PERDÃO DE PENA
PENA SUPERIOR A 8 ANOS
CÚMULO JURÍDICO
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário


I - O perdão de 1(um) ano fixado pelo artigo 3.º, n.º 1 da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, só é aplicado, verificados os demais pressupostos, a penas que não sejam superiores a 8 anos de prisão.
II - Aquele limite é aplicável não só às penas parcelares, mas também à pena única em resultado de cúmulo jurídico de várias penas parcelares, ainda que cada uma delas seja de medida inferior a 8 anos.
III - Ainda que uma pena parcelar seja objecto de perdão, caso a mesma venha, posteriormente, a integrar um cúmulo jurídico de conhecimento superveniente, tal perdão deixará de ser aplicável, se a pena única que vier a ser aplicada for superior a 8 anos.
IV - Os n.ºs 1 e 4 do artigo 3.º da citada Lei 38-A/2023 não são inconstitucionais. A lei reveste carácter geral e abstracto, pois aplica-se a todos os arguidos/condenados que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado. Por outro lado, a delimitação do âmbito de aplicação da lei está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável. O legislador soube exprimir-se e quis aplicar o perdão de um ano às penas únicas até 8 anos de prisão, sem que isso fira o princípio da igualdade, pois a conduta de quem comete vários crimes em situação de concurso é mais gravosa de quem comete crimes inferiores àquele tecto ou sem estar em situação de concurso, que o legislador não entendeu merecedor de medida de clemência. Esta interpretação não viola qualquer direito do recorrente, nomeadamente o princípio da igualdade.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

I.1 No processo comum com o n.º 438/07....., do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., do  Tribunal Judicial da Comarca ..., por despacho proferido no dia 27 de Setembro de 2023, foi decidido que o condenado/recorrente AA não beneficia de qualquer perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, em conformidade com o disposto no seu art.º 3.º, n.º 1.
 
I.2.Inconformado com esse despacho, dele veio AA interpor o presente recurso, apresentando a respectiva motivação, que finaliza com as conclusões que a seguir se transcrevem:
O Recorrente requereu que lhe fosse perdoado, as penas por que foi condenado:
a) O perdão de um ano a cada um dos 4 crimes por que foi condenado em pena igual ou superior a 8 anos de prisão,
b) Assim se não entendendo, mas sem prescindir, sempre lhe deverá ser perdoado um ano de prisão.
c) Declarar-se perdoadas as pernas aplicadas pela prática dos demais crimes cujas penas são todas inferiores a 2 anos e 6 meses de prisão.
2.ª
Com base no disposto no art.° 3.°, 1 da Lei n.° 38-A/2003, o Tribunal indeferiu o pedido porque lhe foi aplicado uma pena única superior a 8 anos.

Como se demonstra e provou documentalmente, o Juízo Central Criminal ... e Juízo Central Criminal ..., cada um deles, declarou perdoado 1 ano a condenados em penas únicas superiores a 8 anos de prisão.
4.ª
As penas parcelares — em que cada uma é uma condenação — são necessariamente inferiores a 8 anos de prisão, e sempre o serão, pelo menos, 8 das 10 condenações em penas de prisão.
5.ª
Por isso o pedido do Recorrente deve proceder integralmente.
6.ª
Pelo menos deve ser-lhe declarado perdoado um ano de prisão.
7a
O Tribunal recorrido julgou o disposto no art.° 3.°, 1 da Lei n.° 38-A/2023 em desconformidade com o disposto nos art.°s 13.°, 1.° e proémio do art.° 2.° da Constituição pelas razões descritas nos parágrafos 14 e 15 da fundamentação.
8.a
A decisão recorrida deve assim ser revogada.”

I.3. O Ministério Público, em 1ª instância respondeu ao recurso formulando a final as seguintes conclusões:
“1) O arguido Miguel Cunha foi condenado por decisão transitada em julgado na pena única de 14 anos e 6 meses de prisão (2 crimes de homicídio qualificado tentado; 2 crimes de Roubo agravado; 3 crimes de OIF qualificada; 1 crime de Falsificação e 2 crimes de Detenção de arma proibida).
2) Em 01/09/2023 entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, que estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, abrangendo as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto – cf. art. 2º, nº 1.
3) A respeito do perdão, o art. 3º da mencionada Lei dispõe, para o que aqui importa considerar, o seguinte: n.º 1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos; e n.º 4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
4) No caso em apreço, estando excluídos do perdão os crimes de Homicídio qualificado tentado, Roubo e OIF qualificada (art. 7º), restaria saber se seria de aplicar o perdão ao crime de falsificação e aos dois crimes de detenção de arma proibida, estes não excluídos e inferiores a 8 anos de prisão como penas parcelares.
5) O legislador soube exprimir-se e quis aplicar o perdão de um ano apenas às penas únicas até 8 anos de prisão, sem que isso fira o princípio da igualdade, pois a conduta de quem comete vários crimes em situação de concurso é mais gravosa de quem comete crimes inferiores àquele tecto ou sem estar em situação de concurso, que o legislador não entendeu merecedor de medida de clemência que, como tal, não viola qualquer direito do recorrente, nomeadamente o princípio da igualdade, porque justificado.
6) Como, aliás, foi este o entendimento seguido em todas as leis da amnistia e perdão a partir da Lei nº 16/86, de 11 de Junho, pelo art. 13º, nº 2,; art. 14º, nº 3, da Lei nº 23/91, de 4 de Julho; art. 8º, nº 4, da Lei 15/94, de 11 de Maio; art. 1º, nº 4, da Lei 29/99, de 12 de Maio e art. 2º, nº 3, da Lei 9/2020, de 10 de Abril.
7) No mesmo sentido também Pedro José Esteves de Brito, Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de Agosto, in Revista Julgar Online, Agosto de 2023, pág. 16.
8) A doutrina e jurisprudência vêm assim decidindo que o princípio da igualdade não assume aqui uma vertente formal, só não podendo ser aplicado de forma arbitrária (Pareceres do Conselho Consultivo, n.º 17/2019 e 9/2020, e Acórdãos do TC n.º 39/88, de 9/02e n.º 149/93, de 28/01.
Assim, e tendo em conta todo o exposto, entendemos que considerando improcedente o presente recurso e mantendo a douta decisão recorrida, farão V. Exas. a costumada Justiça.”
 
I.4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

I.5. Cumprido o art.º 417º, nº 2, do CPP, o recorrente veio responder, reafirmando, no essencial, os fundamentos invocados na motivação de recurso, mormente no que concerne à questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa efectuada do art.º 3º, nº 1 da Lei n.º 38-A/2023.

