VIOLAÇÃO DO DEVER DE PROPOR DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE OU REDUÇÃO DO CAPITAL
ERRO SOBRE AS CIRCUNSTÂNCIAS DE FACTO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Sumário

I – O crime de Violação do dever de propor dissolução da sociedade ou redução do capital previsto e punido pelo art. 523º, do Código das Sociedades Comerciais apenas admite a modalidade dolosa, o que inclui o conhecimento da situação de perda de metade do capital social bem como consciência do dever previsto no artº 35º do CSC
II –A falta de conhecimento do teor do artº 35º do CSC, não constitui erro sobre a ilicitude da conduta, previsto pelo o artº 17º do CP, mas antes incide sobre elementos de facto que fazem parte do tipo de crime, e como tal enquadra-se no erro sobre as circunstâncias de facto previsto no artº 16º do CP
III – O erro sobre a ilicitude não será censurável quando a própria doutrina questiona a relevância criminal da conduta.

Texto Integral

1ª secção criminal
Proc. nº 412-19.6T9FLG.P1

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal singular), nº 412/19.6T9FLG.P1 do Juízo Local Criminal de Felgueira do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, o arguido AA foi submetido a julgamento e a final foi proferida sentença de cuja parte decisória consta o seguinte:
(…)
- ABSOLVER o arguido AA, da prática de um crime de violação do dever de propor dissolução da sociedade ou redução do capital, p. e p. pelo art. 523º, do Código das Sociedades Comerciais
Custas pela assistente, que se fixam no mínimo legal, nos termos do art. 515º, nº1 al. a) do C.P.P..
- julgar totalmente improcedente por não provado o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante civil “A..., S.L.”, e, em consequência, absolvo o demandado AA do mesmo.

Custas do pedido de indemnização civil, pela demandante – Art.523º do C.P.P. e art. 527ºdo C.P.C..

Custas do pedido cível pela Demandante e demandado, na proporção do respectivo
decaimento – Art.523º do C.P.P. e art. 527º do C.P.C..

(…)

*
Inconformada, a Assistente A... SL interpôs recurso, no qual formula as seguintes conclusões:
(…)
A. A decisão a quo está, ainda, ferida de vícios de diversa índole cujos efeitos importa suster.
B. Com efeito, não pode anuir a ora Recorrente com o exame crítico da douta sentença recorrida no que concerne ao depoimento das testemunhas BB e CC, porquanto aquela fez tábua rasa da totalidade das suas declarações.
C. A testemunha BB é peremptória ao dizer que
as suas funções de contabilista o obrigavam a avisar os representantes legais das sociedades sempre que se verificava a perda de metade do capital social.
D. Asseverando, na situação sub judice, que alertou o Arguido que existia uma perda de mais de metade do capital social, bem como para as respectivas consequências, tais como a necessidade de dissolução da sociedade ou o reforço da cobertura do capital.
E. Já a testemunha CC, contabilista após o ano de 2017, asseverou que alertou o Arguido do estado da sociedade e que o mesmo quis manter a sociedade como estava, ou seja, com resultados negativos e perda de metade do capital social.
F. Durante 5 (cinco) anos, o Arguido soube que a sociedade não gerava lucro, até porque foi avisado pelos 2 (dois) contabilistas existentes nesse período, e, ainda assim, quis manter a sociedade porque tinha por objectivo que a mesma viesse a ter actividade.
G. Em face do exposto, deviam ter sido dados como provados os seguintes factos:
(iv) O arguido, enquanto gerente da sociedade B..., Lda. sabia que resultava das contas de exercício ou de contas intercalares, tal como elaboradas pelo órgão de administração, que metade do capital social se encontrava perdido.
(v) O arguido sabia, enquanto gerente da sociedade B..., Lda., que do aviso convocatório da assembleia geral deveriam constar pelo menos, os seguintes assuntos para deliberação pelos sócios:
c) a dissolução da sociedade; (…)
d) A realização pelos sócios de entradas para reforço da cobertura do capital;
(vi) O arguido soubesse que desde o ano de 2015 estava perdida metade do capital social uma vez que o capital próprio da sociedade era igual ou inferior a metade do capital social
(iv) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente”
H. São várias as disposições legais que impõem determinados comportamentos aos administradores ou aos gerentes das sociedades comerciais, em especial os artigos artigo 64.º, n.º 1; 72.º e 259.º do Código das Sociedades Comerciais.
I. O artigo 6.º do Código Civil não se aplica apenas a cidadãos de naturalidade portuguesa.
J. Ainda que se pudesse admitir que o Arguido, de nacionalidade espanhola, desconhecia a lei portuguesa, saliente-se que o “Código de Derecho de Sociedades espanhol” dispõe de estipulações legais similares às portuguesas, tais como os seus artigos 86.º, n.º 1, 225.º, 363.º, al. f), 365.º.
K. Dos autos não foi alegado – e muito menos provado - que o Arguido tenha encetado qualquer esforço no sentido confirmar o direito português aplicável, em especial às consequências da perda de metade do capital social da sociedade B..., Lda..
L. O Arguido não podia ignorar que a apresentação de resultados negativos, em anos consequentes, não podia ser um aspecto positivo.
M. O dever do representante legal é funcional.
N. Não se pode aplicar o n.º 1 do artigo 16.º do Código Penal, pois falta de consciência da ilicitude do Arguido é censurável porquanto revela uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da personalidade do Arguido, em virtude dos deveres que lhe cabiam enquanto gerente.
O. A falta de prova que o Arguido sabia que a violação do dever de propor a dissolução da sociedade é crime não obsta à condenação daquele, porquanto não nos encontramos perante erro relevante sobre as proibições que exclua o dolo ou mesmo perante um erro não censurável sobre a ilicitude que exclua a culpa.
P. Por conseguinte, o erro sobre a ilicitude não implica a exclusão da culpa no caso presente, dado o disposto no artigo 17.º do CP.
Q. Em face do exposto, incorreu o Tribunal a quo em erro de julgamento, pelo que se impõe a condenação do Arguido.
R. E o facto do Arguido ter deixado arrastar a perda de metade do capital social durante vários anos, pese embora os alertas dados pelos contabilistas ouvidos como testemunhas, afasta a atenuação especial da pena, nos termos da parte final do n.º 2 do artigo 17.º do CP.
S. Ainda que assim não fosse, ressalva o n.º 3 do artigo 16.º do CP que esse erro não impede que o Arguido seja punido a título de negligência.
T. Por último, requer que o Tribunal ad quem determine a medida da pena, tendo em consideração o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2016 - Diário da República n.º 36/2016, Série I de 2016-02-22: «Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.»
U. Sendo que deve esta incluir o pedido de indemnização cível peticionado pela Recorrente, no valor de € 4.455,57.
V. Errou o douto Tribunal na decisão condenatória proferida, por violação dos 16.º e 7.º do Código Penal, pelo que se requer que aquela seja revogada nos termos consignados supra.

