COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Sumário

Tendo em conta as regras dos artigos 11º nº1, al. b) e artigo 13º nº 2 do Regulamento (EU) nº1215/2012, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar o litígio em que a autora, com sede em Portugal, demanda a ré, companhia de seguros francesa (com representação em Portugal), pelos danos emergentes de acidente de viação ocorrido em França, com veículo segurado nesta última, por aplicação do princípio de protecção da parte mais fraca e por ser possível a acção directa em matéria de seguro de responsabilidade civil automóvel (cf. o artigo 146º nº1 do Decreto-Lei 72/2008, de 16/04).

Texto Integral

Apelação nº 1174/23.8T8OAZ.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Local Cível de Oliveira de Azeméis


Relator: Carlos Portela
Adjuntos: Judite Pires
Aristides Rodrigues Almeida




Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto



I. Relatório:
A... Lda., pessoa colectiva nº...10, com sede em ..., ..., Oliveira de Azeméis, intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra B..., com sede em ..., Rue ...., ...., França, peticionando a condenação desta última no pagamento àquela da quantia de € 4.863,15.
Alegou para tanto, em síntese, que um dos veículos de sua propriedade foi alvo de sinistro quando circulava em França, determinado por veículo segurado na ré.
Desse sinistro decorreram prejuízos para a autora, sendo certo que, apesar da ré reconhecer a sua responsabilidade pelo ressarcimento de danos pelo sinistro, apenas aceitou suportar o valor de €1250,00 e não o remanescente solicitado por aquela primeira.
Foi dado contraditório para que a autora tomasse posição quanto à eventual incompetência internacional deste Tribunal.
Foi então proferida decisão na qual se julgou procedente, por verificada, a excepção dilatória de incompetência internacional, assim se declarando a incompetência internacional do Tribunal para apreciar e decidir a presente causa e, em consequência, se absolveu a ré da instância, nos termos do disposto nos arts.1º, 4º, 5º e 7º nº2 do Regulamento (UE) nº 1215/2012 e nos art.96º al. a), 97º nº1, 99º nº1, todos do CPC.
Desta decisão veio interpor recurso a autora, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos, as suas alegações.
Não foram apresentadas contra alegações.
Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº41/2013 de 26 de Junho.
É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pela autora/apelante nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor dessas mesmas conclusões:
I. A recorrente, mui respeitosamente, não concorda, nem pode concordar, com a decisão proferida pelo Tribunal A Quo ao julgar o Tribunal internacionalmente incompetente para apreciar e decidir a presente demanda.
II. O Tribunal A Quo mal andou na interpretação do Regulamento (UE) nº 1215/2012, porquanto existe norma a atribuir competência aos Tribunais Portugueses, que se mostra, na douta fundamentação, ignorada, a saber: artigo 13º, n.º 2 do citado Regulamento.
III. A presente demanda, tal como apresentada pela A. na sua petição inicial, funda-se em acidente de viação ocorrido em outro país da U.E. (In casu França), provocado por veículo abrangido por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...04, pelo qual a Ré (sedeada em França, mas com representação em Portugal) assumiu a responsabilidade de circulação do veículo (cfr expressamente artigos 2º e 3º da Petição inicial).
IV. Como refere Marco C. Gonçalves, pese embora a secção 3 do Reg.1215/2012, seja referente à competência em matéria de seguros, se encontre concebida para regular a competência internacional em caso de litígio entre as partes de uma relação contratual de seguro, a verdade é que o art.º 13º estende esse regime a terceiros.
V. De facto, prevê o art.º 13º, nº 2 do Citado Regulamento, que: O disposto nos artigos 10º, 11º e 12º aplica-se no caso de acção intentada pelo lesado directamente contra o segurador, desde que tal acção directa seja possível.
VI. Posto isto, temos que, em acção intentada pelo lesado (aqui A.) contra o segurador (aqui Ré), se aplicam as regras dos artigos 10º, 11º e 12º, desde que tal acção directa seja possível.