I.6. Colhidos os vistos, procedeu-se à realização da conferência, por o recurso aí dever ser julgado.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1 – OBJECTO DO RECURSO
A jurisprudência do STJ [1] firmou-se há muito no sentido de que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso.[2]

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir consistem em determinar se:

1. O regime previsto na Lei nº 38-A/2023 de 2/8 é aplicável à(s) pena(s) de prisão a que o recorrente foi condenado;
2. A interpretação normativa do art.º 3º, nº 1 efectuada do despacho recorrido no sentido de que o perdão previsto no citado regime é aplicado à pena única é inconstitucional, “porque viola o princípio da igualdade, consagrado no art.° 13.°, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no art.º 1.° e o princípio de direito, em cujo núcleo consagra a eminência da pessoa humana, consagrado no proémio do art.º 2.° todos da Constituição”.

2- DA DECISÃO RECORRIDA

“Compulsados os presentes autos verificamos que, ao arguido BB, foi aplicada a pena única de 15 anos de prisão e aos restantes arguidos – CC, DD, EE e AA, a cada um, a pena única de 14 anos e 6 meses de prisão.
Assim, atenta a aplicação de uma pena única superior a 8 anos de prisão, o supra identificado condenado não se encontra abrangido pelo âmbito da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, em conformidade com o disposto no seu art.º 3.º, n.º 1.
Por tudo o exposto, os supra identificados condenados não beneficiam de qualquer perdão dessa lei, o que se declara.
Notifique.”

*
3 -APRECIAÇÃO DO RECURSO

Cumpre apreciar as questões objecto do recurso.
3.1 O regime previsto na Lei nº 38-A/2023 de 2/8 é aplicável à(s) pena(s) de prisão em que o recorrente foi condenado.
Para a decisão desta questão importa considerar o seguinte:
1.O recorrente foi condenado, por acórdão de 02-11-2010, nas seguintes penas:
- pela prática, em co-autoria e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições combinadas dos arts. 132º, nº. 1 e 2, f) [facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime], e j) [praticar o facto contra agente das forças de segurança no exercício das suas funções], 131º, 14º, nº. 1, 22º e 23º, n.º 1 e n.º 2, todos do Código Penal (antes das alterações introduzidas pela Lei nº. 59/2007, de 4/9), ora p. e p. pelos arts. 132º, nº. 1 e nº. 2, g) e l), 131º, 14º, nº. 1, 22º e 23º, n.º 1 e n.º 2 do mesmo Código Penal (perpetrado sobre a pessoa do agente policial FF) na pena de 8 (oito) anos de prisão;
- pela prática, em co-autoria e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições combinadas dos arts. 132º, nº. 1 e 2, f) [facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime], e j) [praticar o facto contra agente das forças de segurança no exercício das suas funções], 131º, 14º, nº. 1, 22º e 23º, n.º 1 e n.º 2, todos do Código Penal (antes das alterações introduzidas pela Lei nº. 59/2007, de 4/9), ora p. e p. pelos arts. 132º, nº. 1 e nº. 2, g) e l), 131º, 14º, nº. 1, 22º e 23º, n.º 1 e n.º 2 do mesmo Código Penal (perpetrado sobre a pessoa do agente policial GG) na pena de 8 (oito) anos de prisão;
- pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de roubo, p. e p. pelos arts. 210º, nº 1 e nº 2, b), em conjugação com o disposto nos arts. 204º, nº 2, a) e f), 203º, nº. 1 e 202º, b), todos do Código Penal (perpetrado no museu do ouro) na pena de 9 (nove) anos de prisão;
-pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de roubo, p. e p. pelos arts. 210º, nº 1 e nº 2, b), em conjugação com o disposto nos arts. 204º, nº 2, a) e f), 203º, nº. 1 e 202º, b), todos do Código Penal (perpetrado na ourivesaria), na pena de 9 (nove) anos de prisão;
- pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições combinadas dos arts. 146º, nº. 1 e nº. 2, 132º, nº. 2, f) [facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime] e 143º, nº. 1, todos do Código Penal (antes das alterações introduzidas pela Lei nº. 59/2007, de 4/9), ora p. e p. pelos arts. 145º, nº. 1, a) e nº. 2, 132º, nº. 2, g) e 143º, nº. 1, do mesmo Código Penal, (perpetrado sobre a pessoa de HH), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições combinadas dos arts. 146º, nº. 1 e nº. 2, 132º, nº. 2, f) [facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime] e 143º, nº. 1todos do Código Penal (antes das alterações introduzidas pela Lei nº. 59/2007, de 4/9), ora p. e p. pelos arts. 145º, nº. 1, a) e nº. 2, 132º, nº. 2, g) e 143º, nº. 1, do mesmo Código Penal, (perpetrado sobre a pessoa de II), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
-pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições combinadas dos arts. 146º, nº. 1 e nº. 2, 132º, nº. 2, f) [facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime] e 143º, nº. 1, todos do Código Penal (antes das alterações introduzidas pela Lei nº. 59/2007, de 4/9), ora p. e p. pelos arts. 145º, nº. 1, a) e nº. 2, 132º, nº. 2, g) e 143º, nº. 1, do mesmo Código Penal, (perpetrado sobre a pessoa de JJ), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
-  pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, a), e nº. 3, do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão;
- pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições combinadas do art. 86º, n.º 1, c) e d) (munições), e nº. 2, art. 3º, nº. 1 e nº. 6, a), art. 8º, 15º e 18º, todos do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº. 5/2006, de 23/2, na pena de 1 (um) ano de prisão;
- pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições combinadas do art. 86º, n.º 1, d), 2º, nº. 1, a) e 3º, nº. 2, h) e 4º, todos do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº. 5/2006, de 23/2, na pena de 7 (sete) meses de prisão (NUIPC n.º438/07....);
- em cúmulo jurídico, na pena única de 18 (dezoito) anos de prisão.
- Por acórdão de 19-09-2012, transitado em julgado em 10-09-2013, o Supremo Tribunal de Justiça, reduziu aquela pena única para 14 anos e 6 meses de prisão.
- O requerente nasceu no dia .../.../1985.
-Os factos, por cuja prática foi condenado, ocorreram no dia 06-09-2007.
*
Em 01/09/2023 entrou em vigor a Lei nº 38-A/2023, de 02/08 (diploma a que se reportam as demais disposições legais citadas sem menção de origem), que estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, abrangendo as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto – cf. artº. 2º, nº 1.
Comecemos por dizer que no caso vertente está verificado o pressuposto temporal de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, já que os factos em causa foram praticados antes das 00:00 do dia 19.06.2023, bem como o pressuposto subjectivo, pois, à data da prática dos factos, o recorrente tinha 30 ou menos anos.
Importa, no entanto, apreciar os restantes pressupostos, designadamente se a(s) pena(s) em que o recorrente foi condenado beneficia(m), ou não, do perdão, uma vez que como se prevê na citada norma, tal abrangência só operará “nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”.

