrugada seguinte, a ofendida saiu para a via pública no sentido de impedir que o arguido gastasse o referido montante em droga.
Cerca das 06:00 horas, a ofendida regressou ao quarto, onde encontrou o arguido, e desferiu-lhe um estalo. Este apertou o pescoço da ofendida com as mãos e empurrou-a para cima da cama, colocou-se por cima dela e manietou-a, tendo iniciado uma discussão».

Alega ainda o recorrente que os pontos 19 e 20[9] da matéria de facto devem ser dados como não provados por não existir qualquer meio de prova que os confirme.
Resulta da sentença recorrida que apenas a ofendida, através das declarações para memória futura, permitiu a fixação dos factos provados, posto que as testemunhas CC a DD nada concretizaram quanto aos acontecimentos descritos.
Ora, mais uma vez, a audição do relato da ofendida vem dar parcial razão ao recorrente, demonstrando que o Tribunal a quo foi particularmente negligente na descrição dos acontecimentos com base na prova efectivamente produzida, fazendo-o com absoluta falta de rigor.
Na verdade, segundo os pontos 19 e 20 da matéria de facto provada:
«Nessa data, e a expensas da própria ofendida, foram pernoitar na residencial sita na Rua ..., no Porto, onde o arguido terá gravado imagens desta, em lingerie.
Já cerca das 22:45 horas, o AA – deixando no quarto a menor, a quem instou para se entregar na Polícia – dirigiu-se à receção da referida unidade hoteleira, alegou ter de se ausentar por falecimento da avó e exigiu a restituição do preço pago. (20) E perante a recusa, o mesmo declarou para o gerente que lhe ia partir o carro e ali voltaria para causar danos no local.
Também nessa noite, o AA – aproveitando o facto de a ofendida estar a dormir – retirou-lhe a quantia monetária de €60,00 (sessenta euros).»

Ora, ouvido o relato que a ofendida faz a partir do minuto 00:20:30 verificamos que esta apenas confirma que foram pernoitar nessa noite, a expensas suas, na residencial ali mencionada e que o arguido saiu levando consigo €60 da ofendida. Esclarece também (00:31:35 a 00:31:58) que ele gravou imagens suas em lingerie, em cima da cama, não no dia da pensão, mas na semana antecedente.

Como tal, impõe-se proceder à modificação dos referidos pontos 19 e 20 da matéria de facto provada, aos quais se atribuí a seguinte redacção:
(19) «Na semana que antecedeu a referida data o arguido gravou imagens da ofendida em lingerie.
Nessa data, e a expensas da própria ofendida, foram pernoitar na residencial sita na Rua ..., no Porto.
(20) Durante a noite, AA, aproveitando o facto de a ofendida estar a dormir, retirou-lhe a quantia monetária de € 60,00 (sessenta euros) e saiu».

Em consequência desta alteração, devem ser dados como não provados os seguintes factos:
«Foi nessa noite e na residencial sita na Rua ..., no Porto, que o arguido gravou as imagens desta em lingerie.
Já cerca das 22:45 horas, o AA instou a menor para se entregar na Polícia e dirigiu-se à receção da referida unidade hoteleira, alegou ter de se ausentar por falecimento da avó e exigiu a restituição do preço pago. E perante a recusa, o mesmo declarou para o gerente que lhe ia partir o carro e ali voltaria para causar danos no local».

Por fim, ainda neste segmento do recurso, o recorrente alega que as fotografias das mensagens não podem ser utilizadas como meio de prova, sendo necessário demonstrar que foram enviadas pelo arguido, o que não ocorreu.
Não lhe assiste, contudo, razão, posto que não lidamos com factos que exijam prova tarifada, através de perícia ou outro meio definido na lei.
Como tal, tendo a ofendida confirmado o envio das referidas mensagens (de fls. 50 e ss.) pelo arguido (00:25:40 a 00:29:11) e tendo o Tribunal a quo dado credibilidade às mesmas, mostra-se tal factualidade suportada pela prova produzida e indicada na sentença recorrida.