VII. Ora, prevê o artigo 11º, n.º 1, alínea b) do Regulamento que O segurador domiciliado no território de um Estado-Membro pode ser demandado: b) Noutro Estado-Membro, em caso de acções intentadas pelo tomador de seguro, o segurado ou um beneficiário, no tribunal do lugar em que o requerente tiver o seu domicílio;
VIII. Para além de que existe no ordenamento jurídico nacional norma a prever que o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador, a saber: no art.º 146º, nº 1, do D.L. nº 72/2008.
IX. O que é corroborado pelo Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-10-2018 (proc 20953/17.9T8LSB.L1-6);“Por aplicação das disposições especiais dos artigos 11º nº 1 al. b) e artigo 13º nº 2 do Regulamento (EU) nº 1215/2012, o tribunal português é internacionalmente competente para julgar o litígio em que a autora, residente em Portugal, demanda a ré, companhia de seguros francesa (com representação em Portugal), pelos danos emergentes de acidente de viação ocorrido em França, com veículo segurado nesta última, por aplicação do princípio de protecção da parte mais fraca e por ser possível a acção directa em matéria de seguro de responsabilidade civil automóvel, nos termos do artigo 146º nº 1 do Decreto-Lei 72/2008, de 16/04 (Regime Jurídico do Contrato de Seguro).”
X. A verdade é que, a A. enquanto pessoa lesada em litígio que a opõe a uma seguradora, que é demandada precisamente por causa de contrato de seguro, dispõe de diversos foros alternativos, podendo optar pelo tribunal que for mais favorável aos seus interesses, de acordo com o princípio de protecção da parte mais fraca, e desde que a acção directa seja possível, o que sucede na situação presente (artigo 146º nº 1 do Decreto-Lei nº 72/2008, contendo o Regime Jurídico do Contrato de Seguro).
XI. No mesmo sentido, já se pronunciou o Acórdão da Relação do Porto de 09.05.2013 (Proc. 1782/06.2TBAMT.P1, disponível em wwww.dgsi.pt), relativamente a um litígio que opunha o lesado residente em Portugal, vítima de um acidente ocorrido em Espanha, à ré seguradora, sedeada em França, bem como o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.10.2009 (processo n.º 1067/07.6TBBNV.L1.S1, disponível em wwww.dgsi.pt), relativamente, precisamente, como o caso que nos ocupa, a litígio em que uma empresa portuguesa demanda companhia de seguros francesa, pelos danos emergentes de acidente de viação ocorrido em França, com veículo segurado nesta última.
XII. Similarmente, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, conforme se dá conta no Acórdão de 31.01.2018, processo C‑106/17, proferido no âmbito de um pedido de reenvio prejudicial, e estabelecendo além do mais que «o artigo 11º, nº 1, alínea b), e o artigo 13º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012 retomam, no essencial, as redacções respectivas do artigo 9º, nº 1, alínea b), e do artigo 11º, nº 2, do Regulamento nº 44/2001» (por referência aos acórdãos de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C-352/13, EU:C:2015:335, n.º 60, e de 21 de Janeiro de 2016, SOVAG, C-521/14, EU:C:2016:41, nº 43).
XIII. Posto isto, as regras do Regulamento 1215/2012 que foram invocadas pelo Tribunal a quo não têm aqui aplicação relativamente à R. (segurador), porquanto estamos perante situação regulada pelas regras especiais do citado art.º 13º, nº 2.
XIV. Face ao exposto, a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo violou, entre o mais, os artigos arts.1º, 4º, 5º e 7º nº2, 11º, 13º, nº 2 do Regulamento (UE) nº 1215/2012, o artigo 146º, nº 1, do D.L. nº 72/2008, bem como os artigos os art.96º al. a), 97º nº1, 99º nº1, todos do CPC.
XV. Impondo-se, consequentemente, que a Douta sentença seja substituída por Douto Acórdão que revogue aquela e, consequentemente, julgue o Tribunal A Quo competente e ordene o prosseguimento dos autos.
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Perante o antes exposto, resulta claro que é a seguinte a questão suscitada no presente recurso:
A de saber se o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Cível de Oliveira de Azeméis é internacionalmente competente para tramitar a decidir a acção dos autos.
Como resulta dos autos, está para decisão uma acção para efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação ocorrido em território francês no qual foi interveniente um veículo de matrícula francesa segurado na ré.
Tendo em conta o valor do pedido formulado, a acção só podia ser intentada, como foi, contra a seguradora – cf. art.º 64.º/1, al. a), do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto (estabelece o novo regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel).
Por outro lado, é consabido que a competência internacional se encontra prevista no artigo 59º do CPC, nos seguintes termos: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.”
A ser assim e por força do primado do direito comunitário sobre as leis nacionais, o regime previsto nos regulamentos europeus prevalece sobre as normas processuais contidas no CPC.
Perante o acabado de referir, impõe-se considerar o que está previsto no Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro.
De acordo com o mesmo, no caso de acção intentada pelo lesado directamente contra o segurador, desde que tal acção directa seja possível, deve aplicar-se o disposto nos artigos 10.º, 11.º e 12.º do Regulamento (cf. o art.º 13.º/2 do Regulamento).
Tendo em conta o objecto da presente acção, definido pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir, resulta em nosso entender evidente que o regime aplicável é o que decorre dos referidos artigos 10.º, 11.º e 12.º.
Assim e desde logo o art.º 11.º, segundo o qual:
1. O segurador domiciliado no território de um Estado-Membro pode ser demandado:
a) Nos tribunais do Estado-Membro em que tiver domicílio;
b) Noutro Estado-Membro, em caso de acções intentadas pelo tomador de seguro, o segurado ou um beneficiário, no tribunal do lugar em que o requerente tiver o seu domicílio; ou
c) Tratando-se de um cossegurador, no tribunal de um Estado-Membro onde tiver sido intentada acção contra o segurador principal.
2. O segurador que, não tendo domicílio num Estado-Membro, possua sucursal, agência ou qualquer outro estabelecimento num Estado-Membro será considerado, quanto aos litígios relativos à exploração de tal sucursal, agência ou estabelecimento, como tendo domicílio nesse Estado-Membro.”
Perante o exposto, cabe pois concluir como se conclui no Acórdão da Relação de Lisboa de 11.10.2018, no processo 20953/17.9T8LSB.L1-6, relatado pela Desembargadora Ana Paula Carvalho, em www.dgsi.pt.:
“Por aplicação das disposições especiais dos artigos 11º nº 1 al. b) e artigo 13º nº 2 do Regulamento (EU) nº 1215/2012, o tribunal português é internacionalmente competente para julgar o litígio em que a autora, residente em Portugal, demanda a ré, companhia de seguros francesa (com representação em Portugal), pelos danos emergentes de acidente de viação ocorrido em França, com veículo segurado nesta última, por aplicação do princípio de protecção da parte mais fraca e por ser possível a acção directa em matéria de seguro de responsabilidade civil automóvel, nos termos do artigo 146º nº 1 do Decreto-Lei 72/2008, de 16/04 (Regime Jurídico do Contrato de Seguro).”
No mesmo sentido, cf. o Acórdão do TJUE de 30.06.2022. proferido no processo C-652/20, ECLI: EU:C:2002:514, no qual e nos pontos 29,30 e 31 se adopta o entendimento que aqui sufragamos.
Nestes termos, impõe-se pois conceder provimento ao recurso aqui interposto e revogar nos termos propostos a decisão proferida.
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Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
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III. Decisão:
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso, razão pela qual se revoga a decisão recorrida, declarando-se o tribunal competente em razão da nacionalidade e determinando-se o prosseguimento dos autos.
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Custas a cargo da parte vencida a final (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.


Porto, 11 de Janeiro de 2024
Carlos Portela
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida