CRIME DE COAÇÃO SEXUAL
ACTO SEXUAL DE RELEVO
LACUNA DE PUNIBILIDADE
Sumário

I – Um apalpão na zona nadegueira da ofendida, efectuado de modo inesperado, ao mesmo tempo que o agente lhe cheira o pescoço e acompanhado de frases de natureza sexual, distancia-se de um simples ato sexual, constituindo um ato sexual de relevo.
II – O nº1 do artº 163º do CP na redacção dada pela Lei n.º 101/2019, de 06 de Setembro deve ser interpretado no sentido de continuar a integrar o conceito de “sofrer”, interpretação que não viola o princípio da legalidade.

Texto Integral

1ª secção criminal
Proc. nº 891/20.9PAESP.P1

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal colectivo), do Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira, juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, a arguida AA foi submetida a julgamento e a final foi proferido acórdão de cuja parte decisória consta o seguinte:
(…)
Por todo o exposto, julga-se parcialmente procedente, por parcialmente provada, a acusação do Ministério Público e, em consequência, decide-se:

a) absolver a arguida pela prática de 3 (três) crimes de maus tratos do artigo 152º-A, nº1, a) do Código Penal na pessoa dos menores BB, CC e DD;
b) absolver a arguida pela prática de 3 (três) crimes de importunação sexual do artigo 170º, nº1 do Código Penal, um contra EE e dois contra FF;
c) condenar a arguida pela prática de 7 (sete) crimes de maus tratos do artigo 152º-A, nº1, a) do Código Penal na pessoa dos menores GG, HH, II, JJ, KK, LL e MM, na pena, por cada um deles, de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão;
d) condenar a arguida pela prática de 1 (um) crime de gravações e fotografias ilícitas do artigo 199º, nº2, a) do Código Penal na pessoa do menor LL, na pena de 2 (dois) meses de prisão;
e) condenar a arguida pela prática de um crime de coação agravada na forma tentada dos artigos 154º, nº1 e 155º, nº1, d), ambos do Código Penal, na pessoa de NN, na pena de 7 (sete) meses de prisão;
f) condenar a arguida pela prática de 1 (um) crime coação sexual do artigo 163º, nº1 do Código Penal (de acordo com a alteração da qualificação jurídica operada relativamente a um crime de importunação sexual) na pessoa de EE, na pena de 11 (onze) meses de prisão;
g) condenar a arguida, em cúmulo jurídico das penas aplicadas em c) a f), na pena única de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão;
h) suspender a execução da pena de prisão pelo período de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses, nos termos do artigo 50º, nºs 1 e 5 do Código Penal, acompanhado do regime de prova, no qual se inclui, nos termos dos artigos 51º, nº1, a), 53º e 54º, nº3 do Código Penal e o dever de:
- pagar no prazo da suspensão a indemnização devida à vítima infra fixada;
i) condenar a arguida no pagamento, a título de arbitramento de uma indemnização a cada um dos menores, GG, HH, II, JJ, KK, LL e MM, no montante de €750,00 (setecentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora a contar da decisão até efetivo e integral pagamento, nos termos do art. 82º-A do Código de Processo Penal;

j) indeferir o pedido de recolha de ADN;

k) condenar a arguida no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3,5 (três e meia) UCs, nos termos dos artigos 513º, nº1 e 514º, nº1 do Código de Processo Penal, 8º, nº9 do Regulamento das Custas Processuais.

(…)

*
Inconformada, a arguida AA interpôs recurso, no qual formula as seguintes conclusões:
(…)
1. Não existiu qualquer violência no ato da Arguida, nem a mesma ameaçou a ofendida ou a impossibilitou de reagir.
2. O facto de a Arguida apalpar a ofendida uma única vez, não constitui um ato sexual de relevo.
3 Tato sexual de relevo, são todos os atos sexuais graves, que objetivamente representem uma importante limitação para a liberdade de determinação sexual da vítima, o que in casu, não sucedeu.
4. Não se encontram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal previsto e punido no artigo 163.º, n.º 1 do Código Penal.
5. A Arguida terá de ser absolvida do referido crime.
6. A determinação da medida concreta da pena tem como limite inultrapassável, entre outras, as necessidades de prevenção, geral e especial.
7. As exigências de prevenção especial e geral, o grau diminuto de culpa com que a
Arguida agiu, o facto global e a personalidade revelada, conclui-se que a pena 11 meses de prisão, fere o prescrito no artigo 77.º do Código Penal, por excessiva e desproporcional.
8. A pena aplicada pelo Tribunal é desproporcional, excessiva e injusta, violando o disposto nos artigos 40º, 50º 71º, todos do Código Penal
9. Ainda que assim não se entendesse, o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
10. Teria de ser aplicado o princípio in dubio pro reo, dado que, não foi produzida prova bastante, que com o mínimo de certeza, indique que a Arguida cometeu os crimes pelos quais foi condenada.

11. Nos termos do supra alegado e, não tendo a Recorrente praticado os crimes pelo quais foi condenada, deve o mesmo ser absolvida.

TERMOS EM QUE E, NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONSEQUÊNCIA, SER A RECORRENTE ABSOLVIDA DO CRIME

PELO QUAL FOI CONDENADA.

(…)

A Magistrado do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta acompanhando a resposta do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.
*
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
*
O acórdão recorrido deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
De facto

Factos provados

Da prova produzida, resultaram provados os seguintes os factos, com relevância para a causa:

1. Pelo menos desde o ano letivo 2015/2016, a arguida é docente de quadro de nomeação definitiva do grupo de recrutamento de “Educação Especial” por ter habilitações específicas para lidar com crianças com necessidades educativas especiais por ter frequentado Curso de Estudos Superiores Especializados em Educação Especial: opção principal: Problemas intelectuais, motores; opção complementar: Problemas auditivos, conforme registo biográfico da mesma junto do Ministério da Educação.
2. No ano letivo de 2020/2021, a arguida exercia funções como professora/docente junto do Agrupamento de Escolas ..., em Espinho.
3. No início desse ano letivo, em setembro de 2020, a arguida prestou serviço no Centro de Apoio à Aprendizagem para Alunos com Autismo, integrado naquele agrupamento de escolas.
4. Nessa data, integravam aquela estrutura de ensino especial dez alunos menores, a saber:
- GG, nascido em ../../2008,
- BB, nascido em ../../2007,
- HH, nascido em ../../2008,
- II, nascido em ../../2006,
- JJ, nascido em ../../2006,
- KK, nascido em ../../2005,
- CC, nascido a ../../2006,
- DD, nascido a ../../2004,
- LL, nascido em ../../2005, e,
- MM, nascido em ../../2003.
5. Todos estes menores sofriam nessa data de perturbação do espectro autista com défice cognitivo associado e limitações para estabelecer diálogos, bem como manifestar sofrimento.
6. Tal perturbação configura uma doença crónica, grave e permanente do sistema nervoso central, não tem cura e implica graves dificuldades na interação social, aprendizagem, linguagem e comportamento daquelas crianças, sendo que algumas não conseguem falar, controlar os esfíncteres ou realizar simples tarefas do quotidiano, necessitando de permanente apoio para tais atividades.
7. Perturbação esta e respetivas caraterísticas eram, à data, do perfeito conhecimento da arguida.
8. Os menores HH, KK, CC e DD comunicam verbalmente e conseguem manter um diálogo.
9. Os menores GG, II e LL apenas dizem palavras soltas ou pequenas expressões, com duas ou três palavras, com pedidos para satisfazerem as suas necessidades básicas ou as suas rotinas diárias.
10. Os menores BB, JJ e MM não verbalizam palavras e expressam apenas alguns sons.
11. A arguida exerceu as funções de docência àqueles menores no período compreendido entre 18.09.2020 e 27.11.2020, foi suspensa preventivamente de tais funções em 31.12.2020 até final do ano letivo de 2020/2021 e demitida da função pública por decisão do Sr. Ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, de 27.07.2021.
12. Durante aquele período, diariamente, a arguida não realizava as atividades letivas previstas, permanecia sentada a manusear o telemóvel durante as aulas e, nos termos que se descrevem nos pontos seguintes, desferia bofetadas e pontapés nos menores ofendidos melhor identificados infra, mais lhes desferindo reguadas no corpo, e apelidava-os de “BURROS”, “ANIMAIS” e “PORCOS”, gritando com os mesmos.
13. No dia 13 de outubro de 2020, da parte da manhã, no interior da Escola ..., sita em Espinho, no interior da sala de aula, a arguida abeirou-se do menor II e desferiu-lhe duas bofetadas na face por, alegadamente, este não parar de rir.
14. No dia 13 de outubro de 2020, a arguida perante uma crise do menor KK mordeu-lhe uma bochecha da face.
15. Diariamente, no período compreendido entre 18/09/2020 e 27/11/2020, no interior da sala de aulas, a arguida disse ao ofendido LL que ele era “PORCO”, “BURRO”, “ESTÚPIDO” e “ANIMAL”, tal como “NÃO TENS EDUCAÇÃO”, “SE NÃO TENS EDUCAÇÃO, EU DOU-TA”.
16. O que aconteceu quando este menor ia buscar água e cuspia por ter várias estereotipias e quando este menor estava ao pé da a arguida, esta dizia-lhe que não o queria ao pé dela.
17. Em datas não concretamente apuradas, mas por diversas vezes, no período compreendido entre 18/09/2020 e 27/11/2020, no interior da sala de aulas, a arguida desferiu pontapés no ofendido KK.
18. Em data não concretamente apurada, no período compreendido entre 18/09/2020 e 27/11/2020, no interior da sala de aulas, a arguida, possuindo sentimentos lascivos e aproveitando-se da incapacidade e inocência do menor KK, com 14-15 anos de idade, encostou o seu peito (zona mamária) na face do aluno proferindo a seguinte expressão: “ERA PARA VER A REAÇÃO DO KK! ELAS ATÉ ESTÃO SOLTINHAS. NÃO TENHO SOUTIEN”, ao mesmo tempo que o abraçava.
19. Em data não concretamente apurada, situada entre 05 e 09 de outubro de 2020, no interior da sala de aula, possuindo sentimentos lascivos e aproveitando-se da incapacidade e inocência do menor MM, de 17 anos de idade, na sequência deste ter colocado a sua mão na zona pélvica/virilha, perto da genitália, a arguida disse-lhe para não a tirar.
20. Em data não concretamente apurada, situada entre 18/09/2020 e 27/11/2020, no interior da sala de aula, quando o menor MM andava para trás e para a frente, a arguida disse-lhe: “TU NÃO FAZES NADA. EU ATÉ TENHO UM VÍDEO TEU, A ANDAR PARA TRÁS E PARA A FRENTE.”
21. Em data não concretamente apurada, mas situada entre 18/09/2020 e 14/10/2020, a arguida abeirou-se de EE, assistente operacional a exercer funções naquele agrupamento de escolas, e, motivada por sentimentos lascivos, apalpou-lhe a zona nadegueira, mais lhe cheirando o pescoço, dizendo “CHEIRAS BEM!” e relatando-lhe pormenores da sua vida íntima/sexual, dizendo-lhe “COM A FOME QUE ANDA AQUI” após EE se mostrar surpreendida e lhe dizer: “Olha, olha!”.
22. No dia 08 de outubro de 2020, no interior da sala de aula, a arguida abeirou-se da assistente operacional FF e referiu que para satisfazer as suas necessidades íntimas usa vibradores e bolas tailandesas, mais lhe referindo: “EU QUERO É CARNE FRESCA, PORQUE ISTO LAVADINHO, CHEIROSINHO E NÃO TEM CONTA QUILÓMETROS, PODE SER USADO HOJE COM UM, AMANHÃ COM OUTRO”.
23. Em data não concretamente apurada, mas situada entre 18/09/2020 e 14/10/2020, no interior da sala de aula e defronte aos alunos, menores ofendidos (3 deles com 12 anos, 4 com 14 anos, 1 com 15 anos, 1 com 16 anos e 1 com 17 anos) e assistentes FF e EE operacionais, a arguida levantou a saia que envergava até se ver a cueca, visualizando-se as suas zonas íntimas e puxou os seus collants para cima.
24. Em data não concretamente apurada, mas situada entre 18/09/2020 e 14/10/2020, no interior da sala de aula e defronte aos alunos e assistentes operacionais, a arguida referiu para FF (assistente operacional) que pretendia encostar os miúdos todos à parede, baixar-lhes as calças e medir os seus pénis a ver qual deles tinha o maior, dizendo: “QUAL SERÁ QUE TEM A MAIOR? VAMOS ENCOSTÁ-LOS A UMA PAREDE E VAMOS MEDIR AS PIROCAS”.
25. Em data não concretamente apurada, mas situada entre 18/09/2020 e 14/10/2020, no interior da sala de aula a arguida abeirou-se do menor HH, quando este se encontrava a rir descontroladamente por estar nervoso, disse-lhe em voz alta e agressiva: “ESTAS A RIR-TE DE QUÊ? DIZ-ME NA MINHA CARA DE QUE TE ESTÁS A RIR.”, “ÉS UM RISINHOS” e desferiu-lhe duas bofetadas com força.
26. Em data não concretamente apurada, situada entre 18/09/2020 e 27/11/2020, no interior da sala de aula, quando o menor HH se encontrava a fazer um jogo, a arguida disse-lhe em alta voz: “HH, JÁ FIZESTE O JOGO? HH, JÁ FIZESTE O JOGO? HH, JÁ FIZESTE O JOGO? NÃO VAIS LANCHAR ENQUANTO NÃO DIZERES!”, de tal forma que este menor ficou cheio de medo.
27. No dia 14 de outubro de 2020, pelas 13h20, no interior da sala de aula, a arguida abeirou-se do menor HH e puxou-lhe uma orelha para cima, com força, dizendo-lhe: “ENTÃO FOSTE DIZER AOS TEUS PAIS QUE EU TE DEI DOIS ESTALOS? DEPOIS FALAMOS”.
28. No dia 09 de novembro de 2020, o menor KK entrou em crise, o II começou a gritar e o LL começou também a gritar e a chorar.
29. Nesse momento, a arguida agarrou numa régua de 50cm e desferiu com a mesma, diversas pancadas, durante mais de um minuto, nas pernas dos menores II e LL, causando-lhes dor, sofrimento e pânico.
30. Nesse mesmo dia, pelas 16 horas, a arguida virou-se para a assistente operacional e para o motorista que recolhia os menores à escola e, empurrando o menor II, disse-lhes: “PEGUEM LÁ ESTE ANIMAL!”.
31. Em dia não concretamente apurado, em outubro de 2020, a arguida remeteu recado escrito no Caderno Diário aos pais do menor LL no qual escreveu que era impossível estar ao pé dele por cuspir muito, ele parecia uma ave de rapina por comer a comida dele e ir buscar a comida dos colegas e que ele não respeita ordens.
32. No dia 25 de novembro de 2020, no interior da sala de aula, a arguida, quando se encontrava a fazer uma atividade com o menor JJ, referiu para as assistentes operacionais EE e FF que o menor era “DISLÉXICO” e “VAZIO”, querendo referir que não valia a pena ensinar-lhe nada.
33. No dia 26 de novembro de 2020, no interior da sala de aula, o menor GG estava a repetir constantemente as palavras “lanchar, carrinha, professora” (estereotipia).
34. Desagradada, a arguida abeirou-se deste menor e gritou-lhe “CALA-TE ESTÚPIDO! NÃO ESTÁ CÁ O LL ESTÁS CÁ TU HOJE!” e, de seguida, desferiu-lhe uma pancada na cabeça, com tamanha força que o menor se desequilibrou.
35. Em datas não concretamente apurada, no período compreendido entre 18/09/2020 e 27/11/2020, no interior da sala de aulas, a arguida, com recurso ao seu telemóvel, fotografou o menor LL, quando se encontrava sentado no chão a olhar para o lado sem estar a desempenhar qualquer tarefa, o que fez sem conhecimento ou consentimento do seu legal representante e guardou no seu telemóvel.
36. Mercê destes comportamentos da arguida foi-lhe instaurado processo disciplinar n.º ..., no qual foi suspensa e a final foi-lhe aplicada a sanção disciplinar de demissão da função pública.
37. No dia 26 de dezembro de 2020, pelas 21h18, a arguida, irritada com o facto de contra si ter sido instaurado processo disciplinar remeteu a seguinte SMS para o legal representante do menor LL, NN:
“Eu não pretendo ser mal educada com ninguém mas há coisas que gostava muito de esclarecer será que o vosso filho conta tudo em casa???? Pois era bom que assim fosse pq eu quando chamo porquinho a um aluno é com carinho para tentar que mude de hábitos. E eu estava na escola para falarem comigo agora levantarem um processo??? Como sabem todos os professores desta área tem muitos conhecimentos ao fim de 25 anos de trabalho vejo-me numa situação que nem comento e queria falar consigo pq tb tenho a capacidade como me levantarem um processo de apresentar fotografias vídeos das atitudes do LL e com isto capacidade de ir a um tribunal de menores e depois que se faça justiça já arranjei casa para muitos meninos mas tb já ajudei muitos a serem retirados aos pais pela protecção de menores agora os senhores façam o que for melhor pq eu só queria falar não sou o bicho que lhe descreveram boa noite”.
38. Em consequência dos comportamentos da arguida, GG, HH, II, JJ, KK, LL e MM viveram num clima de medo, sofrimento, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação, em pânico e sem conseguirem entender o motivo pelo qual eram assim tratados, nem tendo capacidade de reagir às investidas da arguida, receando que a mesma voltasse a molestar os seus corpos ou lhes proferisse expressões que atentam a sua honra e consideração como seres humanos.
39. A arguida atuou de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de maltratar e molestar física, sexual e psicologicamente os menores seus alunos supra referidos, quando estavam entregues à sua responsabilidade e tinha o dever de educar e proteger, ofendendo-os na sua honra e consideração, amedrontando-os, e molestando os seus corpos, a sua liberdade e desenvolvimento sexual e ofendendo também os seus sentimentos de timidez e vergonha.
40. A arguida agiu indiferente ao facto de estes possuírem doença crónica incapacitante, serem totalmente frágeis e indefesos, provocando-lhes dor física e emocional, e bem assim, ao facto de o fazer dentro da sala de aulas.
41. A arguida pretendeu causar dor e sofrimento aos ofendidos, humilhando-os e desprezando-os como seres humanos.
42. A arguida agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que captava fotografia do menor LL, no contexto escolar, com o objetivo de vir a expor o mesmo publicamente, a qualquer terceiro, bem sabendo que as imagens supra descritas retratam cenas da vida privada deste menor e da sua condição neurológica, que não estava autorizada a fazê-lo e que agia contra a vontade do seu legal representante e em prejuízo do direito à imagem da criança.
43. Agiu a arguida, nas circunstâncias referidas em 21, com o propósito, conseguido, de incomodar a assistente operacional EE com as palavras dirigidas a esta relativamente à sua sexualidade, a qual, perante as palavras que lhe dirigiu, reagiu com desconforto e desagrado, afastando-se da arguida.
44 Agiu ainda a arguida de forma livre e com o propósito concretizado de utilizar as expressões constantes da SMS referida em 37, que sabia serem adequadas a produzir receio, medo e inquietação ao legal representante do menor LL, bem como pretendia que o mesmo retirasse a queixa apresentada pelo mesmo no âmbito do processo disciplinar sob a ameaça dela divulgar vídeos do LL e encetar diligências para que o menor fosse retirado à sua família.
45. A arguida agiu sempre deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que tais condutas são proibidas e punidas por lei penal como crime.