Nestes termos, na procedência do presente recurso, deverá revogar-se o a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue totalmente procedente a Acusação e procedente o pedido de indemnização cível

(…)

A Magistrada do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
De igual modo o arguido respondeu pugnando também pela improcedência do recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto acompanhando a resposta do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.
*
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
*
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
1 - Factos Provados:

1) O arguido AA é sócio gerente da sociedade “B..., Lda.”, pessoa coletiva nº ..., com sede Rua ..., Edifício ..., 2.º esquerdo, Felgueiras, cujo objeto é produção e exploração de eletricidade de origem hídrica, térmica eólica.
2) Após uma primeira transformação em sociedade por quotas, o capital social de 5.000,00 € encontrou-se dividido em partes iguais entre o arguido, que como único gerente obriga a sociedade e DD, na proporção de 50% ou de 2.500,00 €, para cada um.
3) No dia 14-03-2013, o sócio DD celebrou um contrato de cessão de quota com a sociedade A..., S.L., sociedade limitada espanhola, com sede em Calle ..., ..., Madrid, em Espanha, com o CIF ..., no Registo Mercantil de Madrid, nos termos da qual cedeu a sua redita quota do capital social na sociedade B..., Lda., pelo preço de 48.000,00 €.
4) Desde 2015, os capitais próprios da sociedade B..., Lda. são inferiores a metade do capital social, conforme tabela que se segue:
Capital SocialTotal do

Capital Próprio
2015€ 50.000,00- € 52.238,08
2016€ 50.000,00- € 18.060,12
2017€ 50.000,00- € 29.702,93
2018€ 50.000,00- € 35.861,54
2019€ 50.000,00- € 37.333,17

5) Não obstante, nunca o arguido, antes do ano de 20120, convocou como era obrigado pelo disposto no artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais qualquer assembleia geral a fim de informar os sócios da situação e de estes tomarem as medidas julgadas convenientes.
6) Na assembleia geral de 28-03-2016, a A..., S.L. verificando que as contas do exercício de 2015 apresentam um resultado negativo de - 30.878.58 €, votou contra para a aprovação das contas, não obstante o arguido aprovou as contas com voto favorável.
7) Nessa assembleia foi anexada em acta o balanço e demonstração de resultados, segundo o qual “A empresa neste exercício como o resultado antes de imposto é negativo no valor de 30.878,50 € não origina imposto” e “em 31 de Dezembro de 2015 o capital da empresa, totalmente subscrito e realizado, era no valor de 5.000.00 euros”
8) Na assembleia geral de 25-06-2016, a sociedade A..., S.L. propôs a dissolução da sociedade “B..., Lda.” uma vez que esta não tem actividade, tendo tal voto sido rejeitado pelo arguido em uso da sua posição maioritária.
9) Na assembleia geral de 28-02-2019, consta da acta que quanto à discussão e a aprovação das contas do exercício de 2018, as mesmas apresentam um resultado negativo de 6.158,61 €.
10) Nessa assembleia é junto um balanço em modelo reduzido segundo o qual o total do activo da sociedade B..., Lda. para os exercícios e 2017 e 2018 é de 93,53, o total do capital próprio e do passivo nos exercícios de 2017 e 2018 é de 93,53 € e o total de resultado líquido do período no ano de 2017 é de -11.642,61 € e no ano de 2018 é de - 6.158,51 €.
11) Não obstante, o arguido AA valendo-se da sua posição maioritária, aprovou todas as prestações de contas, e não informou os sócios das medidas a tomar.

Mais se provou:

12) A Assistente “A..., S.L.” para participar nas referidas Assembleias Gerais,
despendeu os seguintes valores:
- honorários e despesas no valor de € 2.087,45, tendo em conta a participação na Assembleia Geral de 28.03.2016;
- despesas (viagens, deslocações, refeições e outros) directamente efectuadas pelos
representantes da Assistente no quadro de participação na assembleia geral de Junho de 2016, no total de € 1.073,00;
- honorários e despesas, no valor de € 1.295,12 tendo em conta a participação na Assembleia Geral de 18.05.2016.
13) Por carta datada de 01 de Julho 2020, convocou o arguido, por carta registada na mesma data, na qualidade de Gerente da sociedade B... Lda, e por mera cautela, a A... SL para assembleia Geral de sócios a realizar em 22/07/2020 pelas 10.30H (doc. 11), tudo em estrito cumprimento da primeira parte do art. nº 3 do art. 248º do código das Sociedades Comerciais e novamente por convocatória de 02/10/2020 foi a denunciante convocada para assembleia extraordinária com o ponto 2 da ordem de trabalhos indicando “conforme acta 18 já comunicada, discutir e aprovar a entrada de capital de 35.861,54€ para regularização das perdas, art. 35º C.S.C..”, carta esta que apesar de devidamente endereçada foi devolvida.
14) A referida assembleia realizou-se na data prevista, ou seja 22 de Julho 2020, sendo que apenas o sócio e gerente AA esteve presente, tendo como um dos pontos de trabalho a discussão e aprovação das contas do exercício de 2019 (ponto 1da ordem de trabalhos).
15) Na referida assembleia, conforme acta 18, junta aos autos de fls. 641 a 642, que se junta, pode ler-se na sua 3ª página: “Manifesta o sócio AA que em função da perda de mais de metade do capital social, a sociedade encontra-se nas circunstancias e condições previstas no art. 35º do Código das sociedades comerciais; em referencia ao ponto anterior o sócio AA, informou que, de acordo com as contas referentes ao exercício de 2019 e em seguimento com os exercícios anteriores, encontra-se perdida mais de metade do capital social, nos termos previstos no nº 2 do art. 35º do Código das sociedades comerciais, na medida em que o valor do capital próprio é inferior a metade do capital social. Deste facto advém a obrigação para a gerência de informar todos os sócios de tal situação, devendo estes adoptar uma das medidas previstas nas diversas alíneas que compõe o nº 3 do já citado artigo, comunicação esta que o sócio AA ira realizar através da comunicação desta acta ao socio A....” Ainda na mesma acta pode ler-se: “Considerando o atrás exposto sobre o art. 35º CSC, no presente ano o sócio A... deverá dar entrada na sociedade, de valor igual a metade do valor do capital social ou apresentar ao socio AA, outra solução para que se ultrapasse esta questão. Mais deve o Sócio A..., na qualidade de sócio investidor, aportar os valores necessários para que a sociedade possa fazer face às despesas que a sociedade viera a gerar no ano de 2020.” (…) “Tendo em conta que na acta nº 9, e actualização do pacto social correspondente, o capital social foi aumentado para o valor de 50.000€ (cinquenta mil euros), de forma a que, conforme acordo verbal entre partes e como solicitado pelo sócio A..., assim ficasse a sociedade em condições de paralisar a sua actividade, no entanto na assembleia referente à acta nº 10 de 28 de Março de 2017, o sócio A... veio votar contra as contas da sociedade, não se encontrando assim reunidas as condições para concretizar a paralisação da sociedade, mais provocando que desde essa data a sociedade viesse a acumular até a presente data prejuízos no valor de 35.861,54€”.
16) As contas votadas em 2020 são relativas ao exercício contabilístico de 2019, pelo que o arguido, na qualidade de gerente deu conhecimento, ao sócio A... da diminuição de capital em conformidade com o art. 35º CSC.
17) O arguido AA: a) afirmou viver da caridade;
b) é casado em regime de separação de bens, e a sua esposa encontra-se de baixa médica, por invalidez, devido também ao facto de ter falecido um filho;
c) tem agora apenas uma filha, uma vez que o filho faleceu; d) habitam em casa de familiares;
e) tem a frequência da escola básica; f) do seu CRC nada consta.