Com relevo para decisão desta questão importa ter presentes as seguintes normas da referida Lei:
O art.º 3º, que tem como epígrafe “ Perdão de penas” prevê que:
“1-Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
( …)
4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”.( sublinhado nosso)
O artigo 7.º, por sua vez, estabelece as excepções, nos seguintes termos:
“1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:
a) No âmbito dos crimes contra as pessoas, os condenados por:
i) Crimes de homicídio e infanticídio, previstos nos artigos 131.º a 133.º e 136.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro;
ii) Crimes de violência doméstica e de maus-tratos, previstos nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal;
iii) Crimes de ofensa à integridade física grave, de mutilação genital feminina, de tráfico de órgãos humanos e de ofensa à integridade física qualificada, previstos nos artigos 144.º, 144.º-A, 144.º-B e na alínea c) do n.º 1 do artigo 145.º do Código Penal;
iv) Crimes de coação, perseguição, casamento forçado, sequestro, escravidão, tráfico de pessoas, rapto e tomada de reféns, previstos nos artigos 154.º a 154.º-B e 158.º a 162.º do Código Penal;
v) Crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal;
b) No âmbito dos crimes contra o património, os condenados:
i) Por crimes de abuso de confiança ou burla, nos termos dos artigos 205.º, 217.º e 218.º do Código Penal, quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artigos 256.º a 258.º do Código Penal, e por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal;
ii) Por crime de extorsão, previsto no artigo 223.º do Código Penal;
c) No âmbito dos crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, os condenados por crimes de discriminação e incitamento ao ódio e à violência e de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, incluindo na forma grave, previstos nos artigos 240.º, 243.º e 244.º do Código Penal;
d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por:
i) Crimes de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, de incêndio florestal, danos contra a natureza e de poluição, previstos nos artigos 272.º, 274.º, 278.º e 279.º do Código Penal;
ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal;
iii) Crime de associação criminosa, previsto no artigo 299.º do Código Penal;
e) No âmbito dos crimes contra o Estado, os condenados por:
i) Crimes contra a soberania nacional e contra a realização do Estado de direito, previstos nas secções i e ii do capítulo i do título v do livro ii do Código Penal, incluindo o crime de tráfico de influência, previsto no artigo 335.º do Código Penal;
ii) Crimes de evasão e de motim de presos, previstos nos artigos 352.º e 354.º do Código Penal;
iii) Crime de branqueamento, previsto no artigo 368.º-A do Código Penal;
iv) Crimes de corrupção, previstos nos artigos 372.º a 374.º do Código Penal;
v) Crimes de peculato e de participação económica em negócio, previstos nos artigos 375.º e 377.º do Código Penal;
f) No âmbito dos crimes previstos em legislação avulsa, os condenados por:
i) Crimes de terrorismo, previstos na lei de combate ao terrorismo, aprovada pela Lei n.º 52/2003, de 22 de agosto;
ii) Crimes previstos nos artigos 7.º, 8.º e 9.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, que cria o novo regime penal de corrupção no comércio internacional e no setor privado, dando cumprimento à Decisão Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de julho de 2003;
iii) Crimes previstos nos artigos 8.º, 9.º, 10.º, 10.º-A, 11.º e 12.º da Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto, que estabelece um novo regime de responsabilidade penal por comportamentos suscetíveis de afetar a verdade, a lealdade e a correção da competição e do seu resultado na atividade desportiva;
iv) Crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado e de fraude na obtenção de crédito, previstos nos artigos 36.º, 37.º e 38.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, que altera o regime em vigor em matéria de infrações antieconómicas e contra a saúde pública;
v) Crimes previstos nos artigos 36.º e 37.º do Código de Justiça Militar, aprovado em anexo à Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro;
vi) Crime de tráfico e mediação de armas, previsto no artigo 87.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, que aprova o regime jurídico das armas e suas munições;
vii) Crimes previstos na Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Cibercrime;
viii) Crime de auxílio à imigração ilegal, previsto no artigo 183.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional;
ix) Crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;
x) Crimes previstos nos artigos 27.º a 34.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança;
g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro;
h) Os condenados por crimes praticados enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas, designadamente aqueles previstos na Lei n.º 34/87, de 16 de julho, que determina os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções;
i) Os condenados em pena relativamente indeterminada;
j) Os reincidentes;
k) Os membros das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários relativamente à prática, no exercício das suas funções, de infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena;
l) Os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.
2 - As medidas previstas na presente lei não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções.
3 - A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.”
Como tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência, as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos termos em que estão redigidas, sem ampliações decorrentes de interpretações extensivas ou por analogia, nem restrições que nelas não venham expressas, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa..[3]
Como sublinha Maia Gonçalves[4] «as medidas de graça, como providências de excepção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas».
Neste sentido também o Ac. de Fixação de Jurisprudência nº 2/2023[5] que por considerarmos pertinente citamos excertos da sua fundamentação em que se escreveu o seguinte: « O direito de graça assume uma natureza excecional que, como tal, não comporta aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo as normas que o enformam “ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas”(11[6]). (…)
Como tal, atendendo à excecionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação das mesmas deverá, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei(13[7])(…)
Vale aqui, plenamente, o brocardo e princípio exceptio strictissimae interpretationis. E não se afigura como sendo um escolho nesta senda hermenêutica a expressa determinação do artigo 11.º do Código Civil, proscrevendo a analogia mas permitindo a interpretação extensiva(15[8]). É que operar um salto de aplicação como o que está em causa cairia sob a alçada da analogia, não da simples interpretação/aplicação extensiva.
Como bem se sabe, a interpretação extensiva apenas procura retirar da norma o que nela já se encontra, ainda que imperfeitamente expresso. Trata-se apenas do alargamento, por via hermenêutica, do que já se encontrava em latência ou potência (mas não expressamente, ou em ato) na vontade e razão legislativas. Pelo contrário, a analogia estende a casos similares o previsto para o caso que se tem como modelo, e se “exporta” para situação tida como similar, mas não a mesma, e não visada pela lei analogicamente aplicada».
No mesmo sentido o Assento 2001[9],  que sobre a excepcionalidade da Lei de amnistia e suas questões hermenêuticas se estabeleceram as seguintes considerações:
«o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.
Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam.
É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça citados de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção - de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção, de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º 2748/2000, 5.ª Secção).
E mais à frente « Sendo, assim, insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147.
Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185.»