Mais se provou que:

46. Na data dos factos supra descritos, a arguida residia em casa arrendada na cidade de Espinho com o seu companheiro.
47. No ano letivo de 2020/2021, a arguida requereu mobilidade, para lecionar no agrupamento de escolas ..., daquela localidade, por questões de saúde, e pela proximidade ao seu companheiro aí residente, com quem estabeleceu uma relação de namoro em 2019 que mantém presentemente.
48. A dinâmica da relação é estável, harmoniosa e norteada pelo respeito e interajuda.
49. A subsistência do casal assentava no vencimento de ambos, proveniente das suas profissões, considerada pela arguida como suficiente para fazer face às despesas do quotidiano.
50. Contudo em finais de dezembro de 2020, na sequência de processo disciplinar, a arguida foi suspensa das atividades letivas, tendo regressado sozinha a ..., por alegadas dificuldades económicas que não lhe permitia suportar os custos inerentes à renda de casa que o casal tinha arrendado, pelo facto de ambos terem ficado desempregados e também para auxiliar o seu progenitor que se encontrava doente, que veio a falecer há poucos meses atrás.
51. A arguida manteve durante cerca de 22 anos uma relação matrimonial, da qual nasceram dois descendentes, um deles autonomizado e a viver no Mónaco e a filha mais nova estudante universitária na Covilhã, que regressa a casa da progenitora aos fins-de-semana e férias.
52. A arguida verbaliza ter vivido um casamento atribulado, pautado por várias discussões motivadas por ciúmes e violência doméstica que culminou na separação do casal e consequente divórcio, em 2016, mantendo, contudo, atualmente, uma relação de amizade.
53. A doença da mãe e consequente falecimento, a doença de foro oncológico do ex-marido e a separação do casal terão potenciado na arguida um quadro de depressão, com tentativa de suicídio, perante a qual sofreu, em 2016, internamento em serviço de psiquiatria no Hospital ....
54. Após alta hospitalar a arguida passou a ser acompanhada em consultas de psiquiatria no Hospital 1... em ..., que teve de abandonar há cerca de um ano, por alegadas dificuldades financeiras e de transporte.
55.Contudo, encontra-se em acompanhamento, com o seu médico de família, no ponto clínico do Centro Clínico ..., referindo também padecer de problemas de tiroide, em avaliação, e síndrome vertiginoso
diagnosticada há alguns anos atrás, que lhe motivaram alguns acidentes de viação.
56. A arguida, não obstante, encontra-se medicada para o efeito, encontrando-se estável.
57.Em termos económico-financeiros, a arguida verbalizou vivenciar, presentemente, algumas dificuldades económicas, dada a sua situação de desemprego.
58. Conta mensalmente com o Rendimento Social de Inserção (RSI), no valor aproximado de 320€, acrescido de um cabaz alimentar que a arguida solicita à Santa Casa da Misericórdia ..., nos momentos de maior dificuldade.
59. Tem como despesas fixas o valor aproximado de 260€/mensais, que se prendem com o pagamento de água, luz, telecomunicações e valor que despende com o curso superior da filha.
60. Verbalizou ainda encontrar-se a decorrer a execução da hipoteca sobre a sua habitação, onde reside e demais bens, por alegado incumprimento de crédito bancário, que a arguida requereu para realizar obras de reconstrução e melhoria na habitação, adquirida por herança dos seus progenitores.
61. Aguarda por proposta de emprego na Câmara Municipal ....
62. Licenciada ao nível do ensino básico com especialidade em educação especial, a arguida lecionou em algumas escolas do distrito de Bragança, especialmente em regime de substituição.
63. Com o intuito de adquirir vínculo efetivo concorreu para os Açores, onde vinculou, regressando ao continente cerca de um ano depois, ficando afeta à Delegação da escola de ... no Distrito de Viseu.
64. Para aproximação à sua terra natal, ..., e por questões de saúde, a arguida lecionou durante vários anos na escola ..., ... e ..., até ao ano letivo de 2020/2021 em que pediu mobilidade para o Agrupamento de Escolas ... em Espinho.
65. O quotidiano da arguida é centrado em casa com escassa motivação para a realização de tarefas ou diversão.
66. Contudo, pertencendo ao agrupamento de escuteiros de ..., vai realizando algumas atividades que o agrupamento possui e proporciona ainda que não mantenha com crianças e jovens grande proximidade por decisão do .../Sul de escuteiros aquando do conhecimento por parte deste, do envolvimento da arguida em processo disciplinar e factos que o motivaram.
67. Anteriormente a arguida fez parte dos agrupamentos de escuteiros de ... e de ....
68. A arguida expressa preocupação e ansiedade pelo desfecho do processo, referindo repercussões negativas ao nível familiar e profissional resultantes do presente confronto judicial, porquanto a arguida ficou desempregada, com dificuldades económicas e com escasso apoio familiar.
69. No que se refere à existência deste processo, manifesta sentimentos de revolta face aos factos constantes na acusação, acreditando que tudo se esclarecerá em audiência de julgamento, contudo afirma estar recetiva a colaborar com o sistema de administração da justiça.
70. Na comunidade local onde reside, o percurso de vida da arguida, a instauração dos presentes autos, assim como, a tipologia de crime que lhe é imputada, porém, não se verificam sentimentos de alarme que ponham em causa a paz social.
71. A comunidade é unânime em afirmar que a arguida é pessoa educada e pacata.
72. A arguida não tem averbadas quaisquer condenações no seu certificado de registo criminal.
Factos não provados
a. A decisão referida em 11 tornou-se definitiva por não ter sido impugnada pela arguida.
b. A arguida praticou os factos referidos em 12 relativamente a todos os menores identificados em 4.
c. Durante o período referido em 11 dos factos provados e nos termos mencionados em 12 dos factos provados, a arguida apelidava os menores de “DEFICIENTES”, “CHATOS”, “BESTAS”, “MOLENGÕES”, “PASCÁCIOS” e “CHATOS” e causava-lhes pequenas nódoas negras no corpo.
d. Diariamente, no período compreendido entre 18/09/2020 e 27/11/2020, no interior da sala de aulas, a arguida disse ao ofendido LL que ele era “PALHAÇO”.
e. Nas ocasiões referidas em 16 dos factos provados, a arguida desferia pontapés nas pernas do menor LL, o que deixava este menor agitado sem se queixar de dores por pouco falar.
f. Na ocasião referida em 17 dos factos provados a arguida apelidou o menor KK de “PORCO” e “ESTÚPIDO”.
g. Na ocasião referida em 25 dos factos provados, a arguida disse ao menor HH “ÉS UM PALHAÇO” e este ficou sem ar de tanto pânico.
h. Em data não concretamente apurada do mês de novembro de 2020, porque o menor LL não queria entrar para a carrinha de transporte, a arguida proferiu-lhe as seguintes expressões: “ENTRA SEU ANIMAL! ANDA PARA DENTRO SUA BESTA!”.
i. Agiu a arguida, nas circunstâncias referidas em 22 e 23, com o propósito, conseguido, de incomodar as assistentes operacionais EE e FF.