Nada mais foi alegado. Nenhuma outra alteração se justifica, pois, introduzir à matéria de facto provada.
Em suma, em face do pouco rigor revelado pelo Tribunal a quo na fixação dos factos, bem patente da audição das declarações para memória futura prestadas pela ofendida, impõe-se proceder às alterações enunciadas.
*
Erro de julgamento quanto à qualificação jurídica.
Neste segmento do recurso, o recorrente põe em causa a qualificação jurídica dos factos tendo em atenção dois diferentes vetores: a inexistência de relação de namoro e a não afectação da dignidade humana da ofendida através das condutas descritas.
Previamente à análise específica de cada uma dessas vertentes da qualificação jurídica, importa realçar que através das alterações introduzidas à matéria de facto provada não foi diminuído o núcleo essencial das condutas lesivas levadas a cabo pelo arguido pressuposto pela decisão recorrida, posto que se tratam, essencialmente, de alterações de contexto que retiraram do texto um certo sentido tendencioso em prejuízo do arguido, sem que o carácter distintivo das acções tenha sido modificado.
Assim, quanto ao ponto 5, apesar de se ter reduzido a conduta a uma única acção, a verdade é que do texto original também não resultava em quantas ocasiões o comportamento se verificou, sempre se impondo a sua redução a uma única.
Quanto ao ponto 7 e à não demonstrada iniciativa do arguido na fuga da ofendida, trata-se de circunstância que não contende directamente com o tipo de crime imputado, antes com o tal contexto romanceado em prejuízo do arguido, que não interfere com o juízo a realizar no âmbito da qualificação jurídica dos factos.
No ponto 9 deixou de estar incluída na conduta o controlo das amizades e acesso às redes sociais, mas mantém-se uma tal conduta quanto ao vestuário da ofendida, a que é associado o aviso de que matava o primeiro que olhasse para ela.
Quanto aos pontos 14 e 15, verificamos apenas uma alteração das concretas expressões utilizadas, sendo certo que o sentido pejorativo é sempre o mesmo.
No ponto 21 deparamo-nos com uma modificação que cria paralelismo com a situação descrita no ponto 16, em que a agressão do arguido é antecedida de um estalo da ofendida.
Finalmente, no que respeita aos pontos 19 e 20 verificamos que apenas se alterou a data em que ocorreu a filmagem da ofendida em lingerie, sendo que os restantes factos não provados não respeitam à interacção do arguido com a mesma.

Posto isto, vejamos como apreciou o Tribunal a quo a subsunção dos factos ao direito[10]:
«D) O DIREITO
1. Enquadramento juridico-penal
Vem o arguido acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º nº 1 al. b) e nº 2 al. a) do Código Penal e pelas sanções acessórias previstas pelo nº 4 e nº 5 da mesma disposição legal.
Preceitua o art.º 152º, n.º1, b), e 2, a), do Código Penal que “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: (…) b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (…)” e “Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”
O bem jurídico aqui protegido é “a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental que (…) afectem a dignidade”[11] da vítima, in casu, a ex-companheira do arguido.
O Conselho da Europa caracterizou a violência na família como “acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade”[12]
“O aparecimento de um novo tipo de crime de maus tratos no Código Penal de 1982, na sequência do projecto de Eduardo Correia, tem como fundamentos, além das experiências estrangeiras, a consciencialização de que a violência frequente entre pessoas relacionadas, em regra dependentes e fragilizadas, é um grave problema social”[13]
Neste preceito estão abrangidas as mais variadas condutas, nomeadamente, ofensas à integridade física, ameaças, provocações, humilhações, injúrias, entre outras, suscetíveis, ou não, de constituir crimes autónomos.
Na redação anterior à Lei 59/07, de 04.09 discutia-se se o preenchimento do mesmo exigia ou não a reiteração dessas condutas, havendo quem propugnasse no sentido afirmativo, como Taipa de Carvalho[14], no entendimento de que “o tipo de crime em análise pressupõe, segundo a ratio de autonomização deste crime, uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois ou mais dos referidos actos afastará o elemento de reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este crime.”
Os Tribunais superiores, contudo, já vinham defendendo que, mesmo com a redação anterior do art.º 152º do Código Penal, a referida conduta criminal se poderia verificar com uma única conduta agressiva, desde que a sua gravidade intrínseca a pudesse qualificar como tal. Neste sentido, entre outros, o Acórdão do STJ de 06.04.2006, in www.dgsi.pt.
No mesmo sentido propugnava também Jorge Bravo,[15] defendendo que “uma conduta de maus tratos físicos que isoladamente poderia integrar um crime de ofensas à integridade física passará a ter uma qualificação jurídico-penal diversa, assumindo a de crime de maus tratos, desde que integrada num comportamento em que se demonstrem antecedentes de maus tratos psíquicos, por exemplo.”
Atualmente, a definição típica consagrada com a redação da Lei 59/2007 já não deixa quaisquer dúvidas de que o legislador quis sufragar e acolher a ausência de exigência de reiteração da conduta.
Os elementos objetivos deste ilícito criminal são, portanto, a existência de um relacionamento conjugal entre o agente e a vítima ou a cessação de tal vínculo, e a provocação de maus tratos físicos ou psíquicos na vítima.
O tipo subjetivo de ilícito exige atuação dolosa por parte do agente, em qualquer das suas vertentes – art.º 14º do Código Penal.
Considerando a factualidade supra elencada, da mesma não resultam dúvidas sobre o cometimento do crime de violência doméstica, na pessoa da ofendida BB, por parte do arguido AA, na forma de agressões verbais, agressões físicas e ameaças.
Apurou-se, desde logo, que o arguido e a ofendida mantiveram um relacionamento de namoro que se iniciou em Fevereiro de 2020 e terminou em Junho de 2021, pese embora o arguido continuar a enviar-lhe sms até Setembro desse ano.
Quanto ao conceito de “relação de namoro” já se pronunciaram a doutrina e a jurisprudência, quanto ao sentido e alcance da inserção das relações de namoro no crime de violência doméstica, pois a referida inserção (da relação de namoro no tipo objetivo da violência doméstica) estará relacionada com a atual consciência da sociedade que reclama uma maior intervenção nas questões relacionadas com a violência de género e com a violência doméstica em particular. Nesta perspectiva, o legislador pretendeu incluir as relações de namoro com o fito de prevenir e sancionar as condutas violentas exercidas pelo parceiro íntimo por causa dessa relação. Neste sentido vide Dora Faria Calejo Machado Pires (Dissertação “O sentido e o alcance da inserção das relações de namoro e equiparadas no crime de violência doméstica – reflexões críticas acerca do tipo – Universidade Católica Portuguesa, Porto, Novembro de 2014, pp. 39-40, in http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/17267/1/TeseDora%20Calejo%20Pires.pdf)
No mesmo sentido, vide o Acórdão da Relação de Évora de 26.07.2018, no Proc.º n.º 9/17.5GBABF.E1, relatado pela Senhora Desembargadora Maria Isabel Duarte, disponível in www.dgsi.pt, nos termos do qual “I – A alínea b) do n.º1 do artigo 152º do Código Penal inclui na previsão do crime de violência doméstica as relações de namoro. II – Estas terão que ser relações sentimentais, afectivas, íntimas e tendencialmente estáveis ou duradouras, que ultrapassam a mera amizade ou relações fortuitas, não se exigindo, todavia, um projeto futuro de vida em comum, na medida em que as relações de namoro não têm, em principio, a pretensão de preencher todas as características associadas à conjugalidade, como seja o futuro de vida em comum.” E ainda o Acórdão da Relação do Porto de 22.03.2022, no proc. n.º 666/20.5PIPRT.P1, relatado pelo Senhor Desembargador Horácio Correia Pinto, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que “Namoro é um compromisso entre duas pessoas que se relacionam durante um lapso de tempo indeterminado, com partilha e comunhão de afectos e interesses pessoais. II – na tipificação do crime de violência doméstica, o legislador não definiu o conceito de namoro, provavelmente pelo seu carácter dinâmico, necessariamente ajustado à realidade actual.” e continua “Namoro é muito mais que um encontro fortuito (one night stand). A relação amorosa não é um fim em si, nem perspectiva necessariamente uma comunhão de cama, mesa e habitação, como acontece, em regra, no casamento – salientar que o conceito de casamento tem sofrido mutaçõe … Aceitamos que é um compromisso entre duas pessoas que se relacionam durante um lapso de tempo indeterminado, com partilha e comunhão de afectos e interesses pessoais comuns. Alguma doutrina fala de namoro simples e qualificado para distinguir o grau de compromisso. Admitimos também que a ideia de intimidade, estabilidade, fidelidade e publicidade da união pode estar comprometida e precisa de ser repensada em termos hodiernos. A noção terá de ser preenchida judicialmente - com jurisprudência - atendendo aos factos concretos e, neste contexto analisando os factos provados, não há dúvida que arguido e ofendida namoraram, embora de forma muito especial. O namoro está consubstanciado nos factos provados. Arguido e ofendida durante o lapso de tempo descrito na sentença – rubrica de factos provados – namoraram ainda que com o mínimo de afecto e estabilidade. O conceito de namoro tem de ser permanentemente ajustado à realidade actual.”
Aqui chegados, considerando a factualidade apurada e as considerações jurisprudenciais supra, é nosso entendimento que entre o arguido e a ofendida existia, sem dúvida, uma relação de namoro, até bastante consistente, bastando, para tanto, atentar no facto de terem relações sexuais frequentes, pernoitarem na mesma cama durante noites inteiras, fazerem refeições juntos, ainda que, por vezes, na rua, ao que acresce o facto de as demais pessoas reconhecerem que ambos tinham uma relação, como a avó da ofendida e os amigos do arguido, onde, por vezes, pernoitaram (segundo declarações da assistente). O certo é que a vivência que faziam juntos e em frente a toda a gente é típica de uma relação de namoro e as demais pessoas reconheciam-na como tal. Acresce que a ofendida nutria sentimentos pelo arguido e este achou que, precisamente pelo relacionamento que tinham, podia trata-la da forma como tratou, o que só se entende pela proximidade relacional existente e o domínio emocional que aquele sentia que tinha sobre ela.
De referir, quanto à alínea a) do n.º2 do art.º 152º do C. Penal, que igualmente se apurou que os factos praticados pelo arguido visaram uma menor, sendo que a ofendida, no período de tempo em que mantiveram uma relação de namoro, apenas tinha 14-15 anos.
Demarcar os limites de idades que classificam a pessoa como uma “criança” ou “adolescente” é imprescindível para vários fins incluindo o Penal. Tal como refere Maria Carrilho Fernandes (na Revista de Direito e Segurança, Ano 11, nº 4, p. 55-87), o “conceito de maioridade, associada a idade, leva a que, relativamente a alguns crimes de natureza sexual, o mesmo acto praticado por menores de idades distintas suscita juízos de censura Penal diferentes, reconhecendo-se que a autonomia sexual apresenta diferentes matizes conforme a idade, numa lógica de progressiva aquisição da capacidade de decidir”. Na Revista de Estudos Demográficos nº 55, “Crianças e Adolescentes em Portugal”, surge referido que em demografia classifica-se como crianças o grupo etário do 0 aos 14 anos e os adolescentes o grupo etário entre os 15 e os 19 anos.
Na nossa ordem jurídica, não existem dúvidas quanto ao conceito de menor, que é fornecido no art. 122º do CC, que determina só se atingir a maioridade aos 18 anos.
*
E neste âmbito, considerando a factualidade apurada quanto à solicitação de fotos da menor em lingerie, cumpre aqui ponderar o art.º 176º, n.º1, b), do C. Penal, quanto à pornografia de menores, nos termos do qual “1- Quem: b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim; é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.
In casu, a parte da previsão cujo preenchimento se discute restringe-se a “utilizar menor em fotografia” pornográfica, ou a “aliciar para esse fim”. O cerne da interpretação aqui a realizar, consiste, pois na definição e delimitação do que se deve entender por “utilizar”, por “aliciar”, e por “pornografia de menores”. No léxico da língua Portuguesa o verbo “utilizar”, significa “tornar útil, empregar utilmente, servir-se de, tirar partido de, aproveitar”. (cfr. dicionário da língua Portuguesa, Porto Editora, 8ª ed.). Numa definição, no âmbito da previsão, “utilizar menor significa servir-se dele como participante a qualquer título (actor, modelo), fazendo fotografias (…), com qualquer dos meios que tais alíneas se referem” (Ana Paula Rodrigues, “Pornografia de Menores”, Rev. do CEJ, 2011, v.15, p. 268). No léxico da língua Portuguesa o verbo “aliciar” significa “atrair com falsas promessas”, “induzir a actos”, “seduzir”. (cfr. dicionário da língua Portuguesa, Porto Editora, 8ª ed.). Numa definição, no âmbito da previsão, “entende-se por aliciamento uma qualquer acção de sedução, no sentido de induzir, atrair a criança a comportamentos de cariz sexual, por meio de conversas e outras condutas (ex. prometer presentes, dinheiro, fama) através da internet e outros meios de comunicação a distância, de modo a abarcar o agressor que começa por aliciar na mira de convencer o menor a intervir efectivamente” (Maria Carilho Fernandes, in Revista de Direito e Segurança, Ano 11, nº 4, p. 55-87). No léxico da língua Portuguesa “pornografia” significa “arte ou literatura que tem por assunto actos obscenos”, “devassidão” (cfr. dicionário da língua Portuguesa, Porto Editora, 8ª ed.). Reconhecendo a inexistência de uma definição normativa de “pornografia de menores”, por Mouraz Lopes/Tiago Milheiro (Crimes Sexuais, 2ª. ed. ª, Almedina, p.172) é preconizado que na interpretação do conceito se leve em consideração o contexto em que se desenvolvem os comportamentos de natureza sexual.
Tendo presentes estes elementos interpretativos, passando à subsunção dos factos objectivos supra referidos à previsão, parece-nos adequado considerar que:
- o mero recebimento e posse pelo arguido – via Instagram - de fotografias, em lingerie, enviadas por uma menor de 14 anos de idade, quando mantinham uma relação de namoro (in casu, iniciavam uma relação de namoro), sem as mostrar a outrém, as ceder, ou por qualquer forma divulgar ou exibir, não integra o conceito de “utilizar menor em fotografia pornográfica”;
- o “pedir” e “incentivar” o envio dessas fotografias, num contexto de namoro com uma menor de 14-15 anos de idade, não integra o conceito de “aliciar para esse fim”, a menor em causa.
Posto isto, a como entendimento vertido no Acórdão da Relação do Porto de 22.04.2020, proferido no proc.º n.º 573/18.1JAAVR.P1, disponível in www.dgsi.pt, o envio de materiais de conteúdo lascivo no âmbito de uma relação de teor sexual e destinando-se os mesmos ao uso pessoal dos próprios, não se pode qualificar como pornográfica para efeitos de incriminação penal, na referida previsão.
Nos presentes autos não se coloca, portanto, esta questão, em causa.
*
Voltando ao caso em concreto, no âmbito de tal relacionamento, para além da relação de namoro e do facto de a assistente ser uma menos, mais se apurou que o arguido dirigiu à ofendida, por várias vezes, expressões ofensivas da sua honra, tal como se apurou que, por várias vezes, a agrediu fisicamente e também, por várias vezes, a ameaçou.
Com tais condutas, o arguido vinha tratando de forma cruel a ofendida, sabendo que com ela estava a manter um relacionamento amoroso, agindo com o propósito concretizado de molestar física e psiquicamente a mesma, ofendendo o seu corpo e a sua saúde.
O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de controlar as vontades e ações da ofendida, de a humilhar, de afetar a respetiva capacidade de reação e movimentação e de a molestar física, sexual e psiquicamente, bem sabendo que atentava contra a sua saúde e contra o direito de confiança desta – no estabelecimento e restabelecimento de uma relação de intimidade – que o mesmo se absteria deste tipo de condutas.
Mais sabia que a BB era menor de idade, até porque lhe declarava que a ia denunciar e, portanto, que a mesma voltaria a ser institucionalizada, tal como a ameaçava de que mostraria as suas fotos mais íntimas aos seus progenitores.
Atuou, sempre, sem qualquer motivo atendível e não desconhecendo do caráter ilícito e criminalmente censurável das suas condutas.
Deste modo, verificando-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de violência doméstica previsto no art.º 152º, n.º1, b), e n.º2, a), do C. Penal e inexistindo quaisquer causas de desculpação ou exclusão da ilicitude, impõe-se a sua condenação.
O arguido vem acusado da prática de dois crimes de violência doméstica.
Não obstante, pese embora um único acto possa, actualmente, consubstanciar a prática desse ilícito criminal, tais condutas, reiteradas, em determinado contexto, igualmente integram o mesmo crime. Decorrendo da factualidade apurada um período de relacionamento contínuo, que se iniciou em Fevereiro de 2020 e terminou em Julho/Setembro de 2021, sendo que os hiatos em que o arguido e a ofendida se separaram não se consideram relevantes pelo fugaz período de tempo que os caracterizou, entendemos estar em causa apenas um crime e não dois, pelo que se efectua tal alteração da qualificação jurídica dos factos apurados, nos termos do disposto no art.º 358º, n.º3, do C.P.P. – não implicando a comunicação prevista no seu n.º 1 – antes se procedendo à respectiva convolação neste momento.»