2- Factos não Provados:

Não se provou:

1) que o arguido, enquanto gerente da sociedade B..., Lda., sabia que resultava das contas de exercício ou de contas intercalares, tal como elaboradas pelo órgão de administração, que metade do capital social se encontrava perdido e não obstante não convocou de imediato assembleia geral a fim de nela se informar os sócios da situação e de estes tomarem as medidas julgadas convenientes.
2) que o arguido soubesse, enquanto gerente da sociedade B..., Lda., que do aviso convocatório da assembleia geral deveriam constar pelo menos, os seguintes assuntos para deliberação pelos sócios:
a) A dissolução da sociedade;
b) A redução do capital social para montante não inferior ao capital próprio da sociedade, com respeito, se for o caso, do disposto no n.º 1 do artigo 96.º;
c) A realização pelos sócios de entradas para reforço da cobertura do capital.
3) que o arguido soubesse que desde o ano de 2015 estava perdida metade do capital social uma vez que o capital próprio da sociedade era igual ou inferior a metade do capital social.
4) que o arguido, enquanto gerente da sociedade B..., Lda., apesar de saber pelas contas de exercício estava perdida metade do capital social desde pelo menos o ano de 2015, não obstante não deu cumprimento ao disposto no artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais.
5) O arguido nunca remeteu à sociedade A..., Lda. qualquer convocatória fim de a informar da situação económica e de estes tomarem as medidas julgadas convenientes, nem tal facto foi deliberado em Assembleia, e tencionava com este comportamento causar um prejuízo à ofendida A..., S.L., a qual fica obrigada a suportar os custos associados à atividade da sociedade B....
6) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram puníveis por lei penal.
7) quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa articulados na acusação pública, no pedido de indemnização civil, contestação ou alegados em audiência de discussão e julgamento que não se encontrem descritos como provados ou que se mostrem em oposição aos provados ou prejudicados por estes.

3- Convicção do Tribunal:

A convicção do tribunal, no que concerne aos factos dados como provados, baseou-se nos diversos documentos juntos aos autos e na prova documental constante dos mesmos, nomeadamente:
- certidão permanente do registo comercial da Sociedade “B..., Lda.”, de fls. 45 a 47
- contrato de cessão de quotas de fls. 516 a 518 de DD para a “A..., CL” e relativo à Sociedade “B..., Lda.” e comprovativo de pagamento da mesma de fls. 519
- Actas da Sociedade “B..., Lda.” De fls. 29 a 31 (Acta nº 10), 34 a 35 (acta nº 11), 37 a 44 (acta nº 16), 94 a 95 (acta nº 14), 96 v. a 98 (acta nº 13), 102 v. a 105 (acta nº 18), 106 v. a 109 (Acta nº 16 – repetida), 111 a 114 (Acta nº 13 – repetida), 418 (Acta nº5), 419 (Acta nº 6); 425 (Acta nº 10 – repetida), 426 v. a 428 (Acta nº 12); 433 a 434 (Acta nº 17)
- Relatório de gestão da “B..., Lda.” de fls. 429 a 432; - documentos de fls. 420 a 424, 435 a 438, 551 a 554;
- Actas e convocatórias constantes de fls. 435 a 456; - Facturas e despesas de fls. 487 a 498
- IES da Sociedade “B..., Lda.”, constantes de fls. 161 a 395;
- Relatório de contas e gestão da sociedade “B..., Lda.” De fls. 198 a 205;
Esta foi a prova documental carreada para os autos, a qual foi analisada e permitiu ao tribunal, de facto, assentar e consolidar a matéria de facto dada como provada, quer relativa ao percurso da referida sociedade, quer os seus capitais, e o “historial” da referida sociedade, consubstanciado e plasmado nas actas das referidas assembleias e constantes dos autos, onde o tribunal aferiu do sucedido na referida sociedade, e a dinâmica das relações entre o aqui arguido e sócio-gerente da “B..., Lda.”, e a outra sócia, a aqui Assistente “A..., S.L.”.
O tribunal também teve ainda em consideração:

-as declarações do arguido AA, em sede de julgamento, prestou declarações, afirmando o por si vertido na sua contestação; afirmando igualmente não ser contabilista e não conhecer o Código das Sociedades Comerciais. Mais referiu que, e conforme resulta da Acta nº 7, a “A...” aprovou perdas de mais de 8 mil euros. Confirmou ainda que enviou uma carta a convocar a “A...” para a tal reunião da dissolução da sociedade; pois só posteriormente é que teve conhecimento do vertido no artigo 35º do C.S.C. e aí actou rem conformidade com o conhecimento que adquiriu, e aconselhado pela sua Advogada; acrescentando que a “A...” não compareceu em tal reunião. Descreveu a situação da central hídrica em ... a ... concelho de Penalva do Castelo, a qual foi vandalizada e furtada em todo o seu material de cobre, tornando esse activo da sociedade vazio e sem nenhum valor, e que teve de actuar para ali não morrer ninguém. Mais referiu que a sociedade não pode ser dissolvida, dado que tem dívidas. Reafirmou desconhecer estar a incumprir a lei, esclarecendo que quem fez a acta nº 18 foi a sua Advogada. Mais prestou declarações quanto à sua actual situação pessoal, e sócio-económica.
- no depoimento da testemunha CC, a qual foi contabilista da sociedade “B...” desde 2017 a 2019, a qual começou por referir que os sócios da mesma eram o aqui arguido e a sociedade “A...”, e que a referida empresa teve sempre despesas, não tinha rendimentos, e como tal prejuízo, dado que não tinha uma fonte de rendimentos. Mais referiu que sempre fez os relatórios e os entregou ao aqui arguido, e que o mesmo sabia que a empresa não tinha rendimentos e que sempre deu prejuízo, afirmando não ter alertado o mesmo para o art. 35º do CSC. Mais referiu que não participou na elaboração das actas da sociedade, e que as declarações de IES foram por ela enviadas ou pelo anterior contabilista. Mais esclareceu e voltou a frisar que não alertou o aqui arguido AA para a situação do crime, mas apenas e tão só da situação financeira da empresa, aconselhando-o, e uma vez que a mesma só tinha prejuízos a encerrar a sua actividade, ao que o mesmo respondia que a sociedade tinha um projecto em mãos que iria gerar rendimentos e lucro. Mais referiu que todo o dinheiro que entrava na sociedade, para pagamentos e despesas era transferido pelo Sr. AA da conta pessoal dele para a da sociedade, e que era contabilizado, em termos contabilísticos, como suprimentos do referido sócio para a sociedade. Por último afirmou conhecer o art. 35º do CSC, mas afirmou desconhecer, até à situação, que o seu incumprimento era um crime.
- no depoimento da testemunha BB, ora vereador na CM..., mas que foi contabilista da sociedade “B...”, até ao ano de 2017, começando por referir que, na altura eram sócios da referida sociedade o Sr. AA e uma sociedade espanhola, mais referindo que, quem o contratou foi o Sr. AA, esclarecendo que deixou de ser contabilista da mesma, porque foi exercer funções para a CM.... Confirmou que elaborou um relatório de contas e gestão da referida sociedade, o qual entregou ao Sr. AA, referindo ainda que a citada empresa nunca teve muita actividade. Referiu ainda que o aumento de capita teria sido para reactivar a sociedade ou para contornar uma situação de redução de capital, afirmando não ter videia das consequências penais da não convocação de Assembleia para a dissolução de uma sociedade. No mais, afirmou já não se recordar muito bem do sucedido, apenas se recordando que era o Sr. AA quem pagava as despesas da referida sociedade.
- no depoimento de EE, conselheiro delegado da “A.... SL”, o qual começou por referir que “tecnicamente” são sócios da “B...”, e que desde o ano de 2015 a referida sociedade está com prejuízos, dos quais não foram informados, não tendo conhecimento das perdas, mais referindo que entraram na sociedade em 2013, com o objectivo de iniciarem um projecto de centrais eléctricas, o qual acbou por não se iniciar porque não obtiveram as respectivas licenças e porque a Central que era um activo da referida sociedade foi alvo de roubo. Mais referiu que a referida sociedade não tinha actividade e como tal, também não podia ter gastos; sendo que, contudo, apresentava gastos, que se traduziram no vencimento do sócio-gerente, o aqui arguido AA, impostos, contabilidade e segurança social. Confirmou que nos anos de 2015 e 2016 não aprovaram as contas da sociedade, e propuseram e nas suas palavras “uma suspensão da sociedade”, ao que os informaram que tal não era possível aqui em Portugal, mas que em Espanha era possível efectuar. Mais referiu que o aumento de capital da “B...” foi sem o consentimento e conhecimento deles. Mais referiu que a algumas assembleias não compareceram devido à situação da pandemia gerada pelo “Covid 19”, acrescentando que não receberam qualquer convocatória para uma assembleia de dissolução da sociedade; sendo que já tinham proposto a dissolução da sociedade em assembleia que não mereceu aprovação. Mais referiu que tiveram gastos e despesas com os advogados que tiveram de contratar e em deslocações.
Que dizer e que concluir?
De facto e de uma análise conjugada e concatenada, quer da prova documental constante dos autos, quer da prova testemunhal, e ainda das declarações do aqui arguido, resultou que, de facto, a sociedade “B..., Lda.” não tinha rendimentos ou uma actividade que gerasse lucro, e seria, quando muito, um inicio de um projecto de exploração de uma central eléctrica, uma mini-hídrica, o qual se veio a gorar. Ora, se uma sociedade não gera rendimentos ou lucro, como é óbvio, terá de ter prejuízo e despesas – não se podendo acreditar que o Sr. EE e a “A...”, isso não soubessem…
Resulta ainda que, e independentemente de resultar das contas de exercício ou de contas intercalares, tal como elaboradas pelo órgão de administração, que metade do capital social se encontra perdido, ou havendo em qualquer momento fundadas razões para admitir que essa perda se verifica, o aqui arguido AA, e na qualidade de gerente da referida sociedade soubesse do dever que sobre o mesmo impendia de “convocar de imediato a assembleia geral ou os administradores requerer prontamente a convocação da mesma, a fim de nela se informar os sócios da situação e de estes tomarem as medidas julgadas convenientes”, como se refere na lei. E mais, o tribunal ficou ainda convicto que, o aqui arguido AA também soubesse que a omissão de tal convocação consubstanciava a prática de um crime…note-se que até os contabilistas não o sabiam…e como se poderá afirmar que uma pessoa, de nacionalidade espanhola, como é o aqui arguido, o soubesse ou devesse saber…a conclusão só pode ser que: não o conseguiria ou saberia…é isso que nos dizem as regras da experiência comum, conjugadas com as regras de um cidadão comum, investido na figura do “bom pai de família” (Bonus pater familiae), a isso não conseguiria apreender.
Ou seja, entende-se que, por um lado, o aqui arguido provavelmente desconhecia que a sua actuação – omissiva da convocação de assembleia - consubstanciava a prática de um crime, e por outro lado, dúvidas resultaram que também tivesse noção ou perecepção de que a sua referida omissão o faria incorrer na prática do crime imputado.
No que concerne à contestação apresentada pelo arguido AA, a mesma, além de conter factos, contém, essencialmente e atenta a sua extensão, muitas conclusões, conceitos de direito, ilações, observações, comentários, desabafos ou conclusões; pelo que, e quanto a tal matéria o tribunal não a levou aos factos provados ou não provados.
No que concerne às despesas apresentadas pela “A...” e que sustentam o seu pedido cível, sempre cumpre referir que as mesmas sempre teriam lugar – se não todas, pelo menos algumas – já que se é sócia, de uma sociedade em Portugal sempre teria de se deslocar a Portugal para participar nas assembleias da mesma, e sempre teria que ter e suportar despesas com tal actuação…
Quanto aos restantes factos dados como não provados, tal resultou do facto de que sobre os mesmos não ter sido feita qualquer tipo de prova, nos termos do art.127º do C.P.P..