No que toca à interpretação declarativa há que atender ao artigo 9º do Código Civil, que estatui:
«1. A interpretação da norma não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»
Tendo por referência esse enquadramento e fazendo a respectiva interpretação declarativa, que se impõe, concluímos que, no caso em apreço, face aos crimes englobados no cúmulo jurídico, nenhum deles se encontra amnistiado por não se verificarem os pressupostos do art.º 4º da Lei 38-A/2023.
Por sua vez, os crimes de homicídio qualificado tentado, de roubo e de ofensa à integridade física qualificada, integram, respectivamente, as excepções previstas no art.º 7º, nº1 al. a) i), iii) e b) i). De notar que, quanto ao crime de homicídio qualificado tentado, embora esteja apenas previsto no art.º 7º, n º1 al. a) i), aliás como ocorre nos diversos números e alíneas, o tipo legal de crime, consideram-se abrangidas as diversas formas do seu cometimento e, assim, também a tentativa. O mesmo ocorrendo com a simples referência ao tipo de crime base, que também não permite concluir que tenha sido intenção do legislador não excluir da aplicação das medidas estabelecidas pela presente Lei o tipo de crime agravado ou qualificado correspondente, mesmo que a ele não se tenha referido expressamente[10] .
Por outro lado, o crime de detenção de arma proibida e de falsificação de documento não fazem parte do catálogo dos crimes excepcionados da cita lei, e a respectiva condenação  foi em penas de prisão parcelares inferiores/iguais a 1 ano de prisão.
Estamos, assim, perante uma situação de coexistência entre crimes excludentes do perdão com crimes dele não excludentes.
Como já mencionamos, o art.º 7º, nº 3, da mesma lei estatui a este respeito que a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º relativamente a outros crimes cometidos.
No entanto, como bem salienta Pedro José Esteves de Brito[11] «O preceito visa apenas esclarecer que, estando em causa vários crimes, a exclusão da amnistia e do perdão quanto a um ou alguns deles não prejudica a aplicação da amnistia e do perdão relativamente a algum ou alguns dos outros, verificados que estejam os necessários requisitos.
(…)
Saliente-se que não foi essa a solução implementada pela Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, que, nos casos de condenação em cúmulo jurídico, determinou que não havia que aplicar qualquer perdão à pena única desde que naquele estivesse englobada pelo menos uma pena parcelar aplicada pela prática de um crime excludente do perdão e, assim, mesmo que também englobasse outras penas parcelares aplicadas pela prática de outros crimes que não determinavam a sua exclusão (cfr. art.º 2.º, n.ºs 3 e 6).» (sublinhado nosso).
Resta-nos entrar agora no objecto essencial do presente recurso, que é averiguar se, como defende o recorrente, englobando o cúmulo jurídico efectuado nos autos penas parcelares inferiores a 8 anos por crimes não excluídos do perdão, este não pode ser afastado, como se entendeu no despacho sob recurso e sustentado na resposta do Ministério Público, por a pena única de prisão em que o recorrente foi condenado ser superior a 8 anos.
Aplicando os parâmetros de interpretação e tendo em conta o teor literal das normas e a sua inserção sistemática, é inquestionável que, em caso de cúmulo jurídico, como ocorre no caso concreto, o perdão incide sobre a pena única aplicada -cfr. art.º 3.º, n.º 4.
Neste particular subscreve-se integralmente o teor do entendimento expresso nas citadas notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de Agosto[12], o qual se transcreve, pois que traduz o nosso entendimento da questão: « (..)em caso de cúmulo jurídico, haverá sempre que ter em conta que o perdão incide sobre a pena única aplicada (cfr. art.º 3.º, n.º 4, da Lei em análise) determinada de acordo com as regras estabelecidas nos arts. 77.º e 78.º do C.P. e, assim, mesmo que englobando penas parcelares aplicadas por crimes excluídos do perdão e penas parcelares aplicadas por crimes dele não excluídos».
E mais à frente fundamenta o mesmo autor «Por outro lado, no caso de cúmulos jurídicos de penas já realizados, onde não tenham sido englobadas penas parcelares aplicadas por crimes abrangidos amnistia, o perdão poderá ser aplicado por mero despacho62. Na verdade, nada na Lei em análise impõe o desrespeito pelas regras dos arts. 77.º e 78.º do C.P. e, assim, que se desfaça o cúmulo jurídico efetuado, por forma a dele excluir a pena parcelar correspondente a crime excluído do perdão, e que se efetue um cúmulo englobando apenas as penas parcelares correspondentes a crimes não excluídos do perdão em ordem à aplicação deste à pena única que viesse a ser determinada». 
É certo que as leis de amnistia e perdão mais recentes (com excepção da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, que, como vimos, o excluiu expressamente) continham preceitos semelhantes, mas não iguais como adiante veremos, aos arts.º 3.º, n.º 4 e 7.º, n.º 3, e que a existência de idêntica previsão à primeira norma citada- no sentido de que o perdão incide sobre a pena única (e não sobre as penas parcelares), não impediu, no entanto, que se firmasse o entendimento de que, em caso de cúmulo jurídico de penas parcelares aplicadas por crimes excluídos do perdão e penas parcelares aplicadas por crimes dele não excluídos, se aplicasse o perdão àquelas que dele deviam beneficiar, “desfazendo” para o efeito o respectivo cúmulo.
Efectivamente o art.º 9.º, n.º 4, da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio previa que: “A exclusão de perdão prevista nos n.ºs 1 e 2 não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo anterior em relação a outros crimes cometidos, devendo, para o efeito, proceder-se a adequado cúmulo jurídico” (sublinhado nosso).
Com idêntica redacção o art.º 2.º, n.º 3, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, estabelecia que: “A exclusão do perdão prevista nos n.ºs 1 e 2 não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo anterior em relação a outros crimes cometidos, devendo, para o efeito, proceder-se a adequado cúmulo jurídico”.(igualmente sublinhado nosso).
Sobre esta concreta questão nas citadas notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de Agosto[13] refere-se o seguinte:
«A partir da Lei n.º 16/86, de 11 de junho, nas várias leis de amnistia e perdão, sempre foi estipulado que, em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares.
No entanto, relativamente aos cúmulos jurídicos englobando várias penas, em que umas beneficiam do perdão e outras não, as soluções foram variando ao longo do tempo.
Inicialmente efetuava-se um cúmulo jurídico das penas parcelares abrangidas pelo perdão e calculava-se a respetiva pena única, a que se aplicava o perdão a que houvesse lugar e, depois, realizava-se outro cúmulo jurídico com o remanescente daquela pena única e todas as outras penas parcelares que não beneficiavam do perdão.
Posteriormente, uma corrente jurisprudencial foi-se formando em sentido diferente até se tornar maioritária, senão unânime. Segundo a mesma efetuava-se um cúmulo jurídico das penas parcelares perdoáveis, segundo as regras dos arts. 77.º e 78.º do C.P. (cúmulo parcial) só para o efeito de calcular a extensão do perdão (em relação à pena encontrada25[14]) e, seguidamente, cumulavam-se juridicamente, levando sempre em conta aquelas regras, todas as penas parcelares que faziam parte do concurso de crimes, quer as perdoáveis, quer as não abrangidas pelo perdão, e determinava-se a pena única, sobre a qual incidiria o perdão. Na verdade, num cúmulo jurídico de penas, só devem ser englobadas penas parcelares e não penas que tenham sido construídas já a partir de uma operação de cúmulo, e o perdão deve incidir sobre a pena única obtida a partir do cúmulo jurídico de todas as penas parcelares.»
Estas notas estão igualmente em consonância com a interpretação firmada em jurisprudência no âmbito das Leis da amnistia anteriores (cfr. neste sentido estudo de António Artur Rodrigues da Costa, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, que serviu de base a uma exposição oral no âmbito de uma acção de formação do CEJ que teve lugar na Faculdade de Direito do Porto em 4 de Março de 2011, Ac. do S.T.J. de 15-11-2006, processo  06P3183, relator Oliveira Mendes, 24-10-2006, Processo nº06P2941 e de 18-10-2007, Processo 07P2691, sendo relator de ambos Santos Carvalho).