O Tribunal não se pronuncia quanto à demais matéria alegada por ser conclusiva, de direito, por corresponder à enunciação de meios de prova e/ou por ser repetida ou irrelevante para a decisão da causa.
*
– Motivação da decisão da matéria de facto

O Tribunal fundamentou a sua convicção quanto aos factos provados com base na prova documental junta aos autos, nas declarações prestadas e na prova testemunhal produzidas em audiência de julgamento a seguir enunciadas, devidamente analisadas à luz das regras da experiência e da normalidade.
A arguida, que quis prestar declarações, negou a prática da quase totalidade dos
factos que lhe são imputados, justificando-os ou dizendo que não aconteceram, e admitiu poder ter dirigido alguns dos nomes, em particular o epíteto “porco” ou “porquito”, a algum ou alguns alunos, justificando que se trata de um hábito e pedindo desculpa por tal facto.
Concretamente:

- confirmou o vertido nos factos provados sob os nºs 1 a 11, com exceção da definitividade da decisão de demissão, alegando tê-la impugnado junto do TAF, e de ter exercido as funções de docência até 31.12.2020, dizendo que em novembro foi colocada na biblioteca;
- admitiu poder ter chamado, em situações pontuais, alguns dos nomes referidos em 12 (mas seguramente não “pascácio” por não ser um termo próprio da região donde é natural);
- admitiu terem ocorrido os factos descritos em 14 mas por legítima defesa;
- admitiu ter cheirado o pescoço da assistente operacional EE, justificando que queria averiguar do cheiro do seu perfume por lhe ter comprado um igual;
- admitiu ter dito ao menor HH que se estava sempre a rir e de ter conversado com o pai deste sobre isso, mas não que lhe tivesse batido;
- admitiu os factos referidos em 26, mas como estratégia para o menor fazer o jogo atenta a sua personalidade e que acabou por lhe dar o lanche;
- admitiu ter puxado a orelha do menor nos termos referidos em 27, mas não ter-lhe dado estalos;
- admitiu ter escrito o mencionado nos factos referidos em 32;
- admitiu ter fotografado o menor LL, mas justificando ter consentimento dos respetivos representantes legais e que era para confrontar os pais com o comportamento do filho (que alegadamente punha as mãos nos sapatos e depois na boca em época de COVID);
- admitiu ainda ter enviado a mensagem referida em 38, mas negando ter tido intenção de coagir ou ameaçar o pai do menor;
- negou os restantes factos vertidos na acusação.

As suas declarações serviram para confirmar os factos que admitiu, ainda que não tenham conseguido convencer sobre as justificações apresentadas por não serem lógicas e/ou por terem sido infirmadas pela demais prova produzida.
Igualmente na parte em que negou os factos imputados, as suas declarações não gozaram do crédito Tribunal, exceto na medida em que foram confirmadas pelos demais meios de prova produzidos nos termos que a seguir se referem, pois que, demonstraram ser uma tentativa da arguida de minimizar a importância dos factos apesar de ter conhecimentos específicos na área de ensino especial, não podendo ignorar a inadequação de certos tratamentos dos menores.
Por outro lado, a sua postura, revelando displicência e enfado perante a acusação, argumentado que o processo foi instaurado porque as assistentes exageram e queriam mandar na sala, fragilizou a veracidade do seu relato, pois que, qualquer profissional, no seu lugar, levaria a sério as imputações em causa nos presentes autos.
No que se refere à prova testemunhal indicada na acusação, resultou dos depoimentos produzidos a confirmação de grande parte dos factos, tendo as testemunhas, que os presenciaram, descrito os mesmos de forma lógica, coerente, coincidente entre si e sincera, preferindo responder não saber quando não se recordavam exatamente dos factos, lembrando-se umas de mais pormenores do que outras, o que se afigurou natural face ao tempo decorrido, e não patenteado qualquer animosidade relativamente à arguida que não a decorrente da prática dos factos em causa nos presentes autos, gozando, por isso, do crédito do Tribunal.
Assim, as testemunhas EE e FF, assistentes operacionais, situando o seu relato no lugar e no intervalo de tempo referido sob os nºs 3 e 11 da factualidade provada, relataram e descreveram os factos provados sob os nºs 4 a 10 (número, nome e perturbações manifestadas pelos menores e seu conhecimento pela arguida), nº12 (prestação da arguida e os nomes que apelidava os menores ali mencionados e não todos os referidos na acusação),nºs 13 a 15 (comportamentos concretos da arguida relativamente aos menores ali identificados, não confirmando todos os epítetos descritos na acusação, mas apenas os que vieram a ser dados como provados e não tendo presenciado a arguida a morder a bochecha do menor KK), nº16 (explicando as estereotipas do menor em causa, que isso causava repulsa à arguida e que esta o manifestava perante do menor nos termos que vieram a ser dados como provados mas não como mencionados na acusação), nº17 (esclarecendo que o menor KK tem crises violentas durante as quais é necessário agarrá-lo e que foi nesse contexto que os pontapés foram desferidos, admitindo a segunda testemunha por não ter uma memória clara dos acontecimentos a possibilidade da arguida se estar a defender), nº18 (descrevendo em pormenor o sucedido), nº19 (esclarecendo que foi o menor que teve a iniciativa de por a mão naquela parte do corpo da arguida, mas também que apesar de lhe terem dito para tirar a mão por tal não ser apropriado, a arguida disse ao menor para a deixar ali), nº20 (apenas confirmado pela segunda testemunha, por a primeira não se ter referido a tais factos, de forma muito segura e pormenorizada), nº21 (confirmado pela testemunha a motivação da arguida, a qual disse que o apalpão ocorreu numa ocasião distinta daquela em que a arguida lhe cheirou o pescoço, todavia, atenta incerteza que relativamente a tal aspeto revelou e o princípio constitucional do in dubio pro reo plasmado artigo 32º da Constituição da República Portuguesa tinha de concluir-se que tal sucedeu na mesma ocasião por ser mais favorável à arguida), nº22 (confirmado pela testemunha que foi a interlocutora da arguida), nº23 (tendo ambas as testemunhas descritos os factos em termos idênticos aos constantes na acusação), nº24 (confirmados de forma segura pela segunda testemunha), nº25 (confirmado por ambas as testemunhas de forma idêntica o sucedido, mas não todos os nomes mencionados na acusação, nem que o menor ficou em pânico), nº26 (confirmado parcialmente pela primeira testemunha, não tendo ouvido a parte do lanche, a qual havia sido confirmada pela arguida), nºs 27 a 29, 32 a 34 e 36 (confirmado em termos idênticos por ambas as testemunhas, sendo que quanto às fotografias a primeira apenas ouviu a arguida dizer que o fazia mas não o presenciou).
Por sua vez, OO, assistente operacional, a exercer funções no estabelecimento de ensino em causa nos presentes autos há 10 anos, confirmou de forma circunstanciada os factos mencionados nos nºs 15, 23, 25, 29 e 38, dizendo que sucediam normalmente à hora do almoço e que chegou a ver os pés de um dos meninos do telemóvel da arguida, desconhecendo se o mesmo estava a ser filmado ou fotografado.
O seu depoimento revelou-se consistente e franco, tendo a testemunha referido não ter visto outros acontecimentos por muitas vezes estar a fazer tarefas sozinha, e isento por não revelar qualquer animosidade relativamente à arguida, merecendo, por isso, o crédito do Tribunal.
PP, assistente operacional, que exerce funções no estabelecimento de ensino em referência nos presentes autos, mas não no setor onde trabalhava a arguida, afirmou ter presenciado, por ocasião de ali se ter dirigido por motivo que indicou, os factos provados referidos em 21, confirmando-os.
Pese embora não se ter recordado com exatidão do diálogo travado, o seu depoimento porque circunstanciado e desinteressado, face ao pouco contacto com a arguida, mereceu o crédito do Tribunal.
QQ e RR, casados entre si, motoristas dos autocarros que levam os meninos, confirmaram ter ouvido, por mais de uma vez, a arguida dizer, dirigindo-se àqueles, “andem seus animais, entrem seus burros, seus animais” e “anda sua besta”, não conseguindo, todavia, recordar-se a identidade dos alunos destinatários de tais epítetos.
Face à coincidência entre tais depoimentos e à circunstância de se terem revelado desinteressados, afiguraram os mesmos credíveis e serviram para formar a convicção do Tribunal relativamente aos factos provados sob os nºs 29 e 30 parcialmente, no que se refere às expressões proferidas pela arguida.
Por seu turno, a testemunha SS, assistente operacional na escola melhor identificada nos factos provados, mas que não trabalhava diretamente com arguida, presenciou os factos referidos em 30, identificando o menor a quem foram dirigidas tais expressões, explicando como depois os reportou a Direcção.
Considerando a coincidência do seu relato com os dois depoimentos atrás referidos, entendeu-se ser o mesmo credível.
A testemunha TT, professora e Diretora na data da prática dos factos do estabelecimento de ensino onde os factos ocorreram, confirmou as denúncias efetuadas pelas assistentes operacionais, a subsequente instauração do processo disciplinar contra a arguida, a nomeação da instrutora e a suspensão da arguida, não conseguindo situar com precisão os factos no tempo, remetendo-se para os documentos juntos aos autos onde constam as datas de tais factos.
Mencionou ainda que a arguida durante o processo disciplinar se referiu ao LL como sendo um “badalhoco”.
O seu depoimento, porque objetivo e escorreito, demonstrou-se credível, tendo contribuído para a prova dos factos relativos ao processo disciplinar.

A testemunha NN, pai do menor LL, descreveu a perturbação que este sofre e quais as suas manifestações, bem como, o comportamento do filho quando chegava a casa durante o período de tempo a que se refere os factos, dizendo que se apresentava agitado, não conseguia dormir, não queria ir para a escola e quando a arguida saiu da escola deixou de manifestar tais comportamentos, daqui resultando a ressonância da conduta da arguida no menor.
Confirmou o ter recebido a mensagem da arguida e o seu teor, bem como, explicou o contexto em que tal sucedeu (depois de ter apresentado queixa e de ter dito à arguida, após esta lhe ter ligado cerca de 12 vezes, que não queria falar com a mesma) e que a entendeu como uma ameaça. Apesar disso, confirmou que entendeu levar o processo em frente, não se provando, por isso, que a arguida tenha alcançado os seus intentos (o que aliás nem sequer vinha alegado).
Confrontado com fls. 588 e 589, certificou que se tratavam de fotocópias das mensagens enviadas pela arguida através do caderno diário do seu filho LL.
Explicou ainda que prestou o seu consentimento ao estabelecimento de ensino para tirarem fotografias e filmarem o filho em atividades letivas e não do seu comportamento.
Apesar de ter demonstrado algum ressentimento relativamente à arguida, o seu depoimento, por se ter revelado consistente e por ter sido concordante com os documentos supra referidos e com os demais depoimentos, revelou-se credível, tendo contribuído para a prova dos factos referidos sob os nºs 9, 31, 35, 37, 38, 42 e 44.
A testemunha UU, mãe do menor II, descreveu a perturbação que o menor sofre e referiu que não constatou qualquer mudança de comportamento, bem como, não estranhava que o mesmo tivesse nódoas negras por tal ser habitual acontecer nas brincadeiras entre crianças.
Disse ainda que a professora enviou vários recados a queixar-se que o menor andava muito agitado, o que não era um comportamento habitual deste.
Atenta a sinceridade revelada, o seu depoimento afigurou-se credível, tendo contribuído para a prova dos factos provados sob o nº9.

VV, pai do menor HH, descreveu a perturbação que
o menor sofre e suas manifestações.
Referiu que ainda hoje o filho pergunta a razão pela qual a professora AA lhe batia e contava que a arguida lhe chamava “Senhor risinho” e “palhaço”.
Na parte em que relatou os comportamentos da arguida, por se tratar de depoimento indireto nos termos do artigo 129º do Código de Processo Penal, não podia o Tribunal levar em consideração o mesmo, mas apenas o comportamento do menor presenciado pela testemunha.
Mais confirmou que a arguida lhe telefonou a dizer que tinha puxado as orelhas ao filho (conforme a arguida o admitiu em sede de declarações) e que tinham de falar por não ser seu hábito praticar esse tipo de atos e que o menor nessa altura ostentava marcas nas orelhas e na cara.
Quando questionou, esclareceu que o filho nunca tinha feito queixa de qualquer professor.
O seu depoimento, porque seguro e sincero, chegando a dizer que estes meninos são complicados, revelou-se credível e contribuiu para as prova dos factos referidos sob os nºs 5, 8, 26, 27 (quanto ao puxão de orelhas) e 38.
Complementarmente, para precisão dos depoimentos prestados no que se refere ao circunstancialismo de tempo e lugar em que os factos ocorreram, teve-se ainda em consideração a seguinte prova documental junta aos autos:
- exame de fls. 595 a 598, do qual resultou que estava armazenada uma fotografia do menor LL;
- auto de denúncia e aditamentos de fls. 11 a 13, 549 e 595;
- reportagem fotográfica da fotografia do menor LL de fls. 550 e 551 e CD (junto fls. 553):
- participação da IGEC de fls. 15 a 32;
- assentos de nascimento de fls. 58 e 59, 82 e 83, 85 e 86, 88 e 89, 91 e 92, 94 e 95, 97 e 98, 100, 102 e 103, 105 e 106, 108 e 109 para prova da idade da arguida e da menoridade dos alunos;
- elementos do processo disciplinar ... de fls. 71 a 75, 115 a 120, 179, 481 a 523 e 683, dos quais resultou a sua instauração, quais as medidas aplicadas e qual a decisão final;
- elementos escolares e clínicos dos ofendidos de fls. 135 a 166, dos resultam confirmadas as perturbações sofridas pelos menores e sua extensão;
- autos de apreensão de fls. 344 a 358, que atestam os objetos apreendidos à arguida e donde foi posteriormente extraída e fotografia supra referida;
- cópias do Caderno Diário do menor LL de fls. 586 a 593 que atestam o envio e o teor da mensagem escrita remetida pela arguida referida nos factos provados sob o nº31;
- autorização do encarregado de educação do menor LL de fls. 641 do qual resulta que o consentimento dado para a escola tirar fotografia se restringe aos momentos em que o menor se encontra em atividades letivas.
De outra perspetiva, as testemunhas da defesa, por não terem conhecimento direto dos factos em virtude de não os terem presenciado, e por terem tido uma convivência limitada no tempo em contexto de trabalho com a arguida e/ou em diferentes circunstâncias das dos autos não tiveram a virtualidade de infirmar a prova produzida supra referida.
Com efeito, o depoimento da testemunha WW, ex-aluno da arguida, durante três anos, que mencionou nunca ter presenciado qualquer ato ou palavra incorreta por parte daquela, não podia ser suficiente para se concluir que a arguida nunca o fez perante outros, não só por não o ter presenciado, como pelas circunstância de ter convivido com a arguida em data remota (entre 2004 e 2007) e em contexto diferente, uma vez que a testemunha não sofre das mesmas perturbações que os menores a que se referem os factos.
XX, mãe da testemunha anterior, prestou depoimento em sentido idêntico, no entanto, indireto por nunca ter estado presente nas aulas do filho, sendo, por isso, pouco relevante para o esclarecimento dos factos.
A testemunha YY que trabalhou como assistente operacional, em ..., com a arguida durante uma semana, em sala de ensino especial, frequentada por dois alunos, afirmou que aquela era muito dedicada e sensível.

Sucede que, face ao seu conhecimento diminuto e à circunstância de se tratar de uma sala poucos alunos, o seu depoimento não teve a virtualidade de atestar do profissionalismo da arguida, pois que as condições em que os factos ocorreram eram substancialmente diferentes.

A testemunha ZZ, assistente operacional, que trabalhou em ... com a arguida, sua amiga, numa sala de ensino especial, atestou nunca ter visto nenhum comportamento menos próprio da daquele.
Esclareceu que trabalhou com a arguida em data ocorrida entre 6/10 anos e que a sala tinha quatro alunos, recordando-se que dois tinham perturbação de autismo e outra era invisual.
Como atrás referido, reportando-se tal conhecimento a factos afastados no tempo afastado e a condições diferentes por se tratar de uma sala de apoio com um número reduzido de alunos, o referido depoimento, ainda que credível, não foi suficiente para abalar os demais produzidos a propósito dos factos em causa nos presentes autos.

AAA, docente em ... e amigo da arguida, tendo sido professor dos seus filhos, atestou que as crianças gostavam de brincar com a arguida, nunca tendo, todavia, trabalhado com a arguida ou sequer sido colega na mesma escola, não podendo, por isso, atestar do seu profissionalismo.

BBB, mãe de um aluno da arguida, com nanismo, em ..., testemunhou ter estado várias vezes em sala com aquela e nunca ter presenciado qualquer comportamento menos próprio.
Não tendo revelado qualquer interesse, o seu depoimento mereceu credibilidade, mas serviu apenas para confirmar a atitude da arguida em contexto diferente do dos autos.
A testemunha CCC, professor em ..., conhecido da arguida por terem participado ambos em acampamentos de férias de crianças, atestou do seu bom comportamento social e da sua proatividade, referindo nunca ter existido qualquer queixa.
Afigurando-se o seu depoimento isento, mereceu o mesmo o crédito do Tribunal, confirmando a conduta social da arguida naquelas situações.

DDD, Coordenadora do Departamento do Ensino Especial do Agrupamento de Escolas ..., no qual se inclui o estabelecimento a que se reportam os autos, revelou não ter conhecimento da conduta profissional da arguida, por nunca a ter visto no exercício das suas funções, ainda que pessoalmente tenha afirmado não ter qualquer queixa tenha contra a mesma.
Atenta a sua falta de conhecimento, a testemunha nenhum contributo prestou para aferir do profissionalismo da arguida.

A testemunha EEE, docente de Educação Visual do Agrupamento de Escolas ..., onde se insere a escola identificada nos factos provados, colega da arguida, referiu nunca ter presenciado qualquer comportamento menos próprio, nem qualquer alteração no comportamento dos alunos.
No entanto, considerando que estava pouco tempo em sala com a arguida e com os alunos desta, o seu depoimento, ainda que crível, não teve a capacidade de abalar os dos demais profissionais, testemunhas da acusação, que trabalharam com aquela diariamente e durante várias horas que depuserem relativamente a factos por si presenciados.

FFF, docente de Educação Visual e Educação Tecnológica do Agrupamento de Escolas ..., no qual se incluiu o estabelecimento de ensino referido nos factos provados, prestou um depoimento em sentido idêntico ao anterior.
Tecendo iguais considerações, face ao seu reduzido conhecimento, visto que somente trabalhou com a arguida durante 15 dias, não resultou de tal depoimento infirmada a demais prova produzida.

GGG, anterior docente de Informática do Agrupamento de Escolas ..., prestou um depoimento em sentido idêntico aos anteriores.
Visto que, apenas observava o trabalho da arguida no contexto da sua aula e enquanto esta se encontrava a acompanhar apenas um aluno (DD), concluiu-se que a sua razão de ciência era limitada e, por isso, incapaz de contrariar a demais prova produzida.

A testemunha HHH, colega de escola e professora, conhecendo-a há 27 anos, atestou do bom comportamento da arguida enquanto mãe e professora, antes reputando-a como carinhosa.
Relatou ainda que, no período em que lecionaram na mesma escola, a arguida trabalhava com 4/5 alunos com necessidades educativas especiais, um com deficiência motora e os demais com limitações cognitivas, que sabiam exprimir-se, com idades compreendidas entre os 8 e os 15 anos.
O seu testemunho, apesar de algo afetado na sua isenção por ter uma amizade de longa data com a arguida, afigurou-se credível, mas teve apenas como mérito atestar do comportamento anterior da arguida.

Em suma, em sede de audiência de julgamento, os depoimentos das testemunhas da acusação devidamente conjugados com as confirmaram a quase totalidade dos factos alegados na acusação, não tendo revelado qualquer motivo que ferisse a sua
credibilidade. Com efeito, além de ter sido secundados por documentos, em particular da autoria da arguida, demonstraram profissionalismo e conhecimentos técnicos adequados sobre as perturbações de que os menores são portadores, em especial as assistentes operacionais, o que ditou que tivessem comunicado os factos de forma pronta. Aliás, o curto espaço de tempo em que os mesmos ocorreram não permitiria, de acordo com as regras da experiência e da normalidade, que tivessem ocorrido quaisquer conflitos entre a arguida ou aquelas de modo a motivar a participação feita nos autos.
Por outro lado, os depoimentos foram produzidos por diversas pessoas, sem qualquer relação próxima entre si, que presenciaram os comportamentos da arguida, o que conferiu objetividade e isenção aos depoimentos prestados, inexistindo a possibilidade de que todas se tivessem conluiado. Antes, verificou-se que a falta de memória relativa a certos factos se deveu unicamente ao tempo decorrido desde a sua ocorrência.
Os depoimentos das testemunhas da defesa tiveram, assim, apenas aptidão para atestar do bom comportamento anterior da arguida.
Os factos provados relativos aos sentimentos experimentados pelos menores decorreu dos depoimentos das assistentes operacionais EE, FF e OO e de VV, pai do HH, que os confirmaram, quando devidamente conjugados com as regras da experiência e da normalidade por os comportamentos da arguida serem adequados a infligi-lo e visto que os menores têm dificuldades de verbalização, não podendo depor sobre os factos.
O contexto em que os factos ocorreram, nomeadamente o tipo de condutas adotadas por uma mulher adulta com jovens autistas com défice cognitivo associado e limitações para estabelecer diálogos (v. g. esfregar os seios na cara de um menor), as expressões utilizadas (com um significado rebaixante) e o tipo de castigos infligidos (com recurso a régua em certos casos e em partes do corpo que tornam a ofensa mais degradante, v. g. nas pernas, estalos na cara, puxar a orelha), importou a conclusão que sabia e quis ofender a autodeterminação sexual e a integridade física dos menores, bem como, humilhá-los e rebaixá-los, aproveitando-se da sua fragilidade decorrente da perturbação que sofrem.
Por outro lado, face à inexistência de notícia ou sinal de que a arguida não seja capaz, não podia deixar de se concluir que a sua atuação foi livre, deliberada e manifestamente contrárias às regras de que a arguida é conhecedora, ou seja, de que actuou com culpa, até porque negou a sua prática, tentando justificar algumas das suas condutas.


Os factos relativos às condições pessoais e socioeconómicas da arguida resultaram do relatório social, o qual se afigurou coerente e sustentado por indicar a metodologia e fontes utilizadas, devidamente conjugado com os depoimentos das testemunhas de defesa supra identificadas que abonaram o seu comportamento social.
O pretérito criminal registado da arguida resultou do teor do seu certificado de registo criminal junto aos autos.

Os factos não provados deveram-se à ausência de produção de prova sobre os
mesmos.
No que se refere à definitividade da decisão de demissão, considerando que inexiste documento que o ateste e face às declarações da arguida em sentido contrário, não podiam ter-se tal facto como assente.
No que se refere aos demais factos não provados, verificou-se que testemunhas da acusação, mercê do decurso do tempo, não tinham memória de todas as expressões utilizadas, nem de todas as ofensas infligidas, tendo, por isso, apenas sido dado como provados os factos relativamente aos quais foram produzidos relatos circunstanciados e seguros, ainda que tivesse resultado não terem sido os únicos factos ocorridos.
Ora, tendo em conta as garantias processuais de cariz constitucional, designadamente o princípio da presunção da inocência e o princípio do in dubio pro reo, consagrados no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa - dos quais resulta que se após a produção da prova se mantém dúvida razoável quanto aos factos essenciais correspondentes ao tipo legal do crime, a mesma teve de funcionar em sentido favorável ao arguido -, não podia o Tribunal concluir pela demonstração dos factos relativamente aos quais não se identificava o contexto ou o menor a quem eram dirigidos.
No que se refere aos menores BB, CC e DD, as assistentes operacionais foram unânimes e categóricas, afirmando que a arguida não teve as mesmas condutas, aventando que se deveria à circunstância das perturbações de que estes são portadores serem mais leves e por se conseguirem exprimir com mais facilidade

(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
Se os factos dados como provados sob o ponto 21, integram o crime de coacção sexual previsto no artº 163º nº1 do CP.
Se a pena aplicada à arguida por aquele crime “é desproporcional, excessiva e injusta, violando o disposto nos arts 40º, 50 e 71º do CP, antes devendo ter sido aplicada uma pena 11 meses de prisão.”
.Se por força do princípio “in dubio pro reo” a arguida deve ser absolvida dos crimes pelos quais foi condenada;
*
II - FUNDAMENTAÇÃO:
A 1ª nota a fazer, é que muito embora a recorrente chegue a fazer algumas transcrições do depoimento da testemunha EE, não faz qualquer impugnação da matéria de facto provada ou não provada nos termos do artº 412º nº3 e 4 do CPP, mas antes utiliza as mesmas para contrariar o preenchimento dos elementos do tipo legal.
Assim, inexistindo impugnação da matéria de facto nem se constatando a existência de algum dos vícios do artº 410º nº2 do CPP, dá se a matéria de facto por assente.
Alega a recorrente, que os factos cometidos na pessoa da ofendida EE não integram o conceito de acto sexual de relevo, nem preenchem o constrangimento referido no tipo legal que “exige que o mesmo se efective mediante violência, ameaça grave, colocação da vítima em estado de inconsciência ou impossibilidade de resistir”.
Ao conceito de acto sexual de relevo, importa desde logo que o acto praticado seja um acto sexual entendido este segundo o Prof. Figueiredo Dias como “todo aquele comportamento que, de um ponto de vista predominantemente objectivo e segundo uma compreensão natural, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionado com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou pratica.”[1]
Conquanto defenda a prevalência à interpretação objectivista, “considerando por via de princípio irrelevante (ressalvada, naturalmente, a exigência de dolo-do-tipo, nele contida a referência sexual do acto) o motivo da actuação do autor”, admite este Professor que em casos excepcionais se considere uma “concepção mista” em que “à conotação objectiva deve acrescer uma outra subjectiva traduzida na acima referida intenção.
Salienta contudo que “um acto não se torna em “sexual”, para efeitos típicos, exclusivamente por força de uma motivação sexual do agente, mas sempre pela sua susceptibilidade de ser reconhecido por um observador como possuindo conotação sexual. Desnecessário é porém que o acto seja reconhecível pela vítima como sexualmente significativo, bem como que a vítima se aperceba do acto segundo os sentidos (v.g, vitima adormecida ou inconsciente).negrito nosso. [2]
Mas para além de se exigir a natureza sexual do acto, exige-se também que o mesmo seja de relevo na perspectiva do bem jurídico protegido. Como mais uma vez escreve o Prof. Figueiredo Dias, “É pois o grau de perigosidade da acção para o bem jurídico que – em função da sua espécie, intensidade ou duração –assume neste contexto valor decisivo. Com o que ficam excluídos do tipo actos que, embora “pesados” ou em si pessoal e socialmente “significantes” por impróprios, desonestos, de mau gosto e despudorados, todavia pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma significativa a livre determinação sexual da vítima”.[3]
Ora, da factualidade provada resulta que a arguida “.abeirou-se de EE, assistente operacional a exercer funções naquele agrupamento de escolas, e, motivada por sentimentos lascivos, apalpou-lhe a zona nadegueira, mais lhe cheirando o pescoço, dizendo “CHEIRAS BEM!” e relatando-lhe pormenores da sua vida íntima/sexual, dizendo-lhe “COM A FOME QUE ANDA AQUI” após EE se mostrar surpreendida e lhe dizer: “Olha, olha!”
Esta factualidade, revela de forma inequívoca um contacto de natureza sexual, quer pela objectividade da conduta, quer no plano da subjectividade da mesma, intencionalidade, bem revelada pela frase que acompanha o acto.
E o acto praticado, e no contexto em que o foi, atinge um grau de intensidade e gravidade ao bem jurídico protegido pela norma, a autodeterminação sexual da vítima, que o distancia de um simples ato sexual e antes o projecta para a noção de acto sexual de relevo.
Neste sentido reproduz-se a decisão recorrida quando na mesma se escreveu “Revertendo para as considerações tecidas supra a propósito da distinção entre contacto de natureza sexual e de ato sexual relevo, entende-se que por se tratar de um apalpão, ou seja, de um toque com força e intensidade, de uma parte de uma parte íntima, se trata de um ato sexual de revelo.
Com efeito, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.06.2013, p. 204/10.8TASEI.C1, in www.dgsi.pt, “I - É ato sexual de relevo todo o que tenha uma natureza objetiva estritamente relacionada com a atividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas.
II - Manifestamente, circunscrevem-se nesse domínio os casos traduzidos em acariciar/apalpar nádegas e a parte interior das coxas, atos preliminares do ato sexual final que conduz ao orgasmo.”(negrito nosso)
Também Paulo Pinto de Albuquerque, frequentemente citado na jurisprudência dos tribunais superiores, entende que ato sexual de relevo inclui a cópula vulvar e o toque, com objetos ou partes do corpo, nos órgãos genitais, seios, nádegas, coxas e boca (in ob. cit. p. 725, n.8).…”
Efectivamente, pensamos que Pinto de Albuquerque vai mesmo mais longe, abrangendo no acto sexual de relevo, o simples “toque” nos “órgãos geniais, seios, nádegas, coxas e boca,” escrevendo “(…) estes actos afectam gravemente a liberdade sexual da vítima, que é transformada em objecto do prazer do agente, como se de uma coisa se tratasse e de que ele pudesse dispor desde que esses actos fossem em “pequena quantidade”, ou “ocasionais” ou “instantâneos”. [4]
Necessário é ainda que exista uma acção de constrangimento da vítima, que leva a que esta aceda à prática ou sofrimento do acto sexual de relevo.
Porém após a redacção da Lei 101/2019, de 06 de Setembro, passou a considerar-se o acto contrário à vontade cognoscível da vítima, deixando de ser necessário provar-se que não existiu um consentimento expresso da vítima. Como referem José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Malheiro, na actual redacção, “Existe, assim, uma clarificação legislativa que confere uma maior precisão na identificação dos atos de constrangimento e que permite colocar a (ausência de) vontade da vítima no cerne da incriminação. [5]
Neste sentido o ac do STJ de 24/2/2022 onde num caso em que estava em causa um crime de violação se escreveu que a actual redacção “ao tornar claro que as situações de constrangimento se identificam por referência à vontade cognoscível vítima, consagrou expressamente o modelo do dissenso, isto é, haverá constrangimento sempre que os atos com relevo sexual praticados pelo agente sejam contrários à vontade da vítima (dissentimento).”[6]
Ora no caso dos autos a actuação “surpresa da arguida”, deixa-nos ainda no âmbito da vontade cognoscível face à quase simultaneidade da reacção da ofendida, que disse “olha, olha, e se afastou. cf ponto 43 da matéria de facto, já que como escreve Liliana Cristina Correia Gomes, acerca da problemática dos “ataques surpresa”, “deve respeitar-se a rejeição expressa verbalmente ou através de qualquer outro meio comunicativo, porque o cerne da infração penal é a recusa do agente em respeitar o direito à liberdade sexual negativa .”[7]
É pois irrelevante/improcedente a alegação da arguida de que “Não existiu qualquer violência no ato da Arguida, nem a mesma ameaçou a ofendida ou a impossibilitou de reagir”, aderindo-se à fundamentação da sentença, quando na mesma se escreve que “Mais ficou provado que o fez contra a vontade da ofendida, por o ter feito de forma súbita, surpreendendo-a, e sem que existisse qualquer relacionamento íntimo ou amoroso entre ambas, deixando-a com desconforto e desagrado (cfr. factos provados sob o nº43 parte final).…”.
Verificado o ato sexual de relevo, mediante constrangimento e a actuação dolosa da arguida, cf. pontos 43 e 45 da matéria de facto provada, avançamos já no sentido de se encontrarem verificados os elementos objectivos e subjectivos do crime de coacção sexual p.p. artº 163º nº1 e 3 do CP.
Dispõe o arº 163º do CP, após a redacção dada pela Lei 45/2023 de 17/8 «1 - Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até 5 anos.
2. Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.
3- Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima
Sendo que à data dos factos e na redacção dada pela lei n.º 101/2019, de 06 de Setembro dispunha-se no nº1 do referido preceito que:
«1 - Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até cinco anos. (…)», tendo a redacção dos nºs 2 e 3 permanecido inalterada na aversão actual.
A questão que se poderia colocar é a de saber se tendo a versão da lei 101/2019 de 6 de Setembro, eliminado do nº1 do preceito, a expressão «a sofrer», teria face a uma interpretação literal, a consequência de se entender, que com tal redacção se criou uma lacuna de punibilidade, como adverte Liliana Cristina Correia Gomes, no texto já supra citado.
Porém, ainda que cientes da distinção dos termos “sofrer” e “praticar”, que nas palavras o Prof. Figueiredo Dias “quer significar apenas a distinção entre um comportamento, do ponto de vista sexual, puramente passivo ou antes ativo da vítima”, [8] aderimos ao entendimento exposto por Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, de que o normativo continuou a integrar o conceito de “sofrer”, “ por via da interpretação do conceito “praticar”, num sentido amplo, uma vez que ainda cabe numa das suas significações linguísticas possíveis. Por outro lado, tal sentido corresponde à vontade legislativa, conforme resulta da manutenção no nº2 da menção a “sofrer”, e coaduna-se com a ratio subjacente às alterações do artigo que visaram uma ampliação da protecção da vítima”. [9]
Esta é, pois, a interpretação que mais apoio tem nos elementos sistemático, teleológico e histórico, artº 9º nº1 do CC, e que não viola o princípio da legalidade, artº 1º do CP e artº 29º nº1 da CRP, conforme foi já decidido na decisão sumária do TC nº 680/2021 , na qual se escreveu, “A redação atual da lei – independentemente de poder não ser a mais precisa – mostra-se suficientemente determinada e certa para suportar a interpretação afirmada na decisão recorrida, substituindo “sofrer” e “praticar”, por um sentido amplo de “praticar” [cfr. Maria da Conceição Ferreira da Cunha, “A tutela da liberdade sexual e o problema da configuração dos crimes de coação sexual e de violação – reflexão à luz da convenção de Istambul”, in Crimes Sexuais (e-book), Centro de Estudos Judiciários, janeiro de 2021, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/32834/1/eb_CrimesSexuais_1_.pdf, p. 26]
Não ocorre, pois, violação do princípio contido no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.”[10] [11]
Afirmada a integração na qualificação jurídica efectuada pelo tribunal, vejamos então agora a questão da medida da pena.
Alega a recorrente que a pena de 11 (onze) meses de prisão “é desproporcional”, excessiva e injusta, violando o disposto no artº 40º, 50º e 71º do CP.
A sentença recorrida perante uma moldura abstracta de 1 (um) mês a 5 (cinco) anos de prisão, fixou a pena em 11 (onze) meses de prisão com a seguinte fundamentação:
A determinação da pena concreta importa a consideração das exigências de prevenção e dos factores a que aludem os nºs 1 e 2 do artigo 71º do Código Penal, no caso concreto, que influenciam a medida da pena, quer por via da culpa, quer por via da ilicitude.
No que se refere aos demais factores, há que considerar que: - o dolo que é intenso, na modalidade de directo;
- a ilicitude dos factos que é média, face ao número de crimes praticados na mesma ocasião e ao tipo de ofensas infligidas que não podem deixar de se considerar como leves;
- o carácter gratuito da atuação da arguida, visto não ter existido qualquer provocação por parte dos ofendidos;
- a culpa que é elevada, considerando as especiais habilitações que a arguida tem para ensinar crianças e jovens portadoras de perturbações;
- a conduta da arguida posterior aos factos, não demonstrando compreender o mal da sua conduta, dado que não se posicionou criticamente quanto aos factos;
são circunstâncias que depõem contra a arguida
- o relativo curto espaço de tempo de duração dos factos, ainda que tal se tenha devido à pronta atuação do sistema de ensino;
- a circunstância de se encontrar integrado familiarmente; - o facto de não ter antecedentes criminais registados; são circunstâncias que depõem a favor da arguida.
Ponderando todo o descrito circunstancialismo e atendendo às exigências de prevenção referidas, entende-se por ser proporcional, adequada e necessária, aplicar penas em medida próxima do primeiro quinto das molduras.
Assim, tem-se por proporcional, adequada e suficiente aplicar à arguida pela prática:
- de cada um dos sete crimes de maus tratos, considerando que os factos têm gravidade e/ou extensão idêntica, a pena de 1 ano e 9 meses de prisão;
- do crime de gravações e fotografias ilícitas, a pena de 2 meses de prisão; - do crime de coação sexual, a pena de 11 meses de prisão;
- do crime de coação agravada na forma tentada a pena de 7 meses de prisão.…
Nos termos do artº 71º do C. Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra aquele, designadamente as elencadas nesse preceito. Por outro lado nos termos do artº 40º nº2 do CP a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.
Culpa e prevenção, são assim nas palavras do Prof. Figueiredo Dias, os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena, o que vale dizer de determinação concreta da pena. Cfr. Direito Penal Português, Parte Geral, II - As Consequências do Crime, § 280. Sendo que o o modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é “ aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena: à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma « moldura de prevenção», cujo limite é fornecido pelas exigências irrenunciáveis do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou em casos particulares, de advertência ou de segurança do delinquente”. Cfr. mesmo autor in Revista Portuguesa de Ciência criminal, Ano 3, Abril, Dezembro 1993, págs. 186 e 187.
Tem-se presente, que a actividade judicial de determinação da pena é, toda ela, juridicamente vinculada [artigos 40.º, 70.º e 71.º, do Código Penal], em sede de recurso, o procedimento, as operações e a aplicação dos princípios gerais de determinação da pena apenas são susceptíveis de revista pelo tribunal superior quandotiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” – Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, II - As Consequências Jurídicas do Crime, §§ 255.
A recorrente não concretiza um único critério que tenha sido violado pela decisão recorrida, nem alega qualquer circunstância que a mesma tenha valorado erradamente, ou tenha omitido de valorar.
Apela apenas, a ter sido um único acto, a personalidade revelada e o “grau de culpa diminuto”.
Assim, considerando a inexistência de qualquer acto de assunção de culpa revelador do interiorizar da ilicitude da conduta, o dolo directo, as circunstâncias em que os factos foram praticados, no ambiente de trabalho, e não se detectando a violação de algum critério legal, a pena fixada não se demonstra exagerada ou desproporcionada, pelo que se mantém.
Por fim não se percebe o apelo ao princípio in dubio pro reo, uma vez que o princípio em causa, é um princípio relativo à prova, e aos factos e não ao direito, não tendo aplicação para a integração jurídica dos factos.
De todo o modo, sempre se dirá que não emergindo da sentença recorrida que que o tribunal a quo tivesse tido dúvidas sobre a existência dos factos provados, não se vislumbra em que medida é que existiu violação do princípio in dubio pro reo.
Improcede pois o recurso.
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III – DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente fixando a taxa de justiça em 3 UCs

