PROCESSO DE INVENTÁRIO
TRAMITAÇÃO
Sumário


No que concerne ao processo de inventário, ultrapassada a Fase Inicial do processo (da Apresentação da Relação de bens), segue-se a fase da Oposição (à Relação de Bens), a da Audiência Prévia (caso haja lugar à mesma), e a do Saneamento e Conferência de Interessados, na qual são decididas as questões
relacionadas com a partilha (sobre a adjudicação dos bens e a aprovação do passivo).

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

1 RELATÓRIO

Em 05-06-2020, AA, residente na Rua ... freguesia ..., ... ..., veio instaurar processo de inventário para partilha de bens comuns do extinto casal[1], sendo requerido BB, residente na Rua ... ... e ..., ... ..., a quem deve ser atribuído o cargo de cabeça de casal.

Aberta conclusão, em despacho liminar, em 19-06-2020, a Srª. Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
Nomeio como cabeça de casal BB.
Cite-o nos termos do art. 1102º, nº 1 do CPC.

*

Os autos seguiram a sua normal tramitação, tendo o Cabeça de Casal juntado relação de bens em 9-10-2020[2], a requerente reclamado da mesma em 4-11-2020[3] e o Cabeça de Casal respondido em 15-12-2020[4].

Para decisão da reclamação de bens, ocorreu a instrução dos autos, tendo sido notificado o Banco 1... para juntar extratos e prestar informações bancárias, inquiridas testemunhas e prestadas declarações de parte (o que se estendeu por várias sessões). Os interessados prestaram os esclarecimentos decididos e um credor - EMP01..., Ldª - veio reclamar o seu crédito. Após ter prestado declarações de parte, a requerente requereu a junção de documentos, a qual, após contraditório, foi admitida.

A Srª Juiz a quo decidiu em 25-07-2022 sobre a reclamação de bens.

O Cabeça de Casal foi notificado para apresentar relação definitiva de bens em conformidade com a decisão da reclamação da relação de bens, o que fez em 10-11-2022.

Relativamente a esta relação de bens, além de se ter pronunciado o supra mencionado credor EMP01..., Ldª[5], fê-lo também a requerente em 21-11-2022, suscitando várias questões, às quais o Cabeça de Casal respondeu em 7-12-2022. A requerente veio ainda requerer a avaliação de bens em 12-12-2022.

Em 13-12-2022, a Srª Juiz a quo veio designar data para a conferência de interessados, para onde relegou a apreciação das questões dos valores dos bens e do passivo.

Em 20-12-2022, a requerente apresentou o seguinte requerimento:
AA, Requerente, melhor identificada no processo á margem referenciado, devidamente notificada do despacho, vem aos autos dizer e requerer a V. Exa. o seguinte:
1. Com o devido respeito, que é muito, foi designado o dia 31-01-2023, pelas 15h, para a realização da conferência de interessados.
2. Como decorre do requerimento apresentado a 12/12/2022, a requerente Deolinda, pretende a avaliação dos bens; direito este que não lhe pode ser negado.
3. Tal como determina o artigo 48 n.º 2 do Código do Processo Civil “As diligências referidas na alínea a) e b) podem ser procedidas de avaliação, requerida pelo interessado, ou oficiosamente determinada pelo Notário, destinada a possibilitar a repartição igualitária e equivalente dos bens pelos interessados”.
4. Assim, trata-se de um Direito que qualquer dos interessados podem requerer, e que não pode ser coertejado.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, requer que se digne mandar avaliar os bens que o Cabeça de Casal pretende que lhe sejam adjudicados sob pena de omissão de tal acto consubstanciar uma nulidade processual.
De V. Exa. pede e espera deferimento;

O que deu azo, em 5-01-2023, ao seguinte despacho:
A interessada requer a avaliação dos bens ao abrigo do artigo 48º. n. 2 do CPC que não corresponde a qualquer preceito de avaliação.
Todavia, o artigo 1114º do CPC prevê que, até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação dos bens, devendo indicar aqueles sobre os quais deva recair a avaliação e as razões da não aceitação do valor atribuído.
Ora, os bens em causa são veículos automóveis e outros bens móveis, cujo valor pode ser aferido pelos próprios meios da interessada, já que a mesma alega que estão relacionados com valores muito inferiores aos valores de mercado, ou seja, a interessada já saberá quais os valores de mercado. Caso contrário diria que "desconhece" o valor de mercado dos mesmos.
Pelo que não é dada correta justificação sobre a não aceitação dos valores dos valores dos bens relacionados, indeferindo-se por o requerimento de avaliação não observar a exigência do artigo 1114º n. 1 do CPC.
Por outro lado, não sabendo agora, fora da conferência de interessados, se se entrará na fase das licitações, é inoportuno fazer qualquer avaliação.
Assim, aguardem os autos a diligência agendada.
Notifique.