Se em relação à análise da prova e rigor na fixação dos factos o Tribunal a quo não esteve bem pelas razões indicadas, já quanto à questão do enquadramento jurídico dos factos efectuou uma avaliação que consideramos completa e correcta, e que se acolhe, não se reconhecendo razão ao recorrente.
Relativamente à relação de namoro, o recorrente invoca apenas, com recurso ao acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26-07-2018 mencionado na sentença recorrida, que a existência de duas pessoas numa relação de namoro exige a dualidade, por parte dos seus dois membros, da aceitação e vontade real de participação e permanência nesse vínculo sentimental e afectivo, não bastando que só um dos intervenientes o pretenda e aceite e que por parte do arguido nunca existiu vontade de participar em qualquer vínculo sentimental com a ofendida com carácter de permanência. Critica o Tribunal a quo por não ter procurado apurar junto do arguido se o mesmo considerava que namorava com a ofendida.
Tendo o julgamento decorrido na ausência do arguido por não comparência voluntária do mesmo à audiência, mostra-se algo inusitado imputar ao Tribunal a quo a sua não auscultação sobre a questão. De todo o modo, ainda que o mesmo tivesse comparecido em audiência e negasse qualquer vínculo de namoro com a ofendida, os factos apurados são suficientemente esclarecedores desse tipo de relação, que, ao contrário do invocado, não tem de ter uma perspectiva permanente, mas apenas tendencialmente estável, em contraposição a fugaz, ocasional ou fortuita.
É inequívoco que a alteração legislativa introduzida pela Lei 19/2013, de 21-02, na al. b), do n.º 1, do art. 152.º do CPenal, que acrescentou a relação de namoro a par da relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, já prevista, como alvo da previsão criminal, alargou de forma muito significativa o leque de situações que passaram a ficar sob a protecção deste tipo legal, bastando-se agora o legislador com o estabelecimento de uma relação amorosa não fortuita ou de carácter puramente sexual, onde a intimidade dos afectos associada a alguma continuidade na ligação propicia o desenvolvimento de comportamentos de maior confiança, de mais à vontade, que poderão deixar expostos à violência, através de atitudes atentatórias da dignidade dos visados, aqueles que nesse vínculo se revelam mais frágeis ou subjugáveis ao domínio pelo outro[16].
Apesar de a expressão relação de namoro ter um sentido comummente aceite que não suscita controvérsia, é certo que não deixa de ser sempre, em alguma medida, um juízo valorativo. Nas situações em que se possa suscitar alguma divergência quanto à classificação da relação será avisado que o julgador procure concretizar o mais possível entre os factos provados os elementos identificadores da relação que auxiliam na referida avaliação.
No caso em apreço, as indicações que constam da matéria de facto provada quanto ao comportamento do arguido permitem identificar a relação do arguido e da ofendida como uma relação de namoro, mesmo antes de se encontrarem pessoalmente.
Repare-se que se o intuito do arguido ao manter o contacto com a ofendida pelas redes sociais durante meses, chegando a pedir-lhe uma fotografia em lingerie, fosse dissociada de qualquer relação sentimental de carácter amoroso não teria comunicado à ofendida que vinha a Portugal e não teria passado a viver juntamente com a mesma, por vezes em condições muito precárias, mesmo na rua, sabendo que ela era menor e que havia fugido de casa.
Mais, o facto de a ofendida, na fase inicial do relacionamento, procurar terminar o namoro, por achar que o arguido estava muito tempo sem lhe responder, e de o mesmo se insurgir contra uma tal atitude, ao ponto de ameaçar mostrar a foto íntima ao pai da ofendida, só revela que ambos encararam a relação como de namoro.
Duvidas não existem, pois, que a relação virtual que estabeleceram foi de namoro e que a partir do momento em que se encontraram presencialmente, e ao longo de cerca de sete meses, passaram a coabitar, partilhando cama (mesmo sem relações sexuais num momento inicial), mesa e habitação (quando possível).
Nesta parte, é, pois, de manter a decisão recorrida.