(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
.Erro de julgamento da matéria de facto;
Se se encontram verificados os elementos objectivos e subjectivos do crime p.p. pelo artº 523º do CSC;
Se no caso é aplicável o disposto nos artºs 16 º nº1 e 3 e 17º nº1 e 2 do CP;
*
II - FUNDAMENTAÇÃO:
A Assistente/recorrente invoca a existência de erro de julgamento, alegando que deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:
“(i) O arguido, enquanto gerente da sociedade B..., Lda. sabia que resultava das contas de exercício ou de contas intercalares, tal como elaboradas pelo órgão de administração, que metade do capital social se encontrava perdido.
(ii) O arguido sabia, enquanto gerente da sociedade B..., Lda., que do aviso convocatório da assembleia geral deveriam constar pelo menos, os seguintes assuntos para deliberação pelos sócios:
a) a dissolução da sociedade; (…)
b) A realização pelos sócios de entradas para reforço da cobertura do capital;…”
(iii) O arguido soubesse que desde o ano de 2015 estava perdida metade do capital social uma vez que o capital próprio da sociedade era igual ou inferior a metade do capital social
(iv) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente
Para permitir que no recurso se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, a lei prevê a documentação das declarações prestadas oralmente na audiência – cfr. artº 363º e 364º, ambos do CPP.
Neste caso, o recorrente tem o ónus de especificar, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, cfr. artº 412º nº 1 e 3, als.a) e b) do CPP, sendo que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações de prova previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, nos termos do nº 4 do mesmo preceito, havendo que ter em conta a interpretação afirmada no Acórdão de Fixação de jurisprudência nº 3/2012, 8 de Março de 2012 publicado no DR 1º série de 18 de Abril de 2012, o qual fixou jurisprudência no sentido de que “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta para efeitos do disposto no artº 412ºº nº3 alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações.”
Além disso, o Recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida, constituindo essa explicitação, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque, «o cerne do dever de especificação», com o que se visa impor-lhe «que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado».
Como vem sendo salientado na Jurisprudência dos Tribunais Superiores e tem merecido geral aceitação: para provocar uma alteração da decisão em matéria de facto, não basta a existência de provas que, simplesmente, permitam ou até sugiram conclusão diversa; exige-se que imponham decisão diversa daquela que o Tribunal proferiu.
Por outro lado, duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo - a segundo - julgamento no Tribunal de Recurso.
O Recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de Recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º do CP, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados. Com efeito, no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, No sentido apontado, veja-se o Acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss.
Tendo presentes os dispositivos indicados e noções expostas, facilmente se constata que o recorrente não cumpriu formalmente com os ónus de impugnação previstos na lei.
Efectivamente, muito embora o recorrente refira os factos que deveriam ter sido dados como provados, não faz tal indicação por referência aos concretos pontos da matéria dada como não provada na sentença. Porém sendo literalmente coincidente a materialidade que o recorrente pretende seja dada como provada com os pontos da matéria de facto não provada, ultrapassando exigências de cariz formal, ir-se-á conhecer da impugnação.
O recorrente alega que da prova produzida, designadamente dos depoimentos das testemunhas CC e BB, resulta o conhecimento por parte do arguido antes do ano de 2017, da perda de metade do capital da social da sociedade B.... Ltdª.
Assiste-lhe razão. Tal resulta não só do teor dos depoimentos das indicadas testemunhas, passagens transcritas, mas também do teor dos documentos juntos aos autos, designadamente os IES e actas das Assembleias Gerais, e Relatório de Gestão, juntos pelo próprio arguido, os quais evidenciam resultados negativos, que o arguido não podia desconhecer.
Aliás, quanto à matéria dada como não provada, sob o ponto 1 dos factos não provados, verifica-se que a sentença recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova, já que resulta da exposição da própria fundamentação da sentença aquele conhecimento, quando na mesma se escreveu sobre o depoimento da testemunha CC, “a qual começou por referir que os sócios da mesma eram o aqui arguido e a sociedade “A...”, e que a referida empresa teve sempre despesas, não tinha rendimentos, e como tal prejuízo, dado que não tinha uma fonte de rendimentos. Mais referiu que sempre fez os relatórios e os entregou ao aqui arguido, e que o mesmo sabia que a empresa não tinha rendimentos e que sempre deu prejuízo…” e em sede de apreciação crítica se escreveu que, “Resulta ainda que, e independentemente de resultar das contas de exercício ou de contas intercalares, tal como elaboradas pelo órgão de administração, que metade do capital social se encontra perdido, ou havendo em qualquer momento fundadas razões para admitir que essa perda se verifica”.
Sobre o vício previsto no artº 410º nº2 al.c) do CPP, escreveu-se no ac. do STJ de 19/7/2006 “O erro notório na apreciação da prova consubstancia-se na incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, incorrecção susceptível de se verificar, também quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.” [1]
Assim e uma vez, que a Assistente impugnou a matéria de facto, nos termos do artº 431º a) do CPP, altera-se a matéria de facto, passando a constar da matéria de facto provada que:
“.O arguido, enquanto gerente da sociedade B..., Lda. sabia que resultava das contas de exercício ou de contas intercalares, tal como elaboradas pelo órgão de administração, que metade do capital social se encontrava perdido..”
O Arguido sabia que desde o ano de 2015 estava perdida metade do capital social uma vez que o capital próprio da sociedade era igual ou inferior a metade do capital social”.
Eliminando-se concomitantemente esta factualidade dos factos não provados.
Porém termina aqui a procedência da impugnação.
Como resulta do artº 412º nº 3 al.b) para ser possível proceder à alteração da matéria de facto pretendida pelo recorrente, exige-se que as provas indicadas no recurso, imponham um diferente decisão da matéria de facto, não bastando que permitam uma diferente decisão.
Ora lendo as passagens transcritas pelo recorrente, e ouvidos por nós integralmente os referidos depoimentos, logo se constata que dos mesmos não resulta o efectivo conhecimento por parte do arguido do dever de fazer constar do aviso convocatório da Assembleia geral “pelo menos, os seguintes assuntos para deliberação pelos sócios: a) dissolução da sociedade: b) A realização pelos sócios de entradas para reforço da cobertura do capital.”
As testemunhas, indicadas, quando confrontadas com a efectividade de tal conhecimento por parte do arguido, respondem de modo evasivo, sendo que o arguido nas suas declarações negou conhecer tal dever.
A testemunha CC, após ser questionada pelo ilustre mandatário do Assistente sobre se alertou o arguido “de que a perda de metade do capital devia levar ao cumprimento das obrigações que estão previstas no Código das Sociedades Comerciais, designadamente promover a redução do capital para que houvesse deliberação sobre a dissolução da sociedade, tem a certeza pode garantir a este Tribunal que o fez ou que não o fez?”
Respondeu “(…) Eu sempre, volto a repetir, eu sempre alertei o senhor AA da situação da empresa, eu sempre disse que a empresa não tinha quaisquer movimentos e que só estava a aumentar e o senhor AA sempre me disse que a perspectiva a longo - médio prazo era efectivamente...”
Mandatário da Assistente: “a senhora falou do fecho da sociedade. Confirma que o alertou?
Testemunha: “Sim
Sendo que perante as insistências do ilustre mandatário da Assistente, manteve que “(…) só alertei de que não gerava rendimentos, agora especificadamente não” e muito menos que poderia incorrer na prática de um crime o que a própria testemunha desconhecia.
Por seu lado, a testemunha BB, questionada directamente pelo ilustre mandatário sobre se conhecia “o artº 523º do Código das Sociedades Comerciais?”
Respondeu: “Já não tenho muito bem presente, aos anos que não exerço”.
(…)
Mandatário da Assistente: Informou, neste caso o sócio gerente das repercussões da perda de metade do capital?
Testemunha “Creio que sim. Com verdade não lhe consigo dizer que foi em concreto que tive essa conversa”.
(…)
Mandatário da Assistente: “Alguma vez advertiu das consequências que poderiam advir de ele não tomar nenhuma destas medidas?”
Testemunha: “Com esse rigor e com esse detalhe de uma forma formal não me recordo, poderia ter sido em conversa de (…) quando fazemos aquelas reuniões de acompanhamento podia ter referido alguma coisa.”
(…)
Mandatário da Assistente: (…) “se alertava daquilo que poderia acontecer através da perda de mais de metade do capital social. A minha pergunta e que alerta é esse?
Testemunha: (…) “esta era uma empresa que tinha acumulado prejuízos (…) e é uma situação que qualquer contabilista iria dizer que era insustentável para o sócio, para pensar a estratégia da empresa (…) tínhamos este tipo de cuidado e informação para cada um dos clientes.”
Ora, dos transcritos depoimentos, resulta que as testemunhas alertaram o arguido para a perda de metade do capital, mas já não para o cumprimento do aviso convocatório da assembleia geral, nos termos que se pretendem sejam dados como provados.
O próprio recorrente na apreciação que faz da prova, justifica que a testemunha BB, “não se recorda, com precisão, dos conselhos ou sugestões efectuados ao Arguido” e por outro lado uma coisa é as testemunhas terem falado ao Arguido, nas consequências que poderiam advir da manutenção da situação de resultados negativos e perda de capital, designadamente “fecho da sociedade” ou dissolução, outra é terem-no avisado dos termos em que deveria ter convocado a assembleia com aqueles concretos assunto para deliberação dos sócios, que é factualidade integrante do facto que se pretende dar como provado.
A diferente leitura e apreciação crítica da prova efectuada pelo recorrente, ainda que se possa considerar admissível, não é imposta pela prova produzida.
Da mesma não resulta que o arguido soubesse da obrigatoriedade de fazer constar da convocatória as referidas menções, não contrariando também qualquer regra da experiência a conclusão da sentença de que não se provou que o mesmo soubesse das consequências criminais de tal omissão, o que em sede de apreciação de direito melhor se desenvolverá.
Aliás é o próprio recorrente quem reconhece tal desconhecimento por parte do arguido, quando alega que “ Ao invés de ter optado uma postura passiva até ao ano de 2019, o Arguido devia ter encetado esforços para tentar apurar, como sócio gerente, o comportamento correcto a adoptar”, pois que se o arguido devia apurar o comportamento correcto a adoptar é porque não sabia qual era.
Improcede no mais a impugnação.
O direito
O recorrente alega, que a ignorância da lei, designadamente da lei comercial não poderia desculpabilizar o arguido; que “Não se pode aplicar o nº1 do artº 16º do CP pois a a falta de consciência da ilicitude do Arguido é censurável porquanto revela uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da personalidade do Arguido, em virtude dos deveres que lhe cabiam enquanto gerente” e que “A falta de prova que o Arguido sabia que a violação do dever de propor a dissolução da sociedade é crime não obsta à condenação daquele, porquanto não encontramos perante erro relevante sobre as proibições que exclua a culpa.”
Que como tal, se “impõe a condenação do arguido,” pois o erro sobre a ilicitude “não implica a exclusão da culpa no presente caso dado o disposto no artº 17º do CP,” que “o facto de o Arguido ter deixado arrastar a perda de metade do capital social durante vários anos, pese embora os alertas dados pelos contabilistas ouvidos como testemunhas, afasta a atenuação especial da pena nos termos da parte final do nº2 do art 17º”. “Ainda que assim não fosse, ressalva o nº 3 do artº 16º que esse erro não impede que o Arguido seja punido a título de negligência”.
Previamente à apreciação do alegado, mostra-se pertinente fazer uma breve incursão sobre o tipo de ilícito pelo qual o Arguido foi acusado.
Os factos pelos quais o Arguido vem acusado segundo a narrativa da acusação teriam ocorrido entre 2015 e 2019.
Actualmente, e após a redacção dada pela lei 94/2021, de 21/12 dispõe o artº 523º do Código das Sociedades Comerciais, sob a epígrafe “.Violação do dever de convocar ou requerer a convocação da assembleia geral em caso de perda grave do capital social.”, que «O gerente ou administrador de sociedade que, verificando pelas contas de exercício estar perdida metade do capital, não der cumprimento ao disposto no artigo 35.º é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa.»
Porém à data os factos vigorava a redacção dada aquele mesmo preceito pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, dispondo o referido artº 523º do CSC sob a epígrafe “Violação do dever de propor dissolução da sociedade ou redução do capital” «O gerente ou administrador de sociedade que, verificando pelas contas de exercício estar perdida metade do capital, não der cumprimento ao disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 35.º é punido com prisão até 3 meses e multa até 90 dias..»
À data dos factos, e na redacção anterior à alteração introduzida pela lei 94/2021, de 21/12, dispunha o artº 527º do CSC sob a epígrafe “Princípios comuns”,
«1 - Os factos descritos nos artigos anteriores só serão puníveis quando cometidos com dolo.
2 - Será punível a tentativa dos factos para os quais tenha sido cominada nos artigos anteriores pena de prisão ou pena de prisão e multa.
3 - O dolo de benefício próprio, ou de benefício de cônjuge, parente ou afim até ao 3.º grau, será sempre considerado como circunstância agravante.
4 - Se o autor de um facto descrito nos artigos anteriores, antes de instaurado o procedimento criminal, tiver reparado integralmente os danos materiais e dado satisfação suficiente dos danos morais causados, sem outro prejuízo ilegítimo para terceiros, esses danos não serão considerados na determinação da pena aplicável..»
Sendo que após as alterações introduzidas pela lei 94/2021, de 21/12, foi revogado o nº1 do preceito passando a dispor-se:
«1 (Revogado).
2 - A tentativa dos factos descritos nos artigos anteriores é punível.
3 - A intenção de benefício próprio, ou de benefício de cônjuge, parente ou afim até ao 3.º grau, é considerada como fator agravante da medida da pena.
4 - Se o autor de um facto descrito nos artigos anteriores, antes de instaurado o procedimento criminal, tiver reparado integralmente os danos causados, sem outro prejuízo ilegítimo para terceiros, a pena pode ser dispensada.…»
Dispõe ainda o artº 529º do CSC, que «.1 - Aos crimes previstos neste Código são subsidiariamente aplicáveis o Código Penal e legislação complementar..»
Por sua vez o artº 35º do CSC, dispunha anteriormente à alteração introduzida pela Lei 9/2022 de 11/1 e sob a epígrafe “Perda de metade do capital”:
«. 1 - Resultando das contas de exercício ou de contas intercalares, tal como elaboradas pelo órgão de administração, que metade do capital social se encontra perdido, ou havendo em qualquer momento fundadas razões para admitir que essa perda se verifica, devem os gerentes convocar de imediato a assembleia geral ou os administradores requerer prontamente a convocação da mesma, a fim de nela se informar os sócios da situação e de estes tomarem as medidas julgadas convenientes.