Constando da acta da conferencia de interessados, que decorreu em 22-06-2023, o seguinte:
Iniciada a diligência, foi dada a palavra aos Il. Mandatários das partes para se pronunciarem sobre o passivo relacionado, tendo a Il. Mandatária do cabeça de casal dito que aprova o passivo, e tendo a Il. Mandatária da interessada AA dito que não aprova o passivo relacionado na parte que lhe respeita.
Seguidamente pelo Il. Mandatário da credora foi pedida a palavra a qual lhe concedida e no seu uso disse:
EMP01..., Ld.ª, vem nos termos do artigo 1106 do CPC, expor:
Verifico que na reclamação de créditos corrigida reportou os montantes à data do trânsito em julgado da decisão proferida na Ação de Divórcio em 16-06-2016, por desconhecer a data da entrada em Juízo da Ação de Divórcio, 4-05-2016. Nessa conformidade requer a V.ª Ex.ª se digne admitir a reformulação da reclamação de créditos para o seguinte montante de capital vencido àquela data, € 5.805,48; tendo em vista o tempo decorrido e por considerar útil e pertinente à decisão reputa o montante dos juros moratórios desde a data de cada uma das faturas até hoje, arredondado por defeito à taxa lega de 7%, aplicável às obrigações comerciais os quais se cifram em € 4.290,02, num total atual (hoje) de € 10.095,50.
Mais requer a V.ª Ex.ª, por se encontrarem nos autos todos os documentos comprovativos do crédito relacionado, se digne reconhecê-lo, com as legais consequências.
Nesta altura, a Mmª. Juiz proferiu o seguinte:
DESPACHO
Na relação de bens inicial de 9-10-2020, o cabeça de casal relacionou uma dívida no valor de € 6.000,00 a EMP02..., referente a prestação de serviços. A interessada AA, na reclamação de 4-11-2020, referiu que tal verba deveria ser excluída porquanto, se existe passivo, ele será da inteira responsabilidade do cabeça de casal BB, porque contraído por este após a dissolução do matrimónio.
Uma vez citado o credor EMP01..., Ld.ª, veio em 28-02-2022 (com a retificação de valores apresentada no dia de hoje), reclamar a dívida do património comum relativo a materiais, serviços, peças e acessórios, de acordo com as faturas juntas pelos documentos ... a ...5 do requerimento de 28-02, no valor global de € 5.805,48, computando os juros, à data de hoje, no valor de € 4.290,025.
A interessada AA não aprova a parte da dívida na quota parte que lhe diz respeito.
Preceitua o artigo 1106, n.º 4 do CPC que se houver divergência entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida, aplica-se o disposto nos nºs 1 e 2 relativamente à quota parte dos interessados que não impugnaram e quanto à parte restante o Juiz deve apreciar a sua existência, o seu montante se a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados.
Decidindo e atendendo a que a Ac. de Divórcio deu entrada em .../.../2016, é a esta data que retrotraem os efeitos patrimoniais do divórcio, já que não existe outra data fixada para tal efeito.
Assim sendo e por estar devidamente documentada pelas faturas juntas 1 a 25 acima referidas, declaro a existência da referida dívida na quota parte respeitante à interessada AA, dado que todas as faturas referidas têm data anterior a .../.../2016.
Notifique.
(…)
*
Inconformada com essa decisão na parte que lhe diz respeito, a Requerente interpôs recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