Por fim, quanto à questão da violação da dignidade da pessoa humana, falece igualmente a posição do recorrente, que, na verdade, apenas invoca que não tinha capacidade económica para sustentar a ofendida, mas não justifica, facto a facto, que não a maltratou e humilhou.
E compulsada a matéria de facto provada, não encontramos motivo para censurar a decisão recorrida ao nível da qualificação jurídica dos factos.
Muito se tem escrito sobre este tipo de crime e a jurisprudência tem procurado densificar o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos a que alude a norma em análise.
A decisão recorrida, que se deixou supracitada, fez uma correcta análise do tipo legal, com a qual concordamos e aqui acolhemos, sem necessidade de apreciar de novo de forma extensa os contornos deste crime.
Ainda assim, importa examinar as linhas essenciais do conceito nuclear do tipo de legal, o conceito de maus tratos, que, entendemos, gravitam à volta da ideia de dignidade da pessoa.
O sumário do acórdão da Relação de Évora de 03-07-2012[17] sintetiza expressivamente o âmago da questão do enquadramento deste tipo legal, aí se referindo que «a pedra de toque da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida».

Também no sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 15-10-2012[18], se afirma que:
«III. A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos.
III. Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima.»

Em diferente formulação, refere-se no sumário do acórdão da Relação de Lisboa, de 27-02-2008[19]: «2. Os maus-tratos psíquicos compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional que perturbe «a normal convivência e as condições em que possa ter lugar o pleno desenvolvimento da personalidade dos membros do agregado familiar».

Também no acórdão da mesma Relação de Lisboa, de 04-02-2015[20], se defende que:
«O crime de violência doméstica protege a dignidade e liberdade da pessoa num ambiente de conjugalidade ou equiparado, numa relação livremente assumida. Com tal tipo legal de crime o legislador protege não só quem, inserido numa relação de convivialidade, seja agredido fisicamente ou objeto de torturas, atos cruéis ou vingativos, mas também quem é ofendido na sua dignidade individual, como pessoa que estabeleceu voluntariamente uma relação, impedindo-a que seja humilhada, achincalhada e menosprezada, vendo negada a sua importância familiar e social. Comete o crime de violência doméstica quem restringe arbitrariamente a entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, retira as chaves da casa de família e obsta o acesso à roupa de outrem. Importa considerar como abrangidos por tal tipo legal os casos de “micro violência continuada”.

Por último, salienta-se o sumário do acórdão da Relação de Évora, de 08-01-2013[21], segundo o qual:
«1. O crime de violência doméstica – crime específico impróprio ou impuro e de perigo abstracto – pode criar uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais, designadamente as ofensas corporais simples (artigo 143.º, nº 1 do Código Penal), as injúrias (artigo 181.º), a difamação (artigo 180.º, nº 1), a coacção (artigo 154.º), o sequestro simples (artigo 158.º, nº 1), a devassa da vida privada [artigo 192.º, nº 1. al. b)], as gravações e fotografias ilícitas [artigo 199.º, nº 2, al b)].
2. O bem jurídico tutelado pelo tipo é complexo, incluindo a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de actos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação ou por causa dela.
3 - A expressão «maus tratos», fazendo apelo á «imagem global do facto», pressupõe, no pólo objectivo, uma agressão ou ofensa que revele um mínimo de violência sobre a pessoa inserida em relação; subjectivamente uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; o reflexo negativo e sensível na dignidade da vítima, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.
4 - A «micro violência continuada» é punível pelo artigo 152.º do Código Penal.»

O que se retira do conjunto desta e de outra jurisprudência que trilha de forma uniforme a mesma orientação é que estamos perante maus tratos físicos ou psíquicos quando a conduta do agente, isolada ou reiterada, visto o contexto de actuação e a imagem global do facto, atenta contra a dignidade pessoal do visado.