No entanto, como já referimos, a redacção do actual art.º 7º, nº 3 apenas estipula que a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos, ou seja, não contém a menção que constava das citadas disposições das amnistias anteriores – “devendo, para o efeito, proceder-se a adequado cúmulo jurídico”.
O problema posto é, em suma, um problema de interpretação, cujo resultado, como já vimos, só poderá ser de cariz declarativo, isto é, de descoberta daquele sentido normativo que, assente no texto da norma ou das normas, efectivamente corresponda ao pensamento legislativo.
Citando Pires de Lima e Antunes Varela[15] « … o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demostrada através de texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.
Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios de carácter objectivo, como são os que constam do nº 3
Como é consabido, como meios auxiliares para a determinação da intenção do legislador há que considerar, além do mais, os seguintes: os trabalhos preparatórios, que comportam os estudos que foram elaborados para a preparação da lei, os vários anteprojetos e projetos que antecederam a sua versão final; - discussão que ocorreu nos órgãos legislativos (por exemplo, debates parlamentares).
De referir a este propósito que a proposta de lei n.º 97/XV/1[16].ª estipulava no art.º 5.º, n.º 3 (correspondente ao actual 7.º, n.º 3) que : “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos, devendo, para o efeito, proceder-se a cúmulo jurídico, quando aplicável”.
No processo legislativo referente à citada lei apresentaram pareceres o Conselho Superior do Ministério Público, a Ordem dos Advogados e o Conselho Superior da Magistratura.
O Conselho Superior da Magistratura[17]no parecer que emitiu a propósito dessa Proposta de Lei n.º 97/XV/1.º, depois de referir que «a apreciação expressa no presente parecer, visa, tão-somente, tecer algumas considerações sobre a iniciativa em causa ponderadas à luz do ordenamento constitucional e jurídico-legal em vigor e das consequências que decorrerão da implementação das soluções projetadas no Sistema de Justiça» pronuncia-se expressamente sobre este artigo no seguinte sentido:
«A redação do no n.º 3 do artigo 5.º em apreciação, embora replique o preceito constante do art.º 2.º, n.º 3, da Lei n.º 29/99, de 12 de maio, ao desconsiderar o momento em que a presente lei previsivelmente entrará em vigor, irá causar sérios problemas de exequibilidade para os quais não podemos deixar firmemente de alertar.
(…)
Parece-nos que a aplicação desta norma será da competência do tribunal da condenação (singular ou coletivo) e implicará a reformulação do cúmulo jurídico e nova liquidação da pena, caso se trate de condenação em prisão efetiva.
Daqui resulta que, nos casos em que haja crimes que beneficiem do perdão ou da amnistia em concurso com outros que estejam excluídos nos termos das exceções constantes do art.º 5.º, haverá que proceder à reformulação do cúmulo jurídico, por forma a aplicar a presente lei nos crimes que não estejam excecionados.
Ora, para além das questões jurídicas várias que tal solução suscitará, às quais a jurisprudência, a seu tempo, terá que dar resposta, no imediato, resulta à evidência que a solução adotada na lei suscitará imensos problemas na prática judiciária e será geradora de graves entorpecimentos e constrangimentos ao nível do funcionamento dos tribunais.
(….)
São, pois, fáceis de antever os graves bloqueios que surgirão na gestão e organização dos recursos materiais e humanos existentes e na tramitação processual a que cumpre dar andamento, que imporá ainda a compatibilização de agendas com os demais intervenientes processuais.»
Ademais dos trabalhos preparatórios da mesma Lei resulta que foi intenção do legislador que a aplicação da mesma fosse efectuada com os menores constrangimentos possíveis e, sobretudo, sem reformular cúmulos jurídicos já realizados, nos casos que não englobem penas parcelares abrangidas pela amnistia, mesmo que abranjam penas parcelares de prisão aplicadas por crimes excluídos do perdão e penas parcelares de prisão aplicadas por crimes que não estão excluídos do perdão.
Como já vimos, na versão final da referida lei foi excluída a menção “devendo, para o efeito, proceder-se a adequado cúmulo jurídico”, o que permite concluir que o legislador quis efectivamente evitar os constrangimentos que dai podiam advir, designadamente relativamente à realização de “novos cúmulos jurídicos”.
Por outro lado, se atentarmos na redacção do art.º 3º, nº 1 da citada lei, verifica-se que a interpretação literal aponta para que o legislador ao referir “todas as penas de prisão até 8 anos”,(sublinhado nosso) quis que apenas beneficiassem do perdão as penas inferiores ou iguais a 8 anos,[18] sejam elas parcelares, em caso de diferentes condenações sucessivas, ou únicas, no caso de condenação em cúmulo jurídico, sendo que neste caso o perdão incide sobre a pena única (cfr. art.º 3.º, n.º 4, da dita Lei).
Aliás foi dessa forma que a norma em causa foi interpretada no citado parecer do Conselho Superior da Magistratura, como resulta do seguinte excerto, que se transcreve:
«De acordo com o n.º 3 do preceito sob análise, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única. Estão abrangidas, no âmbito da norma, as condenações em concurso de crimes em que não estejam incluídos nenhum dos crimes excecionados pelo artigo 5.º. Nestes casos, a aplicação da lei não suscita dificuldades: o perdão incidirá sobre a pena única, sendo perdoado um ano, com o limite previsto no n.º 1 do art.º 3.º (a pena não exceda 8 anos de prisão).»
Também foi assim que foi interpretada pelo mencionado autor[19], que sobre esta questão se pronunciou no seguinte sentido:
 “Assim, no caso de diferentes condenações em penas de prisão de cumprimento sucessivo terá que se atender à medida de cada pena de prisão aplicada em cada decisão e, em caso de condenação em cúmulo jurídico, à pena única, independentemente da medida fixada para as penas parcelares, dado que, neste caso, o perdão incide não sobre as penas parcelares, mas sobre a pena única.
Dos trabalhos preparatórios resulta que, de resto, foi assim que a norma foi interpretada, ou seja, que em caso de condenação em cúmulo jurídico, para beneficiar do perdão de penas, a pena única de prisão não pode exceder 8 anos.
(…)
.Em bom rigor, trata-se de uma opção legislativa de apenas considerar merecedores do perdão aqueles que, nas demais condições previstas, tenham sido condenados numa pena de prisão não superior a 8 anos. Ora, não se pode dizer que a limitação seja politico-criminalmente infundada. Na verdade, uma vez que uma pena de prisão de 8 anos é uma pena grave, não se afigura arbitrário considerar que um agente condenado numa pena de prisão de duração superior a 8 anos não é merecedor de qualquer medida de graça, tenha tal pena sido aplicada apenas por um crime ou se trate de uma pena única em cúmulo jurídico de várias penas parcelares porventura, cada uma delas, de medida inferior. Por outro lado, no passado, já se atendeu à medida da pena de prisão aplicada para estabelecer uma diferenciação para a medida do perdão (cfr. arts. 1.º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de maio, 8.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 15/94, de 11 de maio, 14.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 23/91, de 4 de julho, 13.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 16/86, de 11 de junho).
Por conseguinte, seguindo esta linha de entendimento, que subscrevemos, ainda que uma pena parcelar seja objecto de perdão, caso a mesma venha, posteriormente, a integrar um cúmulo jurídico de conhecimento superveniente, tal perdão poderá deixar de ser aplicável, por força da pena única que venha a ser aplicada ser superior a 8 anos, como ocorre no caso concreto.[20]
Assim, tendo por referência este entendimento de que o perdão é aplicado à pena única e sendo esta “ in casu” superior a 8 anos, nenhuma censura merece o despacho recorrido quando concluiu que o recorrente não se encontra abrangido pelo âmbito da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, em conformidade com o disposto no seu art.º 3.º, n.º 1.