1.
O douto despacho de que se recorre determinou entre o demais que “A interessada AA, não aprova a parte da dívida na quota parte que lhe diz respeito”.
2.
Retroagem o artigo 1106 n.º 4 do C.P.C. que se haver divergência entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida, aplica-se o disposto no n.º(s) 1 e 2 relativamente á quota parte dos interessados que não impugnaram e quanto á restante parte o Juiz deve apreciar a sua existência, o seu montante se a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados. (Sublinhado nosso)
3.
Decidindo e atendendo a que a Ac. de divórcio deu entrada em .../.../2016, é a esta data que retratam os efeitos patrimoniais do divórcio, já que não existe outra data fixada para tal efeito.
4.
Assim sendo e por estar devidamente documentada pela fatura junta 1 a 25 acima referidos, declaro a existência da referida divida na quota-parte respeitante á interessada AA, dado que todas as faturas referidas têm data anterior a .../.../2016” (sublinhado nosso).
5.
Ora, Venerandos Desembargadores não podíamos estar mais em desacordo com esta decisão da Meritíssima Juiz do Tribunal de que se recorre.
6.
Pois tal decisão não pode ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados.
7.
Existe uma clara violação do princípio do contraditório, por parte da MM. Juiz do Tribunal de que se recorre.
8.
Os documentos juntos aos autos não são suficientes para a questão ser resolvida com segurança.
9.
E de tal forma assim é, que na sentença proferida nos presentes autos (referencia :...60), onde já constavam à data os referidos documentos, foi decidido que, o qual passamos a transcrever “Quanto ao passivo, o mesmo deve manter-se relacionado, sendo a sua aprovação posta à aprovação da interessada e do cabeça de casal aquando da realização da conferência de interessados”.
10.
Realizada a conferencia de interessados, a requerente não aceitou o passivo.
11.
Carecia o presente despacho de ser precedido de produção de prova; e precedido do direito conferido à requerente do principio do contraditório!
Não obstante;
12.
A MM. Juíz do tribunal “A Quo” proferiu o despacho recorrido sem que fosse exercido o direito ao contraditório, previsto no artigo 3 nº 3 do C.P.C., que dispõe: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
13.
Como resulta dos autos, o cabeça de casal exerce a atividade de “mecânico de automóveis”.
14.
E foi no âmbito dessa atividade que as dívidas foram contraídas ao credor “EMP01..., Lda.”, cujo objeto consiste na venda de peças, Alfaias agrícolas e máquinas industriais.
15.
A MM. Juiz do tribunal de que se recorre, podia e devia ter exercido o princípio do contraditório, tal como preceitua o artigo 3 n.º 3 do Cód. Processo Civil”.
16.
Dispõe o artigo 1691 n.º 1 alínea d) do Cód. Processo Civil que: “São da responsabilidade de ambos os cônjuges as dividas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se os cônjuges forem casados no regime da separação de bens”.
17.
Existe uma presunção que pode ser ilidida mediante produção de prova em contrário.
18.
A divida contraída pelo cabeça de casal não o foi em proveito comum do casal;
19.
E tanto assim é que, no processo de divórcio que correu termos entre a requerente e o cabeça de casal, sob o n.º 1622/16...., juízo de família e menores ... – Juiz ...; não consta da relação de bens comuns apresentada qualquer passivo. (Cf. Doc. n.º ... que se junta e cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido).
20.
O Doc. n.º ... encontra-se junto ao processo de cujo despacho se recorre.
21.
Ao não ter exercido o princípio da contraditório, a MM juiz do tribunal de que se recorreu, violou um princípio fundamento do direito processual civil, devendo assim o douto despacho que declarou a existência da referida divida na quota parte respeitante à interessada AA, ser revogado.
Nestes termos e nos demais de direito que V. (s) Ex. (s) doutamente suprirão, deverá o despacho ser revogado e substituído por outro, prosseguindo os autos os seus termos até final.
Assim fazendo V. Exas a inteira justiça.
*

O credor EMP01..., Ldª apresentou contra alegações, que finalizou com a apresentação da seguinte síntese:
1
A recorrente teve oportunidade de exercer, como exerceu, o contraditório quanto ao crédito do ora
recorrido, tanto quando relacionado pelo cabeça de casal, como quando reclamado pelo credor, como no decurso da própria Conferência de interessados.
2
Cabia à recorrente o ónus da prova de que a dívida relacionada pelo cabeça de casal e reclamada pelo credor não fora contraída em proveito comum do casal. Conforme estatui o artº 1106-3 CPC
3
Os meios de prova carreados para os autos pela recorrente, em especial o documento com a relação de bens indicada no processo de divórcio, eram insuficientes, máxime, inidóneos para infirmar o proveito comum do casal da dívida relacionada e reclamada pelo recorrido.
4
No que respeita à matéria de facto, o presente recurso não, identificando os concretos pontos que considera incorrectamente julgados, nem os meios probatórios que impunham decisão diversa, não cumpre os requisitos do artº 640º 1a), b) CPC
5
No que respeita à matéria de Direito, a recorrente não indica, concretamente, a(s) norma(s) jurídica(s) alegadamente violada(s), assim violando o artº 639º 2, CPC
6
O crédito reclamado no valor fixado de 5.805,48€ encontra-se titulado e documentado pelas respectivas facturas juntas aos autos, conforme referenciado pelo Douto Despacho recorrido.
7
Os documentos juntos aos autos demonstram que aquele crédito foi constituído na constância do matrimónio do devedor, no exercício da actividade comercial/profissional a que ele se dedicava, sendo da responsabilidade de ambos os cônjuges nos termos do artº 1691, 1d) CC.
8
O valor dos juros moratórios imputados correspondem, (arredondados por defeito), à taxa de juros legal de 7% aplicável às obrigações comerciais, sobre os valores em dívida desde a data dos respectivos vencimentos até 22/6/2023, data da conferência de interessados.
9
Não merece qualquer reparo o Douto Despacho recorrido, mostrando-se improcedentes todas as conclusões recursivas.
Nestes termos e nos melhores de Direito Doutamente supridos, deverá ser denegado provimento ao presente recurso, confirmando-se in tottum o Douto Despacho recorrido, assim se fazendo inteira Justiça.
*

A Exmª Juiz a quo proferiu despacho a admitir o interposto recurso, providenciando pela subida dos autos.

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Foram facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos.
*

Nas alegações recursórias que apresentou, a apelante entende ter sido violado o princípio do contraditório quanto à decisão recorrida, tal como preceitua o art. 3º/3 do CPC, carecendo o despacho de ser precedido de produção de prova. Ora, a violação do princípio do contraditório, salvo melhor opinião, consubstancia a pratica de uma nulidade processual, que influiu no exame ou decisão da causa (cfr. art. 195º/1 do CPC).
Não se tendo a Mmª juiz a quo pronunciado expressamente sobre o apontado vício formal, como dispõe o art. 617º/1 do citado diploma, face à simplicidade da questão suscitada e face aos elementos que constam dos autos, nos termos do nº 5 da já referida norma, não se mostra indispensável ordenar a baixa dos autos para a apreciação da nulidade.
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Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2QUESTÕES A DECIDIR

Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões formuladas pela apelante, esta pretende que a decisão supra descrita, relativamente à qual entende ter sido violado o princípio do contraditório, vício previsto no nº 3 do art. 3º do CPC, carecendo o despacho de ser precedido de produção de prova, seja revogada e substituída por outra.
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3OS FACTOS