2 - Considera-se estar perdida metade do capital social quando o capital próprio da sociedade for igual ou inferior a metade do capital social.
3 - Do aviso convocatório da assembleia geral constarão, pelo menos, os seguintes assuntos para deliberação pelos sócios:
a) A dissolução da sociedade;
b) A redução do capital social para montante não inferior ao capital próprio da sociedade, com respeito, se for o caso, do disposto no n.º 1 do artigo 96.º;
c) A realização pelos sócios de entradas para reforço da cobertura do capital.» (Redacção dada pelo seguinte diploma: Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março)
Sendo que após as alterações introduzidas pela Lei 9/2022 de 11/1, mantiveram-se inalterados os nºs 1 a 3 e acrescentou-se o nº 4, passando a dispor:
«. 1 (…)
2 – (…)
3 – (…):
a)(…);
b) (…);
c)(…);.
4 - O disposto nos números anteriores não é aplicável durante a pendência de qualquer processo de reestruturação de empresas previsto no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas..»
O crime em causa, é um crime específico, do qual só pode ser autor quem tiver a qualidade de gerente ou administrador.
Em comentário sobre o tipo de ilícito em causa nos autos, artº 523º do CSC na redacção vigente à data dos factos imputados na acusação, i.é anterior à redacção dada pela lei 94/2021, de 21/12 escreve Rui Batista, que “O bem jurídico consiste na protecção do direito à informação (artº 21º nº1 al.c) uma vez que apenas está em caus a omissão do agente informar os sócios da situação.”[2] (negrito nosso)
Como expende o mesmo autor, da redacção o artº 35º à data, resulta que “não está em causa um acto que afecte a solidez financeira da empresa ou a conservação do capital social, mas antes, perante esse facto consumado, o dever de informar os sócios, cabendo a estes decidir que medidas tomar.”[3]
Mais refere que face à redacção então em vigor, a remissão para os nºs 1 e 2 do artº 35º, deve fazer-se para os nºs 1 e 3.
Seguindo o mesmo autor, e conforme resulta do tipo legal, os elementos objectivos do ilícito em causa são:
.Ficar demonstrado pelas contas de exercício, previstas no artº 65º nº1 do CSC, estar perdido metade do capital social, tal como resulta do artº 35º nº2;
.O gerente ou administrador ter verificado esse facto;
.E não convocar de imediato a assembleia-geral, a fim de informar os sócio da situação;
A nível subjectivo o crime apenas pode ser cometido na forma dolosa, em qualquer uma das modalidades previstas no artº 14º do CP. Tal resultava expressamente à data do disposto no artº 527º nº1 do CP, e afigura-se continuar hoje a ser assim face ao disposto no artº 13º do CP, por força da remissão do artº 529º nº1 do CSC.
E o dolo, como em qualquer tipo legal, tem de abarcar todos os elementos do tipo, o que no tipo em análise inclui, como também refere Rui Batista, o conhecimento da situação de perda de metade do capital social bem como consciência do dever previsto no artº 35º do CSC.[4]
Ora, não se tendo provado que o Arguido “soubesse, enquanto gerente da sociedade B..., Lda., que do aviso convocatório da assembleia geral deveriam constar pelo menos, os seguintes assuntos para deliberação pelos sócios:
a) A dissolução da sociedade;
b) A redução do capital social para montante não inferior ao capital próprio da sociedade, com respeito, se for o caso, do disposto no n.º 1 do artigo 96.º;
c) A realização pelos sócios de entradas para reforço da cobertura do capital.…” desde logo fica afastado preenchimento pela parte do mesmo de uma conduta dolosa, e como tal teria do mesmo de ser absolvido por falta de preenchimento do elemento subjectivo.
Sem prejuízo, a falta de conhecimento do teor do artº 35º do CSC, não solicita o artº 17º do CP, erro sobre a ilicitude da conduta, mas antes incide sobre elementos de facto que fazem parte do tipo de crime, o que se enquadra no erro sobre as circunstâncias de facto previsto no artº 16º do CP, impeditivo da consciência da ilicitude do facto, que exclui o dolo.
Sendo que a punibilidade da negligência, pretendida pela assistente nos termos do nº3 do artº 16º, não é equacionável por o tipo em causa não a admitir.
Acresce que, ainda que na perspectiva do desconhecimento da ilicitude da conduta, para efeitos do disposto no artº 17º nº1 e 2, não estamos perante um daqueles tipos legais, como o caso de homicídio ou furto, cujo conhecimento é geral e de tempos imemoriais coexistente à vida em sociedade. É certo que o artº 17º nº1 do CP apenas afaste a culpa se o erro do agente lhe não for censurável, dispondo-se no nº2 que “Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada”.
Porém, no caso dos autos afigura-se que, a existir erro, nunca o mesmo poderá ser censurável, desde logo porque à data dos factos provados, e antes da alteração ao tipo legal introduzidas pela lei 94/2021, de 21/12, a própria doutrina questionava a relevância criminal da conduta, face ao princípio nullum crimen sine lege, por não poder ser considerada a remissão constante do artº 523º, para o nº3 do artº 35º nº3 do CSC, por tal não estar previsto. Assim se pronunciava então Susana Aires de Sousa, sobre a revogação implícita do artº 523º, dando resposta negativa à possibilidade de reinterpretação do preceito no sentido de “sobre a sua alçada se sancionar já não o incumprimento da violação de propor a dissolução da sociedade ou redução de capital, mas antes o incumprimento do dever de convocar e informar os sócios sobre a perda do capital social”, afirmando expressamente, “Temos para nós que a resposta à questão anteriormente formulada há de ser negativa, ou seja, o incumprimento por parte dos órgãos de administração do dever pressuposto no artº 35º não conhece sanção penal, não podendo aplicar-se o disposto no artº 523º.Tal resulta de forma imediata do princípio da legalidade criminal, quer na sua compreensão material quer na sua dimensão formal.”[5]
Assim e não tendo ficado provado que o Arguido soubesse, “que do aviso convocatório da assembleia geral deveriam constar pelo menos, os seguintes assuntos para deliberação pelos sócios:
a) a dissolução da sociedade; (…)
b) A realização pelos sócios de entradas para reforço da cobertura do capital;”, nem que o mesmo tenha agido de forma livre voluntária e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram previstas e punidas por lei, não resultaram provados os elementos subjectivos do ilícito, vale dizer o dolo e consciência da ilicitude da sua conduta, pelo que haverá que concluir como fez a decisão recorrida pela sua absolvição.
Pretende o recorrente que a decisão recorrida errou também ao absolver o arguido/demandado do pedido civil deduzido, por se encontrarem verificados os pressupostos do artº 483º do CC.
Porém nesta parte o recurso é inadmissível.
Mantendo-se a absolvição do arguido do crime pelo qual foi acusado, não havendo por essa via de retirar consequências quanto à parte civil nos termos do artº 403º nº3 do CPP, resulta do disposto no nº 2 do art. 400º do CPP, “sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”.
Sendo a alçada do Tribunal recorrido de € 5000,[6] artº 44º nº1 da Lei (de Organização do Sistema Judiciário) 62/13 de 28/8 em vigor à data da dedução do recurso,[7] e uma vez que o pedido civil deduzido tem o valor de 4.455,57€ torna-se claro não estarem verificados no caso em apreço a cumulação dos requisitos pressupostos por lei para a admissibilidade do recurso relativo ao pedido cível .
Como tal não se conhece nesta parte do recurso.
*
*
III – DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em não obstante a alteração efectuada à matéria de facto, negar provimento ao recurso interposto pela Assistente A..., SL, e manter a decisão recorrida.