3.2. A interpretação normativa do artº 3º, nº 1 efectuada do despacho recorrido no sentido de que o perdão previsto no citado regime é aplicado à pena única é inconstitucional, “porque viola o princípio da igualdade, consagrado no art.° 13.°, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no art.° 1.° e o princípio de direito, em cujo núcleo consagra a eminência da pessoa humana, consagrado no proémio do art.° 2.° todos da Constituição”.
Quer a doutrina quer a jurisprudência têm vindo, de forma consistente, designadamente em matéria de amnistia ou perdão, a considerar constitucionalmente conformes, as eventuais diferenças de tratamento, desde que as mesmas surjam materialmente fundadas e baseadas em critérios objectivos.
Neste sentido também o recente Ac. de Fixação de Jurisprudência º 2/2023, que a este respeito fundamentou o seguinte:
«Prevê, assim, o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa que:
“1 - Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2-Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
“O princípio da igualdade é um corolário da igual dignidade de todas as pessoas, sobre a qual gira, como em seu gonzo, o Estado de Direito democrático (cf. artigos 1.º e 2.º da Constituição).
A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado [...] O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado, quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante”( 23[21]).
Ora, qualquer medida de amnistia, entendida em sentido amplo, pode remeter, necessariamente, para uma certa derrogação do princípio da igualdade (ao menos num seu entendimento não complexivo, que abranja ou integre já essas exceções, aliás clássicas), uma vez que há sempre um grupo limitado de delitos que deixa de ser punido, ou um conjunto de penas que deixam de ser cumpridas, mantendo -se os demais.
“Todavia, no domínio das medidas de clemência, o princípio da igualdade deverá ser entendido num sentido específico: ele não impede a lei de aprovar regras especiais, dirigidas a certas categorias de ilícitos e de penas, mas sim de aprovar regras diferentes para situações objectivamente iguais.
O problema consiste, pois, em avaliar as situações que poderão ser consideradas especiais”( 24[22]).
Assim, e como tem sido entendido pelo Tribunal Constitucional, «a diversidade de tratamento que se exprime em leis especiais e excepcionais é admissível se, e enquanto, seja possível afirmar, objectiva e racionalmente, que a sua previsão, ainda que em via concreta, surja como um carácter de tal modo próprio que a permita destacar “da disciplina geral”»( 25[23]).
Desta forma, «a jurisprudência do Tribunal Constitucional afirma que o princípio da igualdade nas leis de amnistia e de perdão genérico “só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis” (Acórdão n.º 42/95), entendendo que as diferenças de tratamento legal traduzem uma diferenciação arbitrária apenas quando não sejam concretamente compreensíveis ou quando não seja possível encontrar uma justificação razoável para a diferenciação, ligada à natureza das coisas (Acórdão n.º 152/95)”».
Nesta medida, “a proibição de discriminação nos termos do artigo 13, n.º 2, da Constituição da República, não significa uma igualdade absoluta em todas as situações, mas apenas exige que as diferenciações de tratamento sejam materialmente fundadas e não tenham por base qualquer motivo constitucionalmente improprio. As diferenciações de tratamento podem ser legitimas quando se fundamentarem numa distinção objectiva e se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas a realização da respectiva finalidade”( 26[24]).
(…)
Nesta medida, “o Tribunal Constitucional vem entendendo, com significativa reiteração, que, nos óbvios parâmetros do Estado de direito democrático, a liberdade de conformação legislativa goza de alargado espaço onde têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d’Etat”( 28[25]).
Assim, o legislador da clemência tem liberdade de estabelecer os critérios e a forma de determinar o perdão, mantendo uma significativa margem de discricionariedade, de forma a cumprir os objetivos que lhe estão subjacentes. Como tal, “cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas — o quantum do perdão —, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis”( 29[26]).
Ora, é o que sucede no caso concreto, a lei aqui em causa reveste carácter geral e abstracto, pois aplica-se a todos os arguidos/condenados que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado.
Por outro lado, a delimitação do âmbito de aplicação da lei está devidamente   justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável.
Não padece, por isso, da apontada inconstitucionalidade, sendo que, como já foi referido o Tribunal Constitucional já se pronunciou, por diversas vezes, no sentido da conformidade constitucional de normas que restringem o âmbito de aplicação de amnistias.
Veja-se nesse sentido, por todos:
«O princípio da igualdade não proíbe (…) que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes» - Acórdão nº 39/88, de 09/02/1988.
«O princípio da igualdade não comporta (…) uma proibição absoluta de discriminações no tratamento legal de uma dada matéria, mas tão somente que essas discriminações sejam arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante» - Acórdão n.º 149/93, de 28/01/1993.
“A igualdade em sentido material (e é esta a igualdade que o artigo 13º. expressa), pressupõe tratamento igual do que é igual e tratamento diferente do que é diferente, de acordo com a medida da diferença. Daí que, seguindo uma linha jurisprudencial constante que já remonta à Comissão Constitucional, este Tribunal afirme (…) que uma diferenciação de tratamento fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas, não é atentatória do princípio da igualdade. Por outras palavras, utilizando uma formulação do Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerf GE 1,14 (52), citada por Alexy, Theorie der Grundrecht, Suhrkamp-Verlag, 1986, pág. 370) tratamentos legais diferentes, traduzem uma diferenciação arbitrária quando (...) não é possível encontrar um motivo razoável decorrente da natureza das coisas, ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível, para essa diferenciação” - Acórdão n.º 152/95, de 15/03/1995.
«Aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado e ainda menos à prevenção dos factos do tipo de infração visado pela norma amnistiante. Esses fins não se limitam à justiça, no sentido de realização do direito, valem também razões de conveniência pública e a razão de Estado (…). Não há, portanto, que limitar a admissibilidade da amnistia aos fins específicos da política criminal (…). Tais fins são servidos de uma forma que se considerou em geral preferível na legislação penal não revogada pela lei de amnistia, pelo que esta só se poderia justificar em função dos mesmos fins pelos defeitos da lei penal ou da sua aplicação, nomeadamente perante modificações supervenientes, de carácter excecional, das relações comunitárias ou da situação pessoal dos criminosos, para obviar a incorreções legislativas ou a erros judiciários, como para propiciar condições favoráveis a modificações profundas da legislação de carácter penal (…). Só se admitiriam, assim, as amnistias corretivas da lei ou da jurisprudência, em sentido amplo, reprovando-se os casos nucleares da tradição histórica do instituto, as amnistias pacificadoras e comemorativas. Mesmo quando se tratasse de fins instrumentais de política criminal, da adequação dos meios disponíveis aos fins através da redução da população prisional ou da diminuição do trabalho que pesa sobre o sistema judicial, a sua legitimidade seria "pelo menos duvidosa" (…). É claro que a instrumentalização da amnistia para obviar à carência de meios não se deduz dos fins das penas, mas é consequência de outros fins concorrentes do Estado, que disputam os mesmos meios. Mas numa conceção mais ampla de política criminal, que não se limita à consecução dos fins das penas a partir de uma prévia definição dos factos puníveis e da necessidade das penas, já a definição dos factos puníveis e a ponderação dos meios concorrentes de realizar os vários fins do Estado pertence ao cerne da própria política criminal, como parte integrante da política geral do Estado. Nesta ampla perspetiva, já a amnistia não se opõe ao sistema do direito penal que vem eventualmente corrigir, mas é um meio incluível na política criminal que modifica temporariamente a definição dos factos puníveis e das penas em função dos fins concorrentes do Estado, os quais já determinaram a própria definição temporalmente ilimitada das leis que preveem os crimes amnistiados. Só que neste sentido todos os fins possíveis de um Estado de direito podem relevar, e não apenas os que supõem uma prévia definição dos factos puníveis, que são os fins das penas» - Acórdão nº 444/97, de 25/06/1997.
«Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas – o quantum do perdão –, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infrações a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstrata, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis» - Acórdão nº 488/2008, de 07/10/2008.
«O princípio da igualdade, enquanto parâmetro constitucional capaz de limitar as ações do legislador, comporta reconhecidamente várias dimensões: proibição do arbítrio legislativo; proibição de discriminações negativas, não fundadas, entre os sujeitos; assim como eventual imposição de discriminações positivas, com projeções distintas tendo em conta as especificidades do âmbito material em causa. Da extensa jurisprudência constitucional sobre a temática resulta que o princípio não proíbe em absoluto toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as diferenciações (e a sua medida) materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional» – Acórdão n.º 273/2016, de 4/05/2016.
 «Este Tribunal já por diversas vezes se pronunciou sobre o princípio da igualdade, particularmente na dimensão da proibição do arbítrio, firmando uma jurisprudência reiterada no sentido de que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, sem fundamento material bastante, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º (veja-se, neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 39/88, 157/88, 86/90, 187/90, 1186/96, 353/98, 409/99, 245/2000, 319/2000, 187/2001 e 232/2003).» - Acórdão n.º 809/2022.
Dito isto, é para nós claro que o critério escolhido pelo legislador não trata de forma desigual ou discriminatória situações semelhantes, assim gerando injustiça, pois, como referiu  Exmª Procuradora da República na sua resposta, o legislador soube exprimir-se e quis aplicar o perdão de um ano apenas às penas únicas até 8 anos de prisão, sem que isso fira o princípio da igualdade, pois a conduta de quem comete vários crimes em situação de concurso é mais gravosa de quem comete crimes inferiores àquele tecto ou sem estar em situação de concurso, que o legislador não entendeu merecedor de medida de clemência que, como tal, não viola qualquer direito do recorrente, nomeadamente o princípio da igualdade, porque justificado.
Uma última nota para referir que relativamente aos referidos despachos proferidos pelo Juízo Central Criminal ... e Juízo Central Criminal ..., além de desconhecermos todos os pressupostos que estiveram na base das respectivas decisões, consubstanciam apenas uma interpretação, que, como vimos, na nossa perspectiva não tem assento na Lei da amnistia em apreciação.
Por conseguinte, a decisão recorrida não violou qualquer norma legal ou constitucional, nomeadamente as invocadas pelo recorrente, pelo que não merece censura, e, consequentemente, improcede o recurso interposto pelo recorrente.