Elaborado e revisto pela relatora

Porto, 24/1/2024
Lígia Figueiredo
Paula Guerreiro
Maria Joana Grácio
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[1] Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial Tomo I, 2ª edição, Maio 2012, Coimbra Editora, pág 718,719.
[2] ibidem
[3] Ob cit pág.720.
[4] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Universidade Católica Editora, 3ª Edição pág.646.
[5] Cfr. José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro in “Crimes Sexuais, análise substantiva e processual”, Almedina, Fevereiro 2023, pp. 58/569.
[6] Ac.STJ de 24/2/2022 proferido no proc. 249/18.0JAFAR.E1.S1 (conselheira M.Carmo Silva Dias)
[7] Liliana Cristina Correia Gomes, As alterações de 2019 ao Código Penal em matéria de crimes sexuais: os crimes de Coacção Sexual e Violação, Julgar Online, dezembro de 2020, pág.17.
[8] Comentário ao artigo 163º do Código Penal, in Comentário Conimbricense do Código
Penal, Parte Especial, TOMO I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2012, p. 722.
[9] Ob. Cit pág.60.
[10] Processo nº950/2021 (Conselheiro José António Teles Pereira).
[11] A exposição de motivos do Projeto de Lei n.º 681/XV/1.ªdo PS, que precedeu a Lei Lei 45/2023 de 17/8, que repôs a expressão “a sofrer” nos arts 163ºnº1 e 164º nº1 é também um elemento interpretativo que reforça, a interpretação abrangente , e o intuito aclarativo da alteração, ao constar da mesma, “ Em primeiro lugar, é necessária uma alteração cirúrgica do artigo 164.º, onde se vem suscitando a possibilidade de ter sido criada uma lacuna pelo desaparecimento, em 2019, da equiparação, nas diversas alíneas, do elemento típico “a sofrer” ao elemento típico “a praticar”, favorecendo as dúvidas, que têm de ser ultrapassadas, nomeadamente sobre a relevância típica das hipóteses em que a vítima é constrangida a sofrer (e não a praticar) atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos.”