Os pressupostos de facto a ter em conta para a pertinente decisão são os que essencialmente decorrem do relatório que antecede.
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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Entende a recorrente/requerente não ter sido acertada a decisão recorrida, relativamente à qual entende ter sido violado o princípio do contraditório, tal como preceitua o art. 3º/3 do CPC, carecendo o despacho de ser precedido de produção de prova.
Na verdade, dispõe o nº 3 do art. 3º do CPC que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo licito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Ora, a não observância do princípio do contraditório, no sentido de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões que importe conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constituiu uma nulidade processual nos termos do art. 195°/1 do CPC, obedecendo a sua arguição à regra geral prevista no art. 199° do CPC.
Assim, antes de proferir a decisão o juiz deve conceder às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre todas as questões, ainda que de direito e de conhecimento oficioso, sendo proibidas as decisões surpresas.
No caso vertente, compulsados os autos, nada disso se passou, pois o passivo em causa foi desde sempre do conhecimento da ora recorrente, desde logo tendo sido relacionado pelo Cabeça de Casal, em 9-10-2020, na relação de bens original, tendo a ora apelante, na subsequente reclamação, requerido a sua exclusão, porquanto se existe passivo ele será da inteira responsabilidade do requerido, porque contraído por este após a dissolução do matrimónio; tal como se comprova pelo documento n.º... junto (Na data de dissolução do matrimónio não foi relacionado passivo!). Ademais, previamente à decisão sobre a matéria relativa à reclamação de bens ocorreu ampla instrução dos autos, tendo os interessados indicado e produzido prova, ocorrendo inquirição de testemunhas e sido prestadas declarações de parte, tendo mesmo a ora apelante junto mais documentos após estas. Entretanto, o credor em causa - EMP01..., Ldª - reclamou nos autos o seu crédito, do que foi dado conhecimento aos interessados para contraditório. Posteriormente, a Srª Juiz a quo decidiu em 25-07-2022 sobre a reclamação de bens, tendo considerado assente determinada matéria e quanto ao passivo, decidiu que o mesmo deve manter-se relacionado, sendo a sua aprovação posta à aprovação da interessada e do cabeça de casal aquando da realização da conferência de interessados. Lembrando-se que dessa decisão consta ter sido abordado na produção de prova a questão do passivo, como melhor resulta da Fundamentação da decisão da matéria de facto[6]. Sendo que aí, na conferência de interessados, após ter sido dada a palavra aos Il. Mandatários das partes para se pronunciarem sobre o passivo relacionado, tendo a Il. Mandatária do cabeça de casal dito que aprova o passivo, e tendo a Il. Mandatária da interessada AA dito que não aprova o passivo relacionado na parte que lhe respeita. E tendo-se depois da pronúncia do credor, seguido a decisão recorrida.
Verificando-se inequivocamente não ter sido violado o princípio do contraditório, não assistindo qualquer razão à recorrente, pois relativamente ao passivo também houve prévia produção de prova, sendo que no decurso da mesma, a própria apelante até reconheceu existirem as dívidas que o Cabeça de Casal relacionou.
*
Resta, pois, a reapreciação da decisão recorrida propriamente dita.
A questão a apreciar insere-se no âmbito da tramitação do processo de inventário.
Atenta a data da respetiva instauração (05-11-2020), ao presente processo de inventário é aplicável o regime emergente da Lei nº 117/2019 de 13 de Setembro, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2020 e que alterou o regime do processo de inventário.
Tal como nos dizem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres[7]O novo modelo do processo de inventário assenta em fases processuais relativamente estanques e consagra um princípio de concentração dado que fixa para cada ato das partes um momento próprio para a sua realização.”
Explicam estes autores que, no modelo ora instituído, o processo de inventário para fazer cessar a comunhão hereditária, comporta as seguintes fases:
- Uma fase dos articulados na qual as partes, para além de requererem instauração do processo, têm de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respectivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, activo e passivo, que constitui objecto da sucessão. Esta fase abrange a subfase inicial (arts. 1097º a 1002º) e a subfase da oposição (arts. 1104º a 1107º). No articulado de oposição devem os interessados impugnar concentradamente todas as questões que podem condicionar a partilha, nomeadamente, apresentar reclamação à relação de bens (vd. art. 1104º do CPC).
- A fase de saneamento, na qual o juiz, após a realização das diligências necessárias – entre as quais se inclui a possibilidade de realizar uma audiência prévia – deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar e também proferir despacho sobre a forma da partilha.