No caso dos autos apurou-se que o arguido i) procurou subjugar a ofendida à sua vontade através da ameaça de divulgação de imagens íntimas, conferindo-lhe por isso um tratamento degradante, agravado (o que vale para as demais situações) pelo facto de estar em causa uma menor, com idade ao longo dos factos compreendida entre os 14 e os 16 anos, e com um contexto familiar pouco protector, logo particularmente vulnerável à influencia de um namorado mais velho; II) a partir de determinada altura passou a controlar o vestuário da ofendida, afirmando que matava o primeiro que olhasse para ela; iii) numa ocasião, por ciúmes, apelidou a ofendida de porca e mentirosa e agarrou-a pelos braços e encostou-a contra a parede, ao mesmo tempo que dizia que a matava; IV) numa outra ocasião, por a ofendida não querer ter relações sexuais, disse-lhe que não precisava dela, que ela não era ninguém e estava farto dela; na mesma ocasião, depois de a ofendida relatar que um velho se tinha feito a ela, disse-lhe que era uma porca e que dava confiança esses velhos; ainda na sequência destes acontecimentos e depois de ter fechado por duas vezes a porta na cara da ofendida e de esta ter reagido com um estalo, o arguido disse-lhe que a ia matar e deu-lhe socos e pontapés, levando-a a fugir do local; V) ainda numa outra ocasião, quando pernoitavam, a expensas da ofendida, numa residencial, o arguido saiu durante a noite e levou €60 da ofendida; quando esta acordou saiu para a rua à procura do arguido, durante duas horas, e ao regressar ao quarto encontrou o arguido e desferiu-lhe um estalo, tendo este apertado o pescoço da ofendida com as mãos e empurrou-a para cima da cama, colocando-se em cima dela e manietando-a, dizendo que a matava e que ia chamar a polícia e ela ia voltar para a instituição (abusando claramente da situação de fragilidade social da menor), ao mesmo tempo que a apelidava de puta e mentirosa, acabando a ofendida por fugir do local, aproveitando o arguido para subtrair €95 correspondentes às poupanças bancárias daquela; VI) entre Julho e Setembro de 2021 o arguido enviou à ofendida as mensagens elencadas no ponto 25 da matéria de facto provada, através das quais a apelida de porca, puta e badalhoca, gozando por a foder durante seis meses e nunca ter tido qualquer interesse nela, ainda ameaçando publicar imagens íntimas da mesma.

No seu conjunto, não estamos, pois, perante situações isoladas ou de reduzida gravidade. E se é normal alguma imaturidade também por parte do arguido, apenas três anos e meio mais velho do que a ofendida, a verdade é que está subjacente a todos os referidos actos uma elevada desconsideração da ofendida como pessoa, já nem ponderando a circunstância de ser menor, condutas reveladoras de superioridade física e vontade de humilhação e manipulação, com recurso a palavras e expressões inferiorizantes e que denigrem a imagem da visada, procurando o recorrente o enxovalho, a humilhação e a intimidação da ofendida, vexando-a e tratando-a de forma indigna, atentando, por isso, contra a dignidade da mesma enquanto pessoa com quem manteve uma relação afectiva com alguma duração.
Sendo o conjunto de factos apurados aptos a perturbar de forma significativa a saúde, física e psíquica da visada, pessoa em crescimento e formação no período dos factos, não podem os mesmos deixar de ser entendimentos como maus tratos para efeitos de enquadramento da conduta do arguido no crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. b), e 2, al. a), do CPenal.
Nenhuma censura se impõe, assim, fazer nesta sede à sentença recorrida.
*

III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:

a) – Proceder à alteração da matéria de facto provada e não provada nos termos expostos, isto é:
1.1 - Atribuir ao ponto 5) dos factos provados a seguinte redacção:
«Numa ocasião, meses antes de Dezembro de 2020, a ofendida mostrou desagrado na relação e acabou com o namoro, o que levou AA a declarar que caso o fizesse enviaria a referida fotografia para o pai desta»;
1.2. - Levar ao elenco dos factos não provados, sem prejuízo do que ficou consignado no ponto 5 dos factos provados, que:
- «A partir daí, e sempre que a ofendida mostrava desagrado na relação e declarava pretender acabar o namoro, o AA declarava-lhe que, caso o fizesse, enviaria a referida fotografia para os progenitores desta»;
2.1 - Atribuir ao ponto 7) dos factos provados a seguinte redacção:
«Em Fevereiro de 2021, a ofendida foi institucionalizada no «...», na cidade do Porto, de onde fugiu passados que foram cerca de dez dias»;
2.2. - Levar ao elenco dos factos não provados que:
- «A fuga referida no ponto 7 dos factos provados ocorreu por iniciativa do arguido»;
3.1 - Atribuir ao ponto 9) dos factos provados a seguinte redacção:
«A partir daí, o arguido passou a manter, com a menor, relações sexuais.
Também a partir daí, o arguido passou a controlar a sua forma de vestir»;
3.2. - Levar ao elenco dos factos não provados que:
- «A partir daí o arguido passou a exercer domínio e controlo sobre a ofendida, repudiando as amizades desta, obstando que a mesma usasse redes sociais»;
4.1 - Atribuir ao ponto 14) dos factos provados a seguinte redacção:
«Na manhã de 5 de Junho de 2021, no interior de uma residência sita no ... (onde, à data, pernoitavam) e perante a recusa da menor ofendida em ter relações sexuais, o arguido ficou chateado e disse-lhe que não precisava dela, que ela não era ninguém e que estava farto dela»;
4.2. - Levar ao elenco dos factos não provados que:
- «Na manhã de 5 de Junho de 2021, perante a recusa da menor ofendida em ter relações sexuais, o arguido apelidou-a de porca»;
5.1 - Atribuir ao ponto 15) dos factos provados a seguinte redacção:
«Ainda nessa manhã, a ofendida contou ao arguido que um velho se tinha feito a ela, tendo ele respondido porque tu és uma porca e dás confiança a esses velhos.
Chateado, o arguido ainda lhe fechou por duas vezes a porta na cara»;
5.2. - Levar ao elenco dos factos não provados que:
«No elevador, o mesmo continuou a humilhar a BB, apodando-a de «puta», «mentirosa», «maluca» e «psicopata»;
6.1 - Atribuir ao ponto 19) dos factos provados a seguinte redacção:
«Na semana que antecedeu a referida data o arguido gravou imagens da ofendida em lingerie.
Nessa data, e a expensas da própria ofendida, foram pernoitar na residencial sita na Rua ..., no Porto.»;
6.2. - Levar ao elenco dos factos não provados que:
«Foi nessa noite e na residencial sita na Rua ..., no Porto, que o arguido gravou as imagens desta em lingerie.
Já cerca das 22:45 horas, o AA instou a menor para se entregar na Polícia e dirigiu-se à receção da referida unidade hoteleira, alegou ter de se ausentar por falecimento da avó e exigiu a restituição do preço pago»;
7.1 - Atribuir ao ponto 20) dos factos provados a seguinte redacção:
«Durante a noite, AA, aproveitando o facto de a ofendida estar a dormir, retirou-lhe a quantia monetária de € 60,00 (sessenta euros) e saiu»;
7.2. - Levar ao elenco dos factos não provados que:
«Perante a recusa, o mesmo declarou para o gerente que lhe ia partir o carro e ali voltaria para causar danos no local»;
8.1 - Atribuir ao ponto 21) dos factos provados a seguinte redacção:
«Ao aperceber-se disso, cerca das 04:00 horas da madrugada seguinte, a ofendida saiu para a via pública no sentido de impedir que o arguido gastasse o referido montante em droga.
Cerca das 06:00 horas, a ofendida regressou ao quarto, onde encontrou o arguido, e desferiu-lhe um estalo. Este apertou o pescoço da ofendida com as mãos e empurrou-a para cima da cama, colocou-se por cima dela e manietou-a, tendo iniciado uma discussão»;

b) - No mais, manter nos seus precisos termos a decisão recorrida, negando provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 4,5 UC a taxa de justiça (arts. 515.º, n.º 1, al. b), do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).



Porto, 24 de Janeiro de 2024
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Luís Coimbra
Pedro Afonso Lucas
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Uma vez que a matéria de facto não foi numerada, por facilidade de análise do recurso, acrescentámos no início de cada ponto a sequência numérica utilizada pelo recorrente na sua motivação.
[3] Cf. acórdão do STJ de 20-12-2006, Proc. n.º 3379/06, citado no acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 05-12-2007, relatado por Raul Borges no âmbito do Proc. n.º 07P3406, acessível in www.dgsi.pt.
[4] Cf. acórdão do STJ de 28-06-2018, relatado por Souto de Moura no âmbito do Proc. n.º 687/13.4GBVLN.P1.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[5] Cf. acórdão do TRL de 01-06-2016, relatado por Albertina Pereira no âmbito do Proc. n.º 24 781/15.8T8LSB.L1-4, acessível in www.dgsi.pt.
[6] Cf. acórdão do STJ de 15-01-2015, relatado por Helena Moniz no âmbito do Proc. n.º 92/14.5YFLSB, acessível in www.dgsi.pt.
[7] Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[8] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[9] A própria sequência de impugnação da factualidade provada no recurso retrocede quanto a estes dois pontos de facto provados.
[10] As notas-de-rodapé alteraram a numeração original com a inserção do excerto da sentença neste acórdão.
[11] Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense”, p. 332, e no mesmo sentido o Ac do TRP de 31.01.2001, in www.dgsi.pt
[12] Projecto de recomendação e de Exposição de Motivo do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, citado por leal Henriques e Simas Santos, in “Código Penal Anotado”, 2º vol., p.179
[13] Catarina Sá Gomes, in “O Crime de Maus tratos Físicos e Psíquicos infligidos ao cônjuge ou ao convivente em condições análogas às dos cônjuges”, AAFDL, Lisboa, 2002, pp. 13
[14] Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra, 1999, p. 334
[15[ Jorge Reis Bravo, in “Revista do Ministério Público, ano 26, n.º102, p. 70
[16] Neste sentido, António Latas, in “As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei 19/2013 de 21 de fevereiro”, texto que corresponde à comunicação que, numa versão mais curta, foi apresentada em 03-05-2013 em acção de formação do CEJ: Curso de Especialização Temas de Direito Penal e Processual Penal, podendo ser consultado em http://www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS%20-%20MAT%20CRIMINAL/Alter_Cod_Penal_Lei%2019-2013.pdf.
Cf. ainda, entre muitos outros, os acórdãos do TRE, de 26-09-2017, Proc. n.º 518/14.8PCSTB.E1, relatado por António João Latas, e do TRP de 07-07-2016, Proc. n.º 8/15.9GAPRD.P1, relatado por Horário Correia Pinto, e de 08-03-2017, Proc. n.º 121/15.5JAPRT.P1, relatado por Jorge Langweg, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[17] Processo 36/15.7PAENT.E1, acessível in www.dgsi.pt.
[18] Processo 639/08.6GBFLG.G1, acessível in www.dgsi.pt.
[19] Processo n.º 1702/2008-3, acessível in www.dgsi.pt.
[20] CJ, Ano XL, tomo I, página 306.
[21] Processo n.º 113/10.0TAVVC.E1, acessível in www.dgsi.pt.