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente  AA, e, em consequência, decidem confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta (art.º 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e art.º 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários - art.º 94º, n.º 2, do CPP)
                                                               
Guimarães, 23 de Janeiro de 2024

Anabela Varizo Martins (relatora)
António Bráulio Alves Martins (1º adjunto)
Pedro Miguel Cunha Lopes (2º adjunto)


[1] Cfr. arts. 412.º e 417.º do C P Penal e Ac.do STJ de 27-10-2016, processo nº 110/08.6TTGDM.P2.S1, de 06-06-2018, processo nº 4691/16. 2 T8 LSB.L1.S1  e da Relação de Guimarães de 11-06-2019, processo nº 314/17.0GAPTL.G1, disponíveis em www.dgsi.pt  e, na doutrina, Germano Marques da Silva- Direito Processual Penal Português, 3, pag. 335.
[2] Cfr. acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.
[3] Neste sentido Ac. da Relação de Guimarães de 22-02-2021, Processo nº 384/09.5IDBRG.G3, relator Paulo Serafim, disponível em www.dgsi.pt.
[4] As medidas de graça no Código Penal e no projecto de revisão, RPCC, 1994, Fasc. 1, p. 10.
[5] Processo n.º 132/15.0TXEVR -F.E1 -A.S1, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 1 de Fevereiro de 2023.
[6] 1) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de dezembro de 1977, in “Boletim do Ministério da Justiça”, n.º 272.
[7] AGUILAR, Francisco, Amnistia e Constituição, Coimbra, Almedina, 2004, p. 119, n. 557
[8] FERREIRA DA CUNHA, Paulo, Teoria Geral do Direito. Uma Síntese Crítica, Oeiras, A Causa das Regras, 2018, p. 367.
[9] Proferido no processo n.º P00P3209, Diário da República n.º 264/2001, Série I-A de 2001-11-14.
[10] Neste sentido Pedro José Esteves de Brito (Juiz de Direito no Juízo Central Criminal ...) in notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de Agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, revista julgar Online, agosto de 2023, pag. 32, que, nesta parte, acompanhou Poças, Sérgio/Almeida, Carlos de, in Notas relativas ao Projeto de Lei de perdão genérico e amnistia de pequenas infrações, Centro de Estudos Judiciários, 03-05-1999, pág. 3.
[11] Notas citadas, pag. 36.
[12] Notas citadas, pag. 36.
[13] Pags. 16 e 17.
[14] Na verdade, ao contrário da Lei em análise, a medida do perdão das penas de prisão na Lei n.º 16/86, de 11 de junho (cfr. art.º 13.º, n.º 1, al. b), na Lei n.º 23/91, de 04 de julho (cfr. art.º 14.º, n.º 1, al. b), na Lei n.º 15/94, de 11 de maio (cfr. art.º 8.º, n.º 1, al. d) e na Lei n.º 29/99, de 12 de maio (cfr. art.º 1.º, n.º 1) era variável em função da medida concreta da pena de prisão aplicada.
[15] In Código Civil Anotado, Vol. I, anotação ao artº 9, pag.58 e 59.
[16]https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=173095.
13https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c63793959566b786c5a793944543030764d554e425130524d5279394562324e31625756756447397a5357357059326c6864476c3259554e7662576c7a633246764c324935596d4a68597a426d4c546b774d6a63744e444135595330344e4755334c545934595755344e446c6c4e6a5930595335775a47593d&fich=b9bbac0f-9027-409a-84e7-68ae849e664a.pdf&Inline=true ttps://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path.
[17]https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c63793959566b786c5a793944543030764d554e425130524d5279394562324e31625756756447397a5357357059326c6864476c3259554e7662576c7a633246764c324935596d4a68597a426d4c546b774d6a63744e444135595330344e4755334c545934595755344e446c6c4e6a5930595335775a47593d&fich=b9bbac0f-9027-409a-84e7-68ae849e664a.pdf&Inline=true ttps://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path
[18] o que se retira desde logo da palavra até (preposição indicativa de limite; advérbio sem excepção) –cfr.Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora.   
[19]  Agora em “Mais algumas notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, revista julgar Online, janeiro de 2024, nota 4, pag. 5.
[20] Também neste sentido Ema Vasconcelos (Juíza de Direito no Juízo Central Criminal de Lisboa)in “ Amnistia e perdão – Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto”, revista julgar Online, janeiro de 2024.
[21] ( 23) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 39/88, de 9 de fevereiro de 1988, processo n.º 136/85, 2.ª Secção, Relatado pelo Conselheiro Messias Bento. No mesmo sentido, o Acórdão Tribunal Constitucional n.º 149/93, de 28 de janeiro de 1993, processo n.º 75/89, 1.ª Secção, Relatado pelo Conselheiro António Vitorino, onde se escreveu que “da assinalada jurisprudência decorre que, vistas as coisas na óptica da igualdade em sentido material, e enquanto princípio vinculador do próprio legislador, se exige que a lei dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e trate de forma distinta o que for dissemelhante. O princípio da igualdade não comporta, pois, uma proibição absoluta de discriminações no tratamento legal de uma dada matéria, mas tão somente que essas discriminações sejam arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante”.
[22] CANOTILHO, Mariana/PINTO, Ana Luísa, Op. cit., p. 340.
[23] AGUILAR, Francisco, Op. cit., p. 115.
[24] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de julho de 1987, processo n.º 038984, disponível em www.dgsi.pt
[25] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/02, de 31 de Janeiro de 2002, processo n.º 725/01, 3.ª Secção, Relatado pelo Conselheiro Tavares da Costa.
[26] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 488/2008, de 7 de Outubro de 2008, processo n.º 35/08, 2.ª Secção, Relatado pelo Conselheiro Benjamim Rodrigues.