Custas pelo Assistente fixando-se a taxa de Justiça em 3 UC (artº 515 nº1 al.b) do CPP)

Elaborado e revisto pela relatora

Porto, 24/1/2024
Lígia Figueiredo
Pedro Afonso Lucas
Luís Coimbra
________________
[1] Ac. STJ 19/7/2006 proc. 1932/06 -3º Rel. Oliveira Mendes, ct. Por Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, notas e comentários Coimbra Editora 2008 pág. 916.
[2] Rui Batista in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Paulo Pinto de Albuquerque, José Branco, Comentário das Leis Penais Extravagantes, volume 2, Universidade Católica Editora, pág. 149.
[3] Ibidem.
[4] Ob. Cit pág. 149.
[5] Susana Aires de Sousa, Código das Sociedades Comerciais em comentário (Coord.) Jorge M. Coutinho de Abreu, Almedina 2014, pág.524ss.
[6] Vigente desde 1/1/2008, cf artº 12º 1.
[7] Cfr.artº 44º nº1 da Lei (de Organização do Sistema Judiciário) 62/13 de 28/8 que dispõe «em matéria cível a alçada dos tribunais da relação é de € 30.000 e a dos tribunais de primeira instância é de 5.000», sendo que nos termos do nº3 do preceito «A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a ação.»