- A fase da partilha onde ocorrerá a conferência de interessados na qual se devem realizar todas as diligências que culminam na realização da partilha.
Sendo que, por via do disposto no art. 549º/1 do CPC, à tramitação do inventário são aplicáveis as disposições da parte geral desse Código, bem como as regras do processo civil de declaração que se mostrem compatíveis com o processo de inventário judicial.
Abandonada a experiência subsequente de atribuição aos cartórios notariais da competência exclusiva para a tramitação dos inventários, tendo em conta os frustrantes resultados, a nova regulamentação foi orientada pelo objetivo de modernizar tal processo especial contribuir para a resolução célere e justa de partilhas litigiosas. Para tal, considerou-se, desde logo, impor ao requerente (seja ou não cabeça de casal) o ónus de alegar e demonstrar os factos mais relevantes, de modo que, citados, os demais interessados, possam exercer o seu direito de defesa em toda a amplitude, mas com efeitos preclusivos, tornando mais eficiente a tramitação, mediante a concentração dos atos em cada uma das diversas fases processuais. Não se compreendendo, aliás, a persistência no campo do processo civil de um “enclave” no qual as regras processuais pudessem ser manipuladas em função das conveniências de ordem meramente particular; ao invés, o facto de no inventário se conjugarem diversos interesses exige a fixação de regras que, embora sem uma absoluta rigidez formal, contribuam para a resolução oportuna das diversas questões e, a final, para a concretização de partilhas justas e equilibradas, num prazo razoável. Neste novo cenário, o requerimento inicial assemelha-se a uma verdadeira petição inicial…[8].
Inequivocamente que o novo regime do processo de inventário visa uma tramitação mais eficaz e mais célere dos processos.
No caso, estamos claramente na fase da partilha.
Efectuadas estas considerações gerais, no que se refere ao caso concreto, temos que questiona a recorrente que a Srª Juiz a quo pudesse apreciar da existência do passivo em causa – a dívida no valor de € 6.000,00 a EMP02... –, pois a questão não podia ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados, por não serem suficientes. O que sustenta com os próprios termos da sentença, aonde, em 25-07-2022, a Srª Juiz a quo decidiu sobre a reclamação de bens, em que, apesar de já existirem os referidos documentos, referiu que “Quanto ao passivo, o mesmo deve manter-se relacionado, sendo a sua aprovação posta à aprovação da interessada e do cabeça de casal aquando da realização da conferência de interessados”.
Ora, salvo o devido respeito, a questão suscitada só se pode compreender como fruto de uma incompleta leitura da decisão proferida, ou, em qualquer caso, por equívoco ou deficiente compreensão da mesma.
É que, se bem compulsada for a decisão mencionada, não pode deixar de se verificar que o passivo em causa e que estava relacionado, não sendo questionado pela interessada recorrente que até reconheceu nos autos a sua existência como já supra mencionado, apenas questionava poder ser também responsabilizada por ele, entendendo que o mesmo será da inteira responsabilidade do requerido, porque contraído por este após a dissolução do matrimónio.
Partindo deste contexto, não tendo a requerente aprovado o passivo relacionado na parte que lhe respeita, contrariamente ao Cabeça de Casal que o aprovou, a Srª Juiz a quo deu cumprimento ao legalmente previsto, socorrendo-se do disposto no art. 1106º do CPC, uma vez que a questão podia ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados, dado que todas as faturas referidas têm data anterior a .../.../2016 e atendendo a que a Ac. de Divórcio deu entrada em .../.../2016, sendo a esta a data que retrotraem os efeitos patrimoniais do divórcio, já que não existe outra data fixada para tal efeito, declarou assertivamente, com respeito pelo disposto no art. 1789º do CC, a existência da referida dívida na quota parte respeitante à interessada AA.
Não merecendo a decisão recorrida qualquer reparo, pois a deliberação sobre o passivo e a forma do seu pagamento, era assunto a submeter à conferência de interessados (cfr. art. 1111º do CPC). Logo, tal decisão assenta em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova.
Em suma, atendendo à tramitação processual do processo de inventário, em que, ultrapassada a Fase Inicial do processo (da Apresentação da Relação de bens), se segue a fase da Oposição (à Relação de Bens), a da Audiência Prévia (caso haja lugar à mesma), e a do Saneamento e Conferência de Interessados, na qual são decididas as questões relacionadas com a partilha (sobre a adjudicação dos bens e a aprovação do passivo), verifica-se ter sido, in casu, a mesma cumprida e respeitada.
Como assim, não assistindo qualquer razão à recorrente, improcede o recurso, com custas a pagar pela mesma (art. 527º do CPC).
*
6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente e consequentemente manter a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
*
Guimarães, 25-01-2024

(José Cravo)
(Paulo Reis)
(António Figueiredo de Almeida)



[1] Tribunal de origem: Tribunal ... da Comarca ..., V.... - .... Menores - Juiz ...
[2] Relativamente ao passivo, relacionou nos seguintes termos:
PASSIVO
Verba n.º 1
Dívida no valor de três mil euros à EMP03... referente a prestação de serviços. -------------------------------3 000,00 €
(Cfr. com documentos que se protesta juntar sob o n.º 2)
Verba n.º 2
Dívida no valor de seis mil euros ao EMP02... referente a prestação de serviços. --------------------------------6 000,00 €
(Cfr. com documentos que se protesta juntar sob o n.º 3)
[3] Relativamente ao passivo, pronunciou-se nos seguintes termos:
Verba n.º1 e n.º2 do passivo – A verba n.º1 e n.º2 do passivo deverá ser excluída, porquanto se existe passivo ele será da inteira responsabilidade do requerido, porque contraído por este após a dissolução do matrimónio; tal como se comprova pelo documento n.º... junto (Na data de dissolução do matrimónio não foi relacionado passivo!)
[4] Relativamente ao passivo, disse o seguinte:

Desde já se diga que o Cabeça de Casal desconhecia o conteúdo da Relação de Bens junta como documento n.º ..., porque não a leu,

E porquanto a lista/conteúdo foi preparada pelo outro cônjuge e/ou pelos mandatários,
10º
Tendo-lhe sido dito que mais tarde poderia alterar tal rol de bens,
11º
Que desconhecia, nem lhe foram explicadas as implicações do regime de bens.
12º
Assim, e conforme Jurisprudência pacifica, a relação especificada dos bens comuns a que se reporta artigo o artigo 1419.º, n.º 1, alínea b), do CPC não é abrangida pelos efeitos do caso julgado da sentença que decretou o divórcio por mútuo consentimento, não ficando precludida a possibilidade de qualquer dos cônjuges vir a reclamar a partilha de um bem comum omitido na referida relação.
13º
Razões pelas quais desde já se impugnam o conteúdo e o teor do documento junto como n.º 1, bem como o alcance probatório que a Requerente dele pretende extrair.
[5] O que fez nos seguintes termos:
EMP01..., Ldª, com sede em EMP04..., ..., ..., NIPC ...00, credor reclamante nos autos supra referenciados de Inventário para partilha dos bens do dissolvido casal AA e BB, notificado da Relação de bens apresentada pelo cabeça de casal BB em 10/11/2022, vem:
EXPÔR:
1
O cabeça de casal quantifica sob a verba nº 2 do Passivo o crédito da ora requerente no montante de 6.000€.
2
Tendo o ora requerente reclamado em devido tempo o seu crédito, tomou conhecimento supervenientemente que o casamento de inventariado e inventariante foi dissolvido em 16/6/2016, data do trânsito em julgado da respectiva Sentença.
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Deste modo, apenas são da responsabilidade do dissolvido casal os valores devidos até à data da dissolução do casamento constantes do extracto de conta que se anexa, reflectindo as facturas juntas aos autos com a reclamação de créditos apresentada em 28/2/2022, cujo montante ascende a 5.977,24€ (Doc....)
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Pelo que o remanescente do crédito, constituído após aquela data é da exclusiva responsabilidade do requerido-cabeça de casal.
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Tem a ora requerente a haver os juros moratórios contados à taxa legal de 7% apenas sobre cada uma das facturas referenciadas naquele extracto de conta, até à data do efectivo e integral pagamento, não sendo exigíveis nestes autos os juros moratórios contados sobre o remanescente crédito da exclusiva responsabilidade do requerido-cabeça de casal.
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Os juros moratórios contados nos termos do artigo anterior perfazem na presente data a quantia de 3.809,84, conforme se verifica pela respectiva folha de cálculo que se anexa (doc....)
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Cifrando-se assim o crédito da reclamante em 9.787,08€ a que acrescem os juros vincendos contados à taxa legal sobre o capital de 5.977,24€ desde hoje até à data do efectivo e integral pagamento.
Isto Posto,
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Dá-se aqui por integralmente reproduzido, transcrito e integrado o alegado nos artºs 1º a 7º e 11º daquele articulado. (cf. cit. Doc)
Nestes termos e nos melhores de Direito Doutamente supridos, deverá ser fixado no montante de 9.787,08€ o montante do crédito reclamado, correspondente 5.977,24€€ ao capital e 3.809,84€, admitida a reclamante a intervir nos termos do artº 1085-2 CPC.
Para tanto requer a V. Exª que para os devidos e legais efeitos se digne ordenar a notificação aos requeridos para responderem, querendo, seguindo-se os demais termos, reservando-se a reclamante a faculdade de em sede de Conferência de interessados usar das prerrogativas consagradas nos nºs 5 a 7 do citado artº 1106 CPC.
[6] De onde consta terem-se pronunciado as testemunhas CC e DD, tendo a própria interessada/recorrente AA, em declarações de parte, dito que “Quanto a dívidas, havia uma de € 3.000,00 por causa da reparação do tractor e uma dívida de € 6.000,00 ao Sr. EE”.
[7] In O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, pág. 8.
[8] Vd. Ac. da RG de 2-06-2022, proferido no Proc. nº 374/20.7T8PTB-B.G1 e disponível in www.dgsi